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“GRITO DA TERRA”: NARRATIVAS ACERCA DO FENÔMENO DA DESAPROPRIAÇÃO NA TRANSPOSIÇÃO DO VELHO CHICO
Gabriel da Silva; Suely Emilia de Barros Santos
Gabriel da Silva; Suely Emilia de Barros Santos
“GRITO DA TERRA”: NARRATIVAS ACERCA DO FENÔMENO DA DESAPROPRIAÇÃO NA TRANSPOSIÇÃO DO VELHO CHICO
Revista Conexão UEPG, vol. 16, núm. 1, pp. 01-23, 2020
Universidade Estadual de Ponta Grossa
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Resumo: O objetivo deste artigo é compreender como o fenômeno da desapropriação se mostra no cotidiano de camponeses afetados pela transposição do rio São Francisco. É uma pesquisa qualitativa interventiva, cartográfica, numa perspectiva fenomenológica hermenêutica, nascida do Programa de Extensão TransVERgente. A modalidade de intervenção/investigação foi a roda de conversação. O público foram seis camponeses de Sertânia/PE. A Analítica do Sentido de Critelli foi o método de análise. As narrativas revelaram que a desapropriação é um fenômeno que provoca transformações ambientais e nos modos de vida, apontando que o contexto em que os participantes-colaboradores moram é marcado pela violação de direitos fundamentais, e por conflitos nas relações políticas, onde ocupam o lugar de subalterno. Por fim, refletimos acerca da ação clínica no viver cotidiano, aliada à ação política, como um possível caminho para acompanhar e escutar aqueles que vivem diariamente a luta pelos seus direitos e um espaço para habitar.

Palavras-chave:TransposiçãoTransposição,DesapropriaçãoDesapropriação,Ação clínicaAção clínica.

Abstract: This article aims to understand how the population affected by the transposition of the São Francisco river deals with expropriation on a daily basis. It is a qualitative, interventional, and cartographic research carried out through a hermeneutic phenomenological perspective. The research is a follow up of the continuing education program called TransVERgente. The intervention/investigation generated data from conversation circles. The participants of the study were six low income farmers from Sertânia/PE. The data analysis followed Critelli's Analytic of Sense. The narratives revealed that expropriation causes environmental and lifestyle changes, pointing out that the area studied is marked by the violation of farmers´ fundamental rights, and by conflicts in political relations, in which farmers have a subordinate status. Finally, we reflect on the clinical action in daily living, articulated with political actions as possibilities to support those who struggle every day for their rights and for a place to live.

Keywords: Transposition, Expropriation, Clinical action.

Carátula del artículo

Artigos

“GRITO DA TERRA”: NARRATIVAS ACERCA DO FENÔMENO DA DESAPROPRIAÇÃO NA TRANSPOSIÇÃO DO VELHO CHICO

Gabriel da Silva
Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), Brasil
Suely Emilia de Barros Santos
Universidade de Pernambuco (UPE), Brasil
Revista Conexão UEPG, vol. 16, núm. 1, pp. 01-23, 2020
Universidade Estadual de Ponta Grossa

Recepção: 22 Julho 2020

Aprovação: 06 Outubro 2020

Introdução

Esta pesquisai nasce da inserção dos autores no programa de extensão chamado TransVERgenteii, o qual busca olhar para os fenômenos, muitas vezes encobertos, que atravessam o acontecer da obra da transposição do rio São Francisco na cidade de Sertânia-PE. A referida pesquisa e programa de extensão se propõem a pensar a ação clínica coexistindo com a ação política em contextos rurais onde moram camponeses afetados pela transposição. As ações multi/interprofissionais do programa TransVERgente com estudantes, profissionais e pesquisadores das áreas das Ciências Humanas e da Saúde, foram solo fértil para o desenvolvimento da pesquisa interventiva, possibilitando conhecer e investigar problemáticas contemporâneas advindas com a mega obra da transposição. Em contato com essa realidade, vimo-nos nas incertezas de como intervir e acompanhar as narrativas que nos encaminhavam, sendo provocados a ampliar as investigações.

Esse cenário já chama a atenção de alguns estudiosos que vêm buscando compreender os impactos da transposição na vida das pessoas afetadas (SILVA et al., 2018; SANTOS et al., 2018; GONÇALVES et al., 2018; SILVA, 2015). Nesses estudos, as ressonâncias da transposição do rio São Francisco se revelam em perdas materiais, como indenizações irrisórias pagas para a desocupação das terras, dificuldade de acesso à água que passa pelos canais e perda de terras, ou ainda em perdas imateriais, simbólicas, como o agravo à saúde, o aumento de número de casos de ansiedade e depressão, o descrédito das pessoas em instâncias e representantes do governo, e até mesmo no sentimento de não pertencimento de quem foi realocado ou desapropriado de suas casas.

Neste contexto, evidencia-se o deslocamento forçado pelo qual esses megaprojetos impõem para o avançar das obras. Como fenômeno que vem tendo destaque relativamente recente, surge o desafio de pensar a ação do psicólogo em cenários atravessados por essa temática. Por isso, esta pesquisa, através do seu objetivo principal, que é compreender como o fenômeno da desapropriação se mostra no cotidiano de camponeses afetados pela transposição do rio São Francisco, pode contribuir para a produção de conhecimento em consonância com a realidade social. A relevância científica/acadêmica deste estudo aponta para uma ação clínica do psicólogo inserido em contextos e situações sociais. Já a relevância social revela-se na proposta de fazer um diálogo entre ciência e realidade social. Assim, este estudo pode colaborar com uma práxis profissional do psicólogo comprometido com o cuidado de si e dos outros, e com um fazer ético-político.

Sobre a Seca e a Transposição

Desde “A grande seca” de 1877-1879, o Nordeste brasileiro vem sendo atravessado por fortes impactos sociais que provocam ressonâncias ambientais, climáticas e nos modos de vida. Compreende-se, então, que a seca no Nordeste brasileiro é um fenômeno que não se resume apenas ao seu clima semiárido, insuficiência e irregularidade de chuvas e a vegetação caatinga, predominante no Sertão. Além dessas características, o semiárido brasileiro tem aspectos que tornam esse contexto complexo, como, por exemplo, a ocupação humana, a exploração dos recursos naturais e as atividades econômicas (SILVA, 2003).

Entendemos, então, que a seca provoca sofrimento, uma vez que gera danos nos modos de vida, principalmente do povo nordestino, dificultando um viver digno com direitos fundamentais básicos, como acesso à água e alimentação. Além disso, podemos considerar que a seca não só se torna uma questão para a sobrevivência dos nordestinos, mas também se revela como um acontecimento de interesse social, político e econômico.

Há quase um século, o semiárido nordestino vem sendo cenário de diversas políticas para o combate da seca, que vai desde as propostas de criações de açudes, até os megaprojetos como o da transposição do rio São Francisco (SILVA, 2015). O que há de comum em todas as tentativas propostas pelo governo é que um pequeno público, composto de empresários e proprietários de terras, se beneficia com essas obras, visto que existe um significativo investimento financeiro nas chamadas políticas de combate à seca, que acaba por enriquecer essas pessoas, enquanto o nordestino pobre continua sofrendo com a seca e a presença de obras que começam a fazer parte do seu cotidiano, provocando mudanças nos modos de vida de quem vive no campo.

Dentre as diversas medidas de enfrentamento à seca está a transposição do rio São Francisco, obra do governo federal, sob responsabilidade do Ministério da Integração Nacional (MI), com início no ano de 2007, no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cujo propósito é levar água para o Nordeste brasileiro. Mas o debate sobre a criação e integração do rio São Francisco acontece desde o século XIX, no período imperial (BARACHO, 2014).

A transposição tem 477 quilômetros de extensão, que passam pelos estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte. Essa obra se divide em dois eixos (Leste e Norte), que contam com a construção de açudes e a integração do rio São Francisco (BRASIL, 2004). Considerada a maior obra hídrica do Brasil, o governo previu que a transposição iria beneficiar cerca de 12 milhões de pessoas, fornecendo água para diversos fins, como para uso humano, irrigação e criação de animais.

A obra, que teve início em 2007, chegou ao povo nordestino como uma esperança de melhoria na qualidade de vida, mas ainda está inacabada; perdura por mais de uma década, provocando alterações ambientais, territoriais, como também no cotidiano de quem vive aos arredores deste megaprojeto.

Os Estudos de Impacto Ambiental – EIA e Relatório de Impactos Ambientais - RIMA (BRASIL, 2004), realizados sob a responsabilidade do MI antes do início das obras, já apontavam possíveis ressonâncias que a transposição poderia provocar por onde passasse. Foi, então, organizado o Projeto Básico Ambiental (PBA), que consiste em 38 programas que estabelecem diretrizes e medidas de reparo mediante os impactos da transposição, possibilitando, ainda, o conhecimento da fauna e flora e dos aspectos econômicos e sociais que atravessam a obra, a fim de, através de uma equipe formada por técnicos do MI, empresas contratadas e parceiros intervenientes, traçar ações frente às ressonâncias da transposição do Velho Chico. Assim, seus programas atravessam temáticas como o reassentamento, a garantia de saúde, educação ambiental, apoio ao saneamento básico, entre outros (BRASIL, 2019).

Sobre a Desapropriação na Transposição

Considerando as dimensões da transposição do rio São Francisco, para que a obra viesse a acontecer, foi necessária “a expulsão de populações de moradores rurais e/ou invasão dos seus territórios, atingindo diretamente as condições de vida de agricultores, de comunidades rurais, sejam quilombolas ou indígenas.” (BARACHO, 2014, p. 21). Assim, por uma lógica de desenvolvimento e interesses econômicos, diversas pessoas tiveram que ser desapropriadas de suas casas, tendo algumas sido indenizadas e/ou realocadas.

Prevista na Constituição, no art. 5º (BRASIL, 1988), e no Decreto-Lei 3.365/41 (BRASIL, 1941), a desapropriação é compreendida como o ato do poder público de retirar a propriedade de pessoas, sob indenização previamente paga, a partir de interesse social e necessidade ou utilidade pública. Na transposição do rio São Francisco, a desapropriação aconteceu tendo como norte as diretrizes apontadas no Programa de Reassentamento das Populações, proveniente do Projeto Ambiental Básico (PAB) da transposição (BRASIL, 2005), o qual propõe a metodologia e procedimentos adotados para a realocação de pessoas que tiveram que sair de suas casas para que as obras da transposição tomassem seu curso. Assim, foi estabelecido que 18 municípios tivessem que passar pelo processo de desapropriação, ou seja, cerca de 1.889 propriedades rurais, onde residiam 273 famílias proprietárias e 572 famílias não proprietárias, totalizando 845 famílias, foram afetadas pelo projeto (BRASIL, 2005).

No Programa de Reassentamento das Populações, há três modalidades possíveis de desapropriação: reassentamento em áreas remanejadas (quando acontece a transferência voluntária das famílias proprietárias de terras para áreas não afetadas da propriedade); auto- reassentamento (processo em que famílias indenizadas com um valor acima de R$30.000 tem um prazo de até 90 dias, após o pagamento total da indenização, para realizar a mudança); e o reassentamento rural (reassentamento coletivo, que busca preservar as relações sociais já estabelecidas no novo local de moradia) (BRASIL, 2005).

O público participante desta pesquisa vivenciou o reassentamento rural, sendo realocado para uma Vila Produtiva Rural (VPR). Com o intuito de reproduzir os modos de vida daqueles que foram desapropriados, o Programa de Reassentamento recomenda que VPRs ofereçam aos seus moradores residências com área de 60m² e infraestrutura para o fornecimento de água, sistema sanitário e eletricidade. Além disso, deve oferecer serviços sociais básicos, como escola, posto de saúde e centro comunitário. Para manter a atividade agrícola dos reassentados, fora prometido uma área de sistema de irrigação e áreas de produção que poderiam ter de 5 ha (hectares) até 10 ha (hectares) (BRASIL, 2005).

A transposição institui transformações e mudanças na vida daqueles que são afetados pelas obras, uma vez que impõe novas configurações para os contextos e para os modos de vida, em especial para aqueles que tiveram de sair das suas terras. A desapropriação pode ser entendida como uma “mudança ambiental e, como tal, não é algo que altera apenas o espaço físico (construído ou não), mas também a forma com que as pessoas se relacionam com essa mudança” (HERÁCLIO, 2018, p. 95). Assim, a desapropriação solicita não só um olhar para as transformações físicas dos territórios, mas para a experiência humana, que se entrelaça com o sentido atribuído aos espaços em que habitamos.

O Relatório de Impactos ambientais – RIMA, lançado em 2004 pelo MI, aponta transformações ambientais e mudanças nas relações comunitárias nos territórios afetados, assinalando, ainda, sobre a perda temporária de empregos e até mesmo de terras potencialmente agricultáveis (BRASIL, 2004).

Metodologia

Partimos da seguinte questão-bússola, visando compreender o objetivo desta pesquisa: “Como se mostra o fenômeno da desapropriação no cotidiano de camponeses afetados pela transposição do rio São Francisco?”.

Esta é uma pesquisa qualitativa e interventiva, em conversação com os pressupostos da fenomenologia hermenêutica. Compreendendo que na pesquisa interventiva a entrada no campo se faz em coparticipação, utilizamos do método da cartografia clínica para percorrermos espaços da VPR Salão, buscando compreender, com os participantes-colaboradores, o sentido dos acontecimentos referentes à desapropriação, nesse cenário social. A cartografia clínica apresentou-se como criação coexistente, pois “O conhecimento é construído a partir da ação com o outro” (ANDRADE; MORATO; SCHMIDT, 2007, p. 198).

A narrativa emergiu como um modo de comunicar experiência e de expressão em que o narrador-ouvinte pôde compreender aquilo que foi experienciado, distanciando-se, portanto, de uma coleta de informações, a qual visa explicar fatos (BENJAMIN, 1994).

As duas modalidades de intervenção/investigação para colher os depoimentos voltam- se para escutar e narrar experiências em co-participação e conversação entre os pesquisadores e os participantes colaboradores: a) o diário de bordo se mostra como possibilidade para que o pesquisador narre sua experiência de comunicar como o outro e o contexto situacional se revela para o narrador (BISELLI; BARRETO, 2013). b) a roda de conversação é um modo de “recolher” narrativas em que, no encontro entre humanos, a conversa em ação revela a experiência humana no compartilhar de histórias vividas (SANTOS, 2016).

Os participantes-colaboradores desta pesquisa foram seis (6) camponeses afetados pela transposição. Importa ressaltar que, devido a este estudo ser construído numa perspectiva fenomenológica existencial, não há pretensão de generalizar dados. Assim, trabalhamos com uma “amostra intencional”, ou seja, um pequeno número de participantes que foi escolhido intencionalmente por apresentar relação com a temática pesquisada (THIOLLENT, 1986).

Vale ressaltar que, para assegurar o anonimato dos participantes-colaboradores, utilizamos nomes fictícios - Casa Carnaúba, Casa Facheiro, Casa Cumaru, Casa Xique-Xique, Casa Jericó e Casa Malva Branca -, inspirados em plantas originárias da caatinga, vegetação predominante do Sertão, e que tem como característica em comum serem resistentes à seca e adversidades do clima e solo sertanejo. Além disso, incluímos como prefixo a palavra casa, pois cada participante-colaborador abriga em si um sentido para a experiência de ser desapropriado, mostrando-se como abrigo resistente frente às dificuldades cotidianas.

O método de análise foi a “Analítica do Sentido”, de Critelli (1996), no qual a leitura do real acontece mediante “movimento de realização”, que são possibilidades de manifestação dos fenômenos, através das seguintes possibilidadesiii. 1. Desvelamento – Momento da desocultação do fenômeno. Dá-se pela afetação diante dos depoimentos dos sujeitos/narradores. 2. Revelação – Neste momento o que foi manifestado é acolhido e conservado, tornando-se compreensível. 3. Testemunho – Momento em que o fenômeno desvelado e revelado é visto e ouvido por outros. 4. Veracização – Momento da articulação do fenômeno com os conhecimentos prévios encontrados durante essa produção. Sendo assim, a veracização dá-se mediante uma referência. 5. Autenticação – é o momento que, por fim, a pesquisa será levada a público, autenticando-a. (SANTOS, 2016; SANTOS, 2005).

Resultados e Discussão

Apresenta-se a seguir o diálogo entre as narrativas (recorte de falas dos participantes colaboradores da pesquisa), o diário de bordo do pesquisador e o tecer de conversação com estudiosos/as que contribuíram nas reflexões e questionamentos suscitados pelos fenômenos desvelados.

A chegada da Transposição... O nascedouro da desapropriação

“Eles disseram que a gente precisava ser desapropriado porque a transposição ia passar... que a casa da gente ia sair, ia dar uma casa aqui pra nós” (CASA XIQUE-XIQUE)

“Esse processo de eu vim morar aqui... é por causo que minha mãe, que ela era quem... a enfrentante. Deus primeiramente... aí ela...eles sempre iam lá, continuar com esses negócios da barragem, né? Fazer uma barragem lá. Por isso que esse povo que tá aqui saíram de lá.” (CASA MALVA BRANCA).

As narrativas apontam que a desapropriação se deu com a chegada da transposição. No entanto, os expropriados de suas terras só foram realocados para VPR após 7 anos. Nesse período, alguns tiveram que viver de aluguel ou “de favor” na casa de parentes ou amigos. Com isso, foram realocados há quase 4 anos para VPR. Para compreender o contexto em que esta pesquisa se insere, situamos que Sertânia se encontra no eixo leste das obras, que se estendem por 220 km entre o reservatório de Itaparacica até o rio Paraíba. Com relação à população atingida, 125 famílias tiveram que ser realocadas, sendo Sertânia a cidade com o maior número nesse trecho das obras, somando 83 famílias (BRASIL, 2005). Desse total de famílias desapropriadas, 38 foram realocadas para a VPR Salão em Sertânia.

Diante de uma desapropriação compulsória, existem diversas ressonâncias para além das transformações ambientais. A partir de Heidegger (2012), compreendemos que o contexto em que o homem se insere não é mera paisagem, que não tem ressonâncias nos modos de vida. Homem e espaço são indissociáveis, sendo assim homem-espaço. Portanto, quando um espaço se transforma, o homem nele se transforma. Assim, a desapropriação e a realocação têm provocado ressonâncias de perdas materiais e imateriais na vida dos camponeses que, por conta da transposição do rio São Francisco, tiveram que sair de suas terras.

Tecendo considerações sobre o habitar

“Aí a gente morava tudo lá, ela morava vizinha comigo. Achei bom porque agora nós temos a casa com terreno, e é tudo da gente. Antes não era, que era de nós todos, era de herdeiro. Feliz por ter o que é meu...” (CASA XIQUE-XIQUE).

“Eu mesmo morava num terreno de um filho. Eu não tinha morada minha mesmo não, própria. Era do meu filho, e... de lá saí, deixei o que era casado que morava comigo, ficou na casa e eu vim mimbora pra aqui.” (CASA MALVA BRANCA).

O Programa de Reassentamento das Populações aponta que o público desse processo são as famílias proprietárias e não proprietáriasiv residentes nos trechos das obras (BRASIL, 2005). Mesmo aqueles que não tinham uma casa própria ou que viviam em terras de outras pessoas também passaram pelo processo de desapropriação, tendo a oportunidade de serem reassentados para outras áreas. O processo de realocação possibilitou que famílias pudessem possuir uma casa própria, mas outro sentido ainda é apontado para o processo de realocação, como vemos no seguinte diálogo:

“Pra mim foi... mas pra mim foi uma experiência nova, assim, não é? Eu já vinha de uma propriedade lá de Petrolina. Já participei de um negócio dos sem-terra, também. Isto aqui já não é mais uma novidade. Que aqui nós tamo... somos morador assim... bem dizer, praticamente tomando de conta do que é do governo.” (CASA FACHEIRO).

“É!... sendo morador do governo!” (CASA CUMARU).

“Morador do governo! Porque aqui nós não tem direito a fazer nada!!” (CASA FACHEIRO).

“Não pode fazer nada!... é a gota serena!” (CASA CARNAÚBA).

Chama-nos a atenção a narrativa da sensação de se sentir como “morador do governo”. Tal compreensão se dá diante de alguns limites que parecem ser impostos no cotidiano de quem vive na VPR, como podemos ver nas narrativas seguintes:

“Aqui é assim, as terras que a gente tem, nós não pode vender que é pra herdeiro. A gente pode doar para os parente, no caso... né? Posso doar pra um irmão da minha esposa, um irmão meu, mas eu não posso vender... e tem que ficar pra um filho, para os herdeiro, coisas que eles exigem demais, que não existe. Nas terra da gente mesmo, que eu posso dizer que era da gente porque é tudo em família, né? Não tinha essas exigências. Aí aqui eles querem matar o cabra que nem piolho, na unha. Querendo matar de pouquinho...” (CASA FACHEIRO).

“Outra coisa errada também que elas têm aqui... é isso da pessoa não poder sair, não poder visitar uma pessoa, da família da pessoa, né? Que eu não sei como é isso!... Quando a pessoa tem uma casa, aí não pode passear na casa de uma família, porque se for eles já querem tomar a casa, viu? [...] então essa casa não é de ninguém, é do governo!!” (CASA CARNAÚBA).

“Eu tô com quatro anos aqui que eu não saí pra canto nenhum, pra canto nenhum eu saí!! Aqui!... é do meu emprego pra casa. Quando o pessoal diz: “Casa Facheiro, vamos se divertir um pouco, vamos sair um pouco”, eu digo: “Não, não vou deixar minha casa só não!!”, porque eu tenho a certeza que se um dia... se eu deixar o que eu conquistei, de uma hora pra outra se acaba, que o pessoal vem e rouba, que nem já roubaram lá perto da casa dela [casa Carnauba], num foi? [...] Quer dizer que se eu for passar um mês fora, ele e ela... Aí quando chegar tá o ministério aí: “Vou tomar a casa!!... você abandonou!’.” (CASA FACHEIRO)

Emergem dois aspectos significativos que parecem compor a experiência de quem mora na VPR: a impossibilidade de tomarem decisões sobre a própria casa, como transferir a titularidade de posse dos próprios imóveis para outras pessoas, e não poder sair de casa por medo de perdê-la, como revela Casa Facheiro ao narrar que há 04 anos não sai de sua casa. O processo de desapropriação se mostra nesse tensionamento entre o pertencer a uma casa e o não pertencimento ao local em que vive. Recorremos a Heidegger (2012, p.125-126):

Essas construções oferecem ao homem um abrigo. Nelas, o homem de certo modo habita, se por habitar entende-se simplesmente possuir uma residência. Considerando- se a atual crise habitacional, possuir uma habitação é, sem dúvidas, tranquilizador e satisfatório; prédios habitacionais oferecem residência. As habitações são hoje bem divididas, fáceis de administrar, economicamente acessíveis, bem arejadas, iluminadas e ensolaradas. Mas será que as habitações trazem nelas mesmas a garantia de que aí acontece um habitar?

Santos (2016, p. 135, grifos da autora), inspirada no filósofo, compreende que “habitar fala da experiência de travessia peregrinada no mundo-com-os-outros. Diz dos modos de tecer o conviver nos espaços coletivamente habitadosv, os quais vão possibilitando a revelação de sentido.”. Assim, habitar não diz respeito a possuir uma residência, ou moradia, mas ao modo como o homem se situa no mundo. Como questão fundamental do existir, o habitar é constitutivo do ser do homem, pois, “a maneira como tu és e eu sou, o modo segundo o qual somos homens sobre a terra é o Buan, o habitar” (HEIDEGGER, 2012 p. 127, grifos do autor).

Destacamos os seguintes depoimentos: “Achei bom porque agora nós temos a casa com terreno, e é tudo da gente”, e “Morador do governo! Porque aqui nós não tem direito a fazer nada!!”, que parecem revelar que viver na VPR é viver no entre. Divididos entre a felicidade de possuir uma casa e o sentimento de que aquele lugar não lhes pertence, surgem narrativas como a de Casa Carnaúba: “então essa casa não é de ninguém, é do governo!”. Tal compreensão nos leva a pensar que morar na VPR é um acontecimento, visto que “o acontecimento não é algo que (ir)rompe e transita: ele é a ruptura e a transição mesmas; [...] O acontecimento destroça mundo e funda mundo, estando suspenso entre mundos” (FIGUEIREDO, 1994, p.152).

Como acontecimento que deixa “suspenso entre mundos”, apontamos para o caráter de desamparo que os moradores vivenciam, não só o de não se sentirem pertencentes ao local onde moram, mas também um desamparo existencial que provoca o “desenraizar do solo próprio, [...] onde nosso mundo familiar e mais próximo se desfaz” (ARAÚJO; RIBEIRO, 2005, p. 2). Esse desalojamento provoca uma ruptura no modo de vida dos moradores da VPR, que não mais vivenciam o se sentir em casa.

Os direitos fundamentais em jogo

Como é habitar na VPR? Provocados por essa questão, voltamo-nos para algumas narrativas, a fim de ampliar nossas compreensões a respeito da realidade de quem vive na VPR:

“O que eu acho ruim aqui e minhas meninas se queixa é não ter um postinho médico, não ter uma área de lazer que era pra ter. Era pra ter uma área de lazer aqui pras crianças... [...] Eu tava dizendo a ele aqui, pra gente aqui é tudo bom aqui, só que pra melhorar mais tá precisando só de um postinho médico aí...” (CASA FACHEIRO).

“É, não tem...” (CASA XIQUE-XIQUE).

“É... uma pessoa pra medir a pressão... tendo o postinho médico é mais fácil, né?” (CASA CARNAÚBA).

“Aí a escola aí não tem um projeto pras crianças. Tem muito moleque aqui dentro que tá sem fazer nada, fica bagunçando aqui...” (CASA FACHEIRO).

“Assim, o canal foi bom, mas não tá servindo... pra nada, que era pra vim água pra comunidade, não era? Não tá vindo pra cá” (CASA XIQUE-XIQUE).

“Não, essa água do São Francisco não tá servindo pra nada, que não tá vindo pra cá” (CASA CARNAÚBA).

Nesses depoimentos, podemos acompanhar a denúncia da violação de alguns direitos básicos, como o acesso a água, serviços de saúde, educação e lazer, considerados pela Constituição Federal (BRASIL, 1988) como direitos fundamentais de todo cidadão. A saúde, em especial, apareceu como um fenômeno de significativo destaque:

“Você vê pela situação de uma Vila dessa, era pra estar bem estruturado, né? Se nós tivesse um recurso... você vê as escola aí do jeito que tá, você vê um postinho, não tem médico.vi A gente, quando precisa de um médico, vai no posto lá na rua. E mesmo assim, quando chega lá nós tamo desacobertado. Tem muita gente aqui dentro que tá cadastrado lá no postinho, mas muitos daqui de dentro não estão. Nós somos uma área descoberta.” (CASA FACHEIRO).

Fica evidente que as violações dos direitos básicos fundamentais ressoam nos modos de quem vive na VPR, nos fazendo compreender que a desapropriação não só provocou mudanças físicas/materiais, mas também no modo cotidiano de existir, uma vez que, por exemplo, por serem “desacobertados”, precisam se deslocar para outros locais para ter acesso a dispositivos e serviços de saúde, mesmo diante da incerteza de serem atendidos.

A discriminação de direitos ressoa na saúde dos moradores da VPR, pois a saúde está “para além do mundo das enfermidades objetivadas, dirigindo o olhar para o sujeito e coletivos, seus ambientes e contextos, dimensões integradas” (PELIZZOLI, 2011, p. 17). Saúde não se mostra apenas no bem-estar físico e na oferta dos serviços de saúde; diz respeito ao modo como o viver acontece, atravessado pelos contextos e relações, incluindo sua dimensão existencial. Na guisa desse pensar, o direito à saúde dos moradores da VPR está em jogo. Oliveira et al. (2017, p. 21-22) ressaltam que o direito à saúde está relacionado com a garantia de

[...] critérios socioculturais que contribuam para a saúde de todas as pessoas, incluindo a acessibilidade a serviços de saúde, condições de trabalho, habitação, transportes de boa qualidade, alimentos nutritivos e o direito ao lazer. Assim sendo, a conquista do direito à saúde está intimamente ligada à de outros direitos humanos, incluindo a não discriminação, acesso à informação e participação nas decisões, entre outros. Inclui também o direito de controlar a saúde e o corpo (como, por exemplo, nos direitos sexuais e reprodutivos), o acesso a uma saúde diferenciada (indígenas e quilombolas) e estar livre de interferências (tratamento médico não consensual e experimental).

O que as narrativas apontam é um contexto distante desse descrito pelos autores acima citados. Os participantes-colaboradores revelam o sofrimento de estar às margens de um viver digno, tendo cotidianamente seus direitos fundamentais violados. Além disso, o contexto revelado nesta pesquisa aponta irregularidade do Programa de Reassentamento das Populações, que elegeu como uma de suas metas: “Possibilitar a melhoria da qualidade de vida das famílias reassentadas, através da implantação de infraestrutura de saneamento básico, viária, serviços de educação e saúde.” (BRASIL, 2005, p. 5).

O projeto da transposição, apesar de se pautar numa proposta de desenvolvimento, tem provocado agravos aos afetados pelas obras, em especial os que tiveram que sair de suas casas e acompanhar o seu cotidiano ser modificado. A obra avança sem considerar o modo de existir dos humanos que habitam ao longo do seu percurso, impondo mudanças bruscas e invasivas que desalojam e desrespeitam aqueles que são afetados cotidianamente.

Essa situação remonta a uma questão significativa e a que precisamos estar atentos: a técnica moderna e o modo como o homem tem se relacionado com ela. Segundo Ellen Silva (2018, p.39):

[...] o que rege a técnica moderna é a exploração que impõe à natureza fabricação, armazenamento e distribuição; predispondo o máximo de rendimento possível com o mínimo de gasto. Com efeito, o homem da ‘Era da Técnica’ se vê impelido a calcular, conceituar, dominar o que a ele se mostra como disponibilidade.

Há um alerta: quando tomados pela técnica moderna, agimos através do pensamento técnico/calculante que, por vezes, desconsidera o ser na sua condição de humano, buscando dominar e explorar o homem e as coisas. Em consonância, Smith (1988, p.62) assinala:

Os seres humanos estenderam implacavelmente seu domínio sobre a natureza. Mas a natureza realiza sua vingança, uma vez que a dominação da ‘natureza exterior’ é acompanhada pela crescente dominação da ‘natureza interior’ (as próprias pessoas) e pela crescente fragilidade da existência humana.

Apesar de não compreendermos que há cisão entre “natureza exterior” e “natureza interior” apontada, compreendemos que os afetados pela transposição, em especial os desapropriados, vivem na pele o sofrimento de terem seu cotidiano atravessado pelo concreto da técnica moderna, que impôs novos territórios e modos de vida. Ao apontarem que são “desacobertados”, revelam que morar na VPR é morar num espaço sem as condições mínimas para o viver e que os impedem de se sentirem pertencentes.

Tensões e conflitos políticos no cotidiano da Vila Produtiva Rural

“Soltaram o povo aqui e pronto...” (CASA MALVA BRANCA).

“[...] soltaram que nem um monte de gado quando você compra um terreno...” (CASA CARNAÚBA)

O diálogo aponta para um abandono, que parece se afinar com a nossa compreensão de que aqueles que vivem na VPR são marginalizados. Esse abandono é marcado pela violação dos direitos básicos fundamentais, como educação, lazer e saúde. Na medida em que iam narrando tal situação, os participantes-colaboradores faziam diversas denúncias:

“Olha, tem uma empresa aí agora, essa empresazinha aí. Veio pra ajudar, e ao mesmo tempo não veio. Tá atrapalhando. Porque passei um bocado de tempo aqui... nós quem foi que fez esse viveiro aí. Aí quando nós terminou de fazer o viveiro, aí disseram: ‘Não!...vai dar emprego pra o pessoal’. Aí passamos um bocado de tempo aqui parado, trouxeram um pessoal de fora pra trabalhar. Se a gente não botasse o pé no buxo aqui os cabra de fora tava trabalhando aí. Aí botemo o pezinho no buxo, aí começaram botar...botar só três daqui, não foi?” (CASA FACHEIRO).

“Foi” (CASA CUMARU).

“Aí a promessa é de pegar mais gente. Já faz 8 meses que pega gente, não pega... A pior coisa é a mentira, porque o certo é chegar aqui e bater logo a real, né? Assim ó: ‘Nós precisa do espaço, pra fazer nosso trabalho’. Que isso é um trabalho da UNIVASF também, né? Faculdade, essas coisa... Mas tem que ajudar, todo mundo tem que se ajudar [...] Não é atrapalhar um ao outro, não é verdade? Não é só dar a oportunidade pra um não. Tem ele aqui parado ó [Casa Jericó], tem um filho dele que também tá parado. Muita gente aqui tá parado aqui dentro. Aí só fica assim:

‘Vai pegar gente, vai pegar gente’. Esse aqui [Casa Cumaru] não gosta desses negócio aí...” (CASA FACHEIRO).

As narrativas relatam sobre a falta de emprego que vivenciam na VPR. Os participantes-colaboradores contam que construíram um viveiro que foi destinado ao cultivo de plantas para arborização dos locais onde passam os canais. Com a chegada de uma empresa, houve a promessa de que seriam empregados para cuidar desse viveiro, no entanto isso aconteceu apenas para alguns. Diante disso, se veem atravessados pelo ócio de se viver sem a oportunidade de ter uma fonte de renda, vivendo sob a promessa ainda não cumprida de serem empregados. Em outro momento, também falam sobre a infraestrutura da VPR:

“Porque na realidade, assim, sabe? É... eu tenho gente que trabalhou aqui nessas casas, aqui. Eu tenho [...] que trabalha na CELPE fez todo o posteação daqui. Ele disse que foi desviado muita verba daqui, e realmente foi desviado muita verba daqui. Porque tem coisa aqui, que nós fez num projeto aqui... Quem desenhou a Vila da gente foi a gente mesmo, não foi Casa Cumaru? Desenhou como era que a gente queria, no mapa tava do jeito que a gente queria. Que eles chegaram aqui: ‘Ó, vocês mesmo vão desenhar a Vila de vocês, e nós vamos fazer’. Desviaram o projeto da gente, lá pra Monteiro, aí esse projeto aqui era pra ser lá, aí desviaram. Eu não tô desmerecendo... [...] O cara chegou dizendo... com a cara de pau, chegou dizendo ‘Rapaz, isso não é coisa de reformar não!’, eu disse ‘É!... tá certo!!... se fosse na sua casa e tivesse uma família sua eu acho que você já tinha ajeitado, né? Cadê o checklist?’, aí e fui e mostrei o checklist a ele” (CASA FACHEIRO).

“Esse checklist são coisas que o ministério vai fazer, é?” (PESQUISADOR).

“O ministério é quem fez as casa aqui, o responsável das casas que era aquela empresa que... pronto!!... até o galpão aqui caiu ó! Disseram que aqui agora era por conta dos moradores, é mentira Casa Xique-Xique?” (CASA FACHEIRO).

“Foi” (CASA CARNAÚBA).

“Foi! Disseram que era por conta dos moradores” (CASA CUMARU)

“Se é uma coisa deles, é por conta da gente?” (CASA FACHEIRO)

“Não, que nós entrou e já tá é com outros problemas” (CASA XIQUE-XIQUE)

“Eles faz as coisa errada e quem paga é os morador é?” (CASA FACHEIRO)

“A pista de caminhada que fizeram aí pra o povo fazer caminhada, fizeram mal feita...aí tava afundando umas praca, aí... veio a própria firma que fez... veio consertar, aí saiu consertando, uma praca outra não, uma praca outra não, pode ir lá olhar que as praca, a maioria das praca tá tudo quebrada, assim afundada” (CASA CUMARU).

Nesses depoimentos, denúncias são manifestadas. Casa Facheiro comunica que, antes da realocação, os moradores foram consultados e convidados a participar do planejamento da VPR. No entanto, através de conversas com uma pessoa, ao ser realocado se deu conta de que o projeto da VPR foi desviado para Monteirovii, bem como revela ter havido também o desvio de verbas. Hoje, moram num lugar estranho, não idealizado por eles. Comunicam ainda que a estrutura das casas, o galpão e a pista de caminhada, localizada na praça, estão deteriorados, mesmo antes de serem realocados para VPR. Diante disso, foi firmado um checklist, em que qualquer defeito percebido na infraestrutura, principalmente das casas, fosse notificado ao MI, que se responsabilizaria pelos reparos, mas o acordo não parece estar sendo respeitado.

No percurso da desapropriação, pessoas tiveram que ser retiradas de suas casas em prol do avançar das obras. Por se tratar de um acontecimento complexo, acordos foram feitos a fim de mediar esse processo e estabelecer uma relação de confiança entre desapropriados e responsáveis pelas obras. Porém, as narrativas revelam que os espaços imaginados pelos moradores lhes foram tomados: “Desviaram o projeto da gente”, e mesmo com promessas não encontram a oportunidade de vivenciar ou participar daquilo que planejaram.

A desapropriação já atravessa a historicidade do povo brasileiro. Nossa colonização tem, em sua raiz, a história de um povo que invadiu nossa terras e impôs mudanças territoriais e nos modos de existir de quem já vivia aqui, o que parece se assemelhar com as narrativas contadas pelos participantes-colaboradores desta pesquisa. O geógrafo Milton Santos (2003, p. 170) dialoga com essa reflexão aqui levantada ao dizer que:

Na medida em que os atores recém-chegados tragam consigo condições para impor perturbações, o acontecer em uma dada fração do território passa a obedecer a uma lógica extra-local, com uma quebra às vezes profunda dos nexos locais. É o caso do que C. de Mattos (1990, p. 224) chama de ‘desterritorialização do capital’ e é, também, o caso da produção local de riscos ambientais, transportados por técnicas movidas por interesses distantes. Poderíamos falar de desterritorialização do desastre ecológico?

O autor nos alerta para esse modo colonizador que adentra os territórios, impondo mudanças que quebram os “nexos-locais”, provocando, assim, uma ruptura com os modos de vida daqueles que são atingidos, que passam a ter o cotidiano atravessado por esse colonizador que ocupa sua terra. Nessa direção, em diferentes momentos da roda de conversação, as relações políticas foram protagonizando as denúncias:

“Tu lembra... tu lembra que veio aqui o [representante do município]? Prometeu a máquina pra vim limpar os mato!!...Tu visse essa máquina limpando mato aí? Tu lembra das mil cova de palma que [o representante do município] prometeu? Só veio mentira. Eu queria que ele viesse prometer alguma coisa pra eu dizer a ele, e eu digo mesmo, eu dizia ‘Deus!!.... tomara que se você tiver prometendo, não seja que nem a máquina e as mil cova de palma que você prometeu e não chegou a cumprir!!’, e eu digo mesmo!!... tô esperando ele vim aqui!” (CASA CUMARU).

“Eu sei que... o ano passado também, até o sindicato prometeu um trator pra arar as terra da gente...” (CASA FACHEIRO).

“Foi!... não veio não!!” (CASA MALVA BRANCA).

“Não!...o sindicato de... Rapaz, eu quase seco a vista de tanto esperar...” (CASA FACHEIRO).

Manifestam-se as tensões que atravessam as relações políticas com o MI, Governo Municipal e até mesmo os Sindicatos. O que vai se revelando é que há uma série de promessas não cumpridas por parte do poder público e do movimento sindical, deixando os participantes- colaboradores na espera, na expectativa, ao mesmo tempo na descrença de que terão alguma ajuda desses órgãos. Vivem num espaço onde o habitar é dificultado, dado que a infraestrutura e os direitos fundamentais são violados. Os relatos a seguir desvelam o modo como essas relações acontecem:

“Todo mundo aceita ameaça, porque todo mundo fica caladinho aqui, quando Forasteiraviii diz assim: ‘alguém tem alguma coisa a falar?’, ninguém diz nada!! Aí quando a mulher sai...aí todo mundo mete o pau. O que eu fico olhando assim, não adianta um só falar!...” (CASA FACHEIRO)

“Parece que tem medo de Forasteira.” (CASA CARNAÚBA).

“Tem que mostrar!! Quando chegar uma reportagem aqui, aí eles ficam... aí é que eles ficam... aí é que eles judeiam, viu?! Chega a reportagem aqui, a primeira coisa que eles faz aqui é atrasar a verbaix...” (CASA FACHEIRO).

“É pra atrasar a verba e essa verba... você viu que nós passemo aqui um sufoco, não foi?” (CASA XIQUE-XIQUE).

“Pronto!!... se eles souber que o pessoal, vocês tá aqui da FIOCRUZ que nem da outra vez que vieram aqui, da FIOCRUZ [inaudível]” (CASA FACHEIRO).

“A última reunião que teve com ela aqui, quem tava aqui se lembra, ela disse: ‘É minha gente, se não tiver satisfeito pode sair que tá assim de gente querendo uma, querendo uma moradia dessa’, foi ou não foi?” (CASA CUMARU).

Nos diálogos acima emergem alguns fenômenos que perpassam as relações políticas na VPR, como o silêncio, o medo, a mentira, as promessas não cumpridas e as ameaças. Essas relações atravessam seu cotidiano, visto que o MI, o Governo Municipal e os Sindicatos aparecem como corresponsáveis na manutenção da VPR. Remetemo-nos ao diário de bordo do pesquisador, buscando contar por outro olhar, as relações políticas na VPR:

“Os participantes ainda narram que vivem num lugar não esperado. Apesar de terem sido consultados e de terem construído um projeto de como queriam que a Vila fosse, quando realocados se deram conta que não estavam no lugar planejado em coletivo, mesmo assim, tiveram que morar tal lugar. Nesse momento, compreendo que aqueles moradores foram ali lançados, no sentido mais radical da palavra. A primeira ação coletiva, de planejar o próprio espaço, lhes foi impedida [...] Falam também do Ministério que quando tomam conhecimento de alguma ação de alguma instituição ou organização na Vila, atrasam um dinheiro que recebem por mês como forma de puni-los.” (AUTOR 1).

Acompanhamos nas narrativas que uma relação hierárquica se engendra, e os moradores ocupam o lugar de subalternos:

[...] o termo ‘subalterno’, não apenas como uma palavra clássica para o oprimido, mas como representação aos que não conseguem lugar em um contexto globalizante, capitalista, totalitário e excludente, no qual o ‘subalterno é sempre aquele que não pode falar, pois, se o fizer, já não o é’. (FIGUEIREDO, 2010, p. 85, grifos do autor)

A compreensão de subalternidade atravessa as dimensões de lugar e fala, pois aquele que é subalterno está localizado num lugar de inclusão precária, instável e marginal (MARTINS, 1997), onde o silêncio se impõe. Entendemos que quem mora na VPR vive a subalternidade, uma vez que se veem às margens de seus direitos e através das tensões políticas que vivem são silenciados, seja por medo ou ameaça. O que nos preocupa é a condição de silenciadas a qual essas pessoas são subjugadas, pois acreditamos que “é através da narrativa que se torna possível questionar-se sobre o fazer técnico por trás das injustiças vividas e descobrir o que podemos reivindicar enquanto condição própria de nossa existência” (HERÁCLIO, 2018, p. 107). Nessa direção, Critelli (2012) também ressalta a importância da narrativa ao considerar que, através do narrar, surge a possibilidade da elaboração das experiências vividas, emergindo o sentido da vida.

Ao viver como subalterno, sendo silenciado e tendo seus direitos violados, aquele que mora na VPR tem em jogo a possibilidade de se situar no mundo, apropriando-se das suas possibilidades de ser-no-mundo-com-outros. Assim, a desapropriação vai se revelando como um fenômeno que desaloja não só as pessoas de suas casas, de seus terrenos/territórios, mas também dos modos de viver, provocando uma ruptura nas teias de sentido construídas e no modo de habitar no mundo, que passa a ser transformado pelo novo contexto onde irá morar.

Quando marcado pelas tensões nas relações políticas, o habitar é dificultado, uma vez que o pensamento colonizador presente nessas relações impede que os moradores possam se reconhecer no espaço em que vivem, abrindo a possibilidade para o conhecer a si mesmo no espaço cotidiano que ocupa, tornando-se protagonista do próprio existir.

Porta aberta... uma polis pra se combinar

“[...] Nestas casas, começo a me atentar para o modo como as pessoas recebem o convite. Em uma das casas o convite é aceito, não com muito entusiasmo ou interesse, mas mesmo assim aceito. Em outra casa diálogo sobre a proposta da minha pesquisa com uma mulher. Nesta conversa ela me fala também sobre o possível desafio que terei de reunir pessoas na vila, pois esta já é uma dificuldade daquele local. Chego a ser orientado de que uma entrevista individual com as pessoas em suas casas seria melhor que o método de roda de conversação, pois as pessoas poderiam não aparecer [...] Chegado o dia previsto para a coleta, nos deslocamos para a Vila por volta das 08h30min. Me dirigi ao galpão da comunidade, local escolhido para realizar a roda de conversação e que fica no centro da Vila. Organizei os materiais, computador, gravador e recursos expressivos, para aguardar as pessoas. Quando marcava às 09 horas, apenas uma pessoa havia comparecido. Comecei a ficar inquieto e recordar da mulher que no dia anterior falava de como seria difícil, ou que até mesmo não daria certo uma atividade que propusesse algo coletivo. Diante desse atraso, fui percebendo na pele a imobilização apontada por alguns moradores, e nesse movimento fui me imobilizando. Me vi inseguro diante da incerteza se a roda de conversação aconteceria. Fiquei assim por uns 10 minutos [...] Não consegui pensar ou agir em alguma ‘solução’ de forma rápida. Vivia ali a imobilização que aquela comunidade vivencia em seu cotidiano.” (AUTOR 1).

Essa narrativa revela um fenômeno presente no cotidiano da VPR: a imobilização coletiva. Atravessado por alguns depoimentos no momento de convidar os participantes- colaboradores para a pesquisa, o pesquisador foi posto em questão sobre a roda de conversação, pois é um método que propõe o encontro entre pessoas, e isto seria um desafio:

“E outra coisa, você vê daqui... olhe!! A reunião não era pra o povo? Cadê que vem!? Você tira como o povo não vem. Uns vem... e outros não!” (CASA XIQUE- XIQUE).

“O povo não tão vindo não... esse povo não tem jeito pra combinar-se.” (CASA CARNAÚBA).

“Então isso já é uma realidade de vocês, de não se reunirem?” (PESQUISADOR). “É a realidade da comunidade, que... e o povo que não junta!! Se tem uma coisa pra participarem, não vem. Vem poucos... ou não vem!” (CASA XIQUE-XIQUE).

A dificuldade de uma ação coletiva se mostrou não apenas no dia da colheita desta pesquisa, mas se faz presente no cotidiano da VPR. Os participantes-colaboradores seguem narrando como se dá o cotidiano diante da imobilização dos moradores:

“Tem muitas coisa aqui que a gente perdeu... teve muitas coisas que a gente perdeu, por falta de Associação!” (CASA FACHEIRO).

“Um bocado de gente aí que não tem grupo. Ontem eu disse à moça que veio, que tava mais eu lá em casa, eu disse ontem... tem vez que tem alguma coisa aqui no galpão, a gente só vê a porta aberta, mas... ‘oxente!!... fulano não vai não pra o galpão!?’, ‘é o que? Tem o que lá?’, ‘tem isso e isso!...’, ah, mas a gente não sabe, a gente não tem internet, a gente não tem essas coisa, então o certo é avisar de casa em casa, pelo menos pra quem não tem, né?” (CASA CUMARU).

“Deixar morrer não!!!... não tem que deixar morrer não!!! Porque a Associação, ela que tem que lutar!!!” (CASA FACHEIRO).

“Se deixar...” (CASA XIQUE-XIQUE) “Fica pior!” (CASA MALVA BRANCA).

“Ela e a gente tem que lutar pelos direitos da gente!” (CASA FACHEIRO).

Nesses diálogos, acompanhamos o modo como os moradores se organizam coletiva- mente. Na conversa, relatam sobre as coisas que já perderam por falta de uma Associação Comunitária e sobre a comunicação entre os moradores. Destacam que, muitas vezes, não participam das reuniões por conta de as informações serem transmitidas por um grupo de WhatsApp, ao qual não têm acesso por falta de internet. A porta aberta do galpão, localizado no centro da VPR, é o que geralmente anuncia o acontecimento de alguma reunião. Diante das dificuldades encontradas, acreditam que a Associação é de total importância e que, apesar de não agir de modo satisfatório para todos, caso deixasse de existir, a situação deles “Fica pior!”. Nessa direção, reconhecem que eles e a Associação precisam lutar pelos seus direitos.

Caminhando pelas narrativas, acreditamos que essa realidade apontada revela aspectos que nos ajudam a tecer uma reflexão sobre a ação política, presente nas relações entre os que moram na VPR. Para isso, recorremos ao sentido de ação política:

[...] se mostra como parte da vida. Assim, a política não é usada como instrumento para alcançar fins alheios a ela mesma ou a alguns objetivos. Tomando o pensamento de Arendt como inspiração, posso olhar o sentido da política a partir de sua condição de possibilitar que no ‘estar entre homens’ a pluralidade seja evidenciada e a inauguração de algo novo aconteça. (SANTOS, 2016, p. 146, grifos da autora).

Compreendemos que a ação política surge na relação entre homens, em que a política se mostra como a base dos acordos feitos (MELO, 2019). Presente na nossa existência, a ação política possibilita que o homem se autentique na pluralidade, na comunidade:

“Aqui quem manda é a comunidade, o viveiro ali quem manda é a comunidade, quem abriu espaço pra eles aí foi a comunidade, não foi Severinox, não foi? Aqui foi tudo... o pessoal aqui que veio, e todo mundo concordou. Abriu espaço pra eles, e nós tem que abrir espaço pras escola, pras faculdade, que já fica visada a Vila!!

[...] No meu ponto de ver somos nós todos. Não é só chegar e dizer assim: ‘Vai jogar pra Severino, que ele é representante da associação, não!’, era pra fazer o que?

‘Não! Aí vocês têm que combinar com o pessoal, com a populaçãozinha que mora lá...’.” (CASA FACHEIRO).

“Fazer uma reunião!!” (CASA CUMARU).

Esses depoimentos revelam que política não diz respeito necessariamente às relações que mantém com o MI, o Governo Municipal, os Sindicatos ou até mesmo a Associação Comunitária, mas está na possibilidade do acontecer de uma ação conjunta onde possam, em comum acordo, decidirem sobre o espaço que moram. Nos depoimentos: “Aqui quem manda é a comunidade”, e “Fazer uma reunião!!”, os participantes-colaboradores caminham em busca da criação de um espaço onde, na pluralidade, rompem com a relação de sujeição que vivem na VPR, atravessado pelas ameaças, promessas e violação de direitos presentes em seu cotidiano, reconhecendo que é no conviver e na ação em comum acordo que podem inaugurar algo novo. Nesse movimento, refletimos sobre a roda de conversação, conforme trecho do diário de bordo:

“[...] percebo que aquele momento quebrava com o que antes foi denunciado sobre a falta de mobilização coletiva naquela comunidade. Por mais que quem estivesse ali se queixasse de que muitas coisas na Vila poderiam ser diferentes se houvesse uma união, e que naquela roda poderia ter mais pessoas, me dou conta que ali eles rompiam com o movimento de desmobilização. Era ali, reunidos, que eles narravam a experiência de viver num lugar com condições impostas. E num tom de denúncia, falavam de suas casas, da comunidade e do modo como se relacionam na Vila.” (AUTOR 1).

Não obstante as dificuldades presentes e anunciadas na divulgação da pesquisa e no acontecer da colheita, a roda de conversação aconteceu. Enveredamos pelo cotidiano e os modos de vida daqueles que foram desapropriados, perpassamos narrativas que revelam as tensões políticas existentes entre moradores e instituições que desvelam uma situação de subalternidade daqueles que moram na VPR. No entanto, compreendemos que a roda de conversação se mostra — ela mesma — como uma ação política, uma vez que, juntos, se reconhecem e visualizam a possibilidade de ações coletivas dirigidas ao viver na VPR e a necessidade de lutar pelos próprios direitos. Nesse contexto, “resistir as amarras, excludentes, massificadoras, e conservadoras denotam uma possibilidade de ação política” (MELO, 2019, p. 124).

Cria-se uma ruptura com a subalternidade que vivem e denunciam as injustiças vividas diariamente. Na porta aberta do galpão, como anuncia Casa Cumaru, uma polis pode emergir, para que eles possam “combinar-se”, como diz Casa Carnaúba. Nessa polis, nasce a possibilidade de se autenticarem como ser-no-mundo, que se constitui na pluralidade, por mais que exista uma infraestrutura com casas iguais e a ameaça de direitos que busque sujeitá- los, massificando-os. Esse caminho não se dá sem o compartilhar e acompanhar de outros. Por isso, Casa Facheiro diz: “e nós tem que abrir espaço pras escola, pras faculdade, que já fica visada a Vila”, e “ela e a gente tem que lutar pelos direitos da gente”.

Considerações Finais

Por se tratar de um megaprojeto que tinha como promessa amenizar os agravos da seca e provocar o desenvolvimento do Sertão nordestino, a transposição do rio São Francisco foi aguardada com muita expectativa e esperança; no entanto, o caminho até aqui percorrido nesta pesquisa nos revelou um contexto pouco noticiado da transposição.

A desapropriação aparece como um fenômeno que, além das transformações ambientais, provoca ressonâncias nos modos de vida de quem é afetado. Junto a isso, os moradores passam por tensões políticas com o MI, o Governo Municipal, a Associação Comunitária e os Sindicatos, em cujas relações vivem sob promessas e ameaças, o que os coloca numa relação de sujeição. Em tom de denúncia, mostram o desalojamento como “desacobertado”, marcado pela violação de direitos fundamentais básicos, como o acesso à água, serviços de saúde, educação e lazer. Fica estampado o desamparo provocado pela obra da transposição do rio São Francisco, em especial pela desapropriação, que invadiu o cotidiano dos afetados, impondo novos modos de vida.

Diante desse contexto, ficamos atentos também a outros megaprojetos, sobretudo no Nordeste, que vêm sendo foco de discussão, como, a exemplo da usina nuclear de Itacuruba/PE. É sabido dos impactos ambientais e sociais advindos dessa obra e a violação à constituição estadual de Pernambuco, segundo a qual é vedada a instalação de usinas nucleares. Mas a discussão sobre a instalação da usina, orçada até então no valor de 30 bilhões de dólares, avança tendo como justificativa o desenvolvimento econômico (COSTA, 2019).

O que acompanhamos é o acontecer de grandes obras que deixam de lado os aspectos socioambientais, em que não há preocupação com as dimensões sociais/existenciais que as permeiam; o pensamento colonizador se faz presente, impondo mudanças e as condições em que se dará o viver daqueles que se veem afetados pela presença das obras no seu cotidiano. Esse contexto nos leva a escutar as narrativas dos participantes-colaboradores como um apelo de quem vive o sofrimento de se encontrar constantemente num desamparo, numa desapropriação, que não finda mesmo realocados na VPR. Esse sofrimento nos parece ser expresso na canção de Zé Ramalho (1979): “Vocês que fazem parte dessa massa, que passa nos projetos do futuro, é duro tanto ter que caminhar, e dar muito mais do que receber”. Os participantes comunicam:

“[...] Aqui, não é público não, mas é pra todo mundo...”. (CASA FACHEIRO). “Quem quiser ajudar nós, tá bem-vindo, né?” (CASA XIQUE-XIQUE)

Assim, somos convidados e provocados a pensar numa ação clínica que acompanhe cenários semelhantes ao revelado nesta pesquisa, o que não parece ser tarefa fácil:

A experiência de aprender a ouvir as vozes dos que estão posicionados nas fronteiras da exclusão, articuladas com as fronteiras étnico-culturais, é uma experiência agonística. Como filhos da modernidade homogeneizante, alicerçada numa epistemologia que arrogantemente se colocou como capaz de falar quem é o outro, sem se colocar numa atitude de escuta – pelo contrário, silenciando o outro –, desalojar o colonizador do nosso corpo, ambivalentemente também colonizado, tem sido um desafio cotidiano, às vezes mais ou menos bem-sucedido, mas outras vezes fadado ao fracasso. (BACKES; NASCIMENTO, 2011, p. 25).

Acreditamos que esta pesquisa aponta um lúmen para tal questão. Pelas narrativas dos participantes-colaboradores, a ação coletiva emerge como possibilidade de resistir às dificuldades vivenciadas diariamente. Somos levados a compreender que a ação política se faz necessária ao se pensar numa práxis psicológica que escute os apelos de quem vive uma vida atravessada pela violação de direitos e a relação de sujeição. Melo (2019, p. 202), ao apontar que “a psicologia, enquanto ciência e profissão, testemunha lugares-limites no enfrentamento de circunstâncias do sofrimento humano”, nos ajuda a refletir que a Psicologia pode se fazer presente no cotidiano, testemunhando o viver entre homens e se fazendo como co-participativa ao acompanhar o humano na tarefa de existir e se apropriar dos próprios modos de cuidado.

Pensamos que a ação clínica no viver cotidiano se mostra como possibilidade, uma vez que se dá como “um modo de intervir que se volta para o poder-ser com outros nas acontecências presentes no viver cotidiano” (SANTOS,2016, p. 134). Assim, a ação clínica no viver cotidiano acontece pelo compartilhar de histórias a partir da participação coletiva, onde o psicólogo se dispõe pela “atitude de ‘estar-com para-outros’, no sentido de estar à disposição para se pôr em andança com-o-outro no cuidado de si, do outro e do mundo que habita; é um acompanhar acompanhado do outro” (SANTOS,2018, p. 87, grifo da autora). A ação política se realça na atitude em se dispor a acompanhar o conviver entre humanos, reconhecendo a multiplicidade de modos de ser e viver, de tempos/espaços plurais que compõem a vida humana.

Reconhecemos que a experiência no TransVERgente foi fundamental para nos atentarmos às demandas desses contextos sociais e que nos convocam a pensar numa ação clínica contextualizada para esses cenários. Diante disso, apontamos a necessidade de uma formação acadêmica e profissional do psicólogo que se insira cotidianamente nos espaços coletivamente habitados, lançando um olhar crítico sobre a prática psicológica.

Afetados pelas narrativas dos participantes-colaboradores desta pesquisa, compreendemos que esse trabalho acompanhou os depoimentos de quem vive diariamente a luta por um viver digno, com direitos fundamentais básicos e um espaço para habitar. Apesar das dificuldades vivenciadas e anunciadas no estudo, os moradores narraram sobre a experiência de ser desapropriado. Os depoimentos urgem como um grito, reivindicando o direito de habitarem a terra, autenticando-se como ser-no-mundo-com-outros.

Material suplementar
Referências
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Notas
Notas
i Abrigada no Projeto Guarda-Chuva intitulado “Um estudo hermenêutico sobre Ação Clínica coexistindo com a Ação Política em distintos contextos e situações sociais”, aprovada pelo comitê de ética com o CAAE: 18696119.6.0000.5207.
ii Programa de extensão aprovado pelo Edital de PFA EXTENSÃO – 01/2019, composto por docentes/pesquisadores da UPE e da FIOCRUZ/PE, discentes do curso de Psicologia, Medicina e Direito, residentes das Residências Multiprofissionais em Saúde Mental e Coletiva.
iii O fato de as apresentarmos separadamente se dá por uma questão didática, assim, esses movimentos não seguem uma ordem, mas emergem como possibilidades.
iv “Não têm a propriedade da terra, residem e/ou produzem na propriedade de terceiros. Incluem-se entre os não proprietários de terras os que apenas possuem benfeitorias nas áreas a serem desapropriadas.” (BRASIL, 2005, p. 3).
v “[...] no sentido de um contexto no qual os habitantes/clientes vivem e convivem cotidianamente, sendo corresponsáveis pelo espaço que habita com-outros – um espaço marcado por um pertencer coletivo, no qual se compartilha a experiência de pertencimento.” (SANTOS, 2016, p. 20).
vi No acontecer da roda de conversação, os moradores apontaram que, na VPR, foram construídos escola, praça e posto de saúde que nunca foram equipados ou cuidados. As estruturas desses serviços encontram-se atualmente abandonadas e vazias.
vii Monteiro é um município da Paraíba, localizado na fronteira entre os estados da Paraíba e Pernambuco, situado no eixo leste das obras. Em Monteiro também há uma VPR.
viii Nome fictício adotado para o representante do MI.
ix Segundo Sousa et al. (2018, s/p), “a transição ocorrida entre a saída das terras de origem, a moradia provisória e a chegada definitiva às VPRs inviabilizou completamente a produção agrícola”, com a interrupção da produção muitos ficaram sem uma renda, e a solução foi a Verba de Manutenção Temporária (VMT), que concede um valor mensal para cada família.
x Nome fictício adotado para o representante da Associação de moradores da VPR.
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