Resumo: Este artigo tem como objetivo relatar a experiência da implantação de um Centro de Referência em Práticas Integrativas e Complementares no Vale do São Francisco (CERPICS) que atua de forma indissociável com a pesquisa-ensino-extensão. Foram atendidas mais de 450 pessoas, com cerca de 2.500 atendimentos, através do apoio de voluntários. Na formação, foram realizadas atividades para profissionais vinculados ao Sistema Único de Saúde que encaminhavam os usuários aos CERPICS. No âmbito da pesquisa, foi possível traçar um perfil dos usuários, tomando como base dados socioeconômicos de 130 pessoas. A maior parte dos usuários tinha de 41 a 60 anos (60,2%), representando 89,5% de mulheres; 36,1% sem renda fixa ou com apenas 1 salário mínimo (33,8%), e 50,4% dos usuários fazendo uso diário de medicamentos controlados. Desafios no âmbito da assistência, formação e pesquisa perpassam o projeto, mas consideramos importante seguir trabalhando para uma mudança na cultura de cuidado.
Palavras-chave:Terapias complementaresTerapias complementares,Integralidade em saúdeIntegralidade em saúde,Modelos de assistência à saúdeModelos de assistência à saúde.
Abstract: This article aims to report the experience of implementing a Reference Center for Integrative and Complementary Practices in the São Francisco Valley (CERPICS) that works along with a teaching-research- extension program. More than 450 people were assisted, with around 2500 appointments, through the support of volunteers. The continuous education activities were carried out with professionals linked to the Unified Health System who referred users to CERPICS. In the scope of this research, it was possible to track users’ profile based on socioeconomic data from 130 people. Most users were 41 to 60 years old (60.2%) and 89.5% were women; 36.1% had no fixed income or earned just 1 minimum wage (33.8%) and 50.4% of the users took controlled medication daily. Challenges in the scope of assistance, training and research permeate the project, but we consider it important to continue working to achieve improvements in the culture of care.
Keywords: Complementary therapies, Integrality in health, Healthcare models.
Artigos
IMPLANTAÇÃO DE UM CENTRO DE REFERÊNCIA EM PRÁTICAS INTEGRATIVAS E COMPLEMENTARES NO VALE DO SÃO FRANCISCO: RELATO DE EXPERIÊNCIA
Recepção: 18 Maio 2020
Aprovação: 03 Agosto 2020
O sistema público de saúde brasileiro, com seu modelo de atenção centrado na doença, tem sido alvo de críticas (ISCHKANIAN; PELICIONI, 2012). A medicina convencional, enquanto modelo dominante de tratamento em saúde no país, não atende com eficácia à necessidade de grande parte da população, quando se trata da atenção primária à saúde e situações complexas que envolvem estilos de vida, fazendo com que a procura de outras alternativas terapêuticas para cuidados sejam buscadas (OTANI; BARROS, 2011), tornando-se perceptível a necessidade de visualizar o indivíduo na sua integralidade, quando na condução de problemas de saúde decorrentes da interação de vários fatores (FLORIAN; MEIRELLES; SOUSA, 2011; TESSER; SOUSA, 2012).
Limites do modelo biomédico, com atuação de forma fragmentada e foco na doença, favorecem a ascensão de práticas com valorização na integralidade do cuidado, utilizando recursos para possibilitar que o próprio organismo esteja capaz de atuar eficientemente na prevenção e recuperação da saúde (BRASIL, 2015; LEMOS et al., 2018).
As Práticas Integrativas e Complementares (PICS) surgem com a proposta de atender o indivíduo de forma integrativa, atentas à complexidade dos fatores que podem contribuir negativamente para o desequilíbrio do corpo (DACAL; SILVA, 2018). As PICS são compostas por abordagens de cuidado e recursos terapêuticos que se desenvolveram e possuem um importante papel na saúde global (BRASIL, 2017).
Na década de 70, a Organização Mundial da Saúde (OMS), identificando a incapacidade da “medicina convencional” em prestar atendimento de saúde para toda a população, incentivou os países a utilizarem simples recursos para atenderem à demanda da população mais carente, como práticas terapêuticas tradicionais (LUZ, 1997), e ainda hoje estimula a realização de pesquisas para possibilitar maior credibilidade às terapias empregadas (BRASIL, 2015).
A Organização Mundial da Saúde (OMS) incentiva e fortalece a inserção, o reconhecimento e a regulamentação destas práticas, produtos e de seus praticantes nos Sistemas Nacionais de Saúde. Neste sentido, atualizou as suas diretrizes a partir do documento "Estratégia da OMS sobre Medicinas Tradicionais para 2014-2023" (OMS, 2014).
A disseminação das PICS no contexto brasileiro pode ser justificada pela busca de prestar uma assistência de saúde de forma simples, sem exageros tecnológicos, utilizando recursos milenares e identificando a integralidade do cuidar de forma interdisciplinar (TELESI JÚNIOR, 2016).
Mesmo sendo inúmeras as Práticas Integrativas e Complementares existentes nos serviços de saúde, ainda existe uma carência de pesquisas na área para comprovação dos seus efeitos no processo saúde-doença. No Brasil, os profissionais de saúde saem da graduação com grande desconhecimento sobre as PICS existentes. Assim, o governo deve incentivar a pesquisa e o ensino em PICS nos cursos de formação e na Atenção Primária à Saúde, possibilitando que médicos, enfermeiros e outros profissionais possam atuar de forma consciente (TESSER; SOUSA; NASCIMENTO, 2018).
Na região do Vale do São Francisco, até o ano de 2017, os serviços públicos de saúde ainda não apresentavam uma oferta estruturada de PICS, seja um serviço de referência, seja a presença de profissionais em serviços diversos. Além dos limites em relação a recursos financeiros para estimular a implementação da PNPIC no âmbito dos municípios (pela falta de recursos indutores), a falta de formação adequada dos profissionais de saúde da rede pública mostra-se igualmente como um grande entrave. Um último fator relevante trata-se da resistência biomédica presente nas instituições de saúde, que parecem por vezes desqualificar diversas práticas de cuidado, que não se enquadrem em seu referencial.
Por estes motivos, nosso projeto de extensão objetivou auxiliar na implementação e manutenção de um “Centro de Referência em PICS” (CERPICS) na região do Vale do São Francisco, localizado na Policlínica Universitária da UNIVASF. O CERPICS foi estruturado ao longo do segundo semestre de 2017 e teve o início de suas atividades assistenciais em novembro deste mesmo ano. O CERPICS se propõe a atuar em três dimensões: 1) âmbito assistencial, ofertando gratuitamente na rede SUS (Sistema Único de Saúde) cuidados em saúde às pessoas e grupos específicos, consolidando e fortalecendo este volume de oferta de serviço que atualmente estamos oferecendo; 2) no campo da formação, qualificando profissionais da rede pública de saúde em modalidades diversas de PIC; e 3) na esfera da pesquisa, procurando avaliar criteriosamente a implementação de PIC para cuidados pouco resolutivos em tratamentos convencionais.
Assim, este artigo tem por objetivo descrever e refletir os passos iniciais na implantação do CERPICS, junto ao Hospital Universitário (HU-UNIVASF), nas três dimensões de atuação a que nos propomos – assistência, formação e pesquisa.
O Centro de Referência em Práticas Integrativas Complementares do Vale do São Francisco (CERPICS) nasceu em 2017, fruto da mobilização de diversos profissionais da região e docentes, servidores e discentes da UNIVASF que desejavam favorecer a inserção das PICS na região dentro do SUS, tendo também o apoio da gestão do Hospital Universitário da Universidade Federal do Vale do São Francisco. O CERPICS desenvolveu como um projeto de extensão que através de seu tripé envolve atividades assistenciais, de ensino e pesquisa. Vamos detalhar um pouco mais cada uma delas.
Foram realizadas reuniões mensais, ao longo do primeiro semestre de 2017, com os atores envolvidos para a construção do projeto de extensão e delimitação de nossa proposta, com base nos recursos humanos e estrutura disponível para tal. Em setembro do mesmo ano, o projeto foi finalizado e submetido para apreciação da Câmara de Extensão da Universidade, sendo aprovado no final de outubro. Desde então, o projeto segue sendo submetido anualmente aos editais de extensão da instituição.
Inicialmente, foram firmadas parcerias com profissionais autônomos da região, ligados a grupos sociais ou que atuavam no contexto privado, que tinham interesse de colaborar com a inserção das PICS no sistema único de saúde local. Assim, convencionou-se que a forma como os terapeutas iriam colaborar seria dedicando uma carga horaria semanal (2 a 4 horas) com atendimentos no CERPICS. Esses profissionais que já atuam na área de Práticas Integrativas e Complementares se disponibilizaram de maneira voluntária a atuar prestando assistência na terapia de domínio deles, com o intuito de contribuir com a institucionalização de uma política de saúde que reconhece e valida inúmeros outros saberes e racionalidades no campo da saúde. Estudantes de graduação e residentes de diversas áreas da saúde da Universidade Federal do Vale do São Francisco foram selecionados para também contribuir e participar do projeto.
Cada voluntário determinou os dias para atendimento, de acordo com sua disponibilidade. Com base nisto, foi montado um cronograma de atividades terapêuticas assistências que foi, posteriormente, repassado para a rede de atenção básica do município de Petrolina - Pernambuco.
Previamente ao início das atividades assistências no CERPICS, foram realizadas reuniões com os gestores da Atenção Primária e profissionais de Equipes de Saúde da Família do município de Petrolina/PE. Os encontros objetivaram a divulgação do Centro e orientações sobre as PICS, que direcionaram o sistema de referência para os atendimentos. Foi fundamental também para delimitar o perfil de usuários que pretendíamos receber com base nas problemáticas de saúde persistentes e pouco resolutivas ao tratamento convencional.
Com o apoio do Hospital Universitário, ficou delimitado que as ações assistenciais iriam ocorrer na Policlínica da Universidade Federal do Vale do São Francisco, em espaços cedidos para as atividades do CERPICS (uma sala para atendimento em grupo e salas para atendimentos individuais).
Com base em um levantamento feito pela gestão dos serviços públicos de saúde de Petrolina/PE, surgiram demandas endêmicas pouco resolutivas ao tratamento convencional. Estas demandas subsidiaram decisões referentes à prioridade de problemáticas de saúde a serem acolhidas na assistência durante o primeiro ciclo de atendimento do CERPICS – optamos assim por acolher pessoas com sintomatologias depressivas e de ansiedade. Observamos depois que estes usuários quase sempre eram portadores de comorbidades, muitos apresentavam também hipertensão, diabetes e, em vários casos, também pudemos observer doenças autoimunes (especialmente fibromialgia e lúpus).
No primeiro ciclo, foram ofertadas as seguintes terapias: Reiki, Auriculoterapia, Análise Bioenergética, Trauma Release Exercises - TRE, Medicina Vibracional, Biblioterapia, Barras de Access, Cura Reconectiva e Tethahealing.
Até aqui, narramos os passos iniciais das atividades assistências, um dos objetivos do CERPICS. Agora, vamos nos dedicar a relatar um pouco mais sobre o modo como delimitamos as atividades de formação e, em seguida, as ações relacionadas à pesquisa.
Sobre as atividades formativas, através da parceria com a equipe de voluntários do projeto, construímos um “cardápio” de cursos introdutórios sobre diversas PICS, nas quais os profissionais tinham competência e disponibilidade para oferecer formação.
Considerando nosso objetivo, de difundir as PICS no âmbito do SUS, considerando a percepção construída pela equipe do CERPICS nas reuniões junto a gestores e profissionais do SUS local, percebemos a necessidade de realizar atividades formativas sobre as PICS, com a intenção de instrumentalizar profissionais da rede em diversas modalidades de PICS e potencializar a educação permanente dos mesmos no âmbito das diretrizes da PNPIC – Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares.
Foi possível também realizar parceria junto à UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e ao Ministério da Saúde, nos configurando como um polo da formação em Auriculoterapia ofertada em parceria com estas instituições.
Assim, com nossos atores locais e outros parceiros em âmbito nacional, construímos um calendário de formação, garantindo o acesso às PICS para profissionais do SUS e sua difusão em outros serviços e instituições da região. Estas ações foram consideradas estratégicas, já que entendíamos, desde a concepção do projeto do CERPICS, que difundir as PICS entre profissionais de saúde seria fundamental para sua institucionalização no SUS local, uma vez que os profissionais de saúde são atores fundamentais no cotidiano das políticas de saúde e na própria institucionalização de uma “cultura” de cuidado.
Por fim, no âmbito da pesquisa, procuramos elaborar um projeto específico, com a finalidade de avaliar a efetividade clínica das terapias que passariam a ser ofertadas no CERPICS. O projeto de pesquisa foi submetido e teve sua aprovação em 2018, com prévia autorização do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Parecer nº 2.785.548).
O projeto de pesquisa pretende nos ajudar a traçar o perfil dos usuários que buscam o serviço, suas sintomatologias e melhoras significativas em suas queixas, bem como em sua qualidade de vida, ao longo de cinco anos de implementação. Entendemos que gerar dados e informações cuidadosas sobre as terapias é fundamental para que elas possam ser empregadas de forma prudente, racional e efetiva.
Apesar das ações do CERPICS ocorrerem de forma integrada, procuramos detalhar aqui alguns resultados nas três dimensões principais do CERPICS, a saber: assistência, formação e pesquisa.
Durante aproximadamente 2 anos de atividades do CERPICS, foram envolvidas cerca de 80 pessoas, entre terapeutas, estudantes e professores, em atividades de ensino, pesquisa e extensão, dentro do âmbito assistencial. Foram atendidas mais de 450 pessoas, tendo como rotina o acompanhamento semanal (de forma individual ou em grupo) destes usuários. Estipulou-se, inicialmente, como “ideal” o acompanhamento por um período de três meses para considerar o impacto do cuidado terapêutico aos usuários. Foram ofertados mais de 2.500 atendimentos nas 9 modalidades terapêuticas descritas no tópico anterior.
Ao longo deste período, devido à volatilidade do vínculo com os profissionais voluntários, algumas terapias deixaram de ser ofertadas e outras foram incluídas (a exemplo de Yoga, Constelação Familiar, Cromoterapia, Hipnoterapia, Massoterapia e Renascimento).
Atualmente, são ofertadas as seguintes terapias: Auriculoterapia, Análise Bioenergética, Trauma Release Exercises -TRE, Reiki, Constelação Familiar, Cromoterapia, Hipnoterapia, Massoterapia, Meditação, Biblioterapia e Tethahealing. Destas terapias, apenas as duas últimas não são reconhecidas pela PNPIC.
Como forma de amadurecer a regularidade dessas ofertas e firmar o compromisso entre atores do projeto de extensão, estamos anualmente realizando um cadastro de terapeutas e construindo pactuações de responsabilidades para que o serviço possa ter uma regularidade em suas ofertas assistenciais, evitando a interrupção de atendimentos pela impermanência dos voluntários. Os acordos prévios têm auxiliado a manter uma regularidade nas ofertas, mesmo considerando a vulnerabilidade do projeto em depender do apoio voluntário de diversos profissionais. Uma equipe de estudantes do último ano de Psicologia tem estruturado, na gestão do CERPICS, procedimentos, a exemplo de um termo de responsabilidade do voluntário, que define com clareza as responsabilidades nesta parceria.
Deste modo, conseguimos hoje evitar alguns erros iniciais na inconstância do acompanhamento semanal, garantindo melhor qualidade assistencial e auxiliando no planejamento de oferta do serviço.
Esta realidade do CERPICS, que envolve riscos de descontinuidade da assistência e desafios em seus processos de institucionalização enquanto serviço público de saúde, parece ser compartilhada por outras experiências de implementação das PICS no âmbito do SUS, uma vez que, dada a importância hegemônica do paradigma biomédico no âmbito do SUS, estratégias de qualificação da assistência que divergem desta perspectiva tendem a apresentar diversos desafios em seus processos de implementação, que passam por financiamento de recursos humanos e insumos, considerados de menor “urgência” diante de um modelo assistencial já estabelecido, mesmo que reconhecidamente limitado (BARROS et al., 2020; FERRAZ et al., 2020; HABIMORAD et al., 2020).
O projeto foi pioneiro na região, o primeiro a ofertar Práticas Integrativas e Complementares no SUS de forma contínua, mesmo com os desafios já sinalizados. As atividades possibilitaram ampliar o cuidado dos pacientes da região, permitindo uma assistência mais humanizada e integral aos usuários com o perfil priorizado em nossa assistência, considerando todos os aspectos que possam influenciar no processo de adoecimento do indivíduo. Evidenciamos a saúde física, mental e espiritual dos usuários atendidos pelo projeto, suprindo a carência deixada pela biomedicina.
Apesar de não termos dados generalizados sobre mudanças sinalizadas, através de relatos orais das/os usuários dos serviços, em feedbacks recebidos após o cuidado assistencial, nos sentimos confiantes nessas afirmações, dados os inúmeros relatos nos quais os/as usuários manifestaram melhoras em sua qualidade de vida, impactando positivamente na redução de queixas e sintomas físicos, emocionais e relacionais.
No que se refere ao âmbito da formação, o CERPICS influenciou ainda a mudança de valorização na assistência, permitindo aos profissionais de saúde uma maior vivência e conhecimento das PICS existentes, aumentando a credibilidade das terapias.
Os estudantes e atuais profissionais de saúde têm uma formação biomédica e muitos até desconhecem outras alternativas terapêuticas. Poucas instituições disponibilizam, em seus currículos, cursos sobre PICS, assim, a maioria dos profissionais sai da graduação com uma visão centralizada no modelo hegemônico atual (modelo biomédico). Em nossa universidade, apenas componentes eletivos abordam de maneira mais aprofundada as PICS no âmbito de formação na saúde, o que gera uma significativa lacuna na formação da maioria dos profissionais.
A literatura acentua este cenário e seus desafios, há um significativo desconhecimento das PICS por profissionais de saúde, muitos apresentam uma visão preconceituosa por falta de conhecimento e a maioria das instituições formadoras de profissionais de saúde (considerando inclusive as instituições públicas) oferta poucos espaços em sua estrutura curricular para introduzir o campo (NASCIMENTO, 2018). Por estes motivos, realizar ações formativas são consideradas fundamentais para uma difusão qualificada das PICS. A seguir, detalhamos algumas ações realizadas que tiveram esta finalidade formativa:
Foram realizadas oficinas de sensibilização com foco em algumas PICS para profissionais de saúde vinculados aos serviços de referência do SUS que encaminhavam os usuários aos CERPICS. Na maioria das vezes, as oficinas se concentraram com as equipes do NASF (Núcleo Ampliado de Saúde da Família) no município, algumas com a participação de mais de 40 profissionais vinculados ao NASF.
Percebemos que havia um desnivelamento dos profissionais acerca do conhecimento da PNPIC e de algumas de suas práticas. Este fato dificultava que os profissionais tivessem conhecimento suficiente e segurança para referenciar nosso serviço aos usuários assistidos por eles. Assim, realizamos oficinas que tinham o objetivo de compartilhar informações introdutórias sobre a PNPIC e apresentar algumas das práticas que ofertávamos no CERPICS.
Geralmente, os encontros seguiam uma metodologia que dividia a oficina em dois momentos: o primeiro mais teórico, que permitia uma visão inicial da prática em questão, sua visão do processo de saúde-doença-cuidado, e, em seguida, era ofertada uma prática de cuidado para a própria equipe na modalidade terapêutica em questão. Deste modo, os profissionais podiam não apenas compreender cognitivamente a informação, mas também experienciar minimamente os benefícios (efeitos) da prática em si mesmos.
Além das oficinas com o NASF, que ocorrem de modo mais regular, com frequência bimestral ao longo do primeiro ano, foi possível realizar oficinas de sensibilização, de modo esporádico, junto a médicos de família e comunidade, os quais compunham o programa residência da universidade, bem como lideranças de grupos sociais ligados à associação de fibromiálgicos e portadores de lúpus.
Além das oficinas de sensibilização, foi possível ofertar formação introdutória em algumas práticas/técnicas terapêuticas para profissionais de saúde: Reiki, nível I; Exercícios respiratórios para redução de estresse e ansiedade (com recursos do Yoga), Biblioterapia (uso da literatura para trabalho terapêutico), e Auriculoterapia. Alguns destes cursos foram ofertados mais de uma vez eram ministrados por profissionais quali- ficados nas áreas específicas e tinham uma carga horária total que variava entre 12 e 20 horas. Esta carga horária pequena foi uma estratégia definida pelo projeto, uma vez que deslocar os profissionais de saúde de dentro dos serviços e das práticas assistenciais é bastante desafiador. Assim, cursos pequenos se mostraram mais atrativos para a gestão municipal, bem como para os próprios profissionais, ao sinalizarem interesse e disponibilidade em participar de momentos formativos.
Assim, definimos que cada um dos cursos teria uma introdução e foco muito específico, o suficiente para se vivenciar e aprender o uso de algum recurso para problemáticas específicas de saúde, nas quais o profissional pudesse iniciar o uso deste recurso, ampliando seu repertório terapêutico no cotidiano assistencial. Desse modo, acreditávamos também que, uma vez o profissional de saúde construindo uma afinidade pessoal com esse recurso (sentindo benefícios em sua própria vida) ou observando sua efetividade (introduzindo em sua prática e vendo resultados significativos junto ao usuário), ele poderia buscar um conhecimento mais aprofundado acerca do campo, bem como uma formação mais ampla do que o manejo de apenas uma técnica específica.
Vale destacar que o curso de Auriculoterapia foi o mais ofertado, tendo atingido mais de 200 profissionais da rede saúde local e regional em uma das edições da formação. O CERPICS foi polo do projeto do Ministério da Saúde, em parceria com a UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), acolhendo profissionais não apenas da rede local do SUS, mas também profissionais ligados a outros municípios, a exemplo de Salvador, Feira de Santana, Recife, Maceió, Aracaju e Juazeiro do Norte, que se deslocaram até nossa universidade para receber a formação. Vale destacar que este curso em específico teve uma carga horaria maior (80 horas), em modalidade semipresencial, formando cerca de 140 profissionais.
Ainda não conseguimos dimensionar de forma mais sistematizada o impacto destas ações, entretanto, cabe frisar relatos recebidos pela equipe de profissionais que passaram a adotar tais práticas em diversos equipamentos do SUS (unidades básicas de saúde – seja em consultório ou visitas domiciliares, CAPS - Centros de Atenção Psicossocial, etc.). Os relatos ajudam a confirmar um de nossos objetivos, que é a capilarização destas práticas, para que possam estar cada vez mais acessíveis à comunidade. Outro fato significativo que observamos é que não apenas Petrolina, mas vários municípios vizinhos o desenvolvimento de PICS no âmbito do SUS sendo protagonizado por profissionais que participaram de alguma formação ofertada pelo CERPICS.
Este eixo tem sido o mais desafiador, haja vista que temos enfrentado dois aspectos que têm dificultado significativamente o avanço neste campo. Um dos aspectos se refere à dimensão metodológica da pesquisa e o segundo diz respeito aos recursos humanos para sua execução.
No âmbito metodológico, há desafios tanto no delineamento do ensaio clínico, bem como em seus instrumentais de pesquisa. No que se refere ao delineamento, não conseguimos construir um grupo controle para realizar avaliações comparativas de efetividade em relação ao uso das PICS, bem como os instrumentais de pesquisa originalmente pensados se mostraram inadequados à realidade de usuários do SUS, seja pela erudição dos termos nele presentes, seja pela mobilização afetiva- emocional que os instrumentais provocavam nos usuários, eles se mostraram distantes da realidade quando aplicados ao cotidiano do serviço.
O tempo de aplicação dos instrumentais de pesquisa era longo e dificultava seu uso amplo para usuários do CERPICS. Por tais motivos, decidimos revisar os instrumentais nesses pouco mais de dois anos. Já foram, ao todo, 5 inventários e escalas adotadas até o momento (Inventario Beck de Depressão, SRQ 20, WHOQQL – bref; SF12 e Escala de Dor). Atualmente, estamos adotando o SF12 (12- item Health Survey) (SILVEIRA, 2013) e uma escala likert de dor (de 1 a 10 pontos), pelo fato de serem instrumentos mais compactos, de mais fácil aplicação e entendimento por parte dos usuários, permitindo manuseio e aplicação em maior quantidade de participantes.
O aspecto referente à ausência de grupo controle e a própria baixa aplicação dos instrumentais de pesquisa (em se tratando do percentual de usuários do serviço) se confunde com o segundo aspecto, que se refere à falta de recursos humanos. Uma vez que nossa pesquisa não tem financiamento e temos apenas um estudante bolsista para todo o projeto de extensão, mesmo com o apoio de alguns voluntários, tem sido impossível, até o momento, mobilizar um contingente necessário de pessoas para cobrir as atividades de campo da pesquisa. Consequentemente, o volume de dados coletados tem sido signifi- cativamente defasado em relação à oferta assistencial.
Vale frisar que nossa pesquisa foi submetida a diversos editais de financiamento, entretanto há pouco incentivo de pesquisas no âmbito das PICS, não há editais específicos e geralmente em editais de ampla concorrência os estudos no âmbito das PICS geralmente não são priorizados, o que dificulta a própria geração de informações e dados mais precisos e seguros no campo.
Diante dessa dificuldade estrutural da pesquisa, temos pensado algumas alter- nativas que devem ser mais bem implementadas ao longo do próximo ano do projeto. A primeira pretende engajar os terapeutas na pesquisa clínica. Inicialmente, com a intenção de preservar a isenção no estudo clínico, procurávamos engajar pessoas que não tinham relação direta com a oferta assistencial e evitar possíveis vieses interpretativos referentes à coleta de dados. Entretanto, após 2 anos de Projeto, percebemos que, se desejamos coletar mais informações clínicas para o estudo, é imprescindível ter o apoio dos próprios terapeutas, uma vez que não temos um contingente significativo de voluntários na pesquisa.
Outro aspecto se refere à própria crítica metodológica do estudo clínico e a importância da dimensão do vínculo terapêutico (terapeuta-usuário) no processo de cuidado e cura. Por fim, decidimos que direcionaremos nossa produção científica para investigações qualitativas e estudo caso, como uma forma de também auxiliar na sistematização de resultados, mesmo que de maneira menos global diante da oferta assistencial do serviço.
Até o momento, os dados produzidos pelo serviço se referem a dados de gestão já apresentados anteriormente, quanto ao número de usuários assistidos e a quantidade de terapias ofertadas. Foi possível também traçar um levantamento do perfil dos usuários do serviço, tomando como base os socioeconômicos de 130 usuários. Os dados foram coletados em uma ficha de acolhimento que introduzimos no segundo ano do projeto, realizando no próprio serviço com os usuários que ingressam no atendimento.
Após coletados, os dados foram inseridos em uma planilha digital e sua base de dados foi analisada no SPSS (Statistic Program for Social Science). Os resultados obtidos mostram que a maior parte dos usuários é de mulheres (89%); de raça/cor parda (79%); a maioria dos usuários está na faixa etária de 41 a 60 anos (60%); 67% dos usuários têm filhos; 83% dos usuários se dizem cristãos (sendo católicos ou evangélicos); 43% são casados e 33% solteiros; 35% possuem escolaridade em nível médio completo; 33,8% têm nível superior incompleto ou já concluído; 36% dos usuários não possuem renda fixa e 33% têm 1 salário mínimo de renda; 65% residem em casa própria; e 92% dos usuários são habitantes da zona urbana. Por fim, 50% dos usuários fazem uso diário de medicamentos controlados para lidar com algumas necessidades de saúde (doença crônica não transmissível, doença autoimune ou de saúde mental).
Os resultados do CERPICS vêm sendo publicados e apresentados em diversos congressos e na Semana de Ensino, Pesquisa e Extensão (SCIENTEX) da UNIVASF.
Nesse âmbito, a literatura aponta desafios, pois as pesquisas na área de PICS são mínimas, tendo em vista a quantidade de práticas existentes. Assim, esforços devem ser realizados para impulsionar estudos em PICS e, consequentemente, aumentar a valorização / credibilidade e segurança dessas terapias (TESSER; SOUZA; NASCIMENTO, 2018).
As práticas Integrativas e Complementares valorizam uma assistência que foge do modelo curativo, evidenciando a promoção da saúde e prevenção de doenças (AZEVEDO, 2019).
Através deste trabalho, percebe-se o interesse da população na busca de alternativas para favorecer o processo saúde-doença, pois inúmeras pessoas, mais de 450, foram atendidas pelo projeto. É certo que, se o número de voluntários fosse maior, o quantitativo de atendimentos seria também estendido, porque a procura/referência para acompanhamento pelas PICS foi ampla e faltaram vagas.
Esta experiência ainda apresenta a falta de profissionais com formação na área de PICS, para suprir a necessidade das pessoas que se interessam por outros modelos de cuidado, além do preconizado pela biomedicina. Entendendo o SUS em seu princípio de integralidade, permitir que o usuário tenha acesso à assistência terapêutica em outras “racionalidades” e práticas de cuidado é garantir que este princípio seja concretizado.
Dentro desse contexto, destaca-se a atuação das instituições de ensino em saúde, que não disponibilizam tempo nos currículos para oferta de disciplinas voltadas para a área de PICS, associada à falta de docentes capacitados para ministrar as aulas. Tal problemática só será revertida quando a forma de cuidado/assistência passar a ser mais reconhecida (NASCIMENTO, 2018).
O processo de especialização contribuiu para a atual prática assistencial que direcionou por muito tempo modelos que fogem da integralidade no cuidado, porém, alguns cursos de graduação, como saúde coletiva, já implantados em universidades brasileiras, podem contribuir para a disseminação das PICS no SUS, incentivando o ensino-aprendizagem dos acadêmicos da área de saúde (HABIMORAD et al., 2020).
Outra problemática que reforça a fragilidade da disseminação das PICS no contexto de saúde está associada aos recursos financeiros, assim como ações diretas pelos gestores de alguns municípios para implantação das PICS.
Percebe-se o esforço de órgãos de apoio à assistência à saúde, em nível mundial e também no Brasil, para a proliferação das PICS, mas mesmo com todo esse incentivo, nem sempre eles se traduzem em recursos financeiros indutores para que favoreçam novas ações e avanços necessários.
Em nível mundial, por exemplo, a Organização Mundial de Saúde tem um papel fundamental para a valorização das PICS, pois, com a formulação de políticas específicas na área, incentivou e permanece com o compromisso de impulsionar a utilização das práticas integrativas na atenção à saúde, recomendando a realização de pesquisas que possibilitem maior conhecimento sobre as terapias existentes (TELESI JÚNIOR, 2016).
No Brasil, em 2006 ocorreu a implantação da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), seguindo recomendações da OMS, visando institucionalizar e regular ações de promoção da saúde e a integralidade da assistência por meio das PICS, legitimando algumas práticas não convencionais que já vinham ocorrendo no SUS em alguns estados e municípios (BRASIL, 2015).
Além das terapias reconhecidas anteriormente, o Ministério da Saúde publicou as Portarias de nº 849/2017 e nº 702/2018, que incluíram mais 24 modalidades de PICS à Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (BRASIL, 2017). No CERPICS, a maioria das terapias ofertadas está incluída nestas portarias.
Porém, mesmo após a publicação da PNPIC, o Ministério da Saúde não ampliou a oferta de recursos financeiros especificamente para implantação dessa Política e anos depois ainda acrescentou outras terapias na lista de PICS, gerando grande discussão entre favoráveis e contrários a essas práticas (TESSER; SOUSA; NASCIMENTO, 2018).
O investimento para oferta de PICS nos municípios integra o Piso da Atenção Básica (PAB) e a responsabilidade de inserir essas terapias está a cargo dos gestores, que com autonomia determinam normas para aplicar os recursos financeiros de acordo com suas prioridades (SANTOS; CUNHA, 2019).
O que se pode perceber, a exemplo da cidade de Petrolina e municípios circunvizinhos, é que o interesse dos gestores pelas PICS é mínimo, poderia referir até inexistente, pois esse trabalho, voluntário e sem apoio de governo, apresenta o primeiro serviço na região, ofertado pelo SUS, focado nessas terapias.
Entretanto, o grande interesse dos profissionais que passam a conhecer e se beneficiar pelas PICS, bem como os usuários do SUS, mostra que esta política deve receber melhor atenção da gestão pública.
O fato é que as PICS já estão sendo utilizadas, mas é preciso desenvolvimento de pesquisas na área para possibilitar maior expansão, credibilidade, segurança, racionalidade em seu uso e, consequentemente, menos críticas (TESSER; SOUSA; NASCIMENTO, 2018). Nesse sentido, a formação mais uma vez deve ser evidenciada como prioridade, pois através dela podemos aumentar o número de profissionais para ampliar a assistência e o desenvolvimento de pesquisas na área.
Assim, este projeto de extensão tentou aliar todos os pilares necessários para melhor inserção das PICS no contexto SUS: assistência, formação e pesquisa.
A assistência foi idealizada para suprir a carência de um cuidado integral, valorizando todos os fatores que possam contribuir no processo de adoecimento, o que não é visualizado pelo modelo de saúde predominante.
A formação teve a proposta de preencher uma lacuna evidenciada dentro da própria UNIVASF, universidade que contribuiu com o desenvolvimento deste trabalho. A falta de disciplinas obrigatórias na área de saúde que abordassem as PICS impulsionou o desenvolvimento dessa linha de atuação no presente trabalho.
Por fim, a pesquisa surgiu com interesse em possibilitar maior conhecimento científico acerca das práticas já utilizadas, para maior confiabilidade das terapias adotadas. Apesar das dificuldades para efetivar essa proposta, a identificação dos entraves foi de extrema importância para direcionar as atividades do projeto futuro, pois o trabalho permanecerá ativo.
Considerando à ausência de serviços em PICS nos estabelecimentos de saúde pública da Região do Vale do São Francisco, a implantação e institucionalização de atendimentos em PICS tornam-se necessárias para possibilitar uma nova cultura de cuidado, haja vista que a sua adoção pode contribuir com a qualidade de vida dos pacientes e melhor resolutividade dos problemas de saúde. Espera-se que esta tenha sido a primeira de outras iniciativas públicas para disseminação das PICS no contexto SUS.
O projeto em foco conseguiu envolver mais de 40 alunos da graduação de diferentes cursos da saúde, 8 residentes pertencentes aos programas de residência multiprofissional em Saúde da Família e Saúde Mental, 3 docentes, 2 técnicos e ainda uma rede de profissionais que voluntariamente conduziram o serviço com qualidade. Permitiu a disseminação das Práticas Integrativas e Complementares no âmbito do SUS, possibilitando um maior conhecimento das terapias existentes. Espera-se que o serviço seja institucionalizado, ganhando cada vez mais parceiros para contribuir com uma assistência de forma integral e individualizada.
Acredita-se que a experiência vivenciada pelas pessoas atendidas pelo projeto possa ser disseminada entre seus amigos e familiares, a fim de se possibilitar uma maior procura e credibilidade de outras formas de assistência, além da tão difundida biomedicina.
O papel deste projeto de extensão foi contribuir para a disseminação uma cultura de cuidado diferente para profissionais e usuários do SUS, ampliando a complexidade dos processos de saúde-doença-cuidado. Espera-se que as PICS sejam cada vez mais valorizadas entre os usuários, profissionais e gestores do SUS.