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Não mais, mas ainda: experiência, arquivo, infância
Julio Groppa Aquino
Julio Groppa Aquino
Não mais, mas ainda: experiência, arquivo, infância
No longer, but still: experience, archive, childhood
No más, pero aún: experiencia, archivo, infancia
Childhood & philosophy, vol. 12, núm. 23, pp. 179-200, 2016
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
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Resumo: A partir de uma leitura sumária da obra conhecida como Os jogadores de cartas de Caravaggio, sugere-se inicialmente uma plataforma analítica acerca dos diferentes regimes de tempo imanentes à experiência do viver e, mais especificamente, à apreensão narrativa do vivido. Eis o que estaria em questão também na peça Incêndios de Wajdi Mouawad, de 2003, bem como no filme correlato de Denis Villeneuve, de 2010, no que se refere ao tour de force operado pelos filhos da personagem Nawal, os quais herdam a tarefa de recompor a história pessoal de sua mãe e, por extensão, as suas próprias, fazendo com que passado e presente se digladiem e, então, se confundam na forja arquivística daquelas vidas. O acento argumentativo aqui ensejado volta-se não a uma possível reapropriação preservacionista da memória, mas à descontinuidade artificiosa do arquivo, segundo as acepções a este conferidas por Michel Foucault e Arlette Farge, abrindo caminho para uma perspectiva da educação como empuxo a um trânsito aberto e sempre instável com o extraordinário arquivo do mundo e as temporalidades vertiginosas nele atuantes. Calcado em tal premissa, o texto conclui propondo uma mirada em direção à infância como potência de reinvenção discursiva que os mais novos são eventualmente capazes de materializar a partir das pegadas que os mais velhos deixam para trás.

Palavras-chave:arquivoarquivo,infânciainfância,IncêndiosIncêndios,Wajdi MouawadWajdi Mouawad.

Abstract: Starting from a brief reading of Caravaggio’s painting The Cardsharps, the article begins by suggesting a theoretical platform for an analysis of the different regimes of time immanent in the experience of living and, more specifically, in its narrative apprehension. This is what is at stake in the play Scorched by Wajdi Mouawad and Denis Villeneuve’s film based on it - Incendies - which chronicles the journey of discovery undertaken by the children of one Nawal Marwan, as they inherit the task of pulling together their mother’s personal history and, by extension, their own, making past and present confront and mingle with each other in the archival forge of their lives. The discussions focus not on a preservationist reappropriation of memory, but on the ingenious discontinuity of the archive, according to the meanings which have been conferred to it by Michel Foucault and Arlette Farge, paving the way for a perspective of education as a push into an open and always unstable space of trafficking between the extraordinary archive of the world and the vertiginous temporalities acting on and within it. As such, this paper concludes proposing an approach to childhood as potency for the discursive reinvention that the young are eventually able to accomplish by following the footprints that their elders have left behind.

Keywords: archive, childhood, Scorched/Incendies, Wajdi Mouawad.

Resumen: A partir de un breve análisis de la obra conocida como Jugadores de Cartas de Caravaggio, se sugiere inicialmente una plataforma analítica sobre los diferentes regímenes de tiempo inmanentes a la experiencia del vivir y, más específicamente, a la aprehensión narrativa de lo vivido. Esto sería lo que estaría en juego también en la obra de teatro Incendios de Wajdi Mouawad, de 2003, y en la película correspondiente de Denis Villeneuve, de 2010, en cuanto un tour de force llevado a cabo por los hijos del personaje Nawal, quienes heredan la tarea de restaurar la historia personal de su madre y, por extensión, las suyas propias, haciendo que pasado y presente se enfrenten y luego se confundan en la construcción archivística de aquellas vidas. El acento argumentativo aquí deseado se vuelve no hacia una posible reapropiación preservacionista de la memoria, sino a la discontinuidad ingeniosa del archivo, según las acepciones que le confieren Michel Foucault y Arlette Farge, abriendo camino para una perspectiva de educación como empuje a un tránsito abierto y siempre inestable con el extraordinario archivo de mundo y las vertiginosas temporalidades que actúan en él. Basado en esa premisa, el texto concluye proponiendo una mirada hacia la infancia como potencia de reinvención discursiva que los más jóvenes, eventualmente, son capaces de materializar a partir de las huellas que los mayores dejan atrás.

Palabras clave: archivo, infancia, Incendios, Wajdi Mouawad.

Carátula del artículo

DOSSIÊ

Não mais, mas ainda: experiência, arquivo, infância

No longer, but still: experience, archive, childhood

No más, pero aún: experiencia, archivo, infancia

Julio Groppa Aquino
Universidade de São Paulo, Brazil
Childhood & philosophy, vol. 12, núm. 23, pp. 179-200, 2016
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Recepção: 15 Maio 2016

Aprovação: 18 Junho 2016

Quem dentre vós dirá convictamente:os alquimistas morreram - aqueles simples -morreram os conquistadores, os reis,os tocadores de alaúde, os mágicos.Oh, engano!

Adélia Prado




No primeiro plano da tela, sobre o qual o pintor faz incidir a luz diretamente, desenrola-se um jogo de cartas entre dois dos três personagens ali retratados, cada qual enredado em um tipo de gesto que não se confunde com o alheio. Em segundo plano, fora do jogo e aquém do alcance da luz primeira, o terceiro personagem está posicionado ao lado de um dos jogadores, a partir de onde é estrategicamente capaz de enxergar suas cartas.

Seja por descaso, por ingenuidade ou apenas por inexperiência, o jogador cujas cartas são avistadas permanece cabisbaixo, parecendo não se importar com o que se passa ao seu redor. Mas ele joga mesmo assim. E, se o faz, quer vencer. Por honra ou deleite, quer impor sua vontade ao outro.

Absorto em uma espécie de beatitude presente naqueles que creem na própria capacidade de derrotar o destino de uma maneira que tanto desconhecem quanto se esforçam por conhecer, ele não desvia o olhar das cartas de que dispõe, prendendo-as com as duas mãos. Quer fazer frente ao azar que, no entanto, não o abandonará. Em vão, ele calcula.

Entre os dois jogadores, ambos em pé, uma pequena mesa suporta a pressão do cotovelo direito de um, bem como a da mão esquerda dos outros dois. Sobre o aparato, repousa esquecido outro jogo, preterido, supõe-se, em favor das cartas, estas mais propícias ao embuste que ali toma lugar.

Frente a frente, os dois oponentes aparentam ser jovens, embora suas vestimentas os diferenciem, pois pertencem, presumidamente, a classes sociais distintas. O primeiro ostenta um traje elegante e sóbrio, ao passo que as roupas coloridas do outro não escondem as mangas mal cosidas. Soma-se um punhal preso na cintura do último.

Embora o rosto do segundo jogador só possa ser visto lateralmente, sua expressão atenta aos movimentos do adversário mais lembra a postura de um caçador, compenetrado no cumprimento de sua missão. Há de ser ágil; não há tempo a perder. Tal como seu oponente, ele também calcula. Suas contas, contudo, não se devotam aos caprichos aleatórios do destino, mas às reações em ato de seu adversário. A presa está fadada a um bote instantâneo.

Um nítido antagonismo é, assim, plantado pelo artista: a languidez do primeiro jogador em confronto com a sofreguidão do segundo. Dois regimes da vontade. Na peleja, a vagareza de um choca-se com a presteza do outro. Dois regimes de tempo, igualmente.

Enquanto o jogador plácido demora-se nas matemáticas do porvir, imaginando imiscuir-se na ordem das coisas, o outro mantém a mão direita atrás das costas, ocultando duas cartas-reserva presas a um cinto, uma delas a ponto de descarte, cuja aparição súbita no jogo tomará de assalto as previsões do adversário, demonstrando-lhe, afinal, a inocuidade dos intentos deste. O jogador ladino triunfará, não importa o quê. Mas não o fará sem a ajuda do terceiro personagem, somos levados a crer.

Situado ao fundo da tela, próximo à parede que delimita o enquadramento ótico a absorver um segundo foco de luz, o terceiro personagem aparenta ser mais velho do que os outros dois. Aparenta também uma condição social semelhante à do comparsa, de quem talvez pudesse ser o mentor. Barba por fazer, ele é o único dos três a vestir luvas; a da mão direita está puída ou rasgada nas pontas do dedo médio e do polegar.

Fora do campo de visão do jogador desavisado, ele sinaliza ao parceiro, com os dedos indicador e médio em riste, algo que vê. Num primeiro momento, deduz-se que se trata de uma informação sobre a configuração das cartas nas mãos daquele que está sendo ludibriado. Mas, se observada atentamente, sua expressão parece indicar algo de outra ordem.

Em que pese o fato de que não é possível enxergar um de seus olhos, barrado pela aba do chapéu do primeiro jogador, resta uma visão de conjunto de seu semblante que sinaliza, em alguma medida, um estado de perplexidade ou, talvez, de pavor. Sua testa enrugada, o olhar estatelado, a boca curvada, um pronunciado pasmo. O que ele avista que tanto o alvoroça?

Se fixarmos o foco tanto em sua feição quanto na do segundo jogador, eis que a atenção deles nem mais parece capturada pelo primeiro jogador, mas por algo que se anuncia por detrás das costas deste ou para além delas. Algo aí se insinua, se esgueira, abre passagem, não se pode refrear. Algo impronunciável, talvez.

Eis a ambiência cênica da obra de Michelangelo Merisi da Caravaggio intitulada I bari, cuja tradução aproximada para o português seria Os batoteiros, e não Os jogadores de cartas, tal como o quadro é usualmente conhecido. Segundo um clássico dicionário da língua italiana (ZINGARELI, 1928, p. 123), o verbete baro, no singular, comporta as seguintes acepções: servo de soldados; fraudador; ladrão do jogo de cartas; aquele que aufere barroco, ou seja, ganho ilícito.

A obra, datada de 1595 e pertencente à primeira fase (não religiosa) de Caravaggio, é um óleo sobre tela de 94,2 cm de altura por 130,9 cm de largura. Encontra-se, desde 1987, nos Estados Unidos, tomando parte do acervo permanente do Kimbell Art Museum, em Fort Worth, Texas.

O quadro conheceu várias destinações durante os seus mais de quatro séculos de existência. Primeiramente, foi adquirido pelo Cardeal Francesco Maria Bourbon del Monte, que viria a tornar-se patrono de Caravaggio, abrigando-o, inclusive, em seu palácio. Il bari passou, por herança, ao sobrinho do Cardeal, Alessandro del Monte, e então foi adquirido pelo Cardeal Antonio Barberini, que, novamente por herança, legou-o a seu sobrinho, Dom Maffeo Barberini, e este a seu filho, Dom Urbano Barberini. O próximo herdeiro seria o irmão deste último, outro cardeal - Francesco Barberini -, que o teria legado a uma sobrinha, esta ancestral da linhagem proprietária da última destinação conhecida do quadro: a família Colonna-Sciarra. Ali teria permanecido até o final do século XIX e, então, desaparecido. Um século mais tarde, foi redescoberto em uma coleção particular na Suíça, quando foi adquirido pelo museu texano.

Consagrado pelos estudiosos da obra de Caravaggio ora como um retrato realista dos costumes da época, ora como uma parábola moral contra o vício e a corrupção, Il bari presta-se aqui, no entanto, a outro tipo de perspectivação, mais afeita à alavancagem de certos efeitos de pensamento acerca do próprio ato de jogar cartas, do que à remissão aos supostos significados etéreos que aquela composição pictórica traria embutidos em si.

* * *

De maneira consoante ao jargão da mecânica segundo o qual haverá jogo quando houver uma folga imprevista entre as peças de determinado mecanismo, o ato de jogar contempla, a rigor, um conjunto de desvios. Outro domínio, o marítimo, vale-se de uma acepção igualmente inusitada da expressão: quando há balanço da embarcação causado pela agitação do mar.

Estendendo analogicamente tais noções ao âmbito das cartas, deduz-se que tal prática encamparia não apenas a observância do conjunto de condições formais para sua consecução, mas também os movimentos desagregadores de tais condições. Construção e ruína, portanto.

Isso significa que a disposição para equacionar matematicamente a sucessão arbitrária das cartas, por meio de respostas estratégicas à contingência dos números e naipes, figurará como condição necessária, mas não suficiente, para suplantar as vicissitudes do jogo. Infensa aos cômputos probabilísticos, a aparição casuística das cartas é o que decretará tanto a evolução quanto o desfecho da partida. Não há panaceia, portanto, uma vez que tudo dependerá, ao fim e ao cabo, dos arranjos ditados pelo acaso: azar ou sorte; malogro ou êxito; infortúnio ou regozijo. Aqui, não há meios-termos, tanto menos consolação.

Mais especificamente, um jogo de cartas, a despeito das regras pontuais que singularizam suas diferentes versões, é constituído por três domínios invariantes: um jogador, seu(s) oponente(s) e o monte de cartas. Este último guarda os segredos a que todos estão submetidos, cabendo a estes jamais ter ciência de antemão da sequência das cartas; caso contrário, a legitimidade do contrato que os une cai por terra. É possível afirmar, então, que o monte toma assento no jogo; mais correto dizer, ele é-lhe soberano.

Desta feita, uma ignorância expectante e mutuamente compartilhada por ambos os participantes instaura as condições de possibilidade da ação, atravessada, claro está, por diferentes regimes de tempo, sempre em altercação.

Que se imagine, então: sobre uma mesa qualquer repousam três conjuntos de cartas de uma partida já encerrada. Não apenas dois, mas três estratos de tempo distribuem-se ali de modo não complementar nem proporcional, embora em perpétuo entrelaçamento e em mútua pertença.

No primeiro plano, sempre mais evidente, repousam aquelas cartas que outrora habitaram a mão do vencedor. Trata-se das sequências inteiriças de jogadas que chegaram a um bom termo, fruto das escolhas presumidamente certeiras daquele jogador. Cartas que, alinhadas com precisão, se encaixam perfeitamente, fazendo recordar um desenho linear de feitos originados na suposta astúcia do vencedor; feitos cuja origem ele, encharcado de ingratidão para com o acaso, confundirá ora com predestinação, ora com livre-arbítrio seu. Tempo de triunfo; tempo de enfatuação.

De modo transversal e desconexo a elas, distribuem-se sobre a mesma mesa outras cartas, mas agora em disparate e rancor. Filhas do azar e em descomunhão com a urgência das conexões ansiadas, são aquelas que restaram desemparelhadas na mão do perdedor. Alheias ao fulgor geométrico dos esquemas orquestrados pelo adversário que a tudo fulminaram, elas não cumpriram seu destino esperado, não conheceram senão a fatalidade da procrastinação. Ao perdedor restará, então, o veredicto de uma descontinuidade nefasta a governar um conjunto de desfeitos seus, em relação aos quais não há remédio, exceto a constatação de que o acaso não foi generoso o bastante para ofertar-lhes alguma espécie de justa forma, senão uma vaga e, no limite, frustrada anunciação. Tais acontecimentos persistirão aprisionados no domínio das promessas não cumpridas. Irresoluto tempo subjuntivo das coisas; tempo de expectação.

Mas resta ainda uma terceira força presente no jogo, a qual não se dobra nem à impavidez do vencedor, nem ao silêncio desacorçoado do vencido, escapando inteiramente ao cerco totalizador da díade cálculo versus risco: as cartas que, viradas para baixo, resistem incógnitas no monte, sem encontrar uma forma possível de materialização. Signo bruto de um futuro que sequer ganharia a luz do dia, elas constituem-se de uma fibra única e distinta das cartas anteriores, já que permaneceram em um tênue estado de devir, tão logo desbaratado pelo ultimato do fim da partida.

Trata-se, essa última força, da mão-de-ferro do trágico a urdir ininterruptamente os acontecimentos deflagradores do jogo; trágico aqui compreendido como potência apenas. Potência intransitiva de composição e, no mesmo golpe, de aniquilação de todas as coisas. Potência de existir que recolhe não apenas o sonho difuso de prosperidade e bem-aventurança, mas também a soma de todos os medos, todos os acidentes e, enfim, a morte - horror e êxtase de todos nós, pobres viventes.

Eis aquilo que, a nós, se pode vislumbrar no olhar dos batoteiros de Caravaggio.

* * *

Atentos aos protocolos usuais de uma partida de cartas, é sobre a hipótese da experiência como superfície de um jogo que almejamos nos debruçar, tendo em mente a admoestação foucaultiana de que a

[...] experiência não é nem verdadeira nem falsa. Uma experiência é sempre uma ficção; é alguma coisa que se fabrica para si mesmo, que não existe antes e que poderá existir depois. É essa a relação difícil com a verdade, a maneira como esta última se acha engajada em uma experiência que não está ligada a ela e que, até certo ponto, a destrói. (FOUCAULT, 2010, p. 293-294)

Tal hipótese não se presta, em absoluto, a conjecturar uma analogia explicativa totalizante dos movimentos de uma vida, mas a fomentar um procedimento aberto e, se possível, indeterminado quando se trata de colocar em causa não apenas as pautas do agir, sempre incógnitas, mas também as composições narrativas acerca do que se viveu, sempre incertas. A experiência, portanto, não como expressão de uma memória cumulativa, mas como desvio e, no limite, desbaratamento seus.

A fim de evitar, a todo custo, uma apreensão positivadora dos eventos passados, a qual se atualiza amiúde por meio da extração de “uma lógica ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva, uma consistência e uma constância, estabelecendo relações inteligíveis, como a do efeito à causa eficiente ou final, entre os estados sucessivos” (BOURDIEU, 1996, p. 184), urge ombrear com a ortodoxia do próprio intento memorialístico - o que exigiria o discernimento de que tanto aquele que narra quanto aquele que é narrado não são senão dois pontos moventes em um presente igualmente movente, cujas rotações são desprovidas de qualquer significado transcendente.

Daí que o grau de dificuldade que se impõe àquele que computa seja os próprios passos, seja os alheios, não é determinado apenas pela vulnerabilidade e, em última instância, pela corruptibilidade das reminiscências, mas pela natureza escura, amorfa e, afinal, indócil da matéria que constitui a experiência e que não abre mão de continuar atuando no presente da narração. Força que se insurge contra toda forma de existir prisioneira da involução dos dias e que, sem pedir licença ou perdão, a faz latejar, estalar e fremir, ao arrepio da exiguidade sovina de um presente sempre em distrato com os viventes.

Senão vejamos: alijado da consonância entre a luminosidade dos acontecimentos que outrora abrigaram seus dias e o que deles resta em sua memória, o narrador persistirá assombrado por um encarniçado esprit de l'escalier: sua compreensão do vivido será sempre tardia, opaca, desventurada. Todas as coisas idas escapam-lhe sem cessar, sem jamais conhecer repouso, nem tradução.

Uma tartamudez infinita o assombra, sem, contudo, ser capaz de obliterar sua marcha. Cambaleante, ele prosseguirá narrando, de um modo ou de outro, o que assegura ter testemunhado, já que não pode fazer diferente. A verdade está a seu lado, ele crê sem pestanejar. Assim, entre a memória em dissipação e a própria intangibilidade do referente passado, tudo resumir-se-á a contar mais uma vez o que se viveu - acrescentando-lhe um ponto ou subtraindo-lhe outro, tanto faz.

Eis que, então, narrar uma vida metamorfoseia-se em um jogo dentro de outro jogo: nem irremediavelmente perdido, nem ganho sem a cooptação do oponente maior, qual seja, si próprio. Um jogo extemporâneo e sempre arriscado, em que já não há mais jogadores, mas apenas os indícios de sua presença, rastros de uma força antes cintilante, agora inerte. Retrato.

Disso decorre que, ao se fazer uso do expediente memorialístico a fim de prestar contas de uma existência, será inevitável emparedar seus acontecimentos constitutivos, imobilizando-os narrativamente. Todo encadeamento de feitos consistirá, assim, em uma ruptura voluntária e provisória do fluxo volumoso de intercorrências que condicionaram os fatos em voga na narração. Tempo rarefeito, episódico, que não conhecerá sucessão, a não ser aquela imputada artificial e estrategicamente pelo narrador, sobretudo quando está em causa o expediente confessional, autenticador compulsório de si mesmo. Isso porque

a confissão contém elementos de identificação do eu em uma tentativa deliberada e autoconsciente de explicar e expressar-se a uma audiência na qual o indivíduo existe e busca confirmação. [...] A confissão é, então, um ato comunicativo e expressivo, uma narrativa em que (re)criamos a nós mesmos por meio da criação de nossa própria narrativa, retrabalhando o passado, em público, ou pelo menos em diálogo com o outro. Quando o sujeito está confessando e criando o seu “eu”, parece sentir-se compelido a dizer a verdade sobre si mesmo. (BESLEY, 2008, p. 76-77)

Tratar-se-ia, então, de dizer a verdade da verdade e, com isso, liquidar de vez a peleja memorialística?

Revolver os itinerários de uma vida, desentranhando acontecimentos que, malgrado a inconstante vibração que deles emana, não se dobram ao sabor dos comandos incessantes do narrador, refratários que são a qualquer tipo de indulgência restitutiva. Escarafunchar vestígios de memória, próprios e alheios, em busca de um fio de verossimilhança que a tudo perpassasse. Desapegar-se das contingências para, então, repatriá-las ao modo de uma réstia identitária, com o fito de persuadir de que ali haveria mais que uma mera vida.

Não, descobre-se de pronto. “As palavras são vento, um sussurro exterior, um ruído de asas que mal ouvimos na seriedade da história” (FOUCAULT, 1987, p. 237-238).

À mercê das operações teleológicas da memória, em que se forjam os rumos das coisas havidas e não havidas, o mau hábito do narrador - à moda do embevecimento do vencedor do jogo de cartas - residiria precisamente na negligência do entrecruzamento permanente de diferentes dimensões de tempo a coabitar o encontro entre o vivido e o narrado.

Daí que entabular o jogo da experiência segundo outras regras não se logra senão como um gesto duplamente capaz de recusar tanto a psicologia estática dos jogadores quanto as matemáticas do jogar, voltando a atenção à imanência do monte de cartas - zona de indiscernibilidade entre passado e futuro, espaço de suspensão no qual narradores e narrados, vencedores e vencidos já não podem mais se distinguir. É lá que a experiência se aloja e, de lá, emite continuamente seus sinais, conquanto incompreensíveis a nós.

Se assim compreendido o trabalho de dizer a que se veio, ao narrador nada restará senão precipitar o encontro com uma verdade outra, inclinada mais ao perigo da própria dissolução do que aos rebatimentos da capitulação memorialística, esta recodificada em domesticação de todas as coisas que, entretanto, continuam a agitar-se sem trégua. Encontro despossuído de qualquer pretensão épica, já que composto de migalhas, bagatelas e minudências de uma pele já perdida incontáveis vezes, e sempre a ponto de fazê-lo novamente. Encontro improvável entre matérias heterogêneas, assimétricas e, no limite, incomunicáveis. Um jogo de cartas apenas, sem oponente, nem final.

* * *

Em uma entrevista do criador de Incêndios a um jornal brasileiro, Wajdi Mouawad manifesta seu desconforto em relação a uma passagem do filme correlato dirigido por Denis Villeneuve.

Há um breve momento, tão breve que as pessoas talvez nem percebam. Nawal, a protagonista, fala no ouvido do tabelião e, na cena seguinte, tenho sempre a impressão de que ele escreveu a carta dela para os filhos. Minha personagem é uma mulher que perdeu tudo. Aquela carta é sua única realização. Sugerir que outro a escreveu vai contra meu texto e a própria Nawal. (MERTEN, 2015, s.p.)

A carta em questão refere-se à cláusula derradeira do testamento da personagem Nawal Marwan. Segundo a vontade da mãe dos gêmeos Jeanne e Simon, ela deveria ser enterrada nua e sem caixão,

[...] Sem hábito, sem mortalha / Sem oração / E de rosto voltado para o chão. / Deponham-me no fundo de uma cova, / Testa-de-ponte contra o mundo. / À laia de despedida, / Lancem sobre mim / Cada um de vós / Um balde de água fresca. / Em seguida lancem a terra e selem o meu túmulo. [...] Nenhuma lápide deverá ser colocada / Nem o meu nome gravado. / Não há epitáfio para aqueles que não cumprem as suas promessas. / E houve uma promessa que não foi cumprida. / Não há epitáfio para aqueles que se calam / E eu calei-me. / Não há epitáfio para um nome ausente numa lápide ausente. / Não há nome. (MOUAWAD, 2013, p. 330-331)

Junto aos pouquíssimos pertences deixados aos filhos, Nawal lega-lhes uma incumbência insólita: à garota, entregar um envelope a seu pai, presumido morto; ao rapaz, entregar outro envelope, agora a seu irmão, cuja existência era desconhecida a ambos até então. Só então os gêmeos receberiam uma carta - aquela a que se refere Mouawad na entrevista supracitada -, a partir da qual o silêncio anterior seria rompido e, nos dizeres da personagem já desaparecida, “[...] poderá então ser posta uma pedra no meu túmulo / E o meu nome gravado na lápide ao sol” (MOUAWAD, 2013, p. 332). Uma promessa, enfim, se cumpriria, e não pelas mãos de quem a fizera. Um nome seria restituído a quem de direito.

Eis aqui, de pronto, o argumento principal da peça de teatro Incêndios, de 2003, transposta para o cinema em 2010, sob o mesmo título: dois jovens herdam, à revelia e a contragosto, a tarefa de recompor a história pessoal de sua mãe e, por extensão, as suas próprias. Para tanto, disporão apenas de um casaco de presidiário com a inscrição 72 nas costas, bem como um caderno contendo um depoimento acusatório contra um torturador - neste último caso, uma das divergências entre a peça e sua adaptação ao cinema.

Ladeados pelo tabelião Hermile Lebel, a quem foi confiada a execução do testamento de Nawal, Jeanne e Simon embarcam em um tour de force que os obriga a se defrontar, a partir de vestígios esparsos e desconexos, com a biografia materna que lhes fora negligenciada, sobretudo nos últimos anos de vida da mãe, quando, sem razão manifesta, ela caiu doente e perdeu a fala; mudez autoimposta, descobre-se mais tarde, entrecortada subitamente por uma pequeno mantra: “’Agora que estamos juntos, melhorou’” (MOUAWAD, 2013, p. 336).

O que de tão excruciante se escondia em seu banimento voluntário do mundo? Que forças ter-se-iam se apoderado daquele corpo suspenso entre a vida e a morte, petrificado por uma promessa não cumprida? Quem seria(m) aquele(s) de que Narwal tanto ansiava apenas estar junto?

A experiência impingida aos dois jovens protagonistas lança-os a uma espécie de mar aberto da ignorância, na esteira do qual será preciso adentrar um jogo cujas regras não se dizem. Hão de jogar apenas e, no decorrer da partida, aprender a fazê-lo.

Em outra entrevista, o diretor de Incêndios assim define seus intentos:

A busca é sair de sua casa atrás de algo que se encontra talvez no outro lado do mundo. [...] Desconfio muito do sentimento nostálgico, do lugar perdido, no entanto, creio que minha obra está na ordem da busca de algo perdido. [...] É um sentimento complexo, porque não sabemos definir o que é que nos falta hoje, mas algo nos falta. (GARFIAS, 2014, s.p., tradução nossa)

Na jornada rumo ao outro lado do mundo, os protagonistas são movidos pela percepção difusa de uma falta, nos moldes de um órgão amputado que persiste, no entanto, a reclamar seu direito de existência. E o faz de maneira recalcitrante.

Rajadas de tempo sobrevêm-lhes violentamente, decretando a revogação das vigas veridictivas de sustentação do presente, de maneira análoga a um estado de guerra, assim como o descreve Nawal: “Já não há tempo. O tempo é uma galinha a que se cortou a cabeça, o tempo corre como um louco, à esquerda e à direita, e, do seu pescoço cortado, o sangue submerge-nos e afoga-nos” (MOUAWAD, 2013, p. 371).

Tempo de cisma; tempo de desrazão.

A saga dos jovens personagens é assim sumarizada por uma comentadora:

[...] não temos aí apenas uma história de família como unidade social gregária, mas o avesso disso, resultado de um conjunto cujas partes foram separadas e cuja força de atração para uma reconstituição por um lado leva a uma busca de unidade e, por outro, conduz a uma fenda maior, constituída por falhas trágicas. (BULHÕES-CARVALHO, 2014, p. 60)

Tal como em Édipo-Rei, cuja estrutura dramatúrgica, resguardadas as respectivas especificidades das duas obras, poderia ser associada à de Incêndios, é por meio da exposição lenta e dolorida a uma exterioridade radical que os protagonistas podem, enfim, aceder a uma verdade íntima, desde logo, demasiado perturbadora. Sai de cena a epifania, entra a prova. Vai-se o golpe de misericórdia divino, adentra a contingência acidentada dos assuntos humanos. Desfalece o sujeito da memória, impõe-se o eu da experiência.

Podemos dizer, portanto, que toda a peça de Édipo é uma maneira de deslocar a enunciação da verdade de um discurso de tipo profético e prescritivo a um outro discurso, de ordem retrospectiva não mais da ordem da profecia, mas do testemunho. É ainda uma certa maneira de deslocar o brilho ou a luz da verdade do brilho profético e divino para o olhar, de certa forma empírico e quotidiano, dos pastores. (FOUCAULT, 2002, p. 40)

Retorcidas, as vozes do passado chegam a Jeanne e Simon em ondas assincrônicas, ora justapostas, ora estilhaçadas. Um emaranhado de mensagens disparatadas decreta-lhes um mandado de escuta e, ao mesmo tempo, de seleção e de corte. Será preciso reinventar o quebra-cabeça de uma história comum aos vivos e aos mortos sem o consolo da miragem de uma fundação, tanto menos a ilusão de repatriação dos acontecimentos relegados a escombros da memória alheia. Mais, a busca da origem das coisas revelar-se-á senão um vórtice de sofrimento, incompreensão e horror.

Um excerto de um diálogo da peça é revelador nesse sentido:

Há dois dias, os milicianos enforcaram três adolescentes refugiados que se arriscaram a sair dos campos. Porque é que os milicianos enforcaram três adolescentes? Porque dois refugiados do campo tinham violado e matado uma rapariga da aldeia de Kfar Samira. Porque é que esses dois tipos violaram essa rapariga? Porque os milicianos tinham lapidado uma família de refugiados. Porque é que os milicianos a lapidaram? Porque os refugiados tinham incendiado uma casa perto da colina do tomilho. Porque é que os refugiados incendiaram a casa? Para se vingarem dos milicianos que tinham destruído um poço escavado por eles. Porque é que os milicianos destruíram o poço? Porque uns refugiados tinham queimado as colheitas do rio do cão. Porque é que eles queimaram as colheitas? Deve haver uma razão, a minha memória pára aqui, não consigo ir mais atrás, mas esta história pode prosseguir ainda por muito tempo, sucessivamente, de cólera em cólera, de dor em tristeza, de violação em assassínio, até ao começo do mundo. (MOUAWAD, 2013, p. 363)

Alheia a toda ambição de pacificação das coisas pregressas ou, de outro modo, de acerto de contas com elas em prol de um futuro mais promissor, a singularidade argumentativa de Incêndios, quer-nos parecer, se perfaz no e pelo tipo de jogo narrativo estabelecido entre mais velhos e mais novos - compreendido aqui como trabalho, por excelência, educativo -, segundo o qual a estes é reservada uma tarefa obscura, truncada, não obstante incontornável, de obrigação para com a verdade, esta consubstanciada em um mosaico de forças em permanente duelo, fazendo com que passado e presente se digladiem e, então, se confundam na forja arquivística daquelas vidas.

Disso deriva uma perspectiva da educação, aqui defendida, como empuxo a um trânsito aberto e sempre instável com o extraordinário arquivo do mundo e as temporalidades vertiginosas nele atuantes; trânsito condicionado, no entanto, por um perene embate narrativo entre as gerações e pelos efeitos insondáveis que assombram tal embate, a fim de conjurar o silêncio trágico que, de um modo ou de outro, nos tocaia sem cessar.

* * *

Lê-se na carta-testamento da mãe: “Agora, é preciso reconstituir a história. / A história está em migalhas. / Lentamente / Consolar cada pedaço / Lentamente / Restaurar cada memória / Lentamente / Embalar cada imagem” (MOUAWAD, 2013, p. 416).

O clamor de Nawal por morosidade não parece ser adventício. Trata-se de um dos predicados basais quando está em curso outro tipo de jogo instituinte da experiência, agora lastreado pela imersão no arquivo do mundo, o que pressupõe o labor de uma verdade de todo extrínseca ao narrador. Experiência errática, turbulenta, anônima, dessubjetivadora. Nascente de vida, jamais sua desembocadura.

Ao confrontar a apreensão da experiência talhada por Nietzsche, Bataille e Blanchot àquela apregoada pela fenomenologia, Michel Foucault argumenta na seguinte direção:

[...] a experiência é tentar chegar a um certo ponto da vida que seja o mais perto possível do não passível de ser vivido. O que é requerido é o máximo de intensidade e, ao mesmo tempo, de impossibilidade. [...] A experiência em Nietzsche, Blanchot, Bataille tem por função arrancar o sujeito de si próprio, de fazer com que não seja mais ele próprio ou que seja levado a seu aniquilamento ou à sua dissolução. É uma empreitada de dessubjetivação. (FOUCAULT, 2010, p. 291)

Eis o ponto de inflexão em relação ao eu da experiência, antagônico ao sujeito da memória; este a encarnar o pleito de unificação identitária de seus eus pregressos, sempre em estado de turvação, decadência ou, no limite, desaparição; criatura lamuriosa, consumida pela acareação entre o pouco que pôde ser e o muito que deveria ter sido ou, mutatis mutandis, tornar-se doravante.

Para o eu da experiência, as regras do existir perfazem-se diametralmente outras. Um eu que já não pode mais subsistir, caso restasse a ilusão de ter havido algum dia. Um eu nem presente nem ausente, apenas avesso à reivindicação de ponto de fuga de todas as coisas. Um eu agônico, mas sem fadiga, apenas em demorado desfazimento. Um eu que encontrará seu desterro exatamente lá onde se supunha encontrar o esplendor dos pertencimentos atávicos. Um eu-poeira-de-todos-os-ventos: “[...] não soberano, mas dependente, não origem absoluta, mas função modificável incessantemente” (FOUCAULT, 2014, p. 54). Um eu-arquivo.

O apego à noção de arquivo, no rastro das formulações de Foucault (1987; 2000; 2002; 2010; 2014) e Arlette Farge (2009), afigura-nos decisivo para nossos intentos.

Em duas ocasiões após o lançamento de A Arqueologia do saber, o pensador francês explicou o que havia defendido em seu livro de 1969. A saber:

Por arquivo entendo, primeiramente, a massa das coisas ditas em uma cultura, conservadas, valorizadas, reutilizadas, repetidas e transformadas. Em resumo, toda essa massa verbal que foi fabricada pelos homens, investida em suas técnicas e suas instituições, e que é tecida com sua existência e sua história. (FOUCAULT, 2014, p. 52)

Por arquivo, entendo o conjunto de discursos efetivamente pronunciados; e esse conjunto é considerado não somente como um conjunto de acontecimentos que teriam ocorrido uma vez por todas e que permaneceriam em suspenso, nos limbos ou no purgatório da história, mas também como um conjunto que continua a funcionar, a se transformar através da história, possibilitando o surgimento de outros discursos. (FOUCAULT, 2000, p. 145)

Independentemente das tantas ilações que daí podem ser subtraídas, basta atermo-nos à premissa de que o arquivo consiste em um ponto de vista sobre o discurso e, ao mesmo tempo, na ocasião de sua reatualização incessante. Espaço em que vida e morte esgrimam, compondo uma algaravia de vozes que reclamam seu direito de ir e vir, contra toda forma de contingenciamento narrativo. E já que não dispõe de um centro irradiador, o arquivo perfaz-se apenas pelas extremidades - múltiplas, incontáveis, em indefectível profusão. Seu modus operandi é o da flutuação.

Dito de outro modo, trata-se da superfície de lutas discursivas em que se forjam as composições de sentido que somos eventualmente capazes de operar com os ecos veridictivos do passado; composições delimitadas, claro está, pelos jogos de verdade correntes. Por isso, as modulações constantes do arquivo e, por extensão, sua não sinonímia com a verossimilhança histórica ou a literária, estas sob a atribuição e a jurisdição de outrem.

Novamente, com Foucault (1987, p. 150-151):

A análise do arquivo comporta, pois, uma região privilegiada: ao mesmo tempo próxima de nós, mas diferente de nossa atualidade, trata-se da orla do tempo que cerca nosso presente, que o domina e que o indica em sua alteridade; é aquilo que, fora de nós, nos delimita.

Com efeito, o arquivo não remete meramente aos despojos do tempo e aos ruídos que deles insistem em emanar, mas ao trato que concedemos a essa matéria espessa nas fileiras turbulentas do presente. Nem pó, nem sombra; lava, porventura.

Outra marca distintiva da noção de arquivo é oferecida pela historiadora Arlette Farge (2009, p.11):

O arquivo não se parece nem com os textos, nem com os documentos impressos, nem com os “relatos”, nem com as correspondências, nem com os diários, e nem mesmo com as autobiografias. É difícil em sua materialidade. Porquanto desmesurado, invasivo como as marés de equinócios, as avalanchas ou as inundações.

A analogia com as forças naturais presta-se, tudo indica, a elucidar o impacto disjuntivo do encontro com “silhuetas desfalecidas ou sublimes” (FARGE, 2009, p. 49), as quais só nos recônditos do arquivo parecem encontrar guarida, jamais repouso. Ali não há silêncio, nem pasmaceira.

Mas tampouco haveria narrativas edificantes ali. O arquivo é, antes, o suporte de prolongamento da inteligência dos antepassados, consubstanciada no rol de respostas tão efetivas quanto contingentes para os problemas com que eles se defrontaram enquanto viveram; respostas cuja transposição ao presente é vedada, sob pena de falseamento do próprio presente.

O arquivo oferece rostos e sofrimentos, emoções e poderes criados para controlá-los; seu conhecimento é indispensável para tentar descrever depois a arquitetura das sociedades do passado. No fundo, o arquivo sempre agarra pela manga aquele ou aquela que resvalaria com extrema facilidade no estudo das formulações abstratas e de discursos sobre. (FARGE, 2009, p. 94)

Habitar o arquivo implicará, então, o empenho em cartografar os arranjos veridictivos de que se ocuparam nossos antepassados, as polêmicas que os absorveram, as intrigas que os abateram, os quais não cessam de nos enredar, uma vez que pontilham não apenas as verdades que refugamos sem pesar, mas também aquelas que insistimos em perpetuar. Daí a conclusão de Farge (2009, p. 35): “Talvez o arquivo não diga a verdade, mas ele diz da verdade, tal como o entendia Michel Foucault”.

O acento argumentativo aqui volta-se, assim, ao enfrentamento do próprio tempo a reboque não de uma reapropriação preservacionista da memória, mas da descontinuidade artificiosa do arquivo, nos moldes do fazer cinematográfico como Andrei Tarkovsky (1998, p. 74) o tinha em conta:

Trata-se de selecionar e combinar os segmentos de fatos em sucessão, conhecendo, vendo e ouvindo exatamente o que se encontra entre eles e o tipo de ligação que os mantém unidos. Isso é cinema. De outra forma, podemos nos deixar levar com muita facilidade para o caminho habitual da dramaturgia, construindo uma estrutura de enredo baseada em personagens predeterminados. O cinema deve ser livre para selecionar e combinar eventos extraídos de um “bloco de tempo” de qualquer largura ou comprimento.

Tempo morto, tempo redivivo. Tempo infinito em sua frágil duração.

* * *

A tríade jogo-experiência-arquivo, tal como delineada em nosso percurso até o momento, oportuniza o desentranhamento de uma tópica que esteve à espreita o tempo todo: a infância.

A tomar pelo que se testemunhou em Incêndios, dispomos de condições suficientes para conjecturar uma mirada à infância como potência de reinvenção discursiva que os mais novos são eventualmente capazes de materializar a partir das pegadas que os mais velhos deixam para trás, propiciando transações veridictivas marcadas por algum ineditismo. A ver.

Na mesma carta já referida, a mãe consola primeiramente o filho:

Se chorares, não seques tuas lágrimas / Pois eu não seco as minhas. / A infância é uma faca encravada na garganta / E tu soubeste retirá-la. / Agora, é preciso reaprender a engolir a saliva. / Por vezes, é um gesto muito corajoso / Engolir a saliva. (MOUAWAD, 2013, p. 416)

A atitude de encorajamento dos mais novos, em favor de alguma altivez ante os maus tratos perpetrados pelo mundo pregresso, é acompanhada da consternação dos mais velhos por não terem sido capazes de privar os primeiros desse destino, obrigando-os a oferecerem a si mesmos em holocausto. Não há esquiva do passado. É preciso lembrar.

À filha, Nawal dirige outras palavras de cuidado:

Se estás [a sorrir], não refreies teu riso, / Pois eu não refreio o meu. / É o riso da cólera [...]. / As mulheres da nossa família / Estão todas cheias de cólera. / Eu estava cheia de cólera contra a minha mãe, / Tal como tu estás cheia de cólera contra mim, / Tal como a minha mãe estava cheia de cólera contra a mãe dela. / É preciso quebrar esse fio. (MOUAWAD, 2013, p. 416)

Se, por um lado, a iniquidade do mundo parece ser, à primeira vista, o único legado de fato que os mais velhos deixam para trás, constituindo uma urdidura imemorial de crueldade e ressentimento, por outro, é essa mesma herança que possibilita os mais novos não capitular diante do irremediável, obrigando-os a sair em busca de uma continuidade renovada e, talvez, menos predatória das coisas vivas. Não há esquiva do presente. É preciso lembrar para esquecer.

Mediante o horizonte de pensamento desencadeado em e por Incêndios, depreende-se a irrupção de uma infância outra, arredia a qualquer encastelamento discursivo apriorístico e, de modo inverso, adepta da errância, do desgoverno e, no limite, do risco (AQUINO, 2012).

De modo frontal a qualquer pleito de tutela operado amiúde pelos cânones teóricos acerca de um tal sujeito da infância, trata-se de tomar esta como uma espécie de valência vital do eu da experiência: um modo desassombrado de enfrentamento do íngreme arquivo do mundo, por meio do exercício de um éthos exploratório fervilhante, este condicionado pela fricção de regimes de tempo assincrônicos, embora intrinsecamente conexos.

Isso significa investir a experiência virtual dos mais novos - em termos análogos àqueles do imperativo testamentário de Nawal - como suporte generativo de um mundo comum aos homens, doravante nem à frente, nem atrás, mas ao lado dos vivos, bem como dos mortos. Infância em estado de hibridez arquivística permanente, portanto, regido pela gramática de um vitalismo inviolável em suas máximas fragilidade e delicadeza.

Em outros termos, infância não como antecâmara do existir, mas como prerrogativa ético-política de quem vive, enquanto vive, porque vive. Infância, em suma, não como lócus originário da experiência humana, mas exatamente como sua força de variação e, quiçá, de reinvenção.

Infância, assim, como escultura do próprio tempo, nos moldes do ofício da edição cinematográfica, segundo o qual “juntar, fazer a montagem é algo que perturba a passagem do tempo, interrompe-a e, simultaneamente, dá-lhe algo de novo. A distorção do tempo pode ser uma maneira de lhe dar expressão rítmica” (TARKOVSKY, 1998, p. 144).

Um jogo iniciático rudimentar, em vias de algum tensionamento dos modos de habitar o tempo que rebenta e, então, evapora em nossos órgãos. Tempo que devasta, mas que também depura, fortalece e, depois, desfaz o que fez.

Sim, o tempo, esse “animal estranho” (MOUAWAD, 2013, p. 390).

Material suplementar
Referências
AQUINO, Julio Groppa. Fragmentos de um discurso sobre a infância. Childhood & Philosophy, Rio de Janeiro, v. 8, n. 15, p. 33-66, jan./jun. 2012.
BESLEY, Tina. Foucault, o falar a verdade e as tecnologias do eu: as práticas confessionais do eu e das escolas. In: PETERS, Michael A.; BESLEY, Tina. (Orgs.) Por que Foucault? Novas diretrizes para a pesquisa educacional. Porto Alegre: Artmed, 2008. p. 65-80.
BOURDIEU, Pierre. A ilusão autobiográfica. In: FERREIRA, Marieta M.; AMADO, Janaína. (Orgs.). Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996. p.183-191.
BULHÕES-CARVALHO, Ana Maria de. Subjetividades em trânsito: aspectos de “Incêndios” de Wajdi Mouawad. O Percevejo Online, Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, p. 56-65, jul./dez. 2014.
FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.
FOUCAULT, Michel. Michel Foucault explica seu último livro. In: FOUCAULT, Michel. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p. 145-152. (Ditos e Escritos II).
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 2002.
FOUCAULT, Michel. Conversa com Michel Foucault. In: FOUCAULT, Michel. Repensar a política. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 2010. p. 289-347. (Ditos e Escritos VI).
FOUCAULT, Michel. O nascimento de um mundo. In: FOUCAULT, Michel. Filosofia, diagnóstico do presente e verdade. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 2014. p. 51-54. (Ditos e Escritos X).
GARFIAS, Ericka Montaño. Necesito oscuridad y misterio para mi obra, pues no sé divertir: Wajdi Mouawad. La Jornada. 19 nov. 2014. Disponível em: Disponível em: http://www.jornada.unam.mx/2014/11/19/cultura/a06n1cul. Acesso em: 01 maio 2016.
MERTEN, Luiz Carlos. Wajdi Mouawad confessa o que lhe desagrada no filme ‘Incêndios’. O Estado de S. Paulo. 02 nov. 2015. Disponível em: Disponível em: http://cultura.estadao.com.br/noticias/cinema,wajdi-mouawad-confessa-o-que-lhe-desagrada-no-filme-incendios,10000001008. Acesso em: 01 maio 2016.
MOUAWAD, Wajdi. Incêndios. In: MOUAWAD, Wajdi. O sangue das promessas: Céus, Florestas, Litoral e Incêndios. Lisboa: Cotovia, 2013. p. 319-417.
TARKOVSKY, Andrei Arsensevich. Esculpir o tempo/Tarkovski. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes. 1998.
ZINGARELLI, Nicola. Vocabolario della lingua italiana. 4.ed. Milano: Bietti & Reggiani Ed., 1928.
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