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POSSIBILIDADES PEDAGÓGICAS PARA O CUMPRIMENTO DA LEI 10.639/03: COMUNIDADE QUILOMBOLA DE SERRA DO APON NO PARANÁ
POSSIBILIDADES PEDAGÓGICAS PARA O CUMPRIMENTO DA LEI 10.639/03: COMUNIDADE QUILOMBOLA DE SERRA DO APON NO PARANÁ
Revista Conexão UEPG, vol. 16, núm. 1, pp. 01-14, 2020
Universidade Estadual de Ponta Grossa
Recepção: 12 Maio 2020
Aprovação: 24 Setembro 2020
Resumo: Este relato de experiência origina-se de ações extensionistas desenvolvidas com acadêmicos dos cursos de licenciatura em Pedagogia e Geografia da Universidade Estadual de Ponta Grossa, em 2019. O curso de extensão, vinculado ao Programa de Pesquisa e Extensão em Processos de Aprendizagem, propôs uma articulação teórica e conceitual sobre as relações étnico-raciais, objetivando subsidiar os acadêmicos com propostas pedagógicas para possíveis intervenções na educação básica. As ações desenvolvidas, em uma escola de educação básica do município de Castro/Paraná, tiveram relevância diante da necessidade de uma aproximação dos acadêmicos com o tema em questão, visando atender as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, bem como as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola. Os procedimentos metodológicos aplicados se constituíram de estudos sobre a legislação educacional vigente e da realização de atividades pedagógicas interdisciplinares sobre a temática.
Palavras-chave: Formação de professores, Relações étnico-raciais, Quilombolas.
Abstract: This experience report discusses outreach actions developed with undergraduate students of Pedagogy and Geography courses, from the State University of Ponta Grossa, in 2019. The outreach course, linked to the Research and Outreach Program in Learning Processes, proposed a theoretical and conceptual articulation about ethnic-racial relations to support undergraduate students with pedagogical proposals for possible interventions in basic education. The actions carried out at a basic education school in the municipality of Castro / Paraná were relevant as it allowed the participants to work with the aforementioned topic. This will provide meeting the National Curriculum Guidelines for the Education of Ethnic-Racial Relations and for the teaching of Afro-Brazilian History and Culture, as well as the National Curriculum Guidelines for Quilombola School Education. The methodological procedures included studies on the current educational legislation and the implementation of interdisciplinary pedagogical activities on the subject.
Keywords: Teacher education, Ethnic-racial relations, Quilombolas.
Introdução
Este artigo é oriundo de práticas extensionistas desenvolvidas por meio de curso vinculado ao Programa de Pesquisa e Extensão em Processos de Aprendizagem (PEP-PROA). O curso foi destinado aos acadêmicos de graduação, alunos de pós-graduação, professores da Universidade Estadual de Ponta Grossa, professoras(es) e alunos(as) de escolas públicas da região dos Campos Gerais, no Paraná. O curso de extensão tem se dedicado, desde a sua primeira edição, a fomentar discussões a respeito da diversidade e identidade dos sujeitos como parte constitutiva do processo formativo, bem como promover ações de valorização da cultura das comunidades quilombolas da região. Nesta quarta edição do curso, as atividades foram desenvolvidas, primeiramente, na Universidade Estadual de Ponta Grossa, com acadêmicos e professores da escola pública e, posteriormente, na Escola Municipal do Campo Professor Benedito Roque de Campos Leal, em Castro-Paraná, com os alunos e comunidade. A escola está situada numa região quilombola no interior do município de Castro, a uma distância de 64 km do centro da cidade e conta, atualmente, com 25 alunos, em sua maioria, oriundos de agricultura familiar de subsistência, boias frias e remanescentes quilombolas da Serra do Apon.
O curso de extensão teve por objetivo propiciar a formação inicial e continuada de acadêmicos(as) dos cursos de licenciatura e professores(as) da área da educação, visando o cum- primento da legislação educacional brasileira sobre as relações étnico-raciais; aprofundar os conhecimentos sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico- Raciais e a diversidade na escola e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola; refletir sobre a história e a importância das comunidades quilombolas no Paraná, bem como incentivar e oportunizar a elaboração e execução de ações de cunho pedagógico que visem combater o preconceito e contribuir para a valorização da cultura e da identidade da criança negra.
Portanto, o objetivo deste texto é apresentar os resultados provenientes das ações desenvolvidas com acadêmicos, professores, alunos e comunidade quilombola a partir de ações extensionistas e sistemáticas que promoveram a valorização da cultura, da identidade e da diversidade dos sujeitos. Assim, esta proposta se inseriu nas políticas públicas afirmativas que objetivam a superação das desigualdades sociais e o cumprimento da legislação vigente no âmbito escolar.
Os indicadores educacionais, em particular, expõem com nitidez a intensidade e o caráter estrutural do padrão de discriminação racial no Brasil. Os processos discriminatórios ocorrem em diversos setores, dentre eles, a escola. A ausência da cultura afro-brasileira, africana e indígena nos currículos escolares marca seu comprometimento com uma cultura e ideologia dominante, que tem, historicamente, negado e/ou reprimido os valores e as tradições dos afro-brasileiros e dos demais grupos discriminados da sociedade. É uma engrenagem a serviço da manutenção das estruturas vigentes, constituindo-se, desse modo, em um terreno fértil para que os/as estudantes brancos/as, negros/as e indígenas, homens e mulheres, adultos e crianças reforcem preconceitos e ideologias racistas adquiridos na escola e em outras instituições socializadoras, como a família.
O tradicional sistema educacional apresenta em seu cotidiano um desafio no que se refere ao fomento das desigualdades na escola. Essas desigualdades ferem os princípios básicos de uma sociedade que se deseja ser democrática, neste sentido, a escola é percebida como um espaço especialmente marcado pelas relações de desigualdade sociais. Todavia, é também um espaço privilegiado para formação de valorização da diversidade.
No Brasil, as políticas voltadas para a educação da população negra foram desenvolvidas mais significativamente após a Constituição Federal de 1988, sendo um avanço com a Lei de Diretrizes e Bases das Educação (LDB 9.394/96), e, em 2003, com a Lei 10.639/2003i, que depois, em 2008, se tornou a Lei 11.645/2008ii, a qual garante o trabalho com temas da cultura afro-brasileira e africana nas disciplinas da educação básica, em todos os níveis.
A partir da Lei nº 10.639/2003, e conforme tratam as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação em março de 2004, a escola deverá atuar visando o reconhecimento das diferenças e a construção da igualdade social, reconhecendo e valorizando os vínculos históricos e culturais, refazendo repertórios consolidados em seus currículos e projetos pedagógicos e nas relações estabelecidas no ambiente escolar.
O parecer do Conselho Nacional de Educação CNE/CP nº 3/2004 e a Resolução CNE/CP1/2004 estabeleceram a educação das relações étnicos-raciais como um núcleo dos projetos político-pedagógicos das instituições de ensino de diferentes graus. Neste processo, o papel das universidades é definido na Resolução nº 1, de 17 de junho de 2004, que diz, em seu Art. 1º,
§ 1º: “As Instituições de Ensino Superior incluirão nos conteúdos de disciplinas e atividades curriculares dos cursos que ministram a Educação das Relações Étnico-Raciais, bem como o tratamento de questões e temáticas que dizem respeito aos afrodescendentes, nos termos explicitados no Parecer” (BRASIL, 2004, p.1).
Ressalta-se ainda que, em 2012, o Ministério da Educação, por meio do Conselho Nacional de Educação, estabeleceu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola, por meio da Resolução nº 8. Essa resolução teve por objetivo orientar os estabelecimentos de ensino, ajudar em forma de materiais específicos para a população quilombola, como manter as escolas em territórios quilombolas garantindo um conteúdo diferenciado e levando em conta as práticas culturais, religiosas dessa população (BRASIL, 2012).
No Art. 9 dessa resolução, se estabelece que tanto as escolas que estão em território quilombola, bem como as que estão em áreas urbanas, mas que recebem alunos(as) oriundos(as) de comunidades quilombolas, devem estar cientes das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola. Cabe destacar que, nos Arts. 31 e 32, são apresentadas as recomendações da organização do Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola, que deve ser elaborado com a participação da comunidade quilombola:
Art. 31: O projeto político-pedagógico, entendido como expressão da autonomia e da identidade escolar, é primordial para a garantia do direito a uma Educação Escolar Quilombola com qualidade social e deve se pautar nas seguintes orientações: - observância dos princípios da Educação Escolar Quilombola constantes desta Resolução; - observância das Diretrizes Curriculares Nacionais e locais, estas últimas definidas pelos sistemas de ensino e seus órgãos normativos; - atendimento às demandas políticas, socioculturais e educacionais das comunidades quilombolas; - ser construído de forma autônoma e coletiva mediante o envolvimento e participação de toda a comunidade escolar. Art. 32 O projeto político-pedagógico da Educação Escolar Quilombola deverá estar intrinsecamente relacionado com a realidade histórica, regional, política, sociocultural e econômica das comunidades quilombolas (BRASIL, 2012, p. 12).
Cabe também destacar o atual Plano Nacional de Educação (PNE), sancionado por meio da Lei 13.005/2014, com vistas a contribuir para o cumprimento da Constituição Federal de 1988, e tem como uma de suas diretrizes a “superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação” (BRASIL, 2014, p. 7). Dentre as 20 metas do PNE, foram elencadas algumas estratégias que visam o cumprimento das diretrizes já citadas, no que diz respeito às comunidades quilombolas.
Na primeira meta, estratégia 1.10 do PNE, com relação à universalização da Educação Infantil e Pré-escola, fomenta-se que o atendimento das comunidades quilombolas na educação Infantil deve se dar nas respectivas comunidades; para a universalização do Ensino Fundamental de nove anos, destaca-se a estratégia 2.6 da Meta 2, na qual ficou estabelecida a necessidade de se estimular a oferta do ensino, em especial dos anos iniciais, para as populações quilombolas, nas próprias comunidades; para a universalização do Ensino Médio, a estratégia 3.7 da Meta 3 tem por objetivo fomentar a expansão de matriculas gratuitas integrada à educação profissional, observando-se as peculiaridades das comunidades quilombolas; na Meta 5, destaca-se a estratégia 5.5, direcionada para o apoio da alfabetização de crianças quilombolas com a produção de materiais didáticos específicos e desenvolver instrumentos de acompanhamento que considerem a identidade cultural das comunidades quilombolas (BRASIL, 2014).
Na Meta 7 do PNE, evidencia-se a preocupação com a qualidade da educação básica e todas as modalidades, com vistas a atingir as médias nacionais para o Índice de Desenvolvimento Educacional Brasileiro (IDEB). No que diz respeito à população negra quilombola, cabe destacar a estratégia de número 7.25, que destaca a garantia, nos currículos escolares, dos conteúdos sobre a história e as culturas afro-brasileiras e a implementação de ações educacionais, nos termos das Leis n.10.639/2003 e n.11.645/2008, assegurando a implementação das respectivas diretrizes nacionais. Como estratégia dessa mesma meta, pode-se citar ainda a de número 7.26, na qual destaca-se a importância de se consolidar a educação escolar nas comunidades quilombolas, respeitando a articulação entre os ambientes escolares e comunitários, garantindo: - o desenvolvimento sustentável e a preservação da identidade cultural; - a oferta de programa para a formação inicial e continuada de profissionais da educação (BRASIL, 2014).
Com relação à formação de professores, pode-se citar a Meta 13 do PNE, cujo objetivo é elevar a qualidade da educação superior. Como estratégia adotada para tal, no item 13.4 destaca-se a necessidade de se promover a melhoria da qualidade dos cursos de Pedagogia e licenciaturas em geral, de modo a permitir aos graduandos a aquisição das qualidades necessárias a conduzir o processo pedagógico de seus futuros alunos, combinando a formação geral e específica com a prática didática, além da educação para as relações étnico-raciais (BRASIL, 2014).
No entanto, algumas questões relacionadas à efetivação da legislação educacional na realidade das políticas públicas, mais precisamente à Lei 10.639/03, vêm à tona, entre elas: Os(as) acadêmicos(as) dos cursos de licenciatura estão sendo preparados para trabalharem com a temática? Será que os temas relacionados à cultura afro-brasileira e africana estão sendo desenvolvidos por professores(as) da educação básica?
Nesse sentido, o curso de extensão visou contribuir para a formação de futuros professores(as)/acadêmicos(as) dos cursos de licenciaturas para atender as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, contidos no Parecer 003/2004, elaborados pelo CNE, que regulamenta a alteração trazida pela Lei 10639/2003 à Lei 9394/1996, nos seus artigos 26, 26A e 79B, e que buscou traçar orientações curriculares nacionais para os diversos níveis da educação brasileira, dentre elas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola, contidas no parecer do CNE/CEB nº 16/2012, aprovado em 5 de junho de 2012.
Caracterização do local de atuação
Nas últimas décadas, o debate sobre as comunidades quilombolas na sociedade brasileira e as ações afirmativas têm se ampliado. Neste contexto, emergiram movimentos reivindicatórios, os quais contribuíram na necessidade de visibilidade de grupos marginalizados da sociedade. Os processos discriminatórios ocorrem em diversos setores, dentre eles a escola, e os indicadores educacionais, em particular, expõem com nitidez a intensidade e o caráter estrutural do padrão de discriminação racial no Brasil.
A exploração do trabalho escravo, ideologicamente considerado como um fenômeno natural pela classe dominante, deu-se em todas as instâncias econômicas do país. Os negros que foram escravizados trabalharam na agricultura, na mineração, na realização de serviços domésticos e também nos centros urbanos. Tratados como animais, muitos não aceitaram a condição à qual foram submetidos, se revoltaram e fugiram para localidades distantes, formando os quilombos. Entretanto, a fuga e a formação desses espaços não garantiram o seu sossego, pois “os quilombos eram sistematicamente combatidos e exterminados por tropas do governo ou de particulares contratados pelo governo.” (CARVALHO, 2002, p.22).
O primeiro Quilombo do Brasil, o de Palmares, representou o movimento dos cativos mais conhecido contra a escravidão negra no país. Por quase 100 anos, de 1630 a 1695, os negros de Palmares lutaram pela conquista de sua liberdade. Localizada na Serra da Barriga, em Alagoas, a região do Quilombo de Palmares abrigou milhares de negros e se tornou o reduto dos escravos fugidos, o símbolo da resistência negra no Brasiliii.
A origem do Quilombo de Palmares, assim como a de outros quilombos, deu-se a partir das rebeliões ocorridas em diferentes décadas, seja no século XVIII ou no século XIX. As fugas foram constantes e representaram para a sociedade escravocrata um ato de rebeldia, o que tornou o escravo um criminoso, passível de ser recapturado e castigado duramente. Considerado como uma ameaça para a organização política e social da colônia, os Quilombos tornaram-se alvos de várias expedições organizadas pelo governo colonial para reprimir e dominar os negros que ali habitavam.
Os Quilombos foram considerados como um espaço de resistência cultural e preservação da cultura africana, no qual os negros puderam voltar a falar a sua língua e cultuar sua religião. Nesse sentido,
Quilombo é um movimento amplo e permanente que se caracteriza pelas seguintes dimensões: vivência de povos africanos que se recusavam à submissão, à exploração, à violência do sistema colonial e do escravismo; formas associativas que se criavam em florestas de difícil acesso, com defesa e organização sócio-econômico política própria; sustentação da continuidade africana através de genuínos grupos de resistência política e cultural (NASCIMENTO, 1980, p.32).
Quilombo é um movimento amplo e permanente que se caracteriza pelas seguintes dimensões: vivência de povos africanos que se recusavam à submissão, à exploração, à violência do sistema colonial e do escravismo; formas associativas que se criavam em florestas de difícil acesso, com defesa e organização sócio-econômico política própria; sustentação da continuidade africana através de genuínos grupos de resistência política e cultural (NASCIMENTO, 1980, p.32).
Representavam a negação e a resistência ao regime que rebaixava os negros, desumanizando- os ao tratá-los como “coisas”, sem vontade própria e sem direito à voz e à liberdade. E em todas as regiões em que o trabalho escravo se “estratificasse, surgia o quilombo ou mocambo de negros fugidos, oferecendo resistência, lutando, desgastando em diversos níveis as forças produtivas escravistas” (MOURA, 1987, p. 14). Os Quilombos tiveram várias formas de organização no Brasiliv, dependendo do contexto histórico, alguns se formavam com apenas alguns escravos fugidos e outros maiores, mas em todos os quilombos existentes, durante o regime escravocrata, o objetivo principal era o da resistência ao sistema que os escravizava.
No Paraná, os quilombosvdatam do século XVIII e XIX e foram formados em diversas regiões. Em Castro, os quilombos foram formados a partir de fugas e rebeliões. Localizada no caminho de Viamão, no período em que o tropeirismo estava no seu auge, essa região abrigou em suas terras muitos tropeiros e comerciantes que por lá passaram. “As fazendas, que desenvolviam o criatório de animais para atender as tropas, foram se formando nos Campos Gerais, juntamente com a abertura dos caminhos, organizando e realizando as atividades de subsistência dos habitantes” (NASCIMENTO, 2004, p. 28).
A principal fazenda, na qual era possível acampar durante longos períodos de viagem, era a Capão Alto, originada da sesmaria concedida em 1704 a Pedro Taques de Almeida e que, posteriormente, em 1751, foi adquirida pelos religiosos de Monte do Carmovi, de São Paulo. Nesta fazenda, centenas de cabeças de gado foram criados, currais construídos e muitos negros escravizados, o número de escravos particulares da fazenda era o maior da região do Paraná.
Por volta de 1760, os padres Carmelitas retiraram-se da região deixando a fazenda sob a responsabilidade de um administrador, que cuidava dos interesses do local e dos escravos que nela residiam. Cem anos após a saída dos Carmelitas, em 1864, a Fazenda Capão Alto foi vendida, e, além das terras e todas as dependências, foram incluídos na venda os mais de 300 escravos que nela residiam.
O interesse dos novos proprietários da fazenda era o de levar para São Paulo o maior número de escravos possível para trabalharem nas fazendas de café, de modo que ficaram de fora apenas os velhos e os inválidos. Esse “deslocamento resultava de transação comercial feita entre os frades carmelitas e a firma paulista de banqueiros e comerciantes escravistas Bernardo Gavião, Ribeiro & Gavião”vii(INCRA, 2010, p.85).
A negociação fez parte do tráfico interno de escravos no Brasil e visou suprir a falta da mão de obra escrava nas lavouras de café paulistas, escassas com a proibição da entrada de escravos no país por meio da promulgação da Lei Euzébio de Queiróz, em 1850. Rebelando-se contra os novos donos, os negros da fazenda Capão Alto não aceitaram ser transferidos para o trabalho em São Paulo:
Dos onze escravos apontados como cabeças do movimento foram presos, e no dia 10 de maio de 1864, a fazenda foi cercada, os negros levados ao terreiro. [...] dominados os escravos viram a polícia invadir as senzalas, onde encontrara, segundo o relatório do chefe da polícia de Curitiba, facas e facões de serviço do campo e algumas espingardas carregadas com balas (CURITIBA, 1985, p.29).
Os negros “rebeldes”, presos na Fazenda Capão Alto, foram encaminhados para as cadeias existentes em Castro e Curitiba, para posteriormente serem entregues à firma paulista. Muitos negros escravizados fugiram para locais distantes, a cerca de 65 quilômetros da região urbana de Castro, e formaram os Quilombos: Serra do Apon, Limitão e Mamãs, “divididos estrategicamente em dois grupos: os Acróbios foram para a Serra do Apon, em Faxinal de São João e na Porteira, e os Mamãs foram para a região que hoje tem este nome, no Ribeirão e no Imbuial” (CURITIBA, 2008, p.84).
Portanto, como no restante do país, os quilombos formados no Paraná, durante o período em que a escravidão dos negros foi praticada, representaram o movimento de resistência e de negação ao sistema escravocrata. A luta e a resistência dos negros contra a opressão e a discriminação praticada pela classe dominante não se encerraram no período pós-abolição, elas apenas se modificaram.
Por meio dos movimentos negros, ocorridos nas primeiras décadas do século XX, foram reivindicados os direitos políticos, econômicos e sociais à população negra do Brasil, dentre eles o acesso à educação pública e gratuita oferecida pelo Estado.
Metodologia
Os procedimentos metodológicos aplicados se constituíram de: análise das ementas das disciplinas dos cursos de licenciatura da instituição; planejamento das ações por meio do desenvolvimento de cursos de extensão para subsidiar as discussões em torno da educação das relações étnico-raciais nas licenciaturas; estudos com acadêmicos e professores sobre a legislação que norteia a discussão; implementação, na comunidade, de atividades interdisciplinares que favorecem estudos da temática e possibilidades pedagógicas para sua efetivação.
O curso de extensão foi realizado em três momentos: no primeiro, os cursistas puderam refletir sobre o processo histórico de legitimação ideológica e do racismo no Brasil, bem como conhecer e compreender quais são as políticas educacionais que visam promover a igualdade racial no Brasil; no segundo momento, os cursistas conheceram alguns aspectos da cultura africana e refletiram sobre as contribuições africanas e negras no Brasil, bem como planejaram e elaboraram ações de cunho pedagógico, com o objetivo de incluir a história e cultura dos africanos no currículo escolar; no último momento, os cursistas promoveram atividades interdisciplinares, por meio de oficinas pedagógicas, na Escola Municipal do Campo Professor Benedito Roque de Campos Leal, em Castro, PR.
A formação teórica teve como objetivo apresentar o contexto histórico da legitimação do racismo no Brasil, bem como refletir sobre práticas discriminatórias na escola e as políticas educacionais que visam promover a igualdade racial. A partir da explanação e reflexão sobre o tema, os(as) acadêmicos(as) elaboraram materiais de cunho pedagógico sobre a história e cultura dos afro-descentes para serem trabalhados com as crianças da escola.
As atividades desenvolvidas na formação inicial buscaram elucidar como os(as) acadêmicos(as) poderiam contextualizar a cultura africana e afro brasileira. Para tanto, foi necessário envolver diversos recursos materiais e físicos, como apresentação de slides, livros de literatura infantil, confecção de bonecas de pano (Abayomi), músicas e jogos afrodescendentes. A finalização da atividade extensionista se deu na Escola Municipal do Campo Professor Benedito Roque de Campos Leal, em Castro/PR, com a participação dos(as) acadêmicos(as) e da Comunidade Quilombola de Serra do Apon.
Cabe destacar que, antecedendo a atividade extensionista, com a visita dos(as) acadêmicos(as), a gestão e as professoras da Escola Municipal do Campo Professor Benedito Roque de Campos Leal desenvolvem o projeto “Minha História começa aqui e pelo mundo eu vou”, com o objetivo de promover diversas atividades com os alunos, como: debates dentro da sala de aula sobre a temática; atividades de literatura sobre o tema; a presença de membros quilombola da comunidade na Escola; passeios extraclasse para reconhecimento da comunidade e resgate da história local; atividades com os(as) alunos(as), valorizando o protagonismo da população negra por meio de filmes e painéis educativos e a atuação dos alunos em teatro baseado na literatura afro.
Resultados da ação extensionista
Com o objetivo de aprofundar os conhecimentos sobre a temática, as professoras da escola, juntamente com os(as) acadêmicos(as), participaram do primeiro momento do curso de extensão, realizado nas dependências da universidade, onde refletiram sobre o processo histórico de legitimação ideológica e do racismo no Brasil, bem como puderam conhecer e compreender quais são as políticas educacionais que visam promover a igualdade racial no Brasil. E, ainda, conhecer alguns aspectos da cultura africana e refletir sobre as contribuições africanas e negras no Brasil.
Viver e trabalhar no campo, tirando dele seu sustento e dignidade! Palavras simples que norteiam a vida de quem vive e sobrevive no campo. Das famílias atendidas na escola e da comunidade ao entorno da mesma, a maioria enfrenta essa realidade. A distância do centro urbano e a falta de comunicação (a comunidade não conta com acesso à telefonia e o transporte coletivo passa uma única vez por dia, de segunda a sexta-feira) fazem com que a escola se torne um dos principais meios de acesso a possibilidades de acesso à informação e cultura.
Daí a importância de a escola propiciar momentos de interação com a comunidade e valorizar a cultura local, destacando o valor do negro na base de construção história local. Tal fato até então era ignorado ou tratado com pouca importância. Ao criar um ambiente socializador de trocas de experiências e de pesquisa, resgatando as potencialidades que seu ambiente apresenta, o educador abre espaço para a manifestação da criança, de forma a explorar suas ideias e resgatar sua autoestima e consciência crítica. Da mesma forma, desperta nos demais a oportunidade de ouvir seus colegas, respeitado suas opiniões e pontos de vista.
A partir dessa perspectiva, e dando continuidade ao projeto já iniciado em anos anteriores: “Minha História começa aqui e pelo mundo eu vou”, a equipe escolar abriu espaço para ampliar as atividades sobre a efetiva aplicação das políticas educacionais que visam promover a igualdade racial.
As professoras desenvolveram uma sequência didática sobre “Histórias Encantadas Africanas”, em que foi realizado um levantamento dos livros de literatura que contemplam o tema, para serem trabalhados em sala de aula. Dentre as histórias, a que despertou maior interesse foi “Baobá: a árvore de ponta-cabeça”, a qual suscitou a curiosidade das crianças e abriu um leque de possibilidades pedagógicas. Ao observarem as fotos, as crianças se admiraram especialmente com a dimensão do tamanho da árvore, pois não é comum na região árvores com esse porte. Inclusive, cogitou-se a possibilidade de cultivar uma muda na escola (foi adquirida a semente, mas esperou-se o clima estar mais quente devido às características da planta – o clima da região é muito frio).
Outra forma de trazer a cultura africana para dentro da sala de aula foi através de filmes: Kiriku e a feiticeira, que encantou a todos; a Princesa e o sapo também trouxe encantamento através da determinação encontrada na protagonista, que é negra. A partir dessa perspectiva, foi fácil aprofundar os conteúdos relacionados, pois os alunos já estavam ávidos em saber mais sobre a África. Músicas, paisagens, instrumentos musicais, comida, animais, tudo conspirava para um único fim: ampliar o conhecimento sobre as maravilhas da África.
A participação dos(as) acadêmicos(as) da UEPG se deu por meio da realização de diversas oficinas de atividades com as crianças, nas quais foram abordadas algumas brincadeiras de origem africana, dentre elas a “Roda Africana”, com a música “África” do grupo Palavra Cantadaviii.
Outras brincadeiras trabalhadas com as crianças foram: a brincadeira de atenção “Terra e Mar”, originária de Moçambique; a brincadeira de saltar “Saltando o Feijão”, e a brincadeira de correr “Pegue a Cauda”, ambas originárias da Nigéria.
Utilizando material reciclável, os cursistas prepararam a brincadeira Escravos de Jó, confeccionaram máscaras com molde de bexiga e jornal, e também confeccionaram a “Boneca Abayomi”, boneca de pano feita com nós que representa o aconchego que as mães negras, que foram trazidas com seus filhos ao Brasil nos porões de navios negreiros, procuravam dar às crianças durante a viagem.
Enquanto as crianças participavam das oficinas com os(as) acadêmicos(as) da UEPG, os adultos da comunidade, cerca de 40 pessoas (avós, mães, pais, tios, tias) participaram de uma roda de conversa com as professoras da UEPG. A temática da roda de conversa foi “Passado, presente e futuro”, atividade na qual puderam relatar suas experiências de vida, rememorar a infância, refletir sobre o preconceito e a desigualdade social existentes entre as pessoas, bem como compartilhar o que desejam para o futuro das crianças da comunidade quilombola.
Por meio desta atividade, os adultos da comunidade puderam também refletir sobre a cultura africana e afro brasileira, bem como sobre a importância da valorização desta cultura e da identidade da comunidade quilombola na qual eles vivem e da qual são descendentes.
Como encerramento das atividades pedagógicas e forma de agradecer aos acadêmicos(as) e professores(as) da UEPG, os alunos da escola municipal apresentaram a peça de teatro Pretinho Meu Boneco Querido, demonstrando consciência e, ao mesmo tempo, determinação por enfrentar algo novo e desafiador. Eles não se intimidaram diante do público presente, manifestando a importância da valorização do indivíduo e de práticas pedagógicas desafiadoras e relevantes que os levem a adquirirem, além do conhecimento, consciência cidadã.
Algumas considerações
No aspecto geral, pode-se pontuar ponderações a respeito do envolvimento e da atuação dos acadêmicos (as) que participaram ativamente das ações, desde estudos, planejamento e implementação das atividades na comunidade. Cabe destacar que a discussão a respeito da educação das relações étnico-raciais deve estar presente incisivamente nos currículos dos cursos de licenciatura. Em se tratando de formação de professores (as), é necessário oportunizar o aprofundamento teórico da temática aos acadêmicos (as) e, essencialmente, aliar, por meio de atividades interdisciplinares, as possibilidades pedagógicas para efetivação no contexto escolar.
Foi nesse sentido que esse curso buscou oportunizar a interação do ensino superior com a educação básica, por meio de atividades que promovessem a reflexão e o reconhecimento de pertencimento à comunidade. A articulação entre a fundamentação teórica e a prática sobre o tema proposto favoreceu a reflexão a respeito da necessidade da formação inicial, bem como a importância da formação continuada sobre "Educação e Relações Étnico Raciais”.
Cabe destacar o vínculo que foi estabelecido com a comunidade quilombola, o que possibilitou a articulação dos(as) acadêmicos(as) em projetos de extensão e as demandas sociais. Percebeu-se o envolvimento da comunidade e dos(as) alunos(as) nas atividades realizadas em busca do resgate de valores e, principalmente, da autoestima, mostrando a importância do conhecimento da própria história, com a consciência do papel como agentes transformadores da realidade.
Desta forma, considera-se primordial o despertar sobre a temática em questão e sobre as possibilidades pedagógicas acerca da efetivação do que propõem as políticas educacionais e também legislação educacional vigente, contudo, o desafio é imenso por se tratar de um debate histórico, político e social.
Referências
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BRASIL. Lei Federal n.º 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. Brasília: MEC. Ministério da Educação, 2003.
BRASIL. Parecer nº. CNE/CP 3/2004. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Etnico-Raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: MEC Ministerio da Educação: Conselho Nacional de Educação, 2004a. 17 p.
BRASIL. Resolução nº 1, de 17 junho de 2004. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico - Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: Brasília: MEC Ministério da Educação: Conselho Nacional de Educação: Conselho Pleno, 2004b.
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Notas