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KALUNGA: EDUCAÇÃO POPULAR QUE SE FAZ KALUNGUEANDO

Waldinéia Antunes de Alcântara Ferreira
Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), Brasil
Lisanil da Conceição Patrocínio Pereira
Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), Brasil
Lori Hack de Jesus
Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), Brasil
Valdeson Paula Portela
Secretaria de Educação de Mato Grosso, Brasil

KALUNGA: EDUCAÇÃO POPULAR QUE SE FAZ KALUNGUEANDO

Revista Conexão UEPG, vol. 16, núm. 1, pp. 01-15, 2020

Universidade Estadual de Ponta Grossa

Recepção: 23 Julho 2020

Aprovação: 29 Outubro 2020

Resumo: O presente artigo foi construído a partir de experiências vivenciadas na roda do movimento negro (Instituto Ilê Axé) de Juara e Grupo Centro Cultural Aruandê Capoeira. Foram esses dois grupos que criaram o evento denominado de Kalunga, no noroeste do Estado de Mato Grosso, mais precisamente, no Município de Juara. Este evento é coordenado pelo Instituto Ilê Axé/Movimento Negro de Juara e pelo grupo de pesquisa LEAL/CNPq (Laboratório de Estudos e Pesquisas da Diversidade da Amazônia Legal), e participam da atividade integrantes do grupo de pesquisa e comunidade em geral. Tem como fundamento a visibilidade da cultura afro-brasileira e a história e cultura dos demais povos ameríndios, sua corporeidade, religiosidade e cultura. Tem se constituído como um espaço de aprendizagem na formação de estudantes, educadores e comunidade em geral. A aprendizagem e a expressão afro-brasileira evidenciam o jongo, o batizado na Umbanda e a apresentação dos orixás cultuados pelo Instituto Aruandê Casa de Umbanda.

Palavras-chave: Educação popular, Relações raciais, Educação indígena, Kalunga.

Abstract: This paper was built up through the experiences lived in the circle of the black movement (Instituto Ilê Axé – Ilê Axé Institute) from Juara and the Grupo Centro Cultural Aruandê Capoeira (Aruandê Capoeira Cultural Center). These two groups created the event called Kalunga, in the northwest of the state of Mato Grosso, more precisely, in the municipality of Juara. The event is coordinated by the Ilê Axé/Black Movement of Juara and the research group LEAL/CNPq (Laboratory of Studies and Research on the Diversity of the Legal Amazon), and members of the research group as well as the community in general take part in the activity. The event cornerstone is the visibility of the Afro-Brazilian culture and the history and culture of other Amerindian peoples, their corporeality and religiosity and culture. It has become a space of learning in the education of students, educators and the community as a whole. The learning and the Afro-Brazilian expression highlight the jongo, the Umbanda baptism and the introduction of the orixas worshiped by the Aruandê Institute House of Umbanda.

Keywords: Popular education, Racial relations, Indigenous education, Kalunga.

Início da Roda

Trata se de um movimento da educação popular consubstanciado na filosofia freireana, como uma pedagogia da indignação nos processos de marcha e no reconhecimento do “Outro/Outra” (DUSSEL, 1993). Faz parte, portanto de uma pedagogia decolonial (WALSH, 2009). Fizeram parte também apresentações dos trabalhos sobre as relações raciais, as Leis 10.639/03 e 11.645/08 e discussões acerca da diversidade e da interculturalidade desenvolvidas pelas escolas públicas. O ponto forte do evento é a interculturalidade e a visibilidade da cultura afro-brasileira e indígena, pois vivem no Vale do Arinos vários povos indígenas, entre eles os Apiaká, Munduruku e Kayabi/Kawaiwete. Encontros de Outros, encontros entre nós. O grupo Centro Cultural Aruandê Capoeira participa como um dos organizadores do evento/movimento na expressividade e na manifestação de resistência e de resiliência, ressignificando nos cantos, nas memórias e no jogo do corpo, a história dos ancestrais.

O Movimento Negro em Juara foi criado com a contribuição de trabalhos de formação continuada e pesquisas advindas da linha de pesquisa Educação e Diversidade da UNEMAT (Universidade do Estado de Mato Grosso) Campus de Juara, localizado no Noroeste do Estado de Mato Grosso, que oferece, no ano de 2020, os cursos de Bacharelado em Administração e Agronomia e Licenciatura em Pedagogia. As ações de extensões que aqui relatamos estão vinculadas ao curso de Licenciatura em Pedagogia, principalmente, com o apoio dos projetos de extensão e pesquisa sobre relações raciais e educação. Salienta-se, também, que foram os encontros constantes do projeto que movimentaram o grupo para a construção de eventos e vivências, os quais, hoje, vão muito além do projeto em suas iniciativas de ação e interação.

O instituto Ilê Axé foi criado em 2010 e tem como finalidade promover a cultura de matriz africana e afro-brasileira; defender os direitos e interesses dos membros do instituto, enfrentando o preconceito racial. Desta forma, está ancorado nos princípios dos direitos humanos, da resistência e da afirmação da identidade negra.

Dentre as várias atividades desenvolvidas pelo instituto, se encontra o KALUNGA, evento em comemoração à consciência negra, sendo este um ponto de encontro e de visibilidade muito significativo para a sociedade, de enfoque à cultura afro-brasileira. O nome “Kalunga” precede as intenções do Movimento Negro, sendo seguido da frase “Brasilidade: Resistência e Identidades ao ritmo do tambor”. O tema do evento é o mesmo desde que foi criado, em 2012, porque diz do povo negro brasileiro pelos processos ancestrais de resistência, pela identidade que se traduz no corpo, na ginga e pelo ritmo que é a batucada do tambor.

O Grupo Centro Cultural Aruandê Capoeira faz parte e atua dentro do Movimento Negro, trazendo fortemente a expressividade cultural, com cantos e processos de corporeidade que mitificam os encontros do mesmo.

Figura 1 – Participação do Grupo Centro Cultural Aruandê Capoeira no VI KALUNGA
Figura 1 – Participação do Grupo Centro Cultural Aruandê Capoeira no VI KALUNGA
Fonte: KALUNGA (2017).

Atualmente, além do Grupo Centro Cultural Aruandê Capoeira, o Kalunga conta com o apoio do Instituto Aruandê Casa de Umbanda, e, ainda, com o apoio de instituições educativas como a UNEMAT, CEFAPRO (Centro de Formação e Atualização dos Profissionais da Educação Básica), Assessoria Pedagógica de Juara (espaço de formação de professores vinculados à Educação Básica do Estado de Mato Grosso no Vale do Arinos), Secretarias Municipais de Educação dos municípios de Juara, Novo Horizonte do Norte e Porto dos Gaúchos, escolas públicas, FAINDI (Faculdade Indígena Intercultural/UNEMAT - Campus Barra do Bugres) e COEDUC (Grupo de Pesquisa Corpo e Educação)/UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso).

Ressalta-se que a participação das instituições governamentais dentro do evento Kalunga é assumido por profissionais que estão inseridos no Movimento Negro, na Faculdade Indígena ou pessoas que participaram/participam do projeto “Novos Talentos em Educação, Meio Ambiente e Diversidade no Vale do Arinos-MT”, o qual teve financiamento da CAPES, teve início em 2013 e terminou em 2016. Também o PIBID (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência), que foi aprovado a primeira vez em 2012 e está em andamento até hoje no Campus de Juara, onde atuam pessoas que desenvolvem estudos com a referida temática, e, principalmente, tudo isso aqui marcado faz parte do Programa “Cultura, Arte e Educação na Unemat de Juara: cantando, dançando, pintando, gingando e transformando realidades, da Universidade do Estado de Mato Grosso/Campus de Juara”, financiado pelo PROEXT/MEC (Programa de Extensão do Ministério da Educação).

Assim, este artigo busca dialogar com o ‘evento/eventos’, na perspectiva da observação participante de pessoas que estão dentro, mas que olham e sentem também o que o Outro sente, porque fazemos parte desse “Outro/Outra” (DUSSEL, 1993), partindo do princípio de que conhecendo-se o outro é possível conhecer-se a si mesmo.

KALUNGA: Brasilidade, Resistência e Identidades ao ritmo do tambor

O Kalunga (evento) teve início em Juara – Noroeste do Estado de Mato Grosso, no ano de 2012, sendo coordenado pelo Instituto Ilê Axé, e também se expandiu para o Município de Porto dos Gaúchos - MT. Tem como fundamento a visibilidade da cultura afro-brasileira, sua corporeidade, religiosidade e cultura. Trata-se um espaço de aprendizagem na formação de estudantes, educadores e comunidade em geral.

Figura 2 – Abertura do VI KALUNGA – Representação das parcerias estabelecidas: Movimento Negro, UNEMAT, Capoeira e Casa de Umbanda
Figura 2 – Abertura do VI KALUNGA – Representação das parcerias estabelecidas: Movimento Negro, UNEMAT, Capoeira e Casa de Umbanda
Fonte: KALUNGA (2017).

A ousadia de fazer e de lutar é uma característica marcante dos seus integrantes (ou usar partícipes) e, junto com o “Outro/Outra”, reconhecendo o “Outro/Outra” como produtor de cultura, autônomo, nasce o Kalunga, um jeito de atuar para transformar a realidade, conhecendo, dialogando e convivendo com o Outro. Isso contribui à reflexão sobre as necessárias práticas da interculturalidade a partir do olhar do “Outro/Outra” (DUSSEL, 1993).

Kalunga faz parte da luta por uma educação popular ensinada por Paulo Freire em suas várias pedagogias, sobretudo da Esperança (1992), da Autonomia (1996), da Indignação (2000) e do Oprimido (2007). Oprimido, porque não só o grupo, o “Outro/Outra” (DUSSEL, 1993), mas um conjunto societário de oprimidos, que perpassa os espaços de vivências dos setores populares e alcança integrantes da própria academia, por uma sociedade e por uma universidade burocrática, centralizada, que mede forças pelo poder, onde tudo o que é material é negado.

Entretanto, ao mesmo tempo, há um coletivo junto a “Outros/Outras”, procurando se organizar, embasados nos ensinamentos da ‘Autonomia’ e nas ações/práticas Kalungas, na rua coberta, centro da cidade, aos olhos da sociedade, ensinamentos de uma indignação que ousa resistir e transgredir, na interação necessária entre o ‘nós’ e os ‘Outros’, na busca da esperança que mantém a vida.

Para o Movimento Negro, o evento tem como objetivo construir um espaço de discussão e de apresentações culturais que evidenciem diferentes manifestações de origem africana. Os termos brasilidade e resistência englobam em si dois aspectos: o primeiro, um Brasil diverso de culturas; e o segundo, a resistência de dois povos historicamente massacrados e invisibilizados, o povo negro e os povos indígenas, porque o Kalunga de Juara reúne povos indígenas e o povo negro. Assim, o Kalunga é o lugar da vivência e das manifestações culturais de identidades étnicas e raciais.

Neste sentido, a intervenção junto com o movimento negro traz discussões que não apenas se adaptam, mas que buscam compreender a realidade local, dando visibilidade aos povos que precisam ser vistos, a partir de uma compreensão crítica da presença no mundo. O sonho de um mundo melhor requer nossa capacidade de buscar maneiras de “fazer com” e não “fazer para” (FREIRE, 2000).

Assim, ao ritmo do tambor... Necessariamente, não diz respeito apenas ao instrumento “tambor”, mas à cadência, ao movimento do ritmo que ecoa em cada povo. No batuque, no congo, na capoeira, nos pés dos indígenas que batem sobre o solo, nos rostos presentes, nas danças aos orixás, no kalunguear que se inscreve no ritmo da vida, que rememora a ancestralidade no movimento do corpo que transcende o corpo físico.

Conforme Silva (2015), membro do movimento negro unificado, Kalunga está ligado às crenças religiosas, mundo dos ancestrais, culto aos antepassados, pois é dos ancestrais que a força emanada é também uma força mental, cultural, física e societária.

No Brasil, este termo tem sido utilizado, principalmente, como sinônimo de negros refugiados de quilombos. O uso do termo neste evento tem se ampliado para uma reconfiguração dentro de uma perspectiva de resistência e afirmação da identidade, constituído pela força negra, mas também em parceria com a força indígena, diz Cervan Gomes Ferreira, que é negra e também professora formadora e coordenadora do CEFAPRO de Juara.

Assim, o Kalunga se configura numa rememoração de novos quilombos, símbolo de resistência e luta dos povos negros, indígenas e outros povos na busca de direitos humanos, valorização, respeito e reconhecimento do Outro.

A aprendizagem e a expressão afro-brasileira são evidenciadas em cada samba de raiz, a exemplo de 2015, com o grupo, “Meninos do Cavaquinho” – formado por professores, técnicos da universidade e integrantes da sociedade Juarense. Em marcha, foram ocupados todos os espaços. Com os acordes da “Banda Universitária: Vozes que cantam e encantam” foi iniciada a festa de rememoração do povo negro. O tambor não parou desde 2012 e, com o corpo em movimento, os kalungueiros dos diferentes anos de rememoração dançaram samba, gafieira, funk e o jongo.

Desde o início, o Instituto Aruandê Casa de Umbanda Mãe Maria trouxe Axé, energia e conhecimento. Com muita emoção, é feito o batizado da Umbanda, a vinda dos orixás, manifestações de religiosidade no espaço público em interculturalidade com todos os Outros.

Figura 3 – Participação do Instituto Aruandê Casa de Umbanda Mãe Maria
Figura 3 – Participação do Instituto Aruandê Casa de Umbanda Mãe Maria
Fonte: KALUNGA (2017).

Através do Projeto, aprenderam-se muitas coisas através da interculturalidade e em processos de sincretismo, entre elas que o jongo, manifestação africana, é dançada em roda, geralmente, com os pés descalços. Um casal por vez se dirige ao centro, girando no sentido anti-horário e, às vezes, ensaiando uma umbigada. Quem explica sobre isso são Luiz Herculano de Sousa Guilherme e Alissan Maria da Silva, jongueiros do Rio de Janeiroi. Com eles, crianças, jovens e adultos dançaram, “a umbigada é de longe e no jongo da serrinha (RJ), o pé direito bate com força no chão”. Cantamos: “Mamãe foi pro jongo/papai ficou na ladeira... papai tinha que pagar promessa a São José... Mas tava garoando...” e arrastando os pés, dançamos o jongo, que demonstra no ponto cantado o sincretismo afro-brasileiro, europeu e indígena.

No batuque do som, ouvimos o Caxambu, tambor cerimonial do jongo, no Santo do Cristianismo Católico, na dança de roda que “temos” presentes em diferentes povos indígenas.

Durante esse caminho, foi necessária a construção de pontes para que o diálogo intercultural se realize com base no respeito e, principalmente, no interesse pelas diferenças como elemento enriquecedor da experiência humana.

E para ensinar como se bate o pé no chão, Alissan movimentou seu corpo em um ritmo de batuque, em que os pés eram arrastados para trás, um de cada vez, e, em seguida, conforme o que dizia o ponto, corporizava com imensa alegria. Continuou ensinando: “[...] no jongo, a umbigada é de longe”, e assim, todos/as arrastavam os pés para trás e com as mãos, ou na cintura ou para cima, em movimento ágil e rodopiando, ao chegar em frente ao companheiro/a, empinava o umbigo, fazendo a umbigada de longe. O jongo estava feito, a roda aumentou, principalmente de crianças, que com alegria e energia rodopiavam, jongavam e kalungueavam.

Em roda, e ainda sobre o som dos tambores e das vozes irmanadas, o Instituto Aruandê – Casa de Umbanda Mãe Maria – apresenta, em diferentes elementos culturais, os movimentos e a beleza da Umbanda, percebendo-se que seus integrantes denotam sentimentos de amor por Olodum e a devoção por todos os Orixás.

A interculturalidade presente, não em teoria apenas, mas, na vivência, no respeito, na troca de saberes, aproxima de todos que participam do “evento/eventos” o batismo da Umbanda. Em roda, cantando com as vestes brancas, testemunhou-se o banho de ervas da amaci, onde a cabeça das pessoas é coberta com pano de proteção. O chão é forrado com folhas de eucalipto, que exalam o bom cheiro e trazem boas energias. Os participantes receberam, então, os Orixás, como foi com Iansã, a encarnação das tempestades, raios e ventos. De imediato, ouviu-se o canto para ela: “Ô si awanjú (...) awanjuê!” - que diz da pele negra brilhante da guerreira que desperta; do fogo que clareia; da espada que liberta!

O sincretismo da linguagem também se evidencia nos pontos cantados da Umbanda, eles são preces aos orixás. São cenas descritas neste texto e vivenciadas na realidade. Compartilhar as cenas não é fácil porque trata-se de um texto, não comum, porque também a prática desta interculturalidade não é comum na sociedade em que vivemos.

Em tal contexto [da interculturalidade], entre tantas, destacou-se uma voz, a de Neuza da Rochaii, conhecida como ‘Neguinha do Forró’. Neguinha kalungueou com o coração e relatou já ter vivenciado muitas situações de preconceito racial. Disse que sempre fez parcerias com outros artistas locais, porém, sem ter sua banda e por situações de discriminação, alguns músicos se negaram a tocar para ela, por ser negra. Mesmo em solo, a voz que canta, reúne sentimentos e situações do povo afro-brasileiro. Afirmou a artista negra que estar kalungueando é a inauguração de uma nova mulher. Mulher negra, consciente das dificuldades e dos jogos da vida, consciente dos processos de opressão e de discriminação. No Kalunga, a experimentação de cantar, não apenas como nos salões de bailes da cidade e das aldeias, transmite a sensação do que é ser mulher negra, como processo ainda existente de descolonização, de conquistas de liberdades, enfatizando-se, assim, a mulher como integrante da afirmação da cultura Kalunga:

A descolonização jamais passa despercebida porque atinge o ser, modifica fundamentalmente o ser, transforma espectadores sobrecarregados de inessencialidade em atores privilegiados, colhidos de modo quase grandioso pela roda-viva da história. Introduz no ser um ritmo próprio, transmitido por homens novos, uma nova linguagem, uma nova humanidade (FANON, 1968, p. 26).

Os teclados anunciaram, na voz de Neguinha do Forró, o Axéiii da negritude. E em roda nos acordes da bateria de capoeira. O berimbau Gungaiv determina o toque a ser seguido, o berimbau médio e a viola o seguem. Na sequência, o pandeiro, o atabaque e o agogô. Depois, as palmas, que em cadência e no ritmo das cantigas mexem com o corpo dos/as capoeiras, homens, mulheres e crianças. Mestre Demétrius, em ginga, abre a roda para todos/as os/as Kalungueiros/as. Participam da roda as pessoas presentes. Com firmeza no olhar, com hipnotismo kalungueiro, o Mestre, que é autoridade, atrai para a roda os corações kalungas. Mestre Luck, mestre Bicudo, mestrando Veto, mestrando Sangue Bom, Instrutor Sabiá, Graduado Simpson, estagiário Marimbondo, professor Bororo, professor Modelo e alunos/as do Aruandê auxiliam, e, juntos, formam a festa kalungueira do/a capoeira.

A ginga é a base de todos os movimentos, assim como os outros golpes de capoeira são a base da ginga, este é o ponto essencial para o desenvolvimento da capoeira. Trata-se do movimento dos escravos que disfarçavam a luta através da ginga, sendo uma forma de segredar a luta. Sodré (2005, p. 153) fala que:

Capoeira se luta, joga, brinca, é algo que se faz entre amigos ou companheiros. Como? Primeiro, forma-se uma roda composta de um ou mais tocadores de berimbau, pandeiro, caxixis, ou reco-reco. Em seguida, dois homens entram no círculo, abaixando-se na frente dos músicos, ao som dos instrumentos e de canções (chulas) específicas. Na capoeira dita Angola, ao cantar a expressão “volta ao mundo”, dando sinal para o início do jogo.

Junto com a ginga, entra o grito de liberdade, o poema em forma de musicalidade, onde todos os cantadores cantam para dentro da roda, colocando todo seu axé, ao som do berimbau, as batidas do atabaque, as palmadas do pandeiro, do toque do agogô e o esfrega do reco-reco. Esses instrumentos sempre auxiliam, com maestria, a ginga e o jogo dos capoeiristas acontece.

O grupo Centro Cultural Aruandê Capoeira, em fusão com o projeto de extensão Capoeirav e demais pessoas kalungueiras, desenham com o corpo a expressividade, e, na manifestação de resistência e de resiliência, ressignificam nos cantos o anúncio das memórias e as histórias dos ancestrais. Sincretizam corpo, religiosidade de matriz africana e cristã, clamam por São Bento, na proteção dos corpos, por afastar as desgraças corporais. Cantam a São Bento: “São Bento se tocar na roda eu jogo/Se falar do santo eu rogo/Rezo e peço proteção [...] São Bento se tocar eu jogo/São Bento pro Santo eu vou rezar/São Bento se tocar eu jogo/São bento pro santo eu vou rezar”.

Cantando para São Bento, fecha-se o corpo para os perigos. Os corpos esguiam-se em movimentos que vão ao chão, jogo de armadilha, rasteiras e cabeçadas. Jogo serpenteado... Sincretizam-se sentimentos e religiosidade com letras que justificam a corporeidade na perspectiva que Grando (2006, p. 32) aduz,

As práticas corporais, portanto, são manifestações culturais. Essas manifestações são explicitadas nos movimentos corporais identificados como dança, jogo, formas de exercitar, luta, competições esportivas etc. Essas práticas corporais expressam uma educação específica do corpo que por sua vez explicitam a concepção de pessoa em cada sociedade. Como vimos nos exemplos de Mauss [...] cada prática corporal, explicita a identidade étnica de quem a pratica, a partir das técnicas corporais e da estética explicitada no corpo em movimento.

Portanto, as práticas corporais neste trabalho são entendidas como manifestações culturais, tais como danças, jogos, religião, esporte, brincadeiras, como gestos que caracterizam as manifestações. Canta-se: “Eu sou movido pela capoeira/ Eu sou movido pelo berimbau”. E nesse ritual que o berimbau Gunga comanda a roda e os corpos, que abençoados rememoram Zumbi e Besourovi. Joga-se, na atualidade, a ancestralidade e o cosmo afro. Assim: “Só o capoeirista sente quando ele abaixa no pé do berimbau e se apruma pra jogar” (aluno avançado Fera do grupo de Capoeira Instituto Aruandê que participa das ações extensionistas que aqui são relatadas).

Sabe-se que muitos quilombos foram miscigenados com o povo índio. Em roda ou em fileiras, as vozes dos povos indígenas ecoam no Kalunga, trazem a força da Mãe Terra. Narram em língua materna a cosmologia que também está inscrita nos corpos, nas pinturas que identificam os povos originários. O cantar na língua materna e as danças expressam culturalidade dos povos indígenas, isto é, de ser Apiaká, de ser Munduruku e de ser Kayabi/Kawaiwete.

A dança indígena é o movimento da decolonialidade, no sentido cosmogônico ou da mãe natureza. Também “se relaciona à força vital-mágico-espiritual das comunidades afrodescendentes e indígenas, cada uma com suas particularidades históricas” (WALSH, 2009, p. 15).

Sem dúvida, o ponto forte do evento-eventos é a interculturalidade e a visibilidade da cultura afro-brasileira e das culturas indígenas. O evento produz estranhamentos, mas, também, o encontro de “Outros/Outras” (DUSSEL, 1993), encontros Entre Nós e Conosco mesmo, quando falamos Nós e Conosco mesmo estamos falando de uma leitura decolonial na educação e na ciência. Acima de tudo, visibiliza cosmovisões indígenas e afro-brasileiras na construção do (ser) humano.

O Kalunga foi, ao longo desses sete anos, espaço, sobretudo de resistência, entre nós, com os Outros e Conosco mesmos, quando estamos falando da coletividade daqueles que se reconhecem na luta. Importante registrar que, ao longo desses anos, nunca, nada foi fácil, pois enfrentamos dificuldades para conseguir das autoridades a devida autorização para a sua realização, para conseguir emprestado alguns materiais necessários. Quantas vezes, nós, professores/as, organizadores/as do evento, tivemos que dormir na Rua Coberta (local do Kalunga) para fazer a segurança dos objetos e utensílios que haviam sido emprestados para esse espaço. Local intercultural de divulgação de pesquisas com interface à extensão, sobre as relações raciais e indígenas.

Este evento/eventos envolve diversas instituições educacionais na perspectiva das leis 10.639/03 e 11.645/08, mas é preciso destacar que, entre os “Outros”, que se reconhecem em nós e são forças que movimentam a rede e os nós que trançam e destrançam o movimento, está o apoio imprescindível da Casa de Umbanda Mãe Maria e do Grupo Centro Cultural Aruandê Capoeira. A Casa de Umbanda, ora nos dando a tranquilidade, ora o apoio com os alojamentos e, inclusive, a comida, o translado, a limpeza, não há orgulho, não há má vontade, há a clareza que é preciso fazer, é preciso resistir nestes tempos em que o movimento da violência voltou à sociedade.

Movimento que, desde a ditadura, pensávamos que havia ficado para trás, por isso, é importante trazer o depoimento de Paulo Freire, na perspectiva de rememorar a atrocidade que não é apenas do passado, mas que, em silêncios, em atitudes, invadem o mundo por diferentes manifestações, como o preconceito, a discriminação, o eurocentrismo, da falta de amor.

O golpe de Estado não somente interrompeu abruptamente todo o esforço que empreendíamos no campo da educação de adultos e da cultura popular, como também me levou a ficar preso por aproximadamente setenta dias (com tantos outros engajados no mesmo esforço). [...] O que me parece muito claro em toda a minha experiência, da qual saí sem ódio nem desespero, é que uma onda ameaçadora de irracionalismo caiu sobre nós: forma ou distorção patológica da consciência ingênua, extremamente perigosa, por causa da falta de amor da qual se nutre, por causa da mística que a anima (FREIRE, 2016, p. 40).

Esse relato da infeliz experiência de Paulo Freire, quando foi preso e depois exilado do Brasil, é uma pequena mostra do que se viveu no Brasil com a ditadura militar. Por que o trouxemos? Porque com a pós redemocratização e com a Constituição de 1988, o Brasil viveu um movimento mais humanizado, resultado das lutas sociais desembocadas em direitos e vozes dos excluídos que haviam, historicamente, sido alijados das políticas públicas, como é o caso da população negra e da população indígena. É nesse contexto de luta e de reconhecimento da diversidade que nasce e cresce o Kalunga. Uma expressão – vivência que enfrenta em processos de resistência e de coletividade todos os tipos de ditadura. A ditadura do pré-conceito e da invisibilização do Outro.

Ainda em sentido de rememoração, lembramos que esse movimento inclui aportes legais, que de certa forma abrem caminhos e processos de escuta. Então, com a terceira LDB 9.394/1996, que teve como relator Darcy Ribeiro, um antropólogo, grande defensor das causas indígenas e criador da Universidade de Brasília, Senador da República na década de 1990 pelo Rio de Janeiro, Ministro da Educação no Governo João Goulart (período de 1962-1963), tendo sido ele o relator da mais importante Lei de Diretrizes da Educação do país, ampliou-se a participação de diferentes grupos na escola a partir do reconhecimento das diversidades e da educação para todos e todas. Nunca é demais lembrar que, até o início do século XX, a educação era privilégio de uma pequena elite brasileira.

Na sua história, em movimentos de afirmação cultural e até mesmo na resistência à opressão, os kalungueadores se prepararam para a imersão em diferentes níveis e modalidades de ensino, por meio de diálogos e convencimentos sobre a significação histórica dos Kalungas e kalungueiros. Isso os levou a adentrar nas Universidades, a exemplo dos cotistas negros na UNEMAT, Campus de Juara, ou como, entre outras modalidades, estudantes na educação básica, em Centros de Educação de Jovens e Adultos, como estudantes indígenas da Faculdade Indígena Intercultural, como mestres pela Universidade do Estado de Mato Grosso.

Também, pela Educação, como professores/as na graduação e na pós-graduação, dentre muitos exemplos, onde os encontramos na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e na UFMT (Universidade Federal do Mato Grosso). Por isso, o Kalunga é um evento/eventos da vida de kalungueiros/as. São eventos de reconhecimento e de encontros que se dão no mundo, ao ponto que qualquer leitura positivista certamente vai considerar óbvio. Estamos no mundo!

Salienta-se que, pela primeira vez na história do Brasil, a partir de 2003, quando iniciou o mandato de base popular do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, muitas leis que estavam em trâmite já por décadas no Congresso Nacional foram colocadas em prática. As ações de governança de Lula possibilitaram que a Constituição Brasileira fosse implementada, a exemplo disso, citamos as Conferências da Educação com a participação popular e as definições de acesso do povo indígena e do povo negro.

Importante rememorar, em tom de contextualização histórica e política, que nos governos de Lula da Silva e Dilma Rousseff houve inegáveis avanços nas questões sobre ‘diversidade societária-cultural’. Mas, com as eleições de 2018, demarcou-se outro momento, isto é, inverso àquele então recente, por flertar com ideologias conservadoras extremadas, aliás, semelhantes às já vividas pela humanidade nas décadas de 1930 e 1940. Realidade que vem se traduzindo em ações governamentais, geradoras de muitos retrocessos nas políticas públicas de interação, inserção e respeito às pluralidades sociais. Perspectiva complexa, que tem levado a muitas reflexões sobre as razões para tal, no Brasil e em alguns outros países. Assim, recorremos mais uma vez a Paulo Freire (2016, p. 56), ao manifestar que:

[...] a conscientização é o teste da realidade. Quanto mais nos conscientizamos, mais “desvelamos” a realidade, e mais aprofundamos a essência fenomênica do objeto diante do qual nos encontramos, com o intuito de analisá-lo. Por essa razão, a conscientização não consiste num “estar diante da realidade” assumindo uma posição falsamente intelectual. Ela pode existir fora da práxis, ou seja, fora do ato “ação-reflexão”. Essa unidade dialética constitui, de maneira permanente, o modo de ser, ou modo de ser, ou transformar o mundo, e que é próprio dos homens.

Disso decorre, por necessário, a análise das motivações que levam grande parte dos invisibilizados/as e silenciados/as a não compreenderem a essência fenomênica da vida que se vive. Da negação a que participam? Da produção da inferioridade e da perda de direitos a que são/somos sujeitos/as? Isso vale e tem a ver com os kalungueiros/as. Por onde eles/as andam? Como têm compreendido está mudança, em tese inesperada? Por onde andariam, da mesma forma, os “Outros/Outras”?

Não há ainda plena certeza, isto é, que após anos de trabalho no noroeste de Mato Grosso, o coletivo humano formado, entre outras pessoas, por professoras e demais mulheres da comunidade já possui plenitude de vivências em relação aos “Outros/Outras”. Exemplo disso, dentre os “Outros/Outras”, a convivência com a coragem e a luta de Dom Pedro Casaldáliga, falecido no dia 8 de agosto de 2020, que a partir da década de 1970 escreveu sobre uma Igreja em conflito no Araguaia, contexto que também muito disse respeito às lutas dos Kalungas ou mesmo para a afirmação da autonomia e dos desafios de resiliência da Universidade, contribuindo com o bem-estar de todos na região do noroeste do Estado do Mato Grosso.

Aprende-se nos ensinamentos da ‘pedagogia da coletividade’, segundo uma lógica freiriana ou decorrentes dos sentidos expressos no poema pedagógico de Anton Makarenko (1933), que tratam sobre diversidade e ação pela palavra, as formas de se enfrentarem posições de invisibilidade. Situação típica dos Kalungas, a exemplo do que passam, muitas vezes, até mesmo nos seus ‘movimentos’ societários urbanos, de onde despertam suas metodologias de ação, ou seja, “kalungueiras”.

Manifestar a religiosidade, cantar a vida e se apoderar dos espaços deve ser estratégia de imersão. Mas, também, é uma estratégia para estar ao lado de “Outros/Outras” (DUSSEL, 1993), bem como reconhecer-se como energia e parte do mundo e do que é feito o próprio mundo. Assim, somos parte do planeta. Natureza e seres humanos se compartilham de forma integralizadavii. Portanto, Kalunga é um evento e “é um coletivo social” que se constituem na “comunidade”, em um emaranhado de redes que sustentam a coletividade de fazer-se Kalunga.

Os Kalungas e “Outros/Outras” estão lutando novamente, agora contra a instalação de uma Usina Hidrelétrica, que caso seja aprovada, vai tirar do mapa duas comunidades rurais: Pedreira e Palmital. Vai atingir o patrimônio Imaterial dos Povos da Terra Indígena Apiaká-Kayiabi e, também, da Terra Indígena Japuíra. Além de riquezas ambientais (fauna e flora), riquezas espirituais se perderão, ou seja, riquezas incalculáveis, porque ser Kalunga é estar ao lado da natureza, lugar de fertilidade, dos Orixás, dos cantos do Candomblé, da Umbanda, das curas populares, dos xamanismos e/ou pajelanças. Lugares de banhos espirituais, de encontros com “Outros/Outras” que são fundamentais à realização de uma vida plenamente Kalunga.

Ao ensejar a finalização desta narrativa, espera-se ter contribuído, entre outros aspectos, para a tomada de consciência cidadã a despeito de todas as críticas que a Universidade sofre perante parcela de uma sociedade que não deseja entender, ou que discorda do seu papel. Isso, em relação àquilo que é a sua razão de existência: produção e difusão de conhecimentos voltados ao bem comum; bem das pessoas e do ambiente; bem de preservação e qualificação da vida; bem da cultura e da busca incessante pela justiça e dignidade humana. O que no presente caso, dos Kalungas e grupos indígenas, significa também estar junto das pessoas simples e por vezes oprimidas. Assim, vislumbramos, igualmente, a certeza sobre o que nos ensinou Freire (2016, p. 57), “A ‘conscientização” não tem como base uma consciência, de um lado, e um mundo, de outro, aliás ela não busca tal separação. Pelo contrário, está baseado na relação consciência-mundo”. Consciência, também, de diferentes mundos.

Figura 4 – Mesa Redonda Inter e Multicultural
Figura 4 – Mesa Redonda Inter e Multicultural
Fonte: KALUNGA (2017).

Essa atuação forte junto às relações étnico-raciais, no sentido de assegurar maior respeito às diferenças e a valorização da diversidade racial e cultural afro-brasileira, abrindo horizontes para reflexões e construção de atitudes antirracistas por meio da educação popular em intercâmbio com as redes de ensino, tem sido feita de forma incansável. E, em rede, onde um é o “Outro/Outra” (DUSSEL, 1993), representando um coletivo social com seus diferentes matizes culturais.

Acredita-se, portanto, que o Kalunga tem contribuído para minimizar preconceitos e para fortalecer o compromisso político de erradicar a discriminação contra os descendentes de africanos e indígenas, além de possibilitar um conhecimento imensurável à sociedade. Por isso, entende-se que os atos Kalungas têm promovido o respeito à diversidade e a valorização desta herança histórica e cultural, além de despertar e reconhecer as diferentes manifestações dos grupos étnicos, religiosos e artísticos, ajudando na construção do espaço social e cultural, de acordo com a sua identidade e com o tom de sua própria dinâmica, estabelecendo o exercício inter e multicultural.

Encerrando a roda

A intencionalidade desta “narrativa” foi visibilizar um evento/movimento que tem sido vivenciado há sete anos no noroeste do estado de Mato Grosso. Nele, pela pesquisa e observação participante (BRANDÃO, 2007), lemos os movimentos que, em corporeidade, movimentam as formas de pensar. Para esta reflexão, tomamos cenas do/dos evento-eventos Kalunga, como o de 2015, em Juara-MT, e o I em Porto dos Gaúchos, por oferecerem elementos passíveis de análise e de experimentação. A observação participante dos integrantes do projeto permitiu que houvesse uma verdadeira e real aprendizagem coletiva, a qual perpassou atitudes que envolveram nossos corpos pela dança e movimentos Kalungas, de onde se percebeu a ressignificação de saberes via compreensões históricas e sociais dos diversos grupos partícipes, que, juntos, produziam textos e nos “produziram”. Há uma aprendizagem coletiva entre as pessoas do grupo, bem como ressignificações dos saberes via compreensões históricas e sociais de diversos grupos.

Os corpos têm rostos, que são brasileiros, afro-brasileiros, negros e indígenas. Esses rostos têm marcas identitárias que dizem de onde vieram e porque vieram. Para Maroun (2003, p. 141), é “[...] do corpo biológico, que podem ser observados elementos culturais, identitários e/ou étnicos de determinada comunidade”. Vieram Kalunguear, “vêm” Kalunguear, virão Kalunguear e comungar sentimentos. Vieram, vêm, virão encontrar e se encontrar. Os olhares falam, o corpo revela. Chegaram, chegam, chegarão muitos camaradas, alguns como se tivessem saído dos cativeiros. Ouvimos depoimentos como este: “meu bisavô tinha a marca de um carneiro no rosto feito a ferro e fogo. Ele veio trazido para o Brasil”. “É de graça participar?”, perguntava uma senhora negra, e com a resposta de que o Kalunga era de todos, disse: “vou trazer minha família”.

Dos cantos saíam pessoas que, com olhos bem abertos, nos olhavam e eram olhados por nós. Chegavam. (...) eram olhados. Chegavam e nós os abraçávamos; com este sentimento de acolhimento, nossos corpos emitiam a energia do que era “Kalunguear”. Enfim, estávamos juntos, porque o reconhecimento de nós mesmos estava no rosto que olhávamos. Rostos ameríndios.

Portanto, aprendemos “kalungueando”, porque kalunguear é rememorar as ancestralidades, aquelas que vivem em cada pessoa e na coletividade como um todo, verdadeiro caminho de emancipação: estudantes, professores/as, camaradas, companheiros/as, capoeiras, extensionistas, academia, sociedade, etc. Aprendemos Kalungueando, porque Kalunguear é rememorar os nossos ancestrais que vivem em cada um de nós, é a busca da emancipação.

Referências

BRANDÃO. Carlos Rodrigues. Pesquisa participante. São Paulo: Brasiliense, 2007.

DUSSEL, Enrique D. 1942: O Encobrimento do Outro: A origem do mito da modernidade: Conferência de Frankfurt. Trad. Jaime A. Clasen. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1993.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: Um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1992.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Unesp, 2000.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007.

FREIRE, Paulo. Conscientização. É possível, urgente e necessário mudar a ordem das coisas. Tradução de Tiago José Risi Leme. São Paulo: Cortez, 2016.

GRANDO, Beleni Sálete. Corpo, educação e cultura: práticas sociais e maneiras de ser. Cáceres/MT: Editora da UNEMAT, 2006.

MAROUN, Kalyla. Jongo e educação: a construção de uma identidade quilombola a partir de saberes étnico-culturais do corpo. Tese (Doutorado) − Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2003.

SILVA, Martiniano J. Kalunga: origem e significados (final). Disponível em: http://www.dm.com.br. Acesso em: 07 dez. 2019

SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida. 3. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

WALSH, Catherine. Interculturalidade, Crítica e Pedagogia Decolonial: in-surgir, re-existir e reviver. In: CANDAU, Vera Maria (Org.). Educação Intercultural na América Latina: entre concepções, tensões e propostas. Rio de Janeiro: 7 letras, 2009.

Notas

i Casal de jongueiros que fizeram a abertura do evento Kalunga em Juara com o diálogo na rua intitulado: “África e Brasil – unidos na cultura”.
ii Neuza da Rocha é negra, cantora popular, oriunda do Paraná e residente em Juara desde que tinha 5 anos de idade. Sua família veio para o Estado de Mato Grosso, teve pequenas roças e trabalhou no ramo de bares.
iii Na Capoeira axé representa força, ânimo e energia na roda de capoeira.
iv Berimbau, tipo de instrumento que tem uma cabaça maior, que geralmente é tocado pelo mestre, professor ou aluno mais avançado na capoeira.
v Projeto de extensão “Capoeira Transformando Corpos e Vidas”.
vi Grande capoeirista cantado nas rodas de capoeira e exibido em filmes, Besouro Mangangá.
vii A Biodiversidade é parte da diversidade que envolve os Kalunga. Assim, em defesa da biossociodiversidade, rememoramos que a palavra Kalunga foi dita ao enfrentar os poderosos para defender o ambiente, quando em 2009 foi discutido o Zoneamento de Mato Grosso. Os Kalunga perderam o debate, debate que o capital encontrou forças com a Igreja Católica Local. Anos depois, o próprio Congresso Nacional não aprovou o Zoneamento que havia sido discutido e aprovado na Assembleia Legislativa de Mato Grosso.
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