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GASTRONOMIA E MUDANÇAS SOCIAIS: RELATOS, VIVÊNCIAS E IMPACTOS NARRADOS POR ALUNOS DE UMA AÇÃO EXTENSIONISTA
GASTRONOMIA E MUDANÇAS SOCIAIS: RELATOS, VIVÊNCIAS E IMPACTOS NARRADOS POR ALUNOS DE UMA AÇÃO EXTENSIONISTA
Revista Conexão UEPG, vol. 16, núm. 1, pp. 01-17, 2020
Universidade Estadual de Ponta Grossa
Recepção: 28 Agosto 2019
Aprovação: 09 Janeiro 2020
Resumo: Esta pesquisa buscou compreender as contribuições da gastronomia como estratégia indutora de mudanças sociais e econômicas, utilizando como estudo de caso o Programa de Extensao Gastronomia Social no Jardim da Gente, vinculado à Universidade Federal do Ceara, que realiza cursos gratuitos de capacitação para as comunidades do Grande Bom Jardim e público em geral. Para esta pesquisa, apresentaram-se aspectos da referida ação extensionista, bibliografia sobre gastronomia e gastronomia social e a relação com impactos sociais. A pesquisa foi qualitativa e exploratória, com análise sobre os impactos sociais e pessoais evidencializados por meio das entrevistas com ex-alunos, atrelada à observação participante. Portanto, constatou-se que a gastronomia foi aplicada como instrumento de impacto social, resultando em transformação, fortalecimento e empoderamento dos participantes.
Palavras-chave: Gastronomia, Extensão comunitária, Capacitação.
Abstract: This research sought to understand the contributions of gastronomy as a strategy that induces social and economic change, using as a case study the Outreach Program Social Gastronomy in Jardim da Gente, linked to the Federal University of Ceará, which offers free training courses for the communities of Grande Bom Jardim and the public in general. The research resents aspects of the outreach action, as well as a literature review on gastronomy and socia gastronomy and the relationship with social impacts. This qualitative and exploratory research analyzed the social and personal im_pacts pointed out in interviews with former students in addition to participant observation. Therefore, It was observed that gastronomy was used as an instrument of social impact, resulting in transformation, strengthening and empowerment of participants.
Keywords: Gastronomy, Outreach projects, Training.
Introdução
Este trabalho tem como objetivo investigar de que forma a Gastronomia pode contribuir como ferramenta de impacto social e econômico em uma comunidade da periferia de Fortaleza (CE).
Considera-se que gastronomia social é um tema atual, apesar de se apresentar e ser realizada por meio de ações sociais - como distribuição de comida, oficinas de qualificação profissional, bem como outras atividades -, poucos são os estudos que a relacionam a algum tipo de impacto, seja econômico ou social. A justificativa se dá também pela ausência de dados informativos sobre os resultados do Programa de Extensão Gastronomia Social no Jardim da Gente ao longo dos cursos que ocorreram entre 2017 e 2018, na perspectiva dos alunos, com suas visões acerca do tema, vivências e respostas.
O Programa de Extensão Gastronomia Social no Jardim da Gente é uma ação realizada desde 201O e que promove cursos e oficinas temáticas em gastronomia para a comunidade do Grande Bom Jardim, ministrados pelos bacharelandos de Gastronomia como uma forma de terem a experiência com a docência, ou seja, há um beneficio tanto para quem realiza o programa quanto para quem participa do mesmo.
O ponto de partida desta pesquisa surgiu de um questionamento pessoal em um momento de análise de planos de aulas, formulários e relatórios sobre o referido Programa de Extensão, buscar o impacto social através da capacitação de jovens e adultos na comunidade do grande Bom Jardim, na qual se buscou compreender de que forma o programa cumpre com seus objetivos de capacitação e impacto social através da gastronomia. Ainda, enquanto estudante de Gastronomia, bolsista do Programa e moradora do bairro em questão, havia a inquietude de buscar respostas para o principal questionamento: "O que o Programa Gastronomia Social traz de impacto positivo ou negativo ao meu bairro e qual seu papel?".
Contextualizando a Gastronomia, o ramo alimentício e o Movimento da Gastronomia Social
A abrangência na qual a Gastronomia é compreendida neste trabalho perpassa diversas áreas, como cita Menezes (2011, p. 51), "a gastronomia é uma área que está em sincronia com a sociologia e a antropologia, à medida que elas estudam os comportamentos humanos em diversas esferas".
Entende-se, portanto, que a mesma se faz presente em diversas extensões de onde o alimento advém: no local onde foi plantado, colhido, preparado, armazenado, nas suas técnicas de preparo, história, cultura e representação, memória gustativa, arte, criatividade, inclusive, no âmbito social e econômico. Como delineia Bezerra (2018, p. 110), a gastronomia é como um campo que "se funda na cultura e nas relações subjetivas e afetivas entre as pessoas, o alimento e a comida e nos rituais de comer, a gastronomia se constitui principalmente como um gênero de fronteira".
Muitas vezes, quando o assunto é Gastronomia, a imagem que surge é a de uma cozinha requintada, um chef renomado, programas de reality, pratos minimalistas e elaborados com insumos de alto valor comercial. Entretanto, a Gastronomia é mais do que o senso comum que nos cerca, e está para além das técnicas de preparo e cocção, bem como do ato de alimentar-se apenas para realizar uma necessidade básica do ser humano. Por trás de tantas nuances que cercam a gastronomia, o primeiro ponto a ser tratado por quem se dispõe a estudá-la refere-se ao que é a gastronomia e o que seu nome carrega como significado. Como descreve Brandão (2018, p. 25),
A palavra e seus inúmeros sentidos, assim, atualmente conversam com diferentes interesses: acadêmicos, mercadológicos, patrimoniais, midiáticos, políticos, econômicos, turísticos, culinários. Esses interesses dispostos por diferentes agentes e realidades, vale dizer, raramente se encontram harmonizados.
Portanto, considerando os interesses apresentados por Brandão (2018), faz-se menção ao mercadológico e ao culinário, pois a Gastronomia também visa a qualificação dentro do ramo alimentício no Brasil, segmento que tem crescido nos últimos anos e parte dele envolve os trabalhos informais, o que chama atenção também para o mercado informal envolvendo o ramo em alimentação. De acordo com dados do IBGE (2017), "é possível observar a tendência à informalidade no mercado de trabalho. Ainda segundo o Instituto, o número de pessoas trabalhando com alimentação (15,2%) é um dos indícios".
Considerando os últimos anos quanto à conjuntura política e econômica preocupante do Brasil, veem-se os retrocessos e diversos cortes à cultura, educação e políticas públicas e sociais do país e, desta forma, a busca por formas de renda alternativa e o crescimento do mercado informal vêm se intensificando, trazendo um aumento na procura de cursos de capacitação em diversas áreas, entre elas, na área gastronômica. Nesse quesito, projetos sociais com foco em capacitação e formação em gastronomia têm ganhado espaço e visibilidade.
Dentre os programas ou projetos sociais que trabalham junto à gastronomia, talvez o mais popularizado no Brasil seja o Gastromotiva1 , que difunde em suas atividades a gastronomia como um fator potencializador de mudança social por intermédio de cursos de capacitação para jovens, além de orientações no ramo do empreendedorismo e mercado de trabalho. Foi fundada em 2006 pelo chefe empreendedor social David Hertz, sendo ele o co-criador do Movimento da Gastronomia Social.
Em Fortaleza, no bairro Mucuripe, está em amplo funcionamento, desde 2018, a Escola de Gastronomia Social Ivens Dias Branco, uma instituição de ensino público de gastronomia com certificação em nível básico, mantida pelo Governo do Estado do Ceará por meio da Secretaria da Cultura, conduzida pelo Instituto Dragão do Mar (IDM). A Escola tem o papel fundamental de reunir, organizar, interpretar e difundir a cultura alimentar do Ceará, e integra o projeto urbanização do Morro Santa Terezinha, território de alta vulnerabilidade social, sobretudo para os jovens, a qual se propõe e assume o papel de influenciar positivamente essas populações, gerando novas perspectivas de vida e oportunidades concretas de formação e trabalho2.
O Programa Gastronomia Social no Jardim da Gente, o Centro Cultural do Bom Jardim, a região do Grande Bom Jardim em Fortaleza (CE) e a relação comunidade e Universidade
O programa de extensão "Gastronomia Social no Jardim da Gente" foi criado em 201O com a finalidade de atender uma demanda vinda da comunidade do Grande Bom Jardim, através do CCBJ, e está cadastrado como uma ação extensionista do curso de Gastronomia da Universidade Federal do Ceará (UFC). O programa em questão visa a capacitação de jovens e adultos, por meio de cursos e oficinas temáticas de gastronomia para a comunidade geral e do Grande Bom Jardim. Como descreve Rodrigues (2014, p. 12), o Programa:
[...] oferece anualmente oficinas e cursos de Gastronomia para os moradores do bairro Bom Jardim e bairros adjacentes. Os cursos e oficinas buscam proporcionar através das aulas teóricas e práticas o desenvolvimento da cultura, da memória, da solidariedade e do empreendedorismo através da Gastronomia. Os cursos também têm como objetivo a geração de renda para os participantes[...]
Sendo assim, também visa desmistificar os paradigmas da gastronomia em exercer-se apenas de forma requintada, trazendo para a discussão outros fatores também relevantes à área, como a: ciência, as técnicas de preparo, arte e cultura alimentar, memória gastronômica e incentivo a capacidade de criação e inspiração dentro da área. As atividades são ministradas por graduandos do bacharelado em Gastronomia da UFC e orientadas pela coordenadora geral do programa, na qual possibilita também atividades complementares de estágio, auxiliando em sua formação e na conclusão do curso.
Tal ação extensionista está em parceria com a Organização não Governamental (ONG) Movimento de Saúde Mental Comunitária (MSMC)3, que trabalha com formação e projetos sociais em suas ações, juntamente da Escola de Gastronomia Autossustentável (EGA), inaugurada em 2016. A escola também faz parte do Programa e trata-se de um espaço físico de formação edificado e implementado pela referida ONG no Bom Jardim, em Fortaleza (CE). Para além dessa finalidade, também se apresenta como um espaço para a sustentabilidade de ações psicoterapeutas, integrando as duas áreas como uma forma de promover o equilíbrio e saúde mental, impacto social e comunitário das pessoas, bem como a profissionalização das mesmas.
Além disso, há uma parceria com o Centro Cultural do Bom Jardim (CCBJ) na realização dos cursos tratados nessa pesquisa. O CCBJ, desde 2006, tem suas atividades voltadas à arte e cultura na comunidade em questão e trata-se de um espaço conduzido pelo Instituto Dragão do Mar (IDM) em conjunto com a Secretaria da Cultura (SECULT) e o IACC (Instituto de Arte e Cultura do Ceará). Nele são realizadas atividades de formação, apresentações artísticas, espetáculos de artes, teatro, cinema, música, dança, entre outros.
Sendo o Gastronomia Social um programa que surgiu por meio do CCBJ dentro do Projeto Jardim de Gente, percebem-se algumas semelhanças em seus objetivos em relação à comunidade no Bom Jardim e adjacências. Honório (2014, p. 17) traça o objetivo do Jardim de Gente aos moldes do objetivo principal do CCBJ, como um equipamento que, para além da disseminação da arte e cultura, sirva de fortalecimento para o Bom Jardim, como um meio de desenvolvimento social e sustentável por meio de ações realizadas em conjunto com o bairro, a geração de renda e trabalho no mesmo.
Porém, cabe aqui delimitar até onde vai o papel extensionista do Programa Gastronomia Social em parceria com o CCBJ, pois:
É importante ter claro que a contribuição da Extensão Universitária deve estar pautada não apenas pela competência acadêmica, mas também pelo espírito crítico e pela autonomia. A Universidade não pode substituir as responsabilidades do Estado na garantia dos direitos de cidadania ou na provisão de bens públicos, mas, sim, somar-se aos seus esforços e subsidiá-lo, de forma crítica e autônoma, no desempenho dessas atribuições (FORPROEX, 2012).
A região do Grande Bom Jardim está localizada em Fortaleza (CE) e integra a Regional V, dentre as seis regionais administrativas da cidade. E formada por cinco bairros: Granja Portugal, Granja Lisboa, Siqueira, Canindezinho e Bom Jardim. Compreendida como uma região periférica, não está livre do estereótipo de um dos bairros mais perigosos da cidade de Fortaleza, visto que reflete um ambiente com baixos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH). Segundo Honório (2014, p. 38), em sua dissertação "A cultura como estratégia de combate à pobreza: a experiência do projeto jardim de gente no centro cultural do Bom Jardim", mostra que:
A "Pesquisa Cartografia da Criminalidade e da Violência na cidade de Fortaleza" realizada em 2010 pelo Laboratório de Direitos Humanos, Cidadania e Etica (Labvida) e Laboratório de Estudos da Conflitualidade e Violência (COVIO), ambos da Universidade Estadual do Ceará, e o Laboratório de Estudos da Violência (LEV), da Universidade Federal do Ceará (MOURA, 2011), nos traz muitos dados relevantes sobre a Regional V, onde o Grande Bom Jardim está situado. Segundo o estudo, a SER V é uma das Regionais com perfil populacional dos mais jovens de Fortaleza: 44% da população têm até 20 anos. Segundo esse mesmo estudo, nessa Regional, as ocorrências de mortes violentas têm índices elevados. O bairro do Bom Jardim aparece como o mais violento com 82 casos em 2007, 74 casos em 2008 e 58 casos em 2009. Apesar do número estar em queda, os dados são alarmantes.
Segundo dados do Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (IPECE, 2012), o bairro da Granja Lisboa ocupava o 3° lugar no ranking de pesquisas de população na extrema pobreza, com renda domiciliar chegando a menos de R$ 70, e mais três bairros do Grande Bom Jardim estavam dentre os outros 10 bairros citados. Além disso, índices preocupantes envolvendo essa comunidade são rotineiros na mídia, em resultado de conflitos territoriais e violência.
Portanto, esta pesquisa buscou, por meio das entrevistas com os ex-alunos do programa, responder ao questionamento inicial apresentado, narrando as vivências dos mesmos e os impactos sociais e pessoais pautados pela gastronomia nos indivíduos que passaram pelo Programa no recorte de tempo entre 2017 e 2018.
Metodologia
Utilizou-se como estudo de caso o "Programa Gastronomia Social no Jardim da Gente", o qual trata-se de um procedimento caracterizado por Pradanov (2013, p. 128) como sendo "a estratégia preferida quando colocamos questões do tipo 'como' e 'por que', quando o pesquisador tem pouco controle sobre os eventos, e quando o foco se encontra em fenômenos contemporâneos inseridos em algum contexto da vida real". Portanto, fez-se necessário realizar pesquisa bibliográfica para levantamento das fontes com a finalidade de obtenção de uma fundamentação teórica do trabalho, a qual, de acordo com Pradanov (2013, p. 54), é realizada "a partir de material já publicado, constituído principalmente de: livros, revistas, publicações em periódicos e artigos científicos (...)".
Também pode-se citar que a referida pesquisa possui característica exploratória, pois segundo Andrade (2010, p. 112), caracteriza-se por "proporcionar maiores informações sobre determinado assunto". Além disso, nos possibilita novos questionamentos e a contribuição para novos estudos. No que se refere ao tipo de abordagem, o estudo foi qualitativo, pois o ambiente natural foi utilizado como a fonte direta tanto para coleta de dados como para a interpretação de fenômenos e atribuição de significados (PRADANOV, 2013).
Categorização dos participantes da pesquisa
No que se refere às características dos participantes do Programa Gastronomia Social no Jardim da Gente: no primeiro grupo temos os alunos participantes que são, em boa parte, homens ou mulheres que moram na comunidade, que já conhecem o Centro Cultural do Bom Jardim (CCBJ), e tiveram contato com o programa durante o recorte entre 2017 e 2018. Destes alunos, sete participaram das entrevistas semiestruturadas, contendo as perguntas a seguir:
a) Como soube do Programa Gastronomia Social no Jardim de Gente?
b) Quais eram as suas expectativas sobre os cursos? Houve informação sobre o mesmo, sobre o conteúdo a ser ministrado e a metodologia empregada?
c) No que o programa influenciou em sua vida, no aspecto econômico, pessoal e profissional? Ou seja, qual foi a importância do programa em sua vida?
d) Quais expectativas, do Programa de Extensão, você tinha antes de participar dos cursos?
e) Para você há um impacto da Gastronomia Social no bairro? Ou seja, você enxerga algum tipo de mudança ao bairro?
As respostas foram obtidas de forma livre e puderam ser compiladas de forma contextualizada com a pergunta, ou seja, tendo coerência com o assunto questionado.
Para a escolha dos entrevistados, considerou-se a assiduidade nos cursos, participação nas aulas e atividades do programa de extensão em questão e a integração com os demais da turma, como mostra o Quadro 1, a seguir.
O outro grupo a ser considerado compreende os professores-facilitadores, que são os alunos do curso de graduação em Gastronomia da UFC, que realizavam esse trabalho de orientação dos cursos e/ou oficinas, enquadrados como bolsistas remunerados, voluntários e estagiários voluntários. Este grupo é citado ao longo da pesquisa, mas não faz parte da mesma, bem como o último grupo, em que há a coordenação do Programa, que é composta pela professora coordenadora principal, apenas como caráter de explicação e não como participante da pesquisa em questão.
Análise dos impactos sociais por meio de entrevistas semiestruturadas com os alunos participantes do Programa e observação participante
Como detalhado anteriormente, este trabalho buscou, por meio da observação participante atrelada às entrevistas semiestruturadas, descrever como ocorreu o processo de formação dentro dos cursos realizados pelo Gastronomia Social, para, enfim, discutir quais foram as vivências dos participantes e as respectivas mudanças que eram percebidas no meio. Esta, que é determinada por Pradanov (2013, p. 104), como sendo "participação real do conhecimento na vida da comunidade, do grupo ou de uma situação determinada. Nesse caso, o observador assume, pelo menos até certo ponto, o papel de um membro do grupo". O período de observação participante teve seu início em outubro de 2017 e seguiu-se até dezembro de 2018, e foi realizada durante as oficinas e cursos realizados pelo Programa.
Após essa etapa, foi realizada a entrevista semiestruturada para se analisarem as percepções dos alunos mediante o assunto em questão, de forma mais profunda, na qual, "ao mesmo tempo em que valoriza a presença do investigador, oferecerá todas as perspectivas possíveis para que o informante alcance a liberdade e a espontaneidade necessárias, enriquecendo a investigação" (TRIVINOS, 1987, p. 146). O questionário de entrevistas foi realizado durante o primeiro semestre de 2019, elaborado com perguntas abertas; as entrevistas foram registradas por meio de gravador de celular e submetidas à transcrição; também foram realizadas anotações em diários e os dados foram estudados pelos autores desta pesquisa. Sobre esse instrumento, considera-se como aquele " em que o entrevistador segue um roteiro previamente estabelecido" (MARCONI; LAKATOS, 2010, p. 180). Os entrevistados receberam o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), com confidencialidade de identidade, permitindo a realização da coleta de dados.
A amostragem foi realizada aleatoriamente, porém considerando os aspectos referentes a: assiduidade nos cursos; participação nas aulas e integração com os demais da turma, a fim de garantir a vivência na ação estudada; compreensão das perguntas e a busca na veracidade das respostas. Todos os entrevistados recrutados aceitaram participar do estudo e a coleta dos dados aconteciam in loco, na Escola de Gastronomia Autossustentável, ou seja, durante os cursos ou logo após a finalização das aulas, procurando evitar a presença de outros participantes para não haver interferência na coleta dos dados. Porém, não houve necessidade de refazer as entrevistas e nem de saturação dos dados.
A relação dos pesquisadores e pesquisados não interferiu nas respostas, pois as perguntas eram realizadas e a escuta também ocorreu sem haver qualquer interferência, obtendo-se respostas livres.
A análise dos dados foi feita conforme proposta de Alves e Silva (1992), tomando como base um procedimento sequenciado, sistematizado e aplicável a dados de entrevista semiestruturada e perguntas livres, que permite compreender os passos da construção do instrumento e a coleta de dados, a apreensão do significado das falas dos sujeitos e a produção de uma redação precisa, dentro do enfoque desejado pelo pesquisador. Portanto, as perguntas foram norteadoras para a ordem de apresentação dos resultados.
Resultados e discussão
A palavra impacto, muito usada neste trabalho, vem do latim impactus, e significa "1. Ato ou ,efeito de impactar; 2. Efeito que, por sua força, impede ou acarreta mudanças". E aqui utilizada para o contexto pessoal e social dos resultados trazidos pelo
Gastronomia Social como contribuinte de transformação. As narrativas aqui expostas fazem parte das vivências que os sujeitos tiveram durante esse recorte de tempo, e são eles que trazem as respostas para as perguntas realizadas.
Contudo, realiza-se breve relato sobre a realização das ações para a compreensão dos resultados obtidos. Os cursos aconteciam no Programa de Extensão Gastronomia Social e, em geral, vinham de uma demanda que o CCBJ trazia da comunidade, por meio de reuniões de gestão compartilhada do equipamento e de consulta aos formulários de avaliação respondidos pelos alunos ao final de cada curso. As vagas disponíveis eram divulgadas em seus veículos de comunicação em conjunto com a UFC e as páginas de redes sociais do MSMC, entretanto, como resposta à primeira pergunta do questionário semiestruturado, verificaram-se relatos sobre uma deficiência no repasse de informações sobre ementa do curso, carga horária etc., quanto ao fato de ter como foco principal atingir a comunidade do Bom Jardim e ainda assim não chegar de forma tão eficiente, pois embora as ações aconteçam na comunidade por muito tempo, muitos moradores não conheciam as atividades, principalmente do CCBJ - parceiro do Programa. Esse foi o ponto levantado pelos alunos sobre a primeira pergunta referente ao acesso e como se deu no momento da inscrição para os cursos do Programa. No caso da entrevistada 3, ela responde como soube do mesmo e problematiza o fato de a divulgação ser feita, em sua prioridade, por meio de redes sociais:
"Através da internet, que uma amiga minha curtiu a página do CCBJ e tava havendo inscrição pro curso de empreendedorismo. Fiz minha inscrição, aí deu certo, eles me chamaram e através disso comecei a conhecer a cozinha, a gastronomia social. (...) pra quem tinha internet, tinha conhecimento era bom. Mas pra 9uem não tinha eu acho que deveria ter mais assim alguém que passasse la, sei lá um banner, alguma coisa (...) porque quando a gente vai divulgar alguma coisa, um carro de som anunciando já que era pra chamar a comunidade." (Entrevistada 3)
Além da divulgação do curso em si, citou-se a falta de informação sobre como seriam as aulas, como conta a entrevistada 6:
"Na hora que eu vi que era_ panificação e não tinha me alertado que tinha a confeitaria, eufui pela panificação e dentro do curso da panificação já vinha a confeitaria atrás e eu não tinha me ligado". (Entrevistada 6)
A estrutura pedagógica do programa é composta por aulas teóricas e práticas, e independente da sua carga horária, todos os cursos realizados tinham um módulo dedicado somente ao conteúdo das "Boas Práticas de Manipulação dos Alimentos", o qual era abordado inicialmente de forma teórica.
Apesar de ter sido uma surpresa para muitos, fica claro nos relatos das entrevistas o quanto o conhecimento acerca das boas práticas de manipulação foi de imensa importância para os alunos, visto que a maioria estava em busca de ter o seu próprio negócio e seria bastante válido o assunto sobre higienização correta dos alimentos, higiene do ambiente e manipulador de alimentos, armazenamento correto, doenças transmitidas por alimentos, entre outros, como relata o respondente 2:
"A influência que o programa teve na minha vida pessoal foi ter mais higiene com os alimentos na hora do preparo, a profissional é que eu aprendi todo o conhecimento pra mim poder fazer aquela refeição pras pessoas do modo mais profissional possível, digamos, com o uso de luvas, de touca, lavando as mãos, higienizando tudo bem direitinho. " (Entrevistado 2)
O assunto acima sempre trazia novos questionamentos em sala de aula, e os alunos passavam a ter um outro olhar sobre os alimentos, o cuidado que se deve ter ao preparar, servir e vender, como relata a entrevistada 3:
"Comecei a ver mais como a pessoa atendia, como eram feitos, a higiene pessoal, você começa a analisar mais, pra mim isso daí foi muito importante, coisa que eu nem enxergava". (Entrevistada 3)
Segundo a entrevistada 4:
"Foi muito bom porque a minha prática aqui por eu já vender, ele não indica que eu já tinha uma experiência no curso anterior, minha área era administrativa e não tinha nada a ver com cozinha. Foi dando certo porque no trabalho eu levava bolo, eu levava brownie então eu vi que dava dinheiro e fui montando. Quando eu comecei no curso que aprendi as boas práticas, boas maneiras e tudo ali pra mim foi um aprendizado, olha, não era só como eu tava fazendo, requer toda uma estrutura" (Entrevistada 4)
Sobre a metodologia empregada, observou-se que o uso do procedimento PACCE4, que passou a ser utilizado a partir do período de cursos realizados em 2017 como uma nova atividade, foi de grande auxílio para que as aulas também fossem um espaço de autonomia, responsabilidade social e união, pois os alunos conheciam parte da história de cada um e se sentiam mais acolhidos uns pelos outros. Em dada entrevista, uma aluna participante relata que esteve presente no antes e depois da aplicação da metodologia e avalia de forma positiva a ação dentro do programa, bem como sua continuidade, como completa entrevistada 3:
"Maravilhoso (momento das dinâmicas) nossa! Se você não tem um pingo de vínculo com aquela pessoa como é que na cozinha você vai formar aqueles grupos e vai trocar ideia, conversar?" (Entrevistada 3).
Segundo Pena (2015, p. 10), "práticas de gastronomia constituíram uma ferramenta de aproximação, troca de experiências e como uma forma lúdica de compartilhar e aplicar o conhecimento de diferentes áreas", como traz o relato da entrevistada 1:
"Sim, abordar sim algumas atividades, porque isso incentivava eles a trabalhar mais no coletivo sabe, porque como tem essa rivalidade deles de querer tá se competindo um com os outros, isso ia ensinar eles a trabalhar tanto fora como em casa naquela dinâmica em grupo sabe, porque muitos deles não sabem trabalhar em grupo e seria um ponto muito positivo se vocês conseguisse isso né deles conseguir trabalhar mais juntos e unidos." (Entrevistada 1)
Durante as dinâmicas de "História de Vida" - momento em que os alunos formavam ciclos e dividiam suas histórias individualmente e posteriormente com a turma
-, as alunas, como estavam sempre em maioria, acabavam por perceber que as suas dificuldades eram quase sempre muito semelhantes, e pautavam a dificuldade de conseguir emprego formal, a falta de tempo para cuidarem de si mesmas, as obrigações domésticas, o cuidado com os filhos, bem como os entraves envolventes de uma sociedade ainda muito patriarcal.
Faz-se aqui uma questão importante que sempre acaba retomando ao programa: o empoderamento e a autoestima das mulheres, tão presentes nos discursos das entrevistadas. Essas mesmas mulheres foram construindo durante o processo dentro do programa um elo de aproximação, o que se faz presente até hoje, pois muitas ainda mantêm o contato. Quando indagadas sobre quais eram as suas expectativas antes dos cursos, muitas relataram que não havia muitas, mas que buscavam o conhecimento na gastronomia, na aprendizagem da técnica, e traziam um desejo por ampliar algo com o qual elas já trabalhavam, ou mesmo aprimorar o que já sabiam.
"Eu não tinha nenhuma expectativa, eu só fiz a inscrição mesmo só por ir, pra eu ver como era (..) vou só pra eu sair de casa, ocupar minha mente com outras coisas porque eu só vivia nessa cozinha e do meio-dia pra tarde ia vender o lanche no CCBJ." (Entrevistada 5)
Muitas vezes esse sentimento de acolhimento vinha acompanhado pela busca de uma oportunidade ainda pouco acessível, como é o caso da gastronomia, que embora tenha se expandido em relação a cursos de capacitação, requer alto investimento, que nem todos podem pagar.
"Eu acho que eu nem tinha muita expectativa. É como eu te disse, eu fui atrás dos cursos porque era uma coisa que eu sempre tive vontade de fazer e nunca tinha tido a oportunidade de Jazer nenhum curso na área, fazia minhas coisas como eu faço até hoje né meio na doida, pesquisando ali, olhando aculá, testando num sei o que. Eu queria ver como era, eu queria me sentir mais segura, principalmente na parte da confeitaria, a questão dos bolos em si." (Entrevistada 7)
Todavia, enquanto se nota em certos relatos a busca primária do conhecimento técnico em gastronomia, eles trazem consigo o intuito pessoal em cada aluno, junto com um desdobramento sobre o compromisso social do qual a gastronomia não deve ser excluído.
A convivência diária e a troca envolvida entre ambas as alunas tomaram o momento de convivência em aula um espaço aberto de discussão, amizade, acolhimento e empatia, pois muitas faziam variados cursos, e à medida que o anterior acabava, elas já faziam a inscrição para o posterior. Contudo, estas ações são problemáticas para a gestão dos cursos, uma vez que o maior objetivo do programa extensionista é atingir o maior número de pessoas. Este aspecto também foi reconhecido por Honório (2014, p. 90):
(...) é comum um mesmo aluno fazer várias oficinas ao longo do ano. Os gestores reconhecem que o investimento financeiro nesse segmento é muito elevado, mas essencial, tanto pela importância que os alunos dão aos cursos, quanto pelo retomo financeiro que ele possibilidade dar em curto prazo aos alunos.
Portanto, verificou-se que a cada nova turma ou novo curso, mais mulheres se conheciam e reconheciam enquanto protagonistas de suas próprias histórias em seu local de pertencimento, como se as alunas "veteranas" auxiliassem na busca e na descoberta em conjunto.
"Meu pensamento era de aprender, pode parecer mentira, mas eu não sabia o que era misturar um bolo, meus bolos que eu tentei fazer ainda quando eu morava em SP solava tudo aí eu desisti, era mais prático você ir ali comprar comer, mas é prazeroso fazer. Não vou dizer que eu não gosto, eu não gosto de fazer pra vender, mas pro meu uso pessoal quando eu to com vontade eu faço. E quando eu cheguei lá que eu via todo mundo, aprendizado, aquelas receitas, eu me doei muito pro curso." (Entrevistada 3)
Ao final do primeiro ciclo de cursos de 2018, o programa recebeu um convite para a escrita e elaboração de um livro que retratasse a "Gastronomia de Rua da Cidade de Fortaleza", ao mesmo tempo em que havia uma demanda de participação para o evento de Culminância do CCBJ, ambos os resultados seriam apresentados da II Mostra de Artes5 do CCBJ. A escrita do capítulo do livro referente às preparações que foram escolhidas para serem elaboradas deveria ser feita entre os dois participantes, bem como a preparação em si, sua apresentação, referencial teórico para o capítulo do livro e a ficha técnica. Observou-se que tais eventos foram citados em várias entrevistas e muitos participantes, que na sua maioria eram mulheres, se perceberam como escritores da própria história, como menciona a entrevistada 4:
"A gente não sabia que existia a cozinha do movimento, a gente não sabia que existia e vocês vieram e apresentaram a gente aluno que fez o curso lá, veio com o projeto de diversos cursos e nisso trazendo professores qualificados pra lá, depois veio a história do livro, fazendo com que a gente se sentisse um máximo participando de algo relacionado a cultura de fortaleza, depois veio essas amostras das artes no CCBJ, que a gente ficou sabendo por vocês." (Entrevistada 4)
Quando questionadas sobre as mudanças econômicas, sociais e pessoais que o programa causou em suas vidas, as respostas foram desde relatos mais pessoais, profundos e ou até mesmo mais abrangentes, como observado no seguinte trecho:
"Econômico até agora ainda tô descobrindo né, eu economizei né, já tá sabendo fazer minhas coisas já não tô mais pagando nada né. Pessoal, eu conheci o programa, conheci mais gente, conheci o centro cultural... gente vocês realizaram um sonho: era entrar na faculdade (..) eu tinha tanta vontade fazer uma faculdade, de entrar, de saber como era, e o projeto lá das plantas, a cozinha de vocês que tava de mudança." (Entrevistada 3)
De acordo com Leão Júnior et al. (2005, p. 18), em se tratando de educação e impacto social:
De forma mais aguda no Brasil, pois a educação, nas suas mais diversas formas, continua sendo um dos principais desafios colocados para as sociedades latino-americanas. A brutal desigualdade na distribuição da renda, a dificuldade das populações pobres de terem acesso à educação formal e a profissionalização, a discriminação sob qualquer aspecto - pela sua cor ou por outros atributos - como moralmente inferiores.
Embora o programa em questão esteja pautado dentro da capacitação de pessoas para o mercado de trabalho, ele também interfere em outras áreas na vida de quem participa, pois percebe-se a vontade de mudança de realidade, pessoal ou com o bairro em se tratando do combate, de forma indireta, à pobreza.
Ainda no quesito econômico, especificamente, os entrevistados apontam de que forma usaram o que absorveram durante os cursos no aperfeiçoamento, segundo a entrevistada 5:
"O programa foi uma motivação a mais né, pra que eu viesse botar o meu conhecimento em prática e como eu te falei, muitas coisas ali do GS eu não sabia e eu aprendi (.) coisas que eu não conhecia eu tive conhecimento, né, aí me ajudou muito na minha área financeira porque eu aperfeiçoei o que eu já sabia, tipo os meus bolos. A Juliana (professora), a Juliana é demais, os bolos que eu fazia tá bem melhor." (Entrevistada 5)
Observa-se pelo relato acima que a aluna consegue distinguir os conhecimentos adquiridos durante os cursos como as habilidades e técnicas ensinadas, pois são objetivos dos planos de aulas práticas motivar para a criatividade e despertar a arte. Uma das alunas do programa relatou como está utilizando o que aprendeu e como isso trouxe uma reviravolta positiva em sua vida, pois atualmente está à frente de uma padaria no bairro:
"Com certeza, começando por mim! (..) foi tipo a massa, e a panificação, os pães que eu aprendi a fazer também, os bolos, os doces, então tudo isso abriu muito a minha mente. E aí foi bom pra mim ter aprendido isso porque tá gerando fundos pra mim, através disso, desse aprendizado que eu fiz, que eu tive. E eu sei que cada dia a mais a gente em que se aperfeiçoar (..) influenciou muita coisa. Muita coisa né, porque eu não sabia de nada e também na parte financeira, tá me ajudando, porque se eu não tivesse aprendido nada disso eu num ia saber fazer nada, como é que eu ía ajudar meu esposo que tá desempregado e como que eu ia ajudar em alguma coisa, né? Então em qualquer coisa que a gente tá fazendo hoje aqui eu agradeço ao curso, onde eu fui e aprendi. Então eu que agradeço muito porque poxa se eu não soubesse nada disso, eu não estaria com nada disso também." (Entrevistada 6)
A citação anterior revela o empoderamento das mulheres e sua capacidade de enxergar novos horizontes principalmente quando menciona "...então tudo isso abriu muito a minha mente". Segundo Kleba e Wendausen (2009):
Os processos de empoderamento ocorrem em arenas conflitivas, onde necessariamente se expressam relações de poder, as quais devem ser encaradas não como algo estanque e determinado, mas plástico, flexível, portanto modificável pela ação-reflexão-ação humanas, na medida em que os indivíduos compreendam sua inserção histórica passada, presente e futura e sintam-se capazes e motivados para intervir em sua realidade.
Retomando sobre a autoestima das mulheres que passaram pelo programa, no momento das entrevistas sempre se repetiam os relatos sobre como se sentiam antes e depois da experiência em grupo, e também não poupavam relatos sobre as outras mulheres que conheceram no curso. Tal percepção corrobora o que afirma Barcellos (2017, p. 36), segundo o qual "a cozinha é íntima da matéria e seus mistérios profundos, seus segredos, lugar das transmutações, da intimidade ativa das operações". O que deixa transparecer, de fato, é que para além de um curso de capacitação, o programa dentro do Bom Jardim acaba por estimular uma parcela da população que gostaria de ser ouvida, acolhida e se sentir participante do meio em que vive. Rotenberg et al. (2009 apud LARA PENA, 2015, p. 19) acreditam que as experiências gastronômicas, chamadas pelos autores de vivências culinárias, estimulam os participantes a ocuparem uma posição de protagonistas, sujeitos da ação que aprendem a refletir sobre sua realidade, possibilitando, assim, buscar soluções para a mesma, e nesse processo, construir um conhecimento significativo. O relato a seguir reafirma estas discussões pois:
"Eu me considero duas pessoas: uma antes dos cursos e outra depois dos cursos. (..) Tu imagina como que tava o meu psicológico nessa época, de repente, eu era uma pessoa que morria de trabalhar, que ganhava o meu dinheiro, que vivia a minha vida... num vivia porque eu vegetava, só trabalhava mas assim, eu podia viver minha vida do jeito que eu quisesse e de repente eu tava em casa sem nenhuma fonte de renda, sem perspectiva de nada, a área que eu tinha estudado eu não queria mais, eu nunca me senti inserida naquela área de verdade e aí eu fiquei 'vou fazer o que da minha vida vou fazer nada? (..)'aí fui fazer os bolos com ela, deu certo mas num deu aí depois paramos, (..) saí e aí fiquei em casa de novo, sem perspectiva de nada. Aí quando apareceu a oportunidade de fazer os cursos parece que quando eu comecei a fazer os cursos minha cabeça fez assim: abriu. (...) sabe quando você tá fazendo uma coisa que você gosta, que parece que lhe preenche, eu vinha morta de cansada mas tão feliz, tão disposta ainda. (...) me inscrevi no enem, continuei fazendo os cursos, fui atrás de cursinho (...) arrumei um emprego e aí as coisas começaram a fluir. Me deu oportunidade de novo de voltar a viver, de sair, de conhecer gente, de fazer amizade." (Entrevistada 7)
Quando questionadas sobre o impacto da gastronomia social e se ela de fato trouxe algum tipo de mudança ao bairro, há um sentimento de gratidão e nostalgia ao final. Para a entrevistada 5, a extensão aproximou o bairro da universidade:
"É que além de obter conhecimento eu conheci muitas pessoas novas e é um mundo que a gente que é de periferia não tem muito conhecimento, né, a gente tá aprendendo com os professores uma faculdade. (...) e por ser uma faculdade de gastronomia eu fiquei maravilhada (com a faculdade ter ido até o Bom Jardim)" (Entrevistada 5)
Para a entrevistada 3, a universidade ter vindo ao bairro trouxe mais do que um curso de capacitação, fechando assim o ciclo ensino-pesquisa-extensão citado no capítulo anterior, como uma das entrevistadas relata abaixo:
"Mudou sim (se o programa mudou a vida das pessoas, o ambiente) . Ali, no nosso tempo né, a gente ficou muito tempo, a gente não ia muito só aprender só o prático da comida, a gente aprendeu também ser um pouco de psicólogo a gente ouvir os problemas das outras meninas (...) tem umas que ficaram mais próximas das outras eu acredito (...) até pra mim, fez eu ver uma coisa que eu nunca tinha participado assim desses curso, pra mim serviu muito ver pessoas como gente humana, mais humanas. Eu me senti uma pessoa melhor ali naquele curso, de saber mais dividir. Trouxe inclusão, trouxe acolhimento, acho que isso aí foi o que trouxe mais." (Entrevistada 5)
Sobre a troca de experiências tratada pelas alunas como o que de mais valioso aconteceu, as respostas estão sempre em pluralidade, associando ao que tem de transformador na extensão, confirmando, assim, que o programa tem um papel social importante e que é reconhecido como fator de mudança de vida, portanto, a referida ação extensionista cumpre com um dos seus objetivos pautados em relação a impacto social, como o relato abaixo confirma:
"O curso foi assim um divisor de águas, me deu assim uma nova vida, por isso que eu acho que os cursos eles não são importantes só na parte econômica, eles são muito mais importantes na parte social e psicológica. Tinha gente que fazia curso comigo que era dona de casa, que vivia uma vida muito parecida com a minha assim só trancada, dentro de casa (...) e ela ía com uma empolgação pro curso, você via que era uma pessoa que tava se sentindo vivendo de novo, você via a felicidade estampada no rosto da pessoa, cara, isso é muito transformador, muito mais do que dinheiro (...) você via, e aí fazia amizade, e conversava besteira, e trocava receita, assim, existe realmente uma experiência, uma troca e é muito válido isso" (Entrevistada 7)
De acordo com Ferreira (2018), há uma relação da cozinha ou culinária com a psicoterapia, como sendo um espaço de abertura, diálogo sobre as questões mais íntimas de cada um, construindo laços entre eles, e que "além de se distraírem das conturbações do cotidiano, iam conversando durantes as aulas e acabavam criando novos significados, no caso, coletivos, às práticas culinárias."
Entende-se aqui a gastronomia por duas vertentes: a social e econômica, na qual em muitas vezes estarão presentes dentro do assunto pautado como "a gastronomia social", como descreve Ferro (2018, p. 34):
Mesmo que a Gastronomia sempre apresente tendências dirigidas ao consumo, o que está imbricado em grande parte dela é um produto cultural. Seus fins sociais e culturais devem ser reconhecidos com maior amplitude, além da estética, mesmo que ela seja o objetivo principal da Gastronomia. [...].
Ressalta-se aqui a percepção do empoderamento e o desejo de emancipação - para além do feminino - em realizar-se e crescer dentro do Bom Jardim. Percebeu-se in loco que não era uma prioridade capacitar-se para ir de encontro ao mercado de trabalho formal, pois muitos alunos já tinham o seu "negócio" e gostariam de aperfeiçoá-lo. Durante as entrevistas, citou-se bastante esse objetivo e como ele foi alcançado por eles após a capacitação por meio dos cursos; por sua vez, outros citaram como o bairro estava em crescimento em relação ao mercado gastronômico e que gostariam de continuar com seus estabelecimentos no mesmo, pois já são residentes há bastante tempo, além do sentimento de afetividade ao local onde moram.
Não se observou nos relatos o desejo de inserção no mercado de trabalho formal, mesmo reconhecendo os beneficios do conteúdo aprendido, mas verifica-se por eles que o empreendedorismo já é executado, assim como a busca para a melhoria do mesmo.
Durante a passagem pelo programa, percebeu-se in loco e em conjunto com as entrevistas realizadas o quanto os cursos atingem o quesito pessoal dos alunos e do Grande Bom Jardim, notando-se uma diferença na vida de quem participou. Ficou claro durante os relatos o quanto o programa foi uma oportunidade de transformação de forma mais íntima, de empoderamento, reconhecimento do protagonismo desses alunos dentro da comunidade, o poder de ser ouvido e dar voz, a melhora na autoestima dessas pessoas, desejo por algo que parecia tão distante para eles, recomeços, novas vivências, motivação para ingressar em um curso superior na área, busca por mais aperfeiçoamento, força, confiança e impacto como um todo. Contudo, como limitação do estudo, cita-se o universo das respostas, que muitas, por serem livres, levaram a um outro contexto, que infelizmente não condiziam com o esperado pelo questionário estruturado, fazendo-se necessário apresentá-los sob outro foco.
Considerações finais
Durante a pesquisa, pôde-se perceber in loco que as pessoas que passam pelo Programa Gastronomia Social no Jardim da Gente são, em sua maioria: mulheres, com ou sem filhos, acima de 20 anos, que buscam nos cursos uma capacitação com o objetivo de ascender economicamente ou complementar a renda mensal, enquanto que outras buscam na vivência em gastronomia a retomada da autoestima, a melhora pessoal, amizades, além de novos caminhos e possibilidades. O trabalho autônomo não deixa de ser um trabalho precarizado, e não é fácil abrir um negócio próprio na periferia, não há ainda uma facilidade de crédito, ou orientação sobre como proceder caso esse seja o objetivo final desses alunos. Sugere-se que o programa busque dentro da comunidade núcleos de orientação para quem almeja ter seu estabelecimento em alimentação juntamente da capacitação por meio dos cursos, pois nota-se que a ação incentivou os alunos ao empreendedorismo, mas não houve um acompanhamento posterior.
Outra sugestão seria uma parceria com outros programas semelhantes nas áreas de psicologia e pedagogia, visto que há uma necessidade de profissionais das respectivas áreas que sejam atenciosos com as questões pessoais dos alunos, bem como de novas metodologias a serem desenvolvidas no meio. Além disso, o estreitamento do programa com outros equipamentos do Instituto Dragão do Mar ou políticas públicas voltadas para a gastronomia, a fim de fortalecer seus objetivos dentro do Grande Bom Jardim e do Programa em geral.
Outras observações que foram apontadas pelos alunos estão aqui resumidas: aumento da carga horária dos cursos, aumento da oferta de cursos, ampliação do programa em outros bairros de Fortaleza, direcionamento de insumos excedentes a serem usados para oficinas de gastronomia ministradas pelos alunos que tiverem interesse, bem como melhoria do material didático usado em sala de aula.
Durante as entrevistas e em meio a tantas horas de cursos, buscou-se in loco, junto aos alunos, um "algo a mais" sobre "o que mais esses cursos estavam trazendo ao Bom Jardim? "; e no momento da descrição das entrevistas, percebeu-se que não importava qual fosse a pergunta, ao final, algum entrevistado estava sempre tratando o assunto com uma imensa gratidão e orgulho do que haviam conhecido, fosse em si, fosse na gastronomia. Sendo assim, pode-se avaliar que o Programa possui um imenso reconhe cimento positivo dentro do bairro, que vai além de uma capacitação, mas que perpassa pela vida dos alunos, sendo possível perceber a relevância do programa para a melhoria da mesma, seja ela pessoal ou financeira, pois resume-se em ganhos.
Questionou-se aqui sobre qual seria o papel do Gastronomia Social no Bom Jardim e como um Projeto de Extensão pode cumprir uma ação que deveria ser do Estado, ou seja, sendo um recurso paliativo pela visão política do atendimento. Portanto, verifica-se que ações semelhantes à estudada precisam receber maior atenção por parte do Estado, em especial às comunidades periféricas de Fortaleza, necessitando de um olhar mais atencioso às Políticas Públicas voltadas à gastronomia e alimentação.
Nesse quesito, pode-se considerar que a gastronomia pode e deve ser usada como uma ferramenta de mudança social dentro do bairro, pois fica nítido, em meio aos relatos, o quanto ela é capaz de transformar, e não somente aos alunos, mas também a quem se envolve no programa como bolsista, estagiário, voluntário, professor, etc. Em uma visão pessoal enquanto moradora do bairro, é possível afirmar que a gastronomia proporciona à comunidade em questão uma mudança social e até mesmo econômica, pois evidenciam se novas experiências, conhecimentos, empoderamento, autonomia e sentimento de pertencimento em relação ao Grande Bom Jardim.
Entende-se, portanto, que o trabalho alcançou seus objetivos propostos inicialmente, apresentando as respectivas respostas indagadas durante a pesquisa, a qual abre espaço para uma discussão sobre o papel da gastronomia na sociedade e quais outras ferramentas podem ser desenvolvidas por meio dela, trazendo ainda a reflexão sobre o fato de que uma periferia ser tão mal vista perante a sociedade não faz dela aquilo que é mostrado na televisão. Dessa forma, é preciso conhecer para descobrir, melhorar sem abreviar e principalmente resistir e lutar, para que atividades e espaços assim não sejam suprimidos.
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Notas