Resumo: Este trabalho apresenta um relato da experiência desenvolvida pelo projeto de extensão universitária “Na Paz: Estratégias para a Promoção da Igualdade Racial e de Gênero nas Escolas”, do Curso de Serviço Social da ULBRA. Realizamos uma contextualização do racismo no Brasil, trazendo apontamentos sobre os impactos da escravização para o desenvolvimento sócio-histórico do país e para a consolidação da cidadania plena deste segmento. Em seguida, apresentamos uma reflexão sobre a cultura de paz e o papel da escola na promoção da igualdade racial. O trabalho com alunos do Ensino Médio aposta na desconstrução de alguns mitos sobre racismo, democracia racial e discriminação racial. Esta atividade tem apresentado resultados positivos, especialmente no que se refere ao envolvimento dos jovens na discussão dos temas propostos. Esses resultados apontam para o potencial que a escola possui na transformação das relações raciais no Brasil.
Palavras-chave:Cultura de pazCultura de paz, igualdade racial igualdade racial, escolas escolas.
Abstract: This paper presents and account of the experience developed by the university extension project “In Peace: Strategies for the Promotion of Racial and Gender Equality in Schools” of the ULBRA Social Service Course. We carried out a contextualization of racism in Brazil, presenting notes on the impacts of enslavement to the socio-historical development of the country and for the consolidation of the full citizenship of this segment. Next, we proposed some reflection on the culture of peace and the school students focused on the deconstruction of some myths about racism, racial democracy and racial discrimination. This activity has shown positive results, especially regarding the involvement of young people in the discussion of the themes proposed. These results point to the potential of the school to transform racial relations in Brazil.
Keywords: Peace culture, racial equality, schools.
Artigos
DISCUTINDO A CULTURA DE PAZ COMO CAMINHO PARA PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL NAS ESCOLAS
Recepção: 20 Junho 2017
Aprovação: 23 Outubro 2017
Abordar a cultura de paz nos dias atuais parece ir na contramão do movimento experimentado pela sociedade em geral, que presencia cada vez mais a naturalização e banalização da violência no seu dia a dia. Considerando a complexidade dos temas postos em pauta, temos a convicção de que trazê-los para o debate é fundamental, já que são vistos como eixos centrais no processo de desnaturalização de diversas formas de violência presentes em nossa sociedade. Ainda, considerando que estudos recentes demonstram que a violência tem sido vista como resultado de processos de exclusão e intolerância1 Assim, questionar tais processos se faz fundamental para a construção de uma sociedade onde o convívio com a diversidade seja possível.
O âmbito escolar é, por excelência, um local de construção de relações e, muitas vezes, de reprodução das relações de poder estabelecidas nos diferentes espaços sociais. Procurar romper com essa lógica não é uma tarefa fácil, sendo necessários esforços de diversas ordens para a concretização de uma proposta de transformação nas relações sociais, a partir da vivência escolar. É o que estamos propondo com a realização do projeto de extensão universitária ''Na Paz: Estratégias para a Promoção da Igualdade Racial e de Gênero nas Escolas", que procura dialogar com a juventude a respeito de estratégias para a promoção da igualdade racial nas escolas, por meio de ações socioeducativas.
O objetivo da ação extensionista proposta é realizar ações que estimulem a discussão sobre a promoção da igualdade racial e de gênero, questionando e problematizando situações de seu cotidiano. Através disso, busca-se também estimular a reflexão sobre a superação do preconceito e da discriminação racial e a atuação dos jovens como multiplicadores destas informações em suas famílias e comunidades.
Para isso, desenvolvemos uma metodologia de trabalho que envolve a aplicação de um jogo de tabuleiro e a discussão dos jovens a partir de cartas disparadoras, que remetem a situações de seu cotidiano, dentro e fora da escola. As cartas disparadoras foram pensadas para provocar a discussão dos jovens, problematizando antigos ditados populares e levantando questões polêmicas, inspiradas na dialética2, conforme abordaremos mais tarde.
Para contemplar a discussão proposta, este artigo está organizado em três partes: na primeira apresentamos as marcas do passado recente do Brasil, contextualizando o racismo; na segunda refletimos sobre a escola, a cultura de paz e a promoção da igualdade racial; e para finalizar, apresentamos dados quanti- qualitativos dos resultados alcançados.
A questão do racismo no Brasil tem se apresentado como um intrigante desafio, especialmente para aqueles que buscam encontrar em seu enfrentamento alternativas para a reconstrução das relações estabelecidas entre negros e brancos, partindo do reconhecimento de que vivemos em uma sociedade multirracial. É neste terreno que nos situamos.
Considerando que a discussão sobre o racismo tem como pano de fundo a imprecisão que envolve a terminologia raça, apontamos alguns aspectos que nos aproximam da compreensão que entendemos como a mais apropriada para essa discussão. Ainda que não restem dúvidas de que as raças, em sua acepção biológica, já não existem, é importante sinalizar que há diversas justificativas em tomo do que motivou sua aplicação entre seres humanos, a partir de meados dos séculos XVIII e XIX3.
Borges (2002) sinaliza que as teorias sobre a classificação do gênero humano baseada em raças preconizavam juízos de valor vantajosos para os europeus, levando à hierarquização dos grupos humanos. Essas teorias teriam como fundamento a necessidade de justificar o poder de uns sobre outros, como resultado de um processo que se poderia explicar por meio da ciência - tais fatores fizeram com que o racismo se inscrevesse enquanto doutrina amplamente difundida pelos meios científicos (BORGES, 2002).
Nesse sentido, Guimarães (2006) aponta que o racismo contemporâneo pauta-se em ''raças fictícias" (MUNANGA, 2004 apud GUIMARÃES, 2006) construídas a partir de diferenças no fenótipo. Referência importante nesse debate, Munanga (1998) aponta que o racismo é um fenômeno estritamente ligado à história da ciência e da cultura ocidental, aparecendo sempre inter-relacionado com a discriminação e o preconceito racial, numa relação em que o primeiro origina os demais:
[...]por um lado nós temos uma ideologia racista, que é uma doutrina, uma concepção de mundo [...) O mesmo fenômeno se decompõe também em preconceito racial, que é simplesmente uma disposição afetiva imaginária [...]uma atitude, uma opinião, que pode ser verbalizada ou não[...) Finalmente, há a discriminação racial, que é um fenômeno coletivo observável. (MUNANGA, 1998, p.49).
Assim, evidencia-se que utilizamos a expressão ''raça" como uma categoria socialmente construída e não biológica.
Por mais que seja desagradável, é inevitável mencionar os inúmeros aspectos negativos deixados na sociedade brasileira pelo processo de escravização da população africana. O Brasil foi o último país de tradição cristã e Ocidental a abolir legalmente a escravidão e esse acontecimento se deu, em grande parte, para atender às pressões externas pelo fim do tráfico de pessoas da África para o Brasil4.
De acordo com Carvalho (2007), o escravismo, em conjunto com o patriarcalismo e o colonialismo, são os três grandes pilares de construção da sociedade brasileira. A partir disso, é preciso entender que ''processo de abolição da escravatura" brasileiro se deu muito mais como um ato simbólico do que por meio de ações práticas efetivas.
No Brasil, diferentemente do que ocorreu nos Estados Unidos, por exemplo, a escravidão era muito mais difundida, sendo seus valores aceitos por várias camadas sociais. Isso dificultou o surgimento de um movimento abolucionista no país, pois de acordo com Carvalho (2007, p.49), "até a interpretação tradicional dos católicos, vigente em Portugal e no Brasil, era que a Bíblia admitia a escravidão, que o cristianismo não a condenava".
Esses e outros aspectos influenciaram na forma como foram tratados os negros após sua libertação:
No Brasil, aos libertos não foram dadas nem escolas, nem terras, nem empregos. Passada a euforia da libertação, muitos ex escravos regressaram a suas fazendas [...]para retomar o trabalho por baixo salário [...] Onde havia dinamismo econômico provocado pela expansão do café, como em São Paulo, os novos empregos, tanto na agricultura como na indústria, foram ocupados pelos milhares de imigrantes italianos que o governo atraía para o país. La os ex-escravos foram expulsos ou relegados aos trabalhos mais brutos e mais mal pagos. (CARVALHO, 2007,p. 52).
Assim, podemos sinalizar que uma das maiores marcas deixadas pela escravização negro-africana foi o aspecto negativo conferido à pessoa negra. Esse aspecto negativo, em conjunto com alguns mecanismos desenvolvidos pelas elites intelectuais e políticas do país, ainda se faz presente no imaginário social da população como um todo, influenciando a percepção do indivíduo negro sobre si mesmo.
Primordial para o entendimento dessa questão é a compreensão da ideologia do branqueamento, enquanto importante aparato ideológico que mina a construção da identidade da população negra brasileira. Carone e Bento (2002) e Munanga (2004) sinalizam que ela foi forjada pelas elites intelectuais brancas em meados do século XIX e início do século XX, sendo evidenciada nas ciências, nas artes, nas pesquisas e na imprensa, demonstrando a expectativa dessas elites de que o Brasil se tomasse um país branco.
Com o passar do tempo, essa ideologia sofreu alterações no imaginário social, especialmente quanto a suas funções e sentidos. Ainda assim, esquece-se, nas análises correntes, que apesar de o branqueamento fisico da sociedade ter fracassado, visto que não se eliminou a presença negra no país, "[...] seu ideal inculcado através de mecanismos psicológicos ficou intacto no inconsciente coletivo brasileiro" (MUNANGA, 2004, p. 16).
Posto isso, procuraremos agora destacar alguns aspectos apresentados pela promulgação da Constituição Federal de 1988, que inaugurou uma nova fase da relação dos atores sociais negros com os órgãos oficiais do governo, visto que, ao mesmo tempo em que procurou romper com as marcas deixadas pelo regime militar de 1964, a Carta Magna elevou à categoria de sujeitos de direitos grupos secularmente marginalizados na sociedade brasileira, como é o caso da população negra e das mulheres, por exemplo.
A partir desse marco - a promulgação da Constituição da República de 1988 - se modificam as relações estabelecidas entre Estado e sociedade, já que acontecem importantes deslocamentos nos meios e recursos destinados à gestão social (SILVA, 2004). Nesse momento, muitas organizações negras surgem e outras tantas se modificam, tomando formas de Organizações Não-Governamentais (ONGs) e ocupando grande espaço político (NASCIMENTO, 2006).
Da mesma forma, ampliam-se os mecanismos de diálogo entre o Estado e alguns setores dos movimentos negros5 especialmente com a criação de organismos oficiais de promoção e proteção da comunidade negra em nível nacional6. Tanto que presenciamos, nas duas últimas décadas, uma gradual modificação em relação à forma como a sociedade brasileira vê as questões que envolvem a população negra, em diversas esferas.
No contexto social brasileiro (onde houve um tardio reconhecimento oficial acerca da existência de discriminação racial e de que a escravidão à qual foi submetida a população negra configura crime à humanidade7), tais ações têm especial relevância, sendo resultado de ações sistemáticas dos movimentos negros organizados. A realização da I Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial - CONAPIR, que ocorreu no ano de 2005, é um exemplo disso.
Para Pereira (2008), esse processo demarca uma nova perspectiva conceitual com relação à luta contra o racismo na sociedade brasileira, tendo em vista que:
[...]a luta contra o racismo forjou uma história, muitas e novas consciências e práticas sociais, agregou espaços, auferiu conquistas materiais e simbólicas [...] mas carrega a limitação de só ir "até o meio do caminho". A promoção da igualdade racial coloca-se a partir desse limiar e pretende superá-lo (PEREIRA, 2008, p. 121).
Apesar dos inúmeros avanços sinalizados com a adoção de politicas de promoção da igualdade racial, atualmente ainda presenciamos um panorama assustador nos índices de desenvolvimento8 da população negra no Brasil. Dados da Síntese dos Indicadores Sociais (SIS) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE de 2015 fazem um comparativo da evolução da situação da população negra no Brasil em um período de 10 anos e apontam que: do total de estudantes pretos ou pardos de 18 a 24 anos de idade, 45,5% cursavam o ensino superior em 2014, contra 16,7% em 2004 - um aumento considerável para o período. Entretanto, para a população branca, essa proporção passou de 47,2% em 2004 para 71,4% em 2014. Veja-se: o percentual de pretos e pardos no ensino superior em 2014 ainda era menor do que o percentual de brancos no ensino superior dez anos antes.
Para Freitas e Hengler (2015):
A desigualdade racial no Brasil pode ser visualizada na contemporaneidade a partir de diversas dimensões, entre elas, o acesso à educação. A situação de vulnerabilidade vivenciada pela população negra tem no âmbito do acesso e permanência no sistema educacional uma de suas expressões mais significativas. (FREITAS; HENGLER, 2015, p. 34).
Os dados são igualmente alarmantes quando analisamos a desigualdade de rendimentos segundo a cor ou raça da população. As pessoas de cor ou raça preta ou parda representavam 76,0% das pessoas entre os 10% com os menores rendimentos e 17,4% no 1% com os maiores rendimentos, em 2014. De acordo com a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial - SEPPIR9: "A baixa participação da população de cor preta ou parda no estrato de maiores rendimentos contrasta com sua elevada participação na composição da população geral, que chegou a 53,6% em 2014".
Tais dados evidenciam que temos ainda diversos desafios colocados quando se trata de pensar em estratégias para promoção da igualdade racial na sociedade brasileira. A educação e a escola, como sinalizado acima, exercem um papel fundamental nesse processo. Refletiremos um pouco mais sobre isso no próximo item.
Considerando as características da formação sócio-histórica do Brasil, demonstradas no item anterior, é imperativo que possamos nos envolver, enquanto atores sociais, na busca por alternativas para promoção da igualdade racial. Definitivamente, este precisa ser um assunto colocado em pauta todos os dias, em todos os espaços sociais e para todas as pessoas - deve ser um compromisso da sociedade para com a própria sociedade.
Os processos discriminatórios presentes na escola precisam ser analisados à luz dos direitos humanos. Nesse sentido, cabe destacar que a discussão sobre os impactos sociais da questão de cor/raça enquanto integrante dos direitos humanos começa a avançar no Brasil especialmente a partir de 2001, quando da realização da III Conferência Mundial Contra o Racismo, a Xenofobia, a Discriminação e Intolerâncias Correlatas, em Durban. Nessa ocasião, como exposto anteriormente, foi reconhecido que a escravização negro africana no Brasil se constituiu como um crime à humanidade, desencadeando uma série de ações por parte dos governos voltadas à promoção da igualdade racial.
Percebemos o quão recente é esse processo, necessitando, portanto, de ampla discussão por diferentes setores da sociedade brasileira. Consequência disso, presenciamos ainda hoje que o acesso igualitário a direitos não se cumpre na totalidade, especialmente porque nos deparamos com a desarticulação, a falta de transversalidade entre as diferentes politicas setoriais, ou mesmo com a diferença entre o que está posto nas leis e a sua materialidade.
Isso, por sua vez, se correlaciona com a precariedade das condições de trabalho e com as condições éticas para um atendimento humanizado à população em geral e às pessoas negras em particular, em diversos âmbitos, seja na saúde, segurança pública, assistência social, habitação, justiça, dentre outros. Ainda assim, não podemos perder de vista que a efetivação de tais direitos compete ao Estado e a toda a sociedade.
Segundo Freitas e Hengler (2015):
O processo histórico cultural de formação da sociedade brasileira, as configurações do modo de produção capitalista, as transformações ocorridas no mundo do trabalho, entre outras dimensões, contribuem para a construção do que denomina-se desigualdade racial, que no pais desprivilegia a população negra, mesmo que a vigente Constituição da República Federativa do Brasil estabeleça que todos são iguais (FREITAS; HENGLER, 2015, p. 40).
Ao pensarmos nestas questões, salta aos olhos o potencial que a educação e, em última instância, a escola têm nesse processo. Nesse sentido, muito se discute sobre o papel contraditório que a escola possui, de "educar para a cidadania que inclui e para a competitividade cada vez mais excludente.. (JESUS, 2003, p. 181). Esse paradoxo evidencia os inúmeros significados que a educação pode possuir, considerando que os espaços e relações estabelecidas dentro da escola possuem significados diferentes tanto para alunos, quanto para professores, a depender da cultura e dos projetos dos diferentes grupos sociais que nela coexistem (JESUS, 2003).
Nesse cenário, entendemos que a escola deve preconizar:
[...] sua missão de formadora de pessoas dotadas de espírito critico e de instrumentos conceituais para se posicionarem com equilíbrio em um mundo de diferenças e de infinitas variações. Pessoas que possam refletir sobre o acesso de todos/as à cidadania e compreender que, dentro dos limites da ética e dos direitos humanos, as diferenças devem ser respeitadas e promovidas e não utilizadas como critérios de exclusão social e política. Precisamos, portanto, ir além da promoção de uma atitude apenas tolerante para com a diferença. (CARRARA, 2009, p. 16).
Para desenvolver essa atitude que vai além da tolerância para com a diferença, indo ao encontro do respeito e da valorização dessa diferença, a cultura de paz se coloca como uma interessante alternativa. Isso considerando que: ''uma posição de simples respeito e tolerância a essas diferenças não está a serviço daquela emancipação social preconizada, menos ainda, nos meios educacionais que já demonstraram a sua eficiente resistência." (JESUS, 2003, p. 188).
Pensar em uma cultura de paz requer a mobilização de esforços para modificar o pensamento e a ação das pessoas no sentido de promover a paz, em um processo em que a violência e suas consequências deixam de ser a temática principal. O movimento pela cultura de paz foi oficialmente divulgado pela Organização das Nações Unidas- ONU em 1999, por meio da Declaração e Programa de Ação sobre uma Cultura de Paz.
Esse ato foi seguido pelo "Ano Internacional da Cultura de Paz", em 2000, e pela "Década Internacional para uma Cultura de Paz e não-violência para as crianças do mundo", no período de 2001 a 2010. No artigo primeiro da Declaração e Programa de Ação sobre uma Cultura de Paz10, ela é definida como um conjunto de valores, atitudes, tradições, comportamentos e estilos de vida baseados em alguns princípios, sendo alguns deles:
a) No respeito à vida, no fim da violência e na promoção e prática da não-violência por meio da educação, do diálogo e da cooperação; [...] g) No respeito e fomento à igualdade de direitos e oportunidades de mulheres e homens; h) No respeito e fomento ao direito de todas as pessoas à liberdade de expressão, opinião e informação; i) Na adesão aos principias de liberdade, justiça, democracia, tolerância, solidariedade, cooperação, pluralismo, diversidade cultural, diálogo e entendimento em todos os niveis da sociedade e entre as nações (ONU, 1999, p.02/03).
A partir do exposto, percebemos que a preservação e a valorização da diversidade cultural11 assim como a redução das desigualdades sociais e o respeito aos direitos humanos, devem ser estimulados para a construção de uma cultura de paz. Esse é um processo que envolve também a preservação do ambiente em que se vive, respeitando-se a pluralidade presente na sociedade brasileira.
Nesse contexto, o processo educativo assume relevância especial, tendo em vista a multiplicidade de pessoas convivendo no espaço da escola. Trata-se, portanto, de encararmos o desafio da construção de uma sociedade em que as diferenças sejam não só reconhecidas, mas também valorizadas. De acordo com Jesus (2003):
Diferenças não são vistas como absolutas, irredutíveis ou intratáveis, mas em vez disso, como polivocais e relacionais, social e culturalmente (...). As diferenças não devem ser entendidas como meras oposições binárias que trazem em si um desequilíbrio inerente de poder, uma impostura da exclusão, e sim, devem ser vistas como o elemento fundante da diversidade, da própria heterogeneidade. Assim como a ligação fluida entre as identidades e as subjetividades, elas merecem ser entendidas sem se naturalizá-las, cristalizá-las ou essencializá-las. (JESUS, 2003, p. 186).
Esse processo de reconhecimento das diferenças passa, obrigatoriamente, pelo reconhecimento e pela valorização da contribuição dos variados grupos que contribuíram para a formação da sociedade brasileira. Para a comunidade negra no Brasil, esse processo envolve a passagem de todos os símbolos negro africanos do aspecto negativo para o positivo, num processo que valorize as heranças culturais de origem africana, as ressignificando de acordo a vivência negra no Brasil.
Nesse processo, a pertença e a identificação racial produzem significado fundamental para a afirmação da pessoa negra enquanto cidadã nas sociedades contemporâneas, já que incentivam o auto orgulho, valorização e promoção. Nesse sentido, destaca-se a promulgação, em 2003, da Lei 10.639, que trata da obrigatoriedade da inclusão da história e cultura afro brasileira e indígena nos currículos escolares, em todos os níveis de ensino.
Muita coisa ainda há para fazer nesse frágil caminho que estamos construindo. Vamos olhar para o futuro?
Reconhecer o processo histórico a partir do qual nos constituímos enquanto sociedade é um primeiro passo, fundamental para se projetar ações presentes e futuras com vistas à construção de novos cenários. Considerando as características da formação sócio-histórica do Brasil, demonstradas nos itens anteriores, é fundamental que possamos nos envolver, enquanto atores sociais, na busca por alternativas para a promoção da igualdade racial.
Definitivamente, este precisa ser um assunto colocado em pauta todos os dias, em todos os espaços sociais e para todas as pessoas - deve ser um compromisso da sociedade para com a própria sociedade. Neste contexto, a Extensão Universitária, que é um dos pilares que constituem a Universidade brasileira, em conjunto com a Pesquisa e o Ensino, tem um papel fundamental.
Isso porque ela fortalece o diálogo entre Universidade e sociedade, procurando realizar ações que possam intervir na solução de problemas de relevância social e técnica do conjunto da sociedade. De acordo com Cavalcanti (2005):
[...] a relação ensino, pesquisa e extensão possibilita a democratização do conhecimento, a participação qualificada da comunidade, a produção acadêmica resultante do confronto com a realidade, o processo dialético entre teoria e prática e a noção de extensão como trabalho interdisciplinar, favorecendo a visão integrada do social.(CAVALCANTI, 2005,p. 24).
Além disso, as iniciativas de extensão universitária possibilitam o diálogo entre diferentes realidades sociais, buscando inspiração para elaborar e reelaborar ideias, conceitos e saberes. Ela é capaz de imprimir um novo rumo à universidade e de contribuir significativamente para sua mudança social, em um movimento dialético (CAVALCANTI, 2005).
O público-alvo do projeto "Na Paz" são os alunos do Ensino Médio da rede pública de Canoas/RS e o principal objetivo é realizar ações que estimulem a discussão sobre a promoção da igualdade racial e de gênero, questionando e problematizando situações de seu cotidiano. Partindo do reconhecimento das diferenças presentes em sala de aula, procuramos estimular a consciência critica dos jovens, visando a transformação das relações estabelecidas não só em sala de aula, mas também em suas famílias e comunidades.
As ações do projeto ''Na Paz'' em cada escola se iniciam a partir do contato com a direção da escola, supervisão escolar e, eventualmente, com o grupo de professores12. Depois de feitos os acertos iniciais a respeito da atividade (tempo de duração, dia de semana e horário indicados, apresentação da equipe), iniciamos o contato direto com os alunos em sala de aula, de acordo com os dias e horários previamente agendados.
Ao entrar na sala de aula, a equipe se apresenta e explica a proposta da atividade, convidando o grupo de alunos a participar. Após esse contato, conduzimos a divisão da turma em 3 ou 4 pequenos grupos (divisão feita por eles, de acordo com afinidade) e iniciamos o "jogo do tabuleiro". Nesse momento inicial, cada grupo escolhe um pino de acordo com a cor e um representante de cada grupo vai até ao centro da sala (um de cada vez) para jogar o dado, percorrendo em seguida, no tabuleiro, o número indicado pelo dado. Depois disso, retira uma das cartas tema13 , levando-a para discussão com seu pequeno grupo, por um tempo aproximado de cinco minutos.
Passado esse tempo, retomamos o diálogo no grande grupo, momento em que um aluno de cada grupo lê a carta que o grupo tirou, expondo ao grande grupo o processo reflexivo provocado por ela. A partir dai, inicia-se um diálogo e a exposição das questões propostas pelas cartas-tema e pelo interesse dos presentes, em um processo em que a demanda é identificada a partir de informações/questionamentos que emanam do próprio grupo de alunos.
A perspectiva critica da ação se apresenta com o uso da dialética para condução dos debates, em que os diferentes pontos de vista são privilegiados, em um processe que deixa emanar as contradições presentes na defesa dos diferentes de posicionamentos dos jovens. Esse processo é conduzido até que possa haver um convencimento ou consenso criado pelo próprio grupo a respeito de determinada situação problema apresentada pela carta tema. Aos facilitadores da atividade, cabe fazer um fechamento ao final de cada discussão, sempre procurando estimular o senso critico e de reflexão a respeito dos temas abordados.
Nesse processo, evidencia-se o papel do Serviço Social na publicização dos direitos e na multiplicação de informações com os jovens na escola14, pois em uma sociedade democrática, a informação é considerada condição para o exercício da cidadania, além de despertar a consciência e representar um instrumento de ação/mobilização. No período de 2017-1, estamos trabalhando com turmas do primeiro ano do Ensino Médio, em uma escola localizada na região de central de Canoas/RS15. Durante este período, a atividade contemplou nove turmas de primeiro ano do Ensino Médio do turno da tarde, sendo que a faixa etária dos alunos participantes variou entre 14 e 19 anos.
Cabe destacar que as cartas tema sempre são expostas com o texto virado para baixo, evitando que os alunos possam escolher a carta pelo tamanho do texto ou por sua preferência por este ou aquele assunto em especial. Estamos trabalhando com 10 cartas tema, e, a depender da condução da dinâmica, pode-se utilizar todas as cartas ou somente algumas delas no tempo de um período (50 minutos}, que é o tempo estipulado para a realização da atividade.
Considerando a discussão proposta neste artigo, expomos a seguir duas das cartas tema utilizadas durante o jogo, bem como as discussões provocadas por elas entre alguns dos jovens contemplados em sala de aula. A primeira carta apresenta o seguinte conteúdo: "Democracia racial é um termo usado por algumas pessoas para descrever as relações raciais no Brasil. Ela se caracteriza pela crença de que no Brasil não existe racismo e discriminação racial. Alguns dizem que A DEMOCRACIA RACIAL NO BRASIL... é um MITO. E vocês, o que acham?"
Como vimos ao longo deste texto, a democracia racial é um dos elementos-chave para compreendermos a forma como se organiza o racismo no Brasil. Ao retirar esta carta durante o jogo, um aluno mencionou que existem diferenças entre negros e brancos, pois acredita que ''um menino negro pensa em entrar para o tráfico de drogas, por exemplo, mais facilmente do que um menino branco" (SIU) 16. Após ele expor sua opinião, colegas de seu subgrupo disseram discordar dela e outra aluna pediu a palavra. Ela referiu-se ao colega dizendo que "a criminalidade não tem nada a ver com a cor da pele, pois ela conhece vários meninos brancos que se tomaram traficantes, por causa do tipo de criação que tiveram" (SIU).
Para condução deste debate, a equipe do projeto é orientada a intervir, buscando a construção e o desenvolvimento de relações solidárias, que vão contra as relações vigentes numa sociedade autoritária. Para isso, procura-se excluir qualquer forma de dominação e apostar em um trabalho com bases horizontais que invistam em relações solidárias.
Ao analisar a situação descrita acima, deparamo-nos com algumas situações que expressam elementos particulares da forma como o racismo se manifesta em nossa sociedade. A primeira opinião parece expressar o entendimento geral da maioria da população brasileira, que embora diga não ser racista, manifesta o racismo em situações particulares do cotidiano. O ato de segurar a bolsa ao passar por um homem negro na rua é um exemplo disso.
Então, foi como se essa opinião, assim expressa, "tirasse do armário" o preconceito que está escondido e que as pessoas, em geral, não querem mostrar. As reações dos alunos na sala de aula foram diversas, alguns parecem ter se surpreendido pela forma como o colega manifestou sua opinião, e alguns o rechaçaram. Assim que ele terminou, a colega fez uma fala contrária à dele e foi aplaudida pela turma, demonstrando que os alunos em geral parecem ter concordado mais com o que ela falou.
Ao discutir a mesma carta em outra turma de primeiro ano do Ensino Médio, uma das alunas mencionou que o racismo existe porque se dá muito assunto para ele e o certo seria não falar nada, "deixar quieto" (SIU). Após essa manifestação, a maioria dos presentes não falou nada e alguns alunos demonstraram sua concordância com a fala da colega. Neste momento, a equipe procurou respeitar o que foi dito pela aluna, mas problematizando a situação, elaborando novas perguntas ao grupo, que remetiam ao porquê da permanência desta problemática na sociedade, se o assunto não era debatido em sala de aula? Ou era? Ao que eles responderam que não.
Ao refletirmos sobre essa segunda opinião, consideramos que ela expressa uma espécie de sentimento de que o racismo não é uma responsabilidade individual, ou nossa (enquanto sociedade). Demonstra um processo em que as pessoas não se veem como agentes do racismo, ou não acreditam que sejam elas próprias as agentes desse ato condenável socialmente. Ninguém quer se identificar com atitudes consideradas desumanas, por exemplo.
Ao mesmo tempo, essa fala demonstra um certo incômodo com a abordagem do tema, numa atitude de autoproteção que parece refletir o medo da discussão a respeito do sistema de privilégios vigente na sociedade brasileira. Então é como se não falar do racismo fizesse com que ele não existisse ou não se manifestasse em sua realidade/cotidiano.
Essa compreensão chama a atenção para a necessidade de ações voltadas à educação para as relações étnico-raciais no Brasil, pois é fundamental que esse processo seja discutido e não silenciado. Aliás, é muito provável que o atual status de que goza o racismo na sociedade brasileira seja fruto de um total silenciamento a que foi submetido, por décadas a fio. Sem dúvidas, causa-nos incômodo pensar no sistema desigual vivenciado por negros e brancos no Brasil, mas silenciá-lo e tratá-lo como se não existisse é uma armadilha na qual já estivemos presos por muito tempo.
A segunda carta do jogo que destacamos tem o seguinte conteúdo: "Vocês consideram que existe alguma relação entre o racismo e o machismo na sociedade brasileira?"
Ao tirar essa carta, a aluna de um dos pequenos grupos mencionou que existe essa relação, considerando que ''tanto os homens como as pessoas não negras se valem do machismo e do racismo, respectivamente, para oprimir e dominar, de certa forma, as mulheres e os negros" (SIU). A aluna que expôs essa opinião ressaltou que essa tinha sido a fala de um outro menino do grupo, mas que todos concordaram com ele. Após essa manifestação, a maioria dos presentes não falou nada e alguns alunos demonstraram sua concordância com a fala da colega.
Ao analisar as discussões provocadas por esta carta, percebemos ainda que a maioria dos alunos não possui opinião a respeito do tema, ou não se sentiu à vontade para expressar sua opinião. Esse aspecto chama atenção para dois fatores, que se articulam entre si: o primeiro remete à provável ausência desse tema em sala de aula e também fora dela, de forma que a maioria dos alunos não possui conhecimento a respeito do tema, nem familiaridade para com os termos utilizados nesta conversa; o segundo fator aponta para uma possível visão preconceituosa que os alunos possam possuir, uma vez que, ao serem questionados a respeito deste tema, eles param para pensar e se deparam com pensamentos preconceituosos e, ao invés de expressá-los, preferem ficar calados.
Para discutir a promoção da igualdade racial, estimulando atitudes de tolerância e respeito às diferenças no contexto escolar, é fundamental desconstruir pré-concepções a respeito do tema, problematizando as situações vivenciadas no cotidiano. Esse é um dos muitos papéis que o assistente social pode assumir na escola, em um processo que envolve a socialização e o acesso a informações como condição para exercício da cidadania.
Reconhecer o processo histórico a partir do qual nos constituímos enquanto sociedade é um primeiro passo, fundamental para se projetar ações presentes e futuras com vistas à construção de novos cenários. Considerando os aspectos sinalizados acima, entendemos que a escola, assim como pode reproduzir desigualdades construídas historicamente, também possui o potencial de transformar relações.
Em relação à efetividade do Projeto, nesse novo caminho que estamos construindo, destaca-se a importância do papel desempenhado por todos os atores envolvidos nesse processo - alunos, professores, profissionais da educação em geral, famílias, comunidades do entorno das escolas. Inserido neste contexto está o assistente social, cujas bases para atuação na política de educação do Brasil estão sendo forjadas.
Sem dúvida, existem muitos outros aspectos a serem considerados nessa discussão, e por isso não pretendemos esgotar aqui esse assunto, especialmente considerando sua amplitude. Assim, essas contribuições foram lançadas no desejo de impulsionar outras novas ações coletivas em prol da promoção da igualdade racial. Esperamos poder, em breve, verificar mudanças efetivas no que se refere à igualdade racial nas escolas contempladas, a partir da participação dos jovens na atividade proposta.
Em relação ao objetivo proposto para esta ação extensionista, pode-se considerar que ela se configura como uma oportunidade ímpar de introduzir a temática da promoção da igualdade racial e da educação para as relações étnico- raciais nas escolas e também na Universidade, considerando que os alunos extensionistas vivenciam esse processo. Nesse sentido, destaca-se também a importância da parceria da Universidade com a Secretaria de Educação, em níveis estadual e municipal.