Ostomia e vestuário: cartilha de desenvolvimento de vestuário para pessoas ostomizadas
Ostomia e vestuário: cartilha de desenvolvimento de vestuário para pessoas ostomizadas
ModaPalavra e-periódico, vol. 14, núm. 33, pp. 156-180, 2021
Universidade do Estado de Santa Catarina
Resumo: A ostomia pode ser compreendida como uma cirurgia que objetiva produzir um novo trajeto para a saída de fezes ou de urina do corpo humano. Por observação empírica, acredita-se que as pessoas ostomizadas encontram-se desassistidas pela Indústria Têxtil e de Confecção. Nesse sentido, este artigo tem como objetivo apresentar a estrutura preliminar de uma cartilha para o desenvolvimento de peças de vestuário para pessoas ostomizadas. Como instrumentos de coleta de dados, empregou-se um levantamento bibliográfico e um questionário roteirizado e semiestruturado com 12 perguntas divididas em dois blocos: o indivíduo e seu ostoma e o indivíduo ostomizado e sua relação com o vestuário. Metodologicamente, este artigo pode ser compreendido como pesquisa aplicada, qualitativa, descritiva e de campo. Os resultados obtidos na pesquisa foram convertidos em recomendações e apresentados sob o formato de folheto. Concluí-se que a cartilha contribui por meio de três perspectivas: (I) mercadologicamente, ao propor orientações à indústria para o desenvolvimento de um vestuário inclusivo; (II) socialmente, ao estimular à pessoa ostomizada a ampliar sua compreensão sobre a condição; e (III) academicamente, por prover expansão acerca da literatura sobre o assunto.
Palavras-chave: Ostomia, Vestuário inclusivo, Desenvolvimento de produto.
Abstract: The ostomy can be understood as a surgery that aims to produce a new path for the exit of feces or urine from the human body. By empirical observation, it is believed that ostomized people are unassisted by the Textile and Clothing Industry. In this sense, this article aims to present the preliminary structure of a booklet for the development of garments for ostomates. As instruments of data collection, a bibliographic survey and a scripted and semi-structured questionnaire were used, with twelve questions divided into two blocks: the individual and his ostoma and the ostomized individual and their relationship with clothing. Methodologically, this article can be understood as applied, qualitative, descriptive and field research. The results obtained in the research were converted into recommendations and presented in the form of a brochure. It was concluded that the booklet contributes through three perspectives: (I) marketing, by proposing guidelines to the industry for the development of inclusive clothing; (II) socially, by encouraging the ostomized person to broaden their understanding of the condition; and (III) academically, for providing expansion about the literature on the subject.
Keywords: ostomy, Inclusive fashion, Product development.
Resumen: La ostomía puede entenderse como una cirugía que tiene como objetivo producir un nuevo camino para la salida de heces u orina del cuerpo humano. Por observación empírica, se cree que las personas ostomizadas no cuentan con la ayuda de la industria textil y de la confección. En este sentido, este artículo tiene como objetivo presentar la estructura preliminar de un folleto para el desarrollo de prendas para ostomizados. Como instrumentos de recogida de datos se utilizó una encuesta bibliográfica y un cuestionario guionizado y semiestructurado, con doce preguntas divididas en dos bloques: el individuo y su ostoma y el ostomizado y su relación con la vestimenta. Metodológicamente, este artículo puede entenderse como investigación aplicada, cualitativa, descriptiva y de campo. Los resultados obtenidos en la investigación se convirtieron en recomendaciones y se presentaron en forma de folleto. Se concluyó que el folleto aporta a través de tres perspectivas: (I) marketing, al proponer lineamientos a la industria para el desarrollo de ropa inclusiva; (II) socialmente, animando a la persona ostomizada a ampliar su comprensión de la condición; y (III) académicamente, por brindar expansión sobre la literatura sobre el tema.
Palabras clave: ostomía, Ropa inclusiva, Desarrollo de producto.
1. INTRODUÇÃO
A ostomia consiste em uma cirurgia que objetiva produzir um novo trajeto para a saída de fezes (digestiva) — que pode ser classificada como colostomia para o intestino grosso ou como ileostomia para o intestino delgado —, de urina (urostomia) ou mesmo para alimentação. O ostoma digestivo faz-se necessário quando há a retirada de parte do intestino, seja por ocorrência de câncer, por alguma perfuração acidental, doenças inflamatórias intestinais, acidentes ou por questões genéticas. Qualquer pessoa que não seja ostomizada pode acabar por ser em algum momento da vida. Essa condição caracteriza-se pela liberação involuntária de excrementos pelo ostoma, o que faz com que a pessoa ostomizada tenha que utilizar uma bolsa coletora em todos os momentos do seu dia, não sendo possível retirar ou colocar apenas quando necessário, pois não há o controle da saída de excrementos. Conforme a causa e a condição, a necessidade de utilização da bolsa pode variar de apenas um período de tempo até para toda a vida.
Com a ostomia, diversas dificuldades podem aparecer. Empiricamente, observa-se que uma delas, em especial, trata da autonomia física e psicológica a partir do vestuário. Como o vestuário está ligado à imagem pessoal, ao social e ao funcional (GODINHO, 2017), nas pessoas ostomizadas, há evidente influência sobre o valor da imagem e sobre os fatores ergonômicos que importam para a aceitação dessa condição e o bem-estar do indivíduo. Por conta de questões como limpeza da bolsa e liberação espontânea de excrementos, a vida social da pessoa ostomizada também pode ser negativamente afetada, o que, acredita-se, pode causar sua exclusão social.
Em seus moldes tradicionais, a exclusão social já ocorre no vestuário. Os padrões de beleza privilegiam, na divulgação das peças em desfiles ou em campanhas televisionadas, um tipo específico de corpo: alto, magro, jovem e sem dificuldade de movimento (MODA INCLUSIVA…, 2012; GODINHO, 2017). Com isto, acredita-se que há uma expressiva parcela da sociedade marginalizada pela Indústria Têxtil e de Confecção. Se observados os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010), pode-se vislumbrar que, em tal parcela, encontram-se 45 milhões de brasileiros com algum tipo de deficiência.
Nessa perspectiva, o setor da Indústria Têxtil e de Confecção que se ocupa em pensar e em produzir o vestuário como processo de inclusão — entendido como vestuário inclusivo — se estabelece como uma alternativa para a democratização do vestir por intermédio de variados biótipos e com base na crença de uma acessibilidade universal (MODA INCLUSIVA…, 2012).
Segundo o dicionário Michaelis (2018, n.p.), o conceito de universal pode ser entendido como aquilo “[...] que abrange todas as coisas; que se estende a tudo e a todos, sem exceção”. Já o conceito de acessibilidade está voltado para a “[...] facilidade de acesso; [e a] qualidade do que é acessível” (MICHAELIS, 2018, n.p.).
Diante do exposto, o objetivo deste artigo está em apresentar a estrutura preliminar de uma cartilha para o desenvolvimento de peças de vestuário para pessoas ostomizadas. Para tanto, empregaram-se como instrumentos de coleta de dados: (I) um levantamento bibliográfico com autores escolhidos de modo narrativo; e (II) um questionário roteirizado e semiestruturado com 12 perguntas subdivididas em dois blocos, o primeiro voltado para o indivíduo e seu ostoma, e o segundo concernente à pessoa ostomizada e sua relação com o vestuário.
Os dados coletados foram analisados de maneira qualitativa a partir de uma postura epistemológica interpretativista. Isto permite compreender que, diante da classificação proposta por Gil (2008), este artigo pode ser compreendido como uma pesquisa aplicada, qualitativa, descritiva e de campo.
Importa ressaltar que este artigo apresenta um recorte da pesquisa de nível stricto sensu desenvolvida por Mariana Luísa Schaeffer Brilhante no contexto do Programa de Pós-Graduação em Design de Vestuário e Moda (PPGModa) da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). A dissertação de mestrado da autora possui como título MODA INCLUSIVA: AUTONOMIA FÍSICA E CONFORTO PSICOLÓGICO NO PROCESSO DE VESTIR DA PESSOA PARAPLÉGICA e está prevista para ser defendida no primeiro semestre do ano de 2021. Ademais, sublinha-se que a pesquisa está sendo orientada pelo Professor Doutor Lucas da Rosa e encontra-se vinculada à Linha de Pesquisa Design e Tecnologia do Vestuário.
Por fim, destaca-se que o corpo de conhecimento do artigo está estruturado a partir da abordagem aos conceitos de ostomia, bolsas coletoras e vestuário inclusivo. Por sua vez, esta abordagem está pautada em uma revisão bibliográfica assistemática. Na sequência, apresentam-se os procedimentos metodológicos, os resultados da pesquisa e sua respectiva discussão. Explorados os dados obtidos, procede-se para as considerações finais e para as recomendações a futuros trabalhos.
2 OSTOMIAS E BOLSAS COLETORAS
Segundo Stumm, Oliveira e Kirschner (2008, p. 27), a origem da palavra ostomia possui raíz grega, sendo stoma uma “[...] abertura de origem cirúrgica, quando há necessidade de desviar, temporária ou permanentemente, o trânsito normal da alimentação e/ou eliminações”. O ostoma pode ser de três tipos distintos: (I) colostomia; (II) ileostomia; e (III) urostomia. A colostomia consiste em uma ostomia digestiva do intestino grosso; já a ileostomia resume-se em uma ostomia digestiva do intestino delgado; e a urostomia pode ser compreendida como uma ostomia do trato urinário. Faz-se interessante considerar que a abertura do ostoma pode ser feita do lado direito ou esquerdo do abdômen (Figura 1).
DESCRIÇÃO DA IMAGEM: peça anatômica do abdome feminino, apresentando dois exemplos de ostomias, uma na parte esquerda, menor e cerca de 2 cm abaixo do umbigo, um pouco mais à esquerda e outra na parte direita, maior e que se inicia na mesma linha do umbigo, um pouco mais à direita do mesmo.. As ostomias apresentam-se com uma coloração avermelhada, natural desse tipo de ostomia. Fim da descrição.
A fixação das ostomias pode ser temporária ou permanente, embora a maior parte dos casos seja de colostomia permanente. As causas para que uma pessoa necessite um ostoma podem variar, todavia, a mais comum está no acometimento de câncer de cólon ou reto (STUMM; OLIVEIRA; KIRSCHNER, 2008).
Conforme descrevem Stumm, Oliveira e Kirschner (2008), para as bolsas coletoras, há dois tipos de sistemas: de uma peça ou de duas peças (Figura 2). O sistema de uma peça caracteriza-se por ser, como o nome sugere, apenas uma peça completa, ou seja, a bolsa acaba por ser fixada na pele do indivíduo. Para manutenção, a bolsa de uma peça tem que ser completamente retirada para a troca. Já o sistema de duas peças encontra-se composto por uma placa de fixação na pele e uma bolsa. Assim, para manutenção desse sistema, faz-se possível trocar apenas a bolsa e manter a placa fixada na pele e no ostoma.
DESCRIÇÃO DA IMAGEM: apresenta duas bolsas de ostomias. A primeira, à esquerda, é uma bolsa de duas peças, branca, em forma de U e afunilada na ponta inferior, onde fica a abertura da bolsa para retirar os excrementos. Ainda, a imagem apresenta uma placa quadrada com uma membrana no meio, que deve ser fixada ao ostoma, e um encaixe na parte superior da bolsa para essa placa. A segunda bolsa, à direita, é uma bolsa de uma peça, cor bege claro, em forma de U e afunilada na ponta inferior, onde fica a abertura da bolsa para retirar os excrementos. Na parte superior dessa bolsa é possível visualizar a barreira da pele — membrana para ser acoplada ao redor do ostoma — e a fita adesiva da bolsa, que serve para colar na pele ao redor do ostoma. Fim da descrição.
Segundo Morais (2015), há bolsas em menor tamanho para ocasiões especiais. A autora afirma que a necessidade de esvaziar a bolsa aciona-se quando seu conteúdo está 1/3 completo e que a média de esvaziamento diário flutua entre 5 a 10 vezes, enquanto a troca de bolsa pode ser feita de uma a duas vezes por semana, conforme o caso.
Embora as bolsas sejam seguras, Stumm, Oliveira e Kirschner (2008) apontam a sensação de insegurança emocional dos indivíduos ostomizados quanto aos possíveis vazamentos. Quando há a necessidade de esvaziamento da peça, observa-se que a pessoa ostomizada costuma excluir-se de seus grupos sociais. Mediante o número de vezes que isto ocorre, acredita-se na possibilidade de reclusão social. Nesse sentido, a seguir, explora-se o papel do vestuário adaptado como instrumento para auxiliar física e psicologicamente o indivíduo em sua condição.
2.1 O papel do vestuário inclusivo
Pode-se considerar que o vestuário tem a função de proteção e de ornamento, sendo parte fundamental da vida em sociedade, já que está ligado ao conceito de identidade, pertencimento e diferenciação (OLIVEIRA, 2013). Callan (2007) entende o vestuário como a expressão material de uma manifestação social de contexto cultural, isto é, um reflexo mutável de como a sociedade se engendra e de seu zeitgeist (espírito do tempo). Isto permite afirmar que o vestuário também pode ser compreendido como uma forma de integração do indivíduo à sociedade, o que favorece sua inclusão ou exclusão social (BROGIN; MERINO; BATISTA, 2014; GODINHO, 2017). Sousa, Xavier e Albuquerque (2017, p. 5) corroboram com o exposto e sustentam que:
A moda necessita ser uma porta aberta para a inclusão, para que isso aconteça basta que tenhamos uma percepção de inclusão social como regra da sociedade, em todas as áreas. A inclusão social deve ser priorizada [...] sendo a roupa mais um recurso para tal [...].
Para alcançar essa inclusão, Sousa, Xavier e Albuquerque (2017) apontam que criadores de vestuário, designers de moda ou estilistas, devem respeitar o direito de todos os consumidores de vestir-se com qualidade estética e ergonômica. Como exemplos de empresas que operam sob esta égide, Brogin, Merino e Batista (2014) citam Able to Wear, Cast Clothing, Lydda Wear e Xeni.
Brogin, Merino e Batista (2014) destacam que os resultados positivos obtidos por empresas e criadores de vestuário inclusivo estão baseados na centralidade projetual da usabilidade. Gonçalves e Beirão Filho (2008, p. 118) citam que, “[...] em relação à usabilidade de um produto, em tempo de globalização, esta não pode ser considerada como um valor agregado, e sim um valor intrínseco ao produto [...]”. Isto implica dizer que a usabilidade está no âmago do vestuário inclusivo, todavia, não pode ser considerada seu fim.
Além da usabilidade, Gonçalves e Beirão Filho (2008), Brogin, Merino e Batista (2014), Sousa, Xavier e Albuquerque (2017) e Krone, Oliveira e Rizzi (2020) defendem que o vestuário inclusivo deve atentar-se para requisitos projetuais tais como eficiência, eficácia, satisfação, acessibilidade, conforto, vestibilidade, maleabilidade, prazer sensorial, capacidade metabólica e habilidade neuromuscular, entre outros aspectos julgados pertinentes e sob investigação, caso a caso. Especialmente, Brogin, Merino e Batista (2014, p. 10) sustentam que:
[...] estes requisitos devem conferir segurança durante o uso da roupa, conforto tátil e térmico, liberdade de movimentos, facilidade de manuseio e uso, adequação a função a que se propõe, durabilidade e qualidade.
Para atender os requisitos supramencionados, Brogin, Merino e Batista (2014) orientam que o vestuário deve ser projetado a partir das medidas antropométricas dos usuários objetivados e de estudos sobre matérias-primas, aviamentos, modelagens e formas de manutenção, de interação e de comunicação entre o produto, o meio e o público-alvo pretendido. Por sua vez, Krone, Oliveira e Rizzi (2020) afirmam que para tornar o vestuário ainda mais inclusivo pode-se acrescentar às peças acessórios complementares ou tratamentos específicos, a exemplo de dispositivos sonoros e estampas com texturas salientes. Além dos aspectos materiais que atendem necessidades fisiológicas ou psicomotoras, Godinho (2017) cita que, no projeto do vestuário inclusivo, deve-se levar em conta os anseios sociais de autorrealização dos indivíduos, os paradigmas de autoaceitação e os signos sociais articulados aos grupos pelos quais esses usuários transitam. A autora complementa:
[...] é preciso um entendimento de que também este grupo social [das pessoas com deficiência] requer uma devida atenção em relação a roupas, que não somente oferecem funcionalidade, mas também devem ser confeccionadas dentro de uma estética que possibilite um aumento na autoestima, tornando-se meio de inclusão social (GODINHO, 2017, p. 94).
Nesse sentido, considera-se que a falta de vestuário inclusivo voltado para atender adequadamente as necessidades fisiológicas, psicológicas e sociais das pessoas com deficiência na Indústria Têxtil e de Confecção reflete-se em uma forma de exclusão por omissão. Brogin, Merino e Batista (2014) informam que esses individuos podem ser negligenciados ou mesmo marginalizados em função da ausência de opções mediante as ofertas do setor. Godinho (2017) acrescenta que o vestuário consiste em um instrumento de inclusão, exclusão, aceitação ou repulsa social. Assim, pode-se considerar que a falta de inclusão das pessoas com deficiência como público consumidor do vestuário constitui-se em um tipo de discriminação, conforme aponta o Art. 4º, cap II da Lei nº. 13.146, de 6 de julho de 2015 (BRASIL, 2015, n.p):
§ 1o Considera-se discriminação em razão da deficiência toda forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas.
Nessa perspectiva, importa ressaltar que, segundo o Decreto nº. 3.298, de 20 de dezembro de 1999 (BRASIL, 1999, n.p), as deficiências podem ser classificadas em:
I - deficiência física - alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, [...] apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, nanismo, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções;
II - deficiência auditiva - perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais [...];
III - deficiência visual – cegueira, [...] baixa visão, [...] casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que 60o; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das condições anteriores;
IV - deficiência mental – funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas [...];
V - deficiência múltipla – associação de duas ou mais deficiências.
Assim, independente do tipo de deficiência, faz-se preciso que o vestuário adapte-se às necessidades dos corpos de seus usuários e lhes assegure autonomia. Acredita-se que, com isto, seja possível oportunizar o conforto físico, psicológico e social desse público, uma vez que não depender de outras pessoas para suprir as necessidades básicas consiste em uma questão de dignidade. Apresentados os conceitos que fundamentaram esta pesquisa, a seguir, procede-se para seus aspectos metodológicos.
3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
A coleta de dados deste artigo ocorreu mediante levantamento bibliográfico e por intermédio de um questionário semiestruturado com perguntas abertas direcionadas para pessoas ostomizadas. O objetivo do questionário estava em buscar entender quais as dificuldades e facilidades encontradas diariamente na vida desses indivíduos, especialmente aquelas ligadas ao vestuário. O questionário foi elaborado com 12 perguntas e incluiu gênero e faixa etária. As perguntas foram divididas em dois blocos: (I) o indivíduo e seu ostoma; e (II) o indíviduo ostomizado e sua relação com o vestuário (Quadro 1).
A partir do questionário (Quadro 1), obtiveram-se 22 respostas em 5 dias de pesquisa, entre 10/09/2019 e 15/09/2019. Ressalta-se que o questionário foi divulgado em grupos de pessoas ostomizadas na rede social Facebook. A seguir, serão apresentados os resultados da pesquisa.
3.1 Resultados da pesquisa
Os dados pessoais e a causa do ostoma, em relação aos respondentes, podem ser observados com precisão no Quadro 2. Destaca-se que 16 pessoas (72,7%) são do gênero feminino, enquanto 6 pessoas (27,3%) são do gênero masculino. Quanto à faixa etária, 7 pessoas (31,8%) têm entre 50 e 60 anos, 4 pessoas (18,2%) têm entre 60 e 70 anos, 4 pessoas (18,2%) têm entre 31 e 40 anos, 3 pessoas (13,6%) têm mais de 70 anos, 3 pessoas (13,6%) têm entre 19 e 30 anos e uma pessoa (4,5%) tem até 18 anos. Quanto ao tipo de ostoma, 13 pessoas (59,1%) têm colostomia, 8 pessoas (36,4%) têm ileostomia e uma pessoa (4,5%) tem urostomia. Quanto à permanência, 12 pessoas (54,5%) têm o ostoma permanente, enquanto 10 pessoas (45,5%) têm o estoma temporário.
Questionou-se há quanto tempo essas pessoas utilizavam suas bolsas de ostomia e obteve-se como maior tempo de uso de 7 anos e o menor tempo de 1 mês. Após as perguntas sobre o indivíduo e seu ostoma, passou-se para as perguntas que envolveram a relação das pessoas ostomizadas com o vestuário. Assim, quando questionados sobre a quantidade de trocas de vestuário por dia (inclusive peças de dormir), 11 pessoas (50%) responderam que trocam de roupa 3 vezes por dia, 8 pessoas (36,4%) responderam que trocam de roupa 2 vezes por dia, 2 pessoas (9,1%) responderam que trocam de roupa uma vez por dia e uma pessoa (4,5%) respondeu que troca de roupa mais de cinco vezes por dia.
Quando questionadas sobre quais critérios são importantes ao escolher peças de vestuário, 15 pessoas (68,2%) responderam conforto, 14 pessoas (63,6%) responderam esconder a bolsa, 9 pessoas (40,9%) responderam facilidade ao vestir e despir, 5 pessoas (22,7%) responderam tecido, 4 pessoas (18,2%) responderam proteger a bolsa e 4 pessoas (18,2%) responderam estética (Figura 3). Importa destacar que era possível selecionar mais de uma resposta para esta pergunta.
DESCRIÇÃO DA IMAGEM: gráfico em barras, com a ordem em que aparecem: estética (4 pessoas, 18,2%), conforto (15 pessoas, 68,2%), facilidade ao vestir e despir (9 pessoas, 40,9%), tecido (5 pessoas, 22,7%), peças que “protejam” a bolsa (4 pessoas, 18,2%) e peças que “escondam” a bolsa (14 pessoas, 63,6%). Fim da descrição.
Quando questionados se mudam de ideia e trocam o vestuário após começarem a se vestir e, caso afirmativo, por qual motivo isso ocorre, algumas das respostas foram: (I) “Sim. Nunca acho que a bolsa está devidamente acomodada”; (II) “Sim. Sinto que a bolsa fica exposta”; (III) “Sim, tenho medo de sofrer bullying por causa da bolsa”; (IV) “Sim, pois a bolsa não pode aparecer”; (V) “Sim, se notar que está marcando a bolsa, troco”; e (VI) “Sim, pois muitas das minhas roupas ficam apertando a bolsa e sinto como se fosse vazar”.
Para um melhor entendimento das queixas das pessoas ostomizadas em relação ao vestuário, sintetizou-se, por meio do Quadro 3, as respostas obtidas de acordo com o número de vezes que a peça foi citada. Quando questionados se deixaram de usar alguma peça de vestuário após a cirurgia e, em caso afirmativo, o motivo, alguns respondentes afirmaram que: (I) “Roupas que marquem a cintura, tipo calça jeans e shorts jeans. O cós pega em cima do estoma”; (II) “Sim, calça jeans. Incomoda por ser muito dura”; (III) “Sim, cueca”; (IV) “Sim, calça jeans e meus shorts. Tenho que deixar o zíper aberto e cobrir com blusa”; (V) “Muitas. Para não aparecer a bolsa, só uso blusa larga e calça de cintura baixa”; (VI) “Sim. As de cores mais claras e transparentes”; (VII) “Calça jeans, porque estou tendo dificuldades de encontrar calças que não fiquem por cima da ileostomia”; e (VIII) “Sim, peças de praia e piscina”. Quando questionados se passaram a utilizar alguma peça após a cirurgia e o motivo, alguns respondentes asseveraram que: (I) “Sim, batas”; (II) “Sim, blusas compridas”; (III) “Sim, vestidos”; (IV) “Sim, vestidos e bermudas e shorts de panos leves e cós alto. Me deixam mais à vontade e não marcam muito a bolsa”; (V) “Blusas que cobrem a bolsinha, mais compridas”; (VI) “Sim, saias, pois são mais fáceis de ajustar na cintura”; (VII) “Sim, calças com elástico na cintura”; e (VIII) “Sim, passei a utilizar apenas camisolas”.
Coletadas as respostas (Quadro 3), a seguinte pergunta foi feita: “Você encontra dificuldades ao comprar roupas após a cirurgia? Se sim, qual e porquê?” Algumas das respostas obtidas foram: (I) “Sim, blusas são um problema, têm que ser um pouco maior pra não aparecer a bolsa e com cores escuras ou estampadas”; (II) “Sim, peças justas pelo fato de marcar a bolsa”; (III) “Sim, preciso de roupas largas que não ‘peguem’ no estoma”; (IV) “Sim, roupas prontas têm tamanhos muito restritos e a modelagem é muito pequena”; (V) “Quase todas as peças marcam demais, se a bolsa encher fica muito à mostra”; e (VI) “Sim, a moda da cintura alta é um problema para quem usa bolsa, principalmente se for uma peça em jeans”. Por fim, sobre sugestões de vestuário para pessoas ostomizadas, alguns respondentes mencionaram que: (I) “Blusas folgadas — com elástico grosso na barra — e estampadas são ótimas”; (II) “Shorts e calças com um lugar adaptado pra encaixar a bolsa. Sinto que teria mais segurança. Se nada estiver segurando a bolsa, ela se movimenta”; e (III) “A camiseta ou camisa deveria ter um bolsinho para adaptar a bolsinha, assim ela não ficaria pra fora da roupa”.
A partir das respostas obtidas com base no questionário, procedeu-se a discussão dos resultados e a confecção da cartilha de modo a atender ao objetivo proposto neste artigo.
3.2 Discussão dos resultados
Considera-se que, apesar do maior número de pessoas ostomizadas ser de uma faixa etária maior que 50 anos, há homens e mulheres de distintas idades — conforme observado no Quadro 2 — que, enquanto ostomizados, não se sentem bem com seu vestuário. Nesse sentido, as maiores queixas estão nos tecidos (jeans, por exemplo) e nas modelagens (peças pouco amplas ou que apertam o ostoma).
Entre as respostas coletadas, verificou-se que grande parte dos ostomas possui origem em algum tipo de câncer do aparelho intestinal. Assim, acredita-se ser preciso levar em consideração que, na maioria das vezes, o indivíduo já está psicologicamente abalado pela presença do câncer e por todos os desafios que enfrenta desde a fase inicial até a fase de tratamento pós-operatório. Ou seja, a ostomia não apenas altera sua fisiologia, como também requer determinada estabilidade psicológica para conseguir compreender a situação e manter-se socialmente e fisicamente ativo.
Como adaptação para o vestuário a fim de que sejam supridas as necessidades dos indivíduos ostomizados, recomenda-se o emprego de tecidos com fibras naturais, que não apertem e nem abafem o ostoma, e de modelagens que não sejam justas e que não evidenciem a bolsa coletora. Além disso, sugere-se a aplicação de estampas escuras nas peças de vestuário, pois estas refletem menos luz e podem auxiliar no aumento da confiança desses usuários uma vez que. Em caso de possíveis vazamentos, peças escuras escondem com facilidade o ocorrido, além de disfarçar a bolsa — necessidade que foi citada por alguns dos participantes da pesquisa.
Indica-se, também, que seja acoplada uma faixa sobressalente na altura da cintura na peça de vestuário. A faixa deve apresentar: (I) tecidos que, conforme supramencionado, não abafem o ostoma; (II) um espaço adequado para ser inserida a bolsa; e (III) um aspecto estético que auxilie na percepção de segurança do usuário. Para peças de praia, sugere-se a criação de maiôs ou shorts de praia com espaço para acoplar a bolsa ou faixas abdominais na mesma cor ou estampa que as demais peças.
Todas as recomendações supracitadas foram reunidas por meio de uma cartilha, apresentada na Figura 4 em sua estrutura preliminar e sob o formato de um folheto. A cartilha visa orientar o desenvolvimento de peças de vestuário para pessoas ostomizadas e destina-se a criadores de vestuários e pessoas ostomizadas, assim como seus familiares e amigos. Estima-se que a cartilha possa fomentar a redução da exclusão social que acomete os indivíduos ostomizados, pois incentiva a compreensão e o acolhimento às suas condições e necessidades.
DESCRIÇÃO DA IMAGEM: estrutura preliminar de uma cartilha. A primeira face da cartilha apresenta fundo amarelo, além da primeira figura presente nesse artigo e a explicação sobre o que é uma ostomia. A segunda face apresenta fundo laranja e define o que deve ser pensando ao desenvolver vestuário para pessoas ostomizadas. A terceira face apresenta fundo amarelo e a continuação do tópico sobre como desenvolver vestuário para pessoas ostomizadas. Fim da descrição.
Por fim, como limitação de pesquisa, cita-se a amostragem dos participantes e o aporte teórico do corpo de conhecimento do artigo. Nesse sentido, sugere-se que novos itinerários científicos abarquem amostras maiores para embasar a precisão do estudo, assim como, que sejam investigados outros autores mediante a literatura da área.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto neste artigo, acredita-se que seu objetivo — apresentar uma estrutura preliminar de uma cartilha para o desenvolvimento de vestuário para pessoas ostomizadas — tenha sido cumprido conforme o estabelecido. Exibida sob o formato de folheto, a cartilha reúne recomendações com o intuíto de orientar a proposição de peças de vestuário para indivíduos ostomizados à Indústria Têxtil e de Confecção.
Nesse sentido, além da contribuição mercadológica deste artigo à indústria, estima-se que outras perspectivas tenham sido alcançadas: (I) socialmente, a cartilha desenvolvida pode auxiliar na concepção que a pessoa ostomizada tem sobre seu corpo em relação ao vestuário, bem como, instrumentalizar familiares e amigos diante do assunto; e (II) academicamente, considera-se que o artigo possa ampliar a literatura existente sobre o vestuário inclusivo, assim como, acerca das necessidades dos indivíduos ostomizados.
Por fim, para a construção de uma agenda de pesquisa, sugere-se que futuros trabalhos executem a cartilha e a testem em campo com o aporte de escalas científicas. Após a validação do estudo, recomenda-se que as cartilhas sejam distribuídas e compartilhadas com hospitais, clínicas médicas, consultórios particulares, universidades e entidades do terceiro setor de modo que as informações obtidas sejam capilarizadas na sociedade.
REFERÊNCIAS
BRASIL. DECRETO Nº. 3.298, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1999. Regulamenta a Lei no 7.853, de 24 de outubro de 1989, dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, consolida as normas de proteção, e dá outras providências., Brasília, DF, dez 1999. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3298.htm. Acesso em: 17 fev. 2018.
BRASIL. LEI Nº. 13.146, DE 6 DE JULHO DE 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), Brasília, DF, jul 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: 17 fev. 2018.
BROGIN, B.; MERINO, E. A. D.; BATISTA, V. J. Contribuição da ergonomia e antropometria no design do vestuário para crianças com deficiência física. Design e Tecnologia, Porto Alegre, v. 4, n. 08, p.1-10, 31 dez. 2014.
CALLAN, G. O'H. Enciclopédia da moda: de 1840 à década de 80. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
CANCASTER, B. Choosing an ostomy bag. Vitaly medical, 2015. Disponível em: https://www.vitalitymedical.com/blog/choosing-an-ostomy-bag.html. Acesso em: 26 out. 2019.
DICIONÁRIO MICHAELIS. Inclusão, 2015. Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/inclus%C3%A3o/. Acesso em: 4 mar. 2018.
GIL, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social . 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008.
GODINHO, S. de S. Além das aparências. ModaPalavra e-periódico, Florianópolis, v. 10, n. 19, p. 82-97, jan./jul. 2017. Disponível em: https://bit.ly/3yPtvdu. Acesso em: 20 mar. 2021.
GONÇALVES, E.; BEIRÃO FILHO, J. A.. Usabilidade: vestuário infantil. ModaPalavra e-periódico, Florianópolis, v. 1, n. 1, p.107-118, jan./jun. 2008. Disponível em: https://bit.ly/3uIpk0q. Acesso em: 01 fev. 20.
IBGE: CENSO DEMOGRÁFICO 2010. Características gerais da população, religião e pessoas com deficiência. Rio de Janeiro: IBGE, 2012. Acompanha 1 CD-ROM.
KRONE, S. M. F.; OLIVEIRA, A. H. P. de; RIZZI, S. Desenvolvimento de vestuário para crianças com deficiência visual: uma abordagem inclusiva. Projética, Londrina, v. 11, n. 1, p. 246, 1 jun. 2020. Disponível em: https://bit.ly/2OY3k22. Acesso em: 20 out. 2020.
MODA INCLUSIVA: perguntas e respostas para entender o tema. São Paulo: SEDPcD, 2012.
MORAIS, D. Mulher com ostomia você é capaz de manter o encanto. 7ª ed. Goiânia: Editora Kelps, 2015. Disponível em: https://abcd.org.br/wp-content/uploads/2016/09/Cartilha_da_Mulher_Com_Ostomia-7Ed_web.pdf. Acesso em: 26 out. 2019.
OLIVEIRA, T. S. de. Moda: um fator social. 2013. Dissertação (Mestrado em Têxtil e Moda) — Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. Acesso em: 28 fev. 2018.
POCKET NURSE. Site. 2019. Disponível em: https://www.pocketnurse.com/default/11-81-0906-nasco-life-formr-ostomy-care-simulator. Acesso em: 28 out. 2019.
SOUSA, R. E. de; XAVIER, L. A.; ALBUQUERQUE, S. S. de. Moda inclusiva: reconhecendo a necessidade da criança cadeirante. ModaPalavra e-periódico, Florianópolis, v. 10, n. 19, p.2-22, jan./jun. 2017. Disponível em: https://bit.ly/3tc4pCn. Acesso em: 01 fev. 2020.
STUMM, E. M. F.; OLIVEIRA, E. R. A.; KIRSCHNER, R. M. Perfil de pacientes ostomizados. Scientia Medica, Porto Alegre, v. 18, n. 1, p. 26–30, jan./mar. 2008.