Dossiê
Recepção: 15 Outubro 2016
Aprovação: 15 Novembro 2016
Resumo: A terminologia joia contemporânea fica aberta a muitas críticas e fragilidades, visto que é confrontada com a definição clássica de joia e também presa muitas vezes ao histórico do adorno e da joalheria difundida até a modernidade. Portanto, uma das questões deste artigo é a abordagem a respeito do que se trata a joalheria contemporânea e como ela pode ser definida. Assim, apresentamos os tópicos relacionados à discussão da joia na contemporaneidade que se organizam em um conjunto de pressupostos e abordagens que nos ajudam a constituir um panorama a respeito da joia contemporânea, seu percurso, definições e significado.
Palavras-chave: joalheria, joia, contemporânea.
Abstract: Contemporary jewelry terminology is open to many criticism and weaknesses as it is confronted with the classic definition of jewelry and also often attached to the historical widespread idea of adornment and jewelry to modernity. Therefore one of the this article issues is to approach about what it is contemporary jewelry and how it can be defined. Thus, we present the topics related to the jewel discussion in contemporary times that are organized into a set of assumptions and approaches that help us provide an overview about the contemporary jewelry.
Keywords: jewelry, jewel, contemporary.
1. Introdução
Esta investigação foi constituída por meio de estudos que observaram a joalheria no âmbito internacional, principalmente por meio dos desdobramentos que tiveram curso na Europa e que influenciaram, de certa maneira, sua disseminação e estruturação como um campo consolidado, tanto de pesquisa como de práticas projetuais. Nesse sentido, buscamos conceituar e definir a nomenclatura joia contemporânea, mesmo diante de contradições encontradas, porém vimos que ela se configura como uma prática abrangente e que estabelece diálogos e relações com campos como arte, artesanato, design e moda. A abrangência e a pluralidade no enfoque da joalheria contemporânea nos levaram à sua contextualização histórica e às questões do adorno e a relação destes com o corpo no contemporâneo.
Ao abordar o objeto de pesquisa joia na contemporaneidade, nos deparamos com a pergunta: Qual a definição de joia? Em Silva (1789) e Freire (1954), a origem etimológica da palavra joia é apresentada como do baixo latim jocalia, que deriva de iocus (jogo). Em termos semânticos remete ao que é radiante, brilhante, ao significado que foi disseminado na sociedade ocidental e ficou mais conhecido a respeito da joia: objeto precioso, ricamente trabalhado com materiais preciosos. Mas, diante dessas acepções, o que pensar de uma joia produzida em polímero sintético?
A definição do objeto joia, até a segunda metade do século XIX, não era complexa, difícil e ardilosa como nos dias de hoje, já que estava atrelada ao valor implícito relacionado ao material no qual era produzida. Nos estudos realizados verificamos que, geralmente, a joia é analisada atualmente diante da crítica da preciosidade desafiando a ideia de que o valor da joia está atrelado ao material no qual é produzida. Sendo assim, ao transformar a ideia convencional de valor, os joalheiros liberaram as joias para a experimentação, para a expressão artística e para as questões simbólicas, resultando, dessa maneira, em engajamento mais profundo com a sociedade, em uma nova consciência do usuário e das relações com o corpo.
Durante a última década do século XX, se desenvolveu uma “linguagem de joalheria” que pode ser expressa em várias outras linguagens e mídias, tais como fotografia, vídeo, instalação, animações, livros e mídia digital. Tendo se tornado uma prática reflexiva, a joalheria contemporânea também coloca o corpo em pauta, questionando o papel do corpo como o local natural para joia e passa a encará-lo como um lugar problemático e móvel, aberto a uma ampla gama de possibilidades e interferências. Não só os criadores de joias, mas também artistas plásticos e designers estão cientes das dimensões existenciais, estéticas e políticas do corpo como tema. Dada então sua importância como objeto que estabelece relações funcionais, estéticas e simbólicas para quem usa ou para quem cria ou observa a joia, analisar sua evolução na contemporaneidade se configura tanto um desafio quanto uma oportunidade e aponta a necessidade do desenvolvimento de estudos e pesquisas que atuem no sentido de aprofundar o pensamento e as análises no universo científico.
Os autores estudados para o desenvolvimento desta pesquisa referem-se aos campos da arte, do design, do artesanato, da joalheria e da moda, que abordam questões referentes à contemporaneidade, ao adorno e ornamento, ao corpo e sujeito, à história, a linguagens e processos criativos, produtivos e tecnológicos relacionados à joalheria contemporânea, conforme constam nas referências bibliográficas no final deste trabalho1.
A abordagem metodológica adotada é qualitativa e desenvolvida a partir da revisão de literatura estudada e associada à pesquisa documental.
2. Termos e definições para a joia contemporânea
Besten (2011) foca na descrição e limitação dos termos que foram criados para definir as novas práticas da joalheria, principalmente a partir dos anos 1970. Ela define seis categorias de produção de joias que são importantes nesse sentido: joias contemporâneas, joias de estúdio, joias de arte, joias de pesquisa, joias de design . joias de autor. Esses termos, segundo a autora, são complicados na maneira como se relacionam entre si e com diferentes períodos históricos e regiões, já que alguns são cronológicos, outros são específicos a certos países, e outros se apropriam de termos utilizados nas artes ou em outras formas de cultura visual.
Mas, na sua definição, esses termos ao mesmo tempo que podem nos ajudar a dimensionar a abrangência da joalheria na atualidade também apresentam limitações e questionamentos, tais como: contemporâneo indica o presente e “do nosso tempo”, apesar de descrever uma prática que inclui setenta anos de objetos e algumas mudanças dramáticas de contexto. O termo estúdio coloca muita ênfase em “onde” e “como” e, portanto, é muito limitado. Arte implica a aceitação da constituição de um objeto que propicie experiência e fruição estética sem a implicação de uso, e isso na maioria das vezes não ocorre com as joias. Pesquisa indica algo interessante sobre o processo de criação e de experimentação, mas é um termo limitado a Itália, onde foi criado. Design é um termo que surgiu como parte de debates específicos na Holanda, sobre a distinção entre conceito e artesania que já foi derrubada teoricamente e que não parece um grande problema nos dias de hoje. E devemos lembrar que o termo e a concepção design abarca todas as questões elencadas por Besten (2011). Design envolve pesquisa, criação, autoria, experimentação, contemporaneidade, linguagem. Autor evoca uma sensação de isolamento e orgulho e também se limita mais ao criador da peça do que propriamente ao objeto, exceção quando o objeto passa a ser assinado e, muitas vezes, tem mais valor o nome do autor do que a peça produzida. Esses termos usados para definir as práticas que se encontram sob a égide desses objetos também possuem uma dimensão que é temporal, ou seja, se a joalheria tradicional aspira à eternidade, passando por gerações, a joalheria contemporânea é obstinadamente ancorada no presente, como uma criação ligada ao “aqui e agora” do seu criador. Podemos apontar essa dimensão temporal em diferentes nomes:
(...) joia avant-garde, que se posiciona como radicalmente à frente das ideias dominantes; joia modernista ou moderna, que aspira refletir o espírito do tempo em que é feita; joia de estúdio que enfatiza o estúdio do artista sobre a oficina de artesanato; nova joia, que assume uma postura irônica com o passado; e finalmente joia contemporânea, um termo que representa um balanço perfeito entre inovação, linguagem pessoal e o reconhecimento por estabelecidos circuitos de galerias, museus e colecionadores2. (GASPAR, 2007, P. 12)
Termos e nomenclaturas refletem uma variedade de preocupações e ideias sobre o que esses objetos e práticas são e também incorporam e possuem histórias, por isso, usando um ou outro termo, certas características podem ser enfatizadas ou minimizadas. Skinner (2013), quando fala sobre o termo joia contemporânea, defende que este é geral e pode se referir a todas as qualidades enfatizadas pelos outros nomes e que também esse termo representa o desejo temporal dos joalheiros de “ser do seu tempo”. Por ter sido usado desde a década de 70, esse termo também confere certo peso histórico a essas práticas.
2.1 O significado do contemporâneo na joalheria
É importante salientar que, quando a contemporaneidade fica atrelada apenas à marcação do tempo ou ao todo da atualidade, sua leitura fica superficial e enfraquecida. Conforme Moura (2014), ser do seu tempo é ser impelido na criação a traduzir o seu tempo. O contemporâneo não é apenas existir ao mesmo tempo e sim sustentar uma linhagem, elementos e atitudes que sejam a tradução desse tempo, afinal, conforme aponta, “O designer é tradutor do seu tempo” (COSTA et al., 2014).
Diante das discussões propiciadas por esta pesquisa, questionamos: o que é a joia contemporânea? Não pretendemos criar uma definição única e rígida a respeito da joia contemporânea, pois sabemos que, como várias outras expressões e linguagens da contemporaneidade, é uma prática muito abrangente e de intenso e profícuo diálogo entre o derrubar das tênues fronteiras da arte, artesanato, moda e do design. No entanto, podemos indicar direções e posturas que ajudam a delimitar melhor esse campo de atuação.
Cohn (2012) coloca que a joalheria contemporânea apresenta experimentações nos últimos setenta anos, mas indica que ainda há dúvidas a respeito do surgimento dessa vertente da joalheria. Ainda, segundo Cohn (2012), essa vertente se situa dentro de uma longa tradição na joalheria que ganhou força com a eclosão dos movimentos de ruptura da arte moderna desde o início dos anos 1900.
Se nos remetermos à etimologia da palavra joia veremos que, segundo Gola (2001), está relacionada com a matriz latina jocalia, derivada de iocus – jogo, gracejo, brincadeira e com a aproximação semântica com a palavra latina gánymai – radiante, brilhante de alegria. Podemos verificar que as questões apontadas se relacionam com as atitudes e posturas tanto do criador quanto do receptor/usuário da joia contemporânea. Experimentação, exploração, jogo, brincadeira, alegria, estão imbuídos nesse processo.
Devemos lembrar que o contemporâneo é:
Constituído de multiplicidades que implicam diretamente nas manifestações de sentidos, na criação, na concepção de projetos, na produção dos objetos e nas interpretações influenciadas e geradas pela diluição e rompimento de fronteiras entre áreas distintas. (MOURA, 2010, p. 2)
Ao associarmos o significado de contemporâneo na joalheria, podemos verificar que a joia contemporânea deve trazer relações e significados relacionados a esse tempo e suas características. Dessa forma,
Os objetos de joia contemporânea possibilitam estabelecer um retrato de nosso tempo, implicam em várias relações e significados, associam e valorizam o artesanal em diálogo com o tecnológico, são repletos de simbolismos e expressões semânticas e expõem aspectos e atitudes da vida no tempo atual. Além de expressar, comunicam, pois constituem signos da relação do homem com a vida e com os objetos (...). (MOURA, 2011, p. 2-4)
Ainda segundo Moura (2011), a joia contemporânea pode constituir-se como um objeto no sentido da coisa material, artificial, que é concebida, criada, projetada, construída, materializada, e que ao ganhar forma constrói um corpo. O objeto é aquilo que existe fora de nós e constrói o ambiente carregando valores, pois são portadores de signos. Objetos despertam pensamentos, desejos, ações e também são reveladores do nosso modo de viver, dos nossos hábitos e de nossas atitudes. Objetos fazem a mediação entre pessoas, atos e situações. O objeto joia, neste sentido, destaca a atitude, a identidade e a personalidade, tanto do criador quanto da pessoa que a assume, constituindo um corpo. O objeto resultante da joia contemporânea é um corpo material que atua nessa relação e fusão, interferindo e constituindo a imagem do outro corpo que é físico, do ser que “veste” a joia.
Dessa maneira, ao associar a definição da palavra joia com o conceito de contemporâneo, reconhecemos que a joalheria contemporânea compreende objetos que são desenvolvidos e exploram a criação e seus elementos, tal como nas obras de arte e no sentido de explorar as potencialidades da criação e expressão, o que envolve o processo de criação, a escolha dos processos e materiais empregados, as temáticas abordadas pelo criador e a atitude do usuário/sujeito que opta em portar esse adorno e possuir a peça de joia. Além disso, a joia contemporânea tangencia as fronteiras entre arte, artesanato, moda e design e reflete as condições da atualidade nas quais ela ocorre.
2.2 Crítica à preciosidade
Acreditamos que a definição de joia até a segunda metade do século XIX não era difícil e ardilosa como nos dias de hoje, já que estava atrelada ao valor implícito relacionado ao material no qual era produzida, ou seja, ao valor econômico que muitas vezes sobressaia com relação aos valores simbólicos, emocionais e estéticos. Skinner (2013) coloca que, quando a história da joia é analisada hoje, ela geralmente ocorre por meio de uma crítica à preciosidade, que desafia a ideia de que o valor da joia está atrelado ao material de que é feita. Sendo assim, ao transformar a ideia convencional de valor financeiro, econômico, os joalheiros liberaram as joias para a experimentação e a expressão artística, para um engajamento mais profundo com a sociedade e para uma nova consciência do corpo e do usuário.
As práticas joalheiras que tiveram início nos anos 1960 e que se desenvolvem até hoje têm muito em comum com os movimentos que precederam o desenvolvimento das joias modernistas em meados do século XX e das joias contemporâneas do início do século XXI. Tanto a produção de determinados grupos sociais em diferentes localidades do mundo quanto o movimento Arts and Crafts3, utilizaram diferentes materiais não preciosos.
No Arts and Crafts eram utilizados determinados materiais, tais como chifres de animais, polímeros sintéticos (ebonite), entre outros, na criação e na fabricação de joias. Esse fato abre um precedente para que o valor das joias fosse colocado além da preciosidade dos materiais empregados e assim ampliasse a valorização das questões de criação, técnicas, plásticas/estéticas/formais/expressivas, simbólicas/emocionais, experimentais, tanto por parte do criador quanto do sujeito, receptor, usuário. Ou seja:
em sua grande maioria, os joalheiros do movimento Arts and Crafts, intencionalmente escolhiam materiais de pouco valor intrínseco como uma declaração sobre o propósito da sua joia. O trabalho era concebido para deliciar os olhos com cor e textura em vez de ser avaliado pelo valor de seus componentes. Também era concebido para ser acessível a qualquer pessoa que desejasse4. (SKINNER, 2013, p. 89)
Ainda com relação ao valor intrínseco dos materiais, com os quais as joias eram fabricadas até então, podemos verificar que:
na virada do século XIX, as ideias convencionais sobre valores nas joias - e o valor das joias - foram viradas de cabeça para baixo para o benefício da criatividade artística. Os novos pensamentos e as produções artísticas deste período foram o motor para os movimentos posteriores na joalheria do século XX. (BESTEN, 2011, p.99)
Sendo assim, esses movimentos predecessores, dentro da joalheria – joias de arte do movimento Arts and Crafts e as joias modernistas – liberaram as joias através de um movimento contínuo que focava a expressão artística e a experimentação, um envolvimento mais profundo com a sociedade e uma nova consciência do corpo e do usuário. Dormer e Turner em 1985 cunharam o termo new jewellery (nova joia) e descreveram as características desse movimento como:
um desejo de evitar clichês no design; um desejo de produzir excitantes, robustos e, sempre que possível, ornamentos baratos; um desejo de produzir adorno que possa ser usado por ambos os sexos; uma expressão distante da joia que é vulgar e apenas à procura de status; e sempre um interesse em assegurar que o ornamento funcione com e complemente o corpo do usuário5. (DORMER; TURNER, 1994, p. 67)
Podemos dizer que por causa das explorações de alguns dos movimentos artísticos e os da área de joalheria, se amplia e se modifica o conceito e a definição de joia que passa a ficar mais complexa. Também surgem outros termos para designar a produção que começava a se fortalecer e ampliar. Essas mudanças começam a colocar em cheque a definição do que é a joia. Em virtude da complexidade e da multiplicidade encontradas hoje no campo da joalheria contemporânea, sabemos que o conceito e a definição de joia contemporânea não podem ser simplesmente atrelados aos materiais que lhe dão forma. Apesar de a exploração de novos materiais desempenhar um importante papel no seu desenvolvimento na contemporaneidade. Dessa maneira, não sendo um conceito de fácil compreensão, foram criados, ao longo do tempo, diferentes nomes para definir os objetos e as práticas que foram desenvolvidas. Conceitos e definições são importantes porque abrangem, caracterizam, identificam e colocam em evidência algo existente.
2.3 Joia contemporânea como prática autorreflexiva orientada ao corpo.
Também podemos encontrar como característica da joia contemporânea a prática autorreflexiva em que se estabelece uma relação crítica ou consciente com a história da própria prática e para com o campo mais vasto da joia e do adorno. Skinner (2013) define a joia contemporânea como uma prática de ateliê autorreflexiva orientada para o corpo e argumenta que joia contemporânea é um termo abrangente, como sugerimos acima, que pode englobar as joias modernistas e, em menor medida, as joias de arte do final do século XIX e início do século XX. Ambas começaram o trabalho de libertar a joia da ideia restritiva de que seu valor estava vinculado ao material precioso a partir do qual era feita, o que, por sua vez, permitiu que a joia se tornasse uma forma de expressão artística. No entanto, o status de avant-garde das joias modernistas tende a vir de sua adoção de estilos modernistas da arte, enquanto o status avant-garde da joalheria contemporânea tende a estar relacionado à sua investigação das tradições e funções da própria joia, e ao desejo dos joalheiros em assumir uma postura crítica em relação à história em que estão inseridos. A joia modernista, como um movimento, não levou em consideração sua própria natureza e história, enquanto a joia contemporânea, como um movimento, o fez.
Voltada para o corpo porque, como coloca Moura (2011), o objeto joia destaca a atitude, a identidade e a personalidade tanto do criador quanto da pessoa que a assume, constituindo um corpo. A joia contemporânea atua na mudança da relação do corpo com os adornos e o ornamento. O objeto resultante da joia contemporânea é um corpo material que atua na relação e fusão, interferindo e constituindo a imagem do outro corpo que é físico, do ser que “veste” a joia. O corpo humano é o suporte da joia. A joia ao ser colocada no corpo se presentifica, toma outra existência, ganha valor, pois sua existência é relacionada ao corpo. Só existe e se manifesta na plenitude ao ser colocada, vestida, incorporada ao corpo. Desse modo, o conjunto de ideias em torno do usuário, do uso e do corpo permanece como a maneira fundamental na qual os objetos e práticas da joalheria contemporânea distinguem-se dos outros tipos de práticas de artesania e arte.
A joia é um símbolo cultural que conecta o corpo público e o privado, permitindo o engajamento dos joalheiros contemporâneos, “com definições e críticas ao corpo, que revigoram a possibilidade das artes aplicadas como um exercício crítico, e não meramente complementar e decorativo”6 (SANDINO, 2002, p. 107).
Dessa maneira, o termo joia contemporânea equilibra uma série de abordagens: por exemplo, práticas que enfatizam o agenciamento artístico do criador e colocam todo o foco sobre o objeto produzido como uma obra autônoma de arte; e práticas que tratam a joia contemporânea como uma oportunidade para criar interações entre as pessoas, ou intervir na vida contemporânea, como poderíamos assim dizer, do ponto de vista da joia. Como um termo, a joia contemporânea permite que todas essas abordagens pertençam ao campo do design que está sendo discutido aqui, mesmo que se contradigam em alguns momentos. Ou em outras palavras:
Vários conceitos fortes, mas antagônicos estão em operação simultânea, não só no campo das joias, mas nas artes criativas em geral. Cada um desses conceitos possuem adeptos, (...) É um tributo a joia que tal diversidade de expressão possa ser englobada nestes objetos relativamente pequenos. Portanto, ao invés de qualquer tentativa por parte dos joalheiros para modificar ideias rumo à criação de uma síntese de estilo por uma questão de coerência (...), todos os conceitos existem simultaneamente e tudo deve ser tolerado. Cabe a cada joalheiro individualmente selecionar e seguir uma direção que seja satisfatória pessoal e temperamentalmente - incluindo o desenvolvimento de novos estilos. (UNTRACHT, 1982, p. XX-XXI)
Dessa maneira podemos afirmar que, como prática projetual, a joalheria contemporânea teve seu desenvolvimento histórico vinculado ao que se chamou de crítica à preciosidade, o que propiciou sua liberdade formal, conceitual e sua abrangência como campo de pesquisa que se relaciona a outras áreas do conhecimento. Apesar de se configurar como um domínio vasto de atividades e exploração, a joia contemporânea apresenta características identificáveis. Entre elas, a de ser uma prática autorreflexiva orientada para o corpo.
3. Conclusão
Esta pesquisa apontou que a crítica à preciosidade desafiou a noção de que o valor da joia estava atrelado ao material que a constituía, fato que transformou a ideia convencional de valor financeiro e econômico, libertando a joia e o joalheiro para uma maior experimentação e expressão criativa e artística, propiciando, assim, um engajamento mais profundo com a sociedade e com uma nova consciência do corpo e do usuário. Gradativamente, vai se consolidando a construção de um campo de atuação e manifestação da joia, vista não somente como objeto, mas como atitude, como expressão e como identidade: a joia contemporânea. Assim, esse termo consegue equilibrar uma série de abordagens: por exemplo, práticas que focam a pesquisa e o uso de novos materiais; que enfatizam o agenciamento artístico do criador e colocam todo o foco sobre o objeto produzido como uma obra autônoma de arte; práticas que tratam a joia contemporânea como uma oportunidade para criar interações entre as pessoas, ou de intervir na vida contemporânea, do que poderíamos chamar de um ponto de vista da joia; práticas que questionam o lugar da joia no corpo e a própria definição de corpo, de maneira a colocar novos significados sobre ele; e práticas que transformam a ideia de adorno em um instrumento de pesquisas e desenvolvimento destas.
Assim, ao contrário de indicar a joia contemporânea como um conjunto fixo de coisas – pulseiras, colares, brincos, etc. – analisa-a como um método, uma atitude, ou uma prática de ação. A joalheria contemporânea só existe em movimento. É uma maneira de pensar as coisas, não uma simples classificação de objetos, ou seja, deve ser entendida como uma categoria inconstante, alterando-se constantemente ao encontrar outros campos, como a arte, o artesanato, o design ou a moda, não contendo assim algum tipo de significado fixo em si. Entendida assim, a questão da sua definição não deve fixar sua natureza, ou identificar uma espécie de identidade essencial que irá incluir ou excluir determinados objetos, mas, sobretudo, determinar uma série de condições que tornaram as joias contemporâneas possíveis e significativas como um meio de expressão.
Como um termo, a joia contemporânea permite que todas essas abordagens pertençam ao campo do design que foi investigado e discutido neste trabalho, incluindo até mesmo as contradições e conflitos no confronto entre as áreas de conhecimento. A joalheria contemporânea passa a ser entendida então não apenas como um objeto passível de ser definido facilmente. A joia contemporânea se qualifica mais como uma prática abrangente que engloba outros campos, como o artesanato, a arte, o design e a moda, ou de uma maneira resumida, como uma prática de estúdio autorreflexiva, orientada para o corpo.
Uma prática de estúdio que incorpora procedimentos artesanais e manufaturados, pois, como aponta a pesquisa, na maioria das vezes, as joias contemporâneas se configuram como um objeto substancialmente feito à mão e que também tendem a ser – embora nem sempre – feitos de materiais tradicionais do ofício, com técnicas tradicionais de artesanato. Embora vários tipos diferentes de objetos e práticas pertençam ao termo – joalheria contemporânea –, o campo foi profundamente moldado pelos valores e história do movimento do estúdio de criação e produção. Dessa maneira, muitas joias contemporâneas compartilham fortemente os valores das joias de estúdio, que tiveram sua raiz histórica no século XIX e nos procedimentos pelos quais o movimento Arts and Crafts promoveu um ideal de artesania, incluindo as joias de arte, como um antídoto para os malefícios da Revolução Industrial. E isso é importante, uma vez que as práticas artesanais de estúdio representam uma série de valores e relações históricas que joalheria contemporânea precisa lidar a fim de abraçar o seu potencial no presente. A joalheria contemporânea vista como uma espécie de prática de “arte visual” continua quebrando os seus próprios limites, por isso, as joias de estúdio não descrevem tudo o que é importante sobre os objetos e práticas referenciados como joias contemporâneas.
A prática autorreflexiva é apontada porque a joalheria contemporânea está preocupada com a reflexão sobre si mesma e sobre as condições nas quais ocorre. Assim, ela é moldada por uma consciência nítida das situações em que existe, ou seja, o significado do fato de que os joalheiros se envolvem diretamente com os espaços nos quais seus trabalhos circulam – a galeria, o museu, as políticas governamentais, o corpo, as pesquisas, os livros e catálogos. Dessa maneira, o trabalho de alguns joalheiros contemporâneos é precisamente sobre o que significa para a joia existir em tais locais, e em que medida a consciência da relação entre objeto e sua localização é efetivamente seu tema. Mas nem todas as joias contemporâneas são igualmente autorreflexivas, porém, como um campo, esta é uma de suas características notáveis. Em geral, os joalheiros contemporâneos trabalham em uma relação crítica ou consciente a respeito da história da prática e para o campo mais amplo das joias e dos adornos.
Orientada para o corpo, a maioria das joias contemporâneas é projetada para o uso ou pode ser utilizada. Quando a joia não pode ser colocada, ou a usabilidade é suspensa, o corpo ainda é evocado como um tema importante ou limite. Mas no conjunto de ideias em torno do usuário, do uso e do corpo permanece a maneira fundamental em que os objetos e práticas da joalheria contemporânea se distinguem dos outros tipos de práticas artesanais e da arte. E a joia é um símbolo cultural que une o corpo privado e público, permitindo aos joalheiros contemporâneos se engajarem com definições e críticas ao corpo como uma prática a ser explorada, em vez de meramente complementar e decorativa.
Esta pesquisa aponta ainda para novas investigações, entre elas um estudo da joia brasileira contemporânea. A partir da revisão da literatura, foi possível constatar a quase inexistência de artigos que foquem exclusivamente as particularidades da joia contemporânea brasileira, tanto do ponto de vista histórico como simbólico e seus desdobramentos no século XXI. Com relação aos livros, somente um tem como temática a joia contemporânea brasileira especificamente, mas foi editado em 1980, encontra-se esgotado e muitas mudanças aconteceram nesse período. Outros livros, ou tem como tema a obra de um único joalheiro, ou delimitam a história da joalheria no Brasil, a partir do descobrimento até o século XX.
Por meio de pesquisa pelos meios eletrônicos, pudemos perceber a existência de um número representativo de joalheiros contemporâneos nacionais, com uma obra rica e exuberante, que necessita ser analisada de um ponto de vista mais acadêmico e científico. Assim, o estudo da joia contemporânea brasileira se apresenta tanto como um desafio como uma oportunidade fascinante de pesquisa e entendimento
Referências
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Notas