Secciones
Referencias
Resumen
Servicios
Buscar
Fuente


‘CRIP CAMP - A DISABILITY REVOLUTION’: UMA VIA PARA DESLOCAMENTOS POSSÍVEIS NAS LEITURAS DE ESTUDANTES SOBRE AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
‘CRIP CAMP – A DISABILITY REVOLUTION’: A POSSIBLE WAY FOR CHANGING STUDENTS’ CONCEPTIONS ABOUT PEOPLE WITH DISABILITIES
Revista Conexão UEPG, vol. 19, núm. 1, pp. 01-18, 2023
Universidade Estadual de Ponta Grossa

ARTIGOS



Recepción: 13 Agosto 2023

Aprobación: 14 Noviembre 2023

DOI: https://doi.org/10.5212/Rev.Conexao.v19.22252.044

Resumo: Este trabalho analisou dados provenientes da extensão “A pessoa com deficiência: diálogos a partir do cinema e de outras mídias audiovisuais” e teve como objetivo apreender e discutir afetabilidades produzida pelo documentário Crip Camp: A Disability Revolution (2020) na docente pesquisadora e nos estudantes. A cartografia proposta por Rolnik (2011) foi utilizada no percurso metodológico, uma vez que o território abarcado pela pesquisa é “existencial”. Foram analisados os registros e comentários relativos às cenas que mais afetaram os estudantes. Algumas temáticas relacionadas à problemática das pessoas com deficiência foram escolhidas pela pesquisadora, quais sejam: ‘A diferença’, ‘Tutela, privacidade, dependência e autonomia’ e ‘A revolução pela via da deficiência’. A experiência tratada neste estudo permitiu o abalo de pré-concepções sobre as pessoas com deficiência, o reconhecimento de sua biopotência, e a necessidade da produção das redes de relações implicadas para a produção do cuidado da vida.

Palavras-chave: pessoas com deficiência, alteridade, biopotência, Crip Camp: a disability revolution.

Abstract: This study analyzes data from the outreach project “The Person with Disability: Dialogues based on Cinema and Other Audiovisual Media”. It aims to apprehend and discuss the effects produced by the documentary Crip Camp: A Disability Revolution (2020) in the teacher researcher and in the students. Methodologically, it used the cartography proposed by Rolnik (2011) since the field of the research is “existential”. The records and comments related to the scenes that most affected the students were analyzed. Some themes related to people with disabilities were chosen by the researcher, namely: ‘The difference’, ‘Guardianship, privacy, dependence and autonomy’ and ‘The revolution through disability’. The experience discussed in this study unsettled some preconceptions about people with disabilities and recognized their biopotency and the need to create networks concerning life care.

Keywords: People with disabilities, Otherness, Biopotency, Crip Camp: A Disability Revolution.

Introdução

A problemática das pessoas com deficiência é bastante complexa porque é perpassada por preconceitos que atravessam a história da humanidade, a começar pelas próprias terminologias empregadas para designar essa população. Ao longo do tempo, termos como ‘anormal’, ‘deficiente’, ‘incapaz’, ‘especial’ e, mais recentemente, ‘pessoa portadora de necessidades especiais’ ou mesmo ‘pessoa portadora de deficiência’, carregados de conotações pejorativas e capacitistas, foram utilizados para designar pessoas cuja condição era vista pela ótica negativa do déficit, da falta, da falha.

Atualmente, é indicado o uso da terminologia ‘pessoa com deficiência’. Ativistas do movimento anticapacitista na luta contra o preconceito ligado à ideia de deficiência como ‘incapacidade’ justificam que a expressão utilizada hoje para referenciá-los coloca em cena a pessoa e não a deficiência, e por isso é aceita.

Contudo, o debate, longe de estar apaziguado, suscita uma problematização e profunda reflexão, pois tanto o termo ‘deficiência’ carrega um sentido negativo no seu percurso histórico1 como a própria afirmação de que é necessário reconhecer, na deficiência, uma ‘condição diferenciada’ na referência ao corpo, ao intelectual e ao psicossocial, tem se mostrado superficial e insuficiente para sustentar, de fato, a ‘diferença’ que está em causa nessa discussão.

Garcia (2011) toma a arqueologia e genealogia foucaultiana como base da argumentação que desenvolve sobre a gênese do conceito de deficiência. Nessa perspectiva, diz o autor, a palavra deficiência traz consigo, como um fóssil, “todas as marcas da dicotomia social que determina uma relação de poder e saber entre a normalidade e a anormalidade [...] toda a história da segregação, da ideologia higienista [...]” (Garcia, 2011, p. 26). Ou seja, os sentidos da palavra ‘deficiência’ e suas matizes em cada momento histórico nela se mantêm escamoteados. O termo ‘deficiência’ empregado hoje oculta o que, ao longo da história, foi considerado uma forma estranha ou anômala de vida.

Ainda que os discursos em favor da inclusão no Brasil, principalmente a partir da década de 90 do século passado, tenham promovido, dentre outras vitórias, políticas afirmativas importantes e conquistas no plano de acessibilidade e da mudança de terminologia na referência a pessoas com deficiência, “a fossilização da palavra e sua utilização, intencional, nos discursos […] fixa o ponto de vista [em certos planos ainda] preconceituoso sobre o tema” (Garcia, 2011, p. 27), bem como orienta práticas de cuidado de cunho biomédico dirigidas a essas pessoas.

Nessa dimensão, cabe lembrar a presença de modelos capacitistas de habilitação/reabilitação ainda norteados por uma ideologia normalizadora e bastante centrada nos saberes profissionais como baliza do que deve ser ‘habilitado/reabilitado’: um efeito claro do desconhecimento e da situação marginal em que se encontra a discussão crítica acerca do capacitismo para grande parte dos profissionais de saúde em nosso país (Mello, 2016; Vendramin, 2019).

Alguns anos já se passaram após a adesão do Brasil como país signatário da Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Brasil, 2009). Contudo, seus territórios são diversos e muito desiguais no que diz respeito às ofertas que podem torná-los espaços verdadeiramente inclusivos. Em alguns deles, são poucas as pessoas com deficiência que transitam para além dos serviços de reabilitação, quando existentes, e da educação especializada. É escassa a presença de estudantes com deficiência no ensino regular e na universidade, assim como são raras as pessoas com deficiência que ocupam postos formais de trabalho, sendo mesmo incomum encontrá-las nos espaços públicos de circulação de algumas cidades. Nesses territórios, a raridade do encontro com essas pessoas evidencia a dificuldade da concretização do ideário da inclusão em nosso país.

Na formação universitária de profissionais de saúde e da educação, a implicação dos acadêmicos na construção participativa de um modelo social inclusivo e acolhedor das diferenças é um imperativo ético inscrito na atividade docente e, sobretudo, na responsabilidade da universidade pública para com a sociedade. Particularmente no que diz respeito às pessoas com deficiência, tal compromisso requer o incentivo e a criação de espaços de discussão que devem sustentar a ‘desterritorialização’ de certos saberes e práticas hegemônicos da área da reabilitação, muitos deles impregnados ainda de um olhar capacitista. De acordo com Mello (2016, p. 3272) o capacitismo:

[...] alude a uma postura preconceituosa que hierarquiza as pessoas em função da adequação dos seus corpos à corponormatividade. É uma categoria que define a forma como as pessoas com deficiência são tratadas de modo generalizado como incapazes (incapazes de produzir, de trabalhar, de aprender, de amar, de cuidar, de sentir desejo e ser desejada, de ter relações sexuais etc.).

O presente artigo recolheu e analisou dados provenientes do curso de extensão “A pessoa com deficiência: diálogos a partir do cinema e de outras mídias audiovisuais”, ofertada na modalidade de curso extensionista. O estudo de base cartográfica teve como objetivo apreender e discutir os efeitos do documentário Crip Camp: A Disability Revolution (2020) na docente pesquisadora e nos estudantes, relativamente à problemática das pessoas com deficiência.

A ideia de produzir um estudo cartográfico para abordar o problema desta pesquisa surgiu da aproximação com o pensamento de Deleuze (2002) acerca do modo como concebe a produção do conhecimento. O autor recorre ao filósofo Espinoza para afastá-la de uma operação norteada pela razão. Ou seja, para afirmá-la como decorrente de possíveis encontros com intecessores produtores de afetações capazes de ativar sensibilidades: no caso desta pesquisa, nos corpos dos estudantes e da pesquisadora. É justamente pelo fato da ativação dessas sensibilidades não ser atravessada, a princípio, por uma operação intelectiva que se torna possível a experiência ‘do conhecer’ a partir de um movimento de ‘desterritorialização’ de saberes acomodados e de ideias preconcebidas.

Segundo Guatarri e Rolnik (2005, p. 323), a desterritorialização está relacionada à noção de território

[...] relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente ‘em casa’ [...]. Ele é um conjunto dos projetos e das representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos.

Contudo, os autores salientam que o território pode se desterritorializar, sair de seu curso, desde que encontre linhas de fuga que produzam desterritorialização. Nesse sentido, nossas racionalidades e modos de pensar cristalizados podem ser desterritorializados, a depender dos intecessores que, em determinado momento ou instante, nos atravessam. Trata-se de um modo diverso de produzir conhecimento, em relação ao epistêmico clássico vigente na academia. Trata-se de dar passagem aos afetos por meio da oferta de experiências que desestabilizem saberes e práticas capacitistas.

Vasconcellos (2005, p. 1223), em sua discussão sobre o problema do pensamento em Gilles Deleuze, salienta que “os intercessores são quaisquer encontros que fazem com que o pensamento saia de sua imobilidade natural, de seu estupor. Sem os intercessores não há criação. Sem eles não há pensamento”.

Para tanto, o uso de filmes na abordagem dessa temática, durante o percurso formativo dos estudantes, esteve assentado na ideia da potência intercessora deles, de certa forma tratada por Metz (1972), ao abordar a impressão de realidade do cinema. O autor expressa tal potência, destacando que um dos problemas centrais da teoria do filme

é o da impressão de realidade vivida pelo espectador diante do filme, mais do que o romance, mais do que a peça de teatro, mais do que o quadro do pintor figurativo, o filme nos dá o sentimento de estarmos assistindo diretamente a um espetáculo quase real [...]. Desencadeia no espectador um processo ao mesmo tempo perceptivo e afetivo de ‘participação’ (não nos entediamos nunca no cinema), conquista de imediato uma espécie de credibilidade – [...], às vezes muito viva no absoluto -, encontra o meio de se dirigir à gente no tom da evidência, como que usando o convincente (Metz, 1972, grifos nossos).

Deste modo, buscou-se, através de Crip Camp, ativar os processos perceptivo e afetivo referidos por Metz para enlaçar os participantes do projeto extensionista às experiência vividas pelos seus protagonistas e, assim, aproximá-los da problemática deste estudo.

Percurso Metodológico

Trata-se de uma pesquisa qualitativa de abordagem cartográfica, desenvolvida ao longo da proposta extensionista anteriormente mencionada, o que fortalece a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. A cartografia foi assumida como estratégia de produção coletiva de conhecimento a partir da experiência vivida no processo de investigação. Neste caso, buscamos identificar e dialogar com as afetações produzidas nos participantes por umas das produções cinematográficas projetadas durante a extensão.

Participaram desta pesquisa a docente-pesquisadora e 45 estudantes de graduação dos cursos de Fonoaudiologia, Pedagogia e Psicologia de uma universidade estadual do interior paranaense. Foram formados três diferentes grupos, com 17, 16 e 12 participantes, de acordo com as inscrições realizadas. Cada grupo, constituído por acadêmicos de diferentes cursos, vivenciou 7 encontros de discussão, cuja carga horária total foi de 24 horas. Não houve inscrições de estudantes com deficiência.

No presente trabalho, foram recolhidos e analisados registros decorrentes dos efeitos produzidos pelo filme-documentário Crip Camp: A Disability Revolution (2020), intitulado em português como Crip Camp: a revolução pela inclusão, por condensar nele temas e problemáticas que emergiram também no encontro com as demais produções cinematográficas discutidas durante a extensão. A proposta inicial em relação aos registros aconteceu na forma de um convite para que os estudantes compartilhassem produções de naturezas diversas (próprias e/ou de outros autores), a partir das ativações que o filme em questão lhes provocasse (relatos orais e escritos, imagens, poesias, músicas, etc).

Tal movimento aconteceu em dois momentos distintos: após a projeção do filme, antes da discussão e após os momentos de discussão do filme. Nos momentos que antecederam a discussão, os estudantes trouxeram, predominantemente, registros em forma de anotações e/ou transcrições referentes às falas nas cenas mais marcantes para eles, bem como relatos orais a respeito delas. Quase não houve produções de outras naturezas. Talvez, uma explicação seja o fato de não serem requeridos, com frequência, durante o desenvolvimento das atividades acadêmicas, registros que explorem outras vias de sensibilidade dos estudantes.

De qualquer modo, os registros das cenas e relatos orais, tomados como manifestações decorrentes das afetabilidades produzidas pelo filme, foram mapeados na leitura dos dados e analisados, bem como formaram o tecido das conversações durante os encontros. Constituíram-se, portanto, como um dispositivo importante tanto no disparo das discussões como na ativação das temáticas pertinentes ao assunto, trazidas na análise deste estudo.

Para Rolnik (2011), ao pesquisar, o cartógrafo conta com a própria sensibilidade na definição de seu método. A autora enfatiza que o território a ser cartografado não é geográfico, mas “existencial”. Trata-se de um território configurado pelo encontro de sensibilidades, o que implica o próprio pesquisador numa relação de mútua afetação com outras existências, com outros corpos. Ao se lançar deste modo, a alegada “percepção” do pesquisador, supostamente orientadora de uma posição de neutralidade extraposta ao objeto da pesquisa, cede lugar à leitura/interpretação implicada do acontecimento. Não há possibilidade, nem a pretensão da ‘captação’ direta e objetiva da realidade, mas um movimento atravessado também pela subjetividade do pesquisador, pelo lugar desde onde ele foi fisgado na experiência. Em outras palavras, a produção dos dados é sempre implicada e se constitui como lugar privilegiado de experimentação, como um espaço de construção e de transformação de si.

Dito isto, a tessitura da análise apresentada a seguir deve ser compreendida como resultante da ativação de ‘processos intercessores’ que incidem no que Rolnik denomina de ‘corpo vibrátil’ do pesquisador, de sua capacidade de apreender a “alteridade em sua condição de campo de forças vivas que nos afetam e se fazem presentes no nosso corpo sob a forma de sensações. Desse modo o outro é sentido como uma presença que se integra à nossa textura sensível” (Rolnik, 2011, p.12). Foi por essa via que se buscou apreender, nos registros dos estudantes, modos de olhar e as suas sensibilidades em relação à problemática das pessoas com deficiência.

Esta pesquisa foi submetida e aprovada pelo COMEP, sob o parecer n.o 5.320.104.

Breve esclarecimento sobre o modo de discussão dos resultados

Foram resgatados e analisados registros referentes às cenas que mais provocaram os participantes, considerando-se os três grupos de estudantes da extensão ora abordada. No sentido de melhor apreendermos as afetabilidades provocadas pelas cenas registradas, adicionamos alguns depoimentos. Estes se referem a diferentes acadêmicos e, por isso, compareceram numerados em sequência.

Os registros e comentários motivaram a eleição e a discussão de três grandes temáticas relacionadas à problemática das pessoas com deficiência: A diferença; Tutela, Privacidade, Dependência e Autonomia e A Revolução pela via da Deficiência. Os dados foram interpretados à luz da bibliografia que aborda a problemática da deficiência e a Saúde Coletiva.

Resultados e Discussão

As experiências prévias e motivações que levaram os estudantes a participarem da proposta.

Dos 45 estudantes participantes deste estudo, 19 mencionaram vivenciar experiências diretas com pessoas com deficiência na família, na escola, na vizinhança. Alguns referiram que as redes sociais possibilitaram modos indiretos diversos de encontro com essas pessoas, a partir, por exemplo, do acompanhamento de seus perfis no Instagram, no Facebook ou assistindo a transmissões virtuais de reuniões, que tiveram como objetivo discutir pautas relacionadas à problemática das pessoas com deficiência.

Dois estudantes referiram relatos de familiares que trabalhavam com pessoas com deficiência como interferentes no seu modo de olhar sobre elas. A invisibilidade desse segmento da população no município onde se localiza a universidade foi destacada por alunos participantes das três turmas integrantes da extensão e retomada como questão-problema durante os primeiros encontros.

Quanto às motivações que levaram os acadêmicos a participarem desta experiência, expectativas em relação à aquisição de conhecimentos ‘sobre as deficiências’, como condição para abordar futuramente essas pessoas nas diversas áreas envolvidas, compareceram no imaginário dos estudantes dos cursos de Fonoaudiologia e Pedagogia. Contudo, embora os encontros tenham seguido em uma direção radicalmente oposta ao movimento de ‘ensinar sobre as deficiências’ ou sobre ‘as características de pessoas com deficiência’, a permanência interessada e o modo implicado de participação dos acadêmicos, ao longo da proposta, permitiram considerar o quanto suas expectativas prévias não se constituíam, de fato, como demandas. Elas espelhavam, antecipadamente, certas ofertas tradicionais de ensino-aprendizagem mais conteudistas, frequentes no meio acadêmico, sobretudo nos cursos de saúde e educação, integrados por disciplinas predominantemente orientadas por esse viés de produção de conhecimento.

O interesse pelo cinema foi também mencionado pelos estudantes dos três cursos como um fator motivador da participação na experiência, assim como a expectativa de que o espaço ofertado pudesse produzir deslocamentos importantes “no olhar preconceituoso que temos em relação às pessoas com deficiência, muitas vezes disfarçado ou não reconhecido em nossos discursos”, como refere uma das participantes.

Os intercessores nos olhares dos participantes sobre a problemática das pessoas com deficiência

Crip Camp: A Disability Revolution (2020)

Crip Camp foi a produção cinematográfica que mais afetou os grupos de estudantes. Nela, comparecem todos os núcleos temáticos, que emergiram também na leitura de outros filmes projetados durante a extensão e, por esse motivo, foi enfocada na análise deste trabalho.

Indicado ao Oscar de 2021 como melhor filme-documentário, Crip Camp resgata momentos marcantes da vida de pessoas com deficiência nos Estados Unidos (EUA), algumas delas ativistas-pioneiras do movimento de reinvidicações por direitos civis desse segmento da população naquele país. A partir das fontes documentais audiovisuais e fotográficas reunidas por James LeBrecht, protagonista e também um dos diretores dessa produção, o documentário nos aproxima, de início, das vivências e dos acontecimentos que envolveram os adolescentes do Camp Jened, no início dos anos 70.

Em meio à guerra do Vietnã e às manifestações contraculturais expressas pelo movimento Hippie e pelo festival Woodstock, o acampamento de verão, criado em moldes tradicionais nos anos 50, havia se transformado radicalmente. Segundo Larry Allison, diretor do acampamento, o Jened, como era carinhosamente chamado pelos campistas, tornou-se um espaço que permitiu a jovens com deficiências a experimentação da adolescência sem os estereótipos que os rotulavam fora dali.

O documentário se desenvolve em dois grandes momentos. No primeiro deles, a convivência no Jened envolvendo os adolescentes e monitores ganha destaque. Somos transportados para o cotidiano do acampamento, o que permite, de certa forma, conhecer e - por que não dizer - ‘reconhecer-se’ (n)aqueles jovens simplesmente como adolescentes que brincavam, nadavam, corriam, dançavam, namoravam, cantavam, tocavam, decidiam em conjunto o que iriam comer, dialogavam sobre suas angústias, cuidavam do outro e se deixavam cuidar. Enfim, eles experimentavam o protagonismo na produção de suas vidas, como outros adolescentes o fazem.

No segundo momento, acompanhamos a trajetória marcada pelo forte papel assumido por Judy Heumann, uma das campistas do Jened, bem como o engajamento de muitos de seus companheiros do acampamento, no movimento de luta pela aprovação das leis que vieram a garantir juridicamente direitos civis e não discriminatórios às pessoas com deficiência nos Estados Unidos. Este segundo momento é expresso por meio do resgate das filmagens de vários episódios dessa luta, de grande valor histórico, além dos depoimentos impactantes sobre as experiências vividas pelos ex-campistas, já adultos.

Logo de início, os relatos de Larry Allison e Denise Sherer Jacobson, trazidos pelo estudante 1, permitem perceber a proposta inovadora do Camp Jened:

“Isso foi um subproduto da época de experimentação social. Nós percebemos que o problema não era com as pessoas com deficiência e sim com as pessoas sem deficiência. O problema era nosso” (Larry Allison).

“Era uma utopia quando estávamos lá, não havia mundo externo” (Denise Sherer Jacobson)

“A gente pode perceber que o que acontecia ali, para aquela época, era muito diferente. Talvez o único lugar onde aquelas pessoas se sentissem bem de verdade, tendo um grupo de amigos, pertencendo a esse grupo!” (estudante 2)

O documentário inicia ao som de músicas marcantes da década de 60, as quais exaltam a liberdade, a resistência, a mudança, como For What It’s Worth (Buffalo Springfield, 1966) e Freedom/ Motherless Child (Ritchie Havens, 1969). De saída, falas irreverentes e provocadoras registradas pelos estudantes 2 e 3 dão o tom do que se seguirá adiante:

“Você quer ver deficientes retratados como pessoas?” (campista não identificado, risos)

“Eu estava aqui perto da piscina vendo as crianças nadarem, então eu decidi cavar uns buracos porque essas crianças são muito desastradas, e eu decidi que seria divertido vê-las tropeçar (risos)” (Larry Allison)

Essas falas são demais! Já começam provocando quem tá assistindo. Acho que a intenção deles era mesmo chocar logo as pessoas sem deficiência, tipo, ‘se você pensa que o filme vai fazer você ficar com pena, esquece! A gente tá aqui pra mostrar que a gente não precisa da pena de ninguém!’, é muito bom! (estudante 2)

Na sequência dessas cenas, os depoimentos de alguns monitores deixam evidente a proposta alternativa do acampamento: experiências prévias ou saberes sobre as deficiências não eram pré-requisitos para poder estar ali. Lionel Je’Woodyard não conhecia ninguém com deficiência, tendo se candidatado a monitor ao ler um anúncio de vagas. Por sua vez, Joe O’Conor, ao relatar o primeiro encontro com os adolescentes na chegada ao acampamento, quando foi preciso ajudá-los a sair do ônibus, deixa transparecer o seu impacto:

“Não estava preparado para ver tantas pessoas com deficiência de uma vez. Congelei, fiquei paralisado de medo. Alguém atrás de mim me empurrou porque eu estava atrapalhando e aquele impulso me guiou durante todo o verão!” (Joe O’Conor)

“Essa fala me surpreendeu. Primeiro porque a gente pensa que é preciso que uma pessoa sem deficiência tenha um conhecimento sobre deficiência pra assumir uma vaga como essa. Segundo porque ele é muito sincero, ele fala com bastante naturalidade que ele ficou assustado, mas que depois daquele empurrão, tipo ‘vai, se joga’ ele enfrentou o medo dele e entrou em relação com aquelas pessoas ali. E ele não tinha um ‘conhecimento’ sobre aquilo, mas não era isso que mais importava ali!” (estudante 4)

Alguns relatos dos campistas chamaram a atenção dos estudantes por revelarem a surpresa do encontro com o ‘estranho’ no outro: o estranho que, paradoxalmente, soa na fala de James Lebrecht, abaixo, como familiar:

“O lugar tinha um monte de hippies e alguns deles eram bem estranhos. Era chocante, eu não sabia quem era campista, quem era monitor.” (James Lebrecht)

“Aquelas pessoas [referindo-se aos monitores] eram muito malucas, no bom sentido” (Ann Cupolo Freeman)

“O que eu achei engraçado na fala do Jimmy é que ele não sabia quem era campista e quem era estudante. Então, por que será que ele ficava chocado (risos) (estudante 5)

A Diferença

Os registros dos estudantes acima apresentados conformam uma primeira temática de análises: a diferença.

Somos todos iguais na diferença! Somos todos iguais no sentido de que deveríamos poder desfrutar, de modo pleno e igualitário, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, conforme preconiza a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948). Decerto que a observância jurídica da ‘igualdade’, como salienta Nogueira (2008), não se realiza pelo “nivelamento de personalidades individuais”, porquanto “não se ganha uma efetiva e substancial igualdade sem que se tenha em conta as distintas condições das pessoas” (Nogueira, 2008, p. 27-28). E, ainda, quando se “processam discriminações injustas a uma pessoa ou a determinado grupo e a injustiça da discriminação ocorre quando se coloca a pessoa em situação de inferioridade que seja lesiva a sua dignidade” (p. 28).

No entanto, por que o efeito de certas diferenças insiste em nossa sociedade como ‘estranhamento’? O que se vê no encontro com um outro quando a afetação produzida decorre, por exemplo, de uma aparente diferença que o corpo desse outro evidencia em relação ao nosso? Por que, no Brasil, é ainda frequente o fato de que nesses encontros, atitudes e tratamentos configurem, via de regra, uma relação entre ‘não-iguais’?

O documentário foi ‘desterritorializante’, no sentido de que colocou em suspensão a naturalidade com que se assume a identificação entre a noção de incapacidade e desvantagem. Uma identificação imiscuída na falta de consciência da sociedade, extensiva também ao Estado, que insiste em não reconhecer a sua responsabilidade, por situar as pessoas com deficiência em graus variados de desvantagem pelos ajustes e correções ainda bastante restritos que faz (quando faz), insuficientes para assegurar a potência de vida dessas pessoas (Martins, 2008).

O ‘encontro’ do espectador com as pessoas com deficiência que Crip Camp promove abala certas racionalidades e representações que atravessam nossa discursividade, bem como as leituras bioidentitárias que perpetuam a ideia de deficiência atrelada a uma suposta incapacidade para agir e refletir.

Mehry (2014, p. 03) problematiza ‘as vistas dos pontos de vista’, salientando que muito embora ‘a diferença’ certamente se apresente nos encontros com outro, reconhecê-la e afirmá-la, por si só, é insuficiente para apreender sua natureza nesses encontros. Trata-se, diz o autor, “muitas vezes de mundos distintos, exigindo agires que possam operar de modo relacional e em simetria, como equivalentes, e não impositivamente, como de maneira geral acontece”.

Sobretudo no contexto deste estudo, trata-se de reconhecer a diferença inscrita nos corpos de pessoas com deficiência como biopotência, definida nas palavras de Costa (2014, p. 113) enquanto “expansão de sua existência no domínio diverso das relações humanas”.

Nessa perspectiva, assumir com Mehry (2014) a distinção entre mundos de existência significa reconhecer que as ‘vistas de um mesmo ponto’ são muito diferentes, a depender de quem olha. O autor chama a atenção para o fato de que existem regimes de verdade em colisão e disputa em cada ‘ponto de vista’, e a discussão acerca da problemática das pessoas com deficiência expressa muito bem essa tensão.

Nessa perspectiva, cabe indagar: quais regimes de verdade emergem nos depoimentos dos protagonistas de Crip Camp por efeito de sua convivência no Camp Jened e para além dele?

Com Mehry (2014, p. 3), podemos afirmar que aquelas pessoas “se colocam em verdades que são ligadas à sua [própria] aposta de produzir em si [corpos] que potencializam seus modos de viver”, o que não era vislumbrado pelas vistas do ponto da maioria das pessoas da sociedade daquela época, nem mesmo de nossa sociedade atual, submetidas a regimes de verdade, que situam a deficiência como falha e como falta.

A reflexão de Merhy (2014) nos permite ainda afirmar que a aposta na potência dos modos de viver de pessoas com deficiência é um compromisso ético que o outro - pessoa sem deficiência (estado e sociedade em geral) - deve assumir sempre. Além disso, tal aposta exige que esse outro coloque sob rasura suas próprias “verdades” e referências diante da experiência genuína das pessoas com deficiência, chancelada por um modo de existir que ele (uma pessoa sem deficiência), absolutamente, pode dimensionar.

Mehry (2014, p. 03) afirma, em sua discussão, que apenas os que apostam nas verdades do outro (abrindo mão das suas próprias verdades) defendem “a vida em seus vários planos de produção”, o que, para esta reflexão, significa validar as apostas que as pessoas com deficiência fazem para produzir a sua existência. A fala e o gesto criador de Larry Allison, quando relata sobre a proposta do Camp Jened, são emblemáticos dessa aposta. Ele enfatiza: “nós é que tínhamos que mudar!”

A abertura para a alteridade como biopotência implica assumir-se ignorante frente ao outro, abandonar a noção de ‘corpo próprio’ como uma baliza para estimar o que pode o corpo do outro. É preciso desacomodar saberes para o reconhecimento da potência, e não da falta nos corpos de pessoas com deficiência.

Concluindo este tópico de discussão, podemos afirmar que o reconhecimento do desejo do outro como ponto de referência para o agir é uma forma de implicação ético-política, na tentativa de criar uma sociedade na qual a vida de qualquer um tenha o mesmo valor (Merhy, 2014).

Crip Camp é repleto de passagens que permitiram aos participantes da extensão, ao mesmo tempo, a surpresa diante da potência das pessoas com deficiência que protagonizam o documentário e o reconhecimento de um olhar capacista revelado no próprio ato de se surpreender. Nesse sentido, o modo como o documentário foi produzido, a partir dos relatos e registros realizados pelos próprios campistas, foi decisivo na produção da desterritorialização do olhar. São eles que tomam a voz, afirmando ao espectador a potência de seus corpos, e isso fez e faz toda a diferença!

Tutela, Privacidade, Dependência e Autonomia

A tutela suposta como sempre necessária no auxílio às pessoas com deficiência surge na fala dos participantes da extensão como outra questão-problema. O segmento do documentário que traz uma roda de conversa entre os adolescentes sobre a superproteção dos pais foi registrado por vários estudantes e desencadeou a discussão sobre a condição da falta de privacidade, explicitada como angustiante pelos acadêmicos e difícil de ser imaginada por eles. Ao lado desta, a dependência e a autonomia também entraram na roda do debate. Sobre isso, foram destacadas algumas falas dessa passagem polêmica do documentário:

“Estamos aqui para falar sobre pais e como eles nos incomodam e se gostamos deles. Vamos começar falando da superproteção que eu odeio, alguém quer começar?” (James LeBrecht)

“Meus pais são ótimos, mas às vezes eu os odeio porque eles são superprotetores demais. Tem coisas que eu queria muito fazer, mas eles dizem que não posso porque tenho uma deficiência. Eles ficam me lembrando que eu estou numa cadeira de rodas e não percebem que tem muita coisa que eu posso fazer” (campista não identificada).

“Eu dependo da minha mãe para algumas coisas, não posso brigar com ela como eu queria [...] se estou numa situação em que não consigo fazer alguma coisa, é ela quem tem que fazer. Então, ficar incomodando minha mãe constantemente, em algum momento ela vai ficar relutante”(James LeBrecht).

[Nancy RosenBlum toma a palavra. Ela não consegue produzir uma fala oralmente articulada e fica difícil compreender o que ela está dizendo. Contudo, todos a escutam atentamente]

“Alguém entendeu? [pergunta o monitor] Uma parte?[monitor se dirigindo para Steve Hofmann].

“Acho que Nancy está falando o que todos querem. Poder ficar sozinho às vezes, pensar sozinho e estar sozinho. E eu acho que a Nancy está dizendo que ela não teve direito à privacidade, é isso!” (Steve Hofmann)

[Nancy consegue oralizar algo próximo de “Sim é verdade”]. (Nancy Rosenblum)

“Esse é um dos maiores direitos.” (Steve Hofmann)

“Meu Deus, eu nunca parei pra pensar que essas pessoas ficam numa condição de total dependência do outro, muitas vezes! Não consigo me imaginar sem a minha privacidade! Deve ser muito difícil!”(Estudante 6)

“Nesse trecho do filme, também tem uma coisa que me chamou bastante a atenção. Aquela parte que colocam o microfone para aquela menina falar. Não dava pra entender o que ela dizia e, mesmo assim, ela tinha ali um espaço pra falar do jeito que ela podia! Não sei se as pessoas estavam entendendo, mas elas ficaram escutando.” (estudante 7)

“É, e nesse ponto eu pensei que eu não sei se saberia como lidar com uma situação como essa. Acho que eu ficaria meio paralisada, sem saber o que fazer.” (estudante 8)

A privacidade remete ao desejo e ao direito que uma pessoa tem de permitir e regular o acesso do outro àquilo que pertence à esfera íntima de sua vida, decidir com quem deseja compartilhar certos aspectos, informações, situações, enfim, remete ao direito de regular o modo de relação com o outro. No texto do Decreto nº 6.949 de 25 de agosto de 2009, que Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, o Respeito à Privacidade comparece no Artigo 22, item 1:

Nenhuma pessoa com deficiência, qualquer que seja seu local de residência ou tipo de moradia, estará sujeita a interferência arbitrária ou ilegal em sua privacidade, família, lar, correspondência ou outros tipos de comunicação, nem a ataques ilícitos à sua honra e reputação. As pessoas com deficiência têm o direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques. (Brasil, 2009)

Embora o resguardo da privacidade seja previsto na legislação, esta pode ser uma questão bastante complexa e fragilizada na vida de determinadas pessoas com deficiência, considerando o grau e certos planos de dependência do outro, ou seja, o quanto precisam, de fato, de outras pessoas para auxiliá-las no cotidiano de sua vida. Nessa dimensão, a presença constante do outro nos ambientes, sua coparticipação nos deslocamentos e em determinados cuidados que requerem, por exemplo, a exposição do corpo, esgarça o limite de proteção da pessoa e compromete a privacidade.

A experiência de Nancy Rosenblum, ainda comentada mais adiante neste trabalho, permite um profundo deslocamento do olhar antecipatório da necessidade de tutela. Mesmo vivendo em condições corpóreas altamente restritivas da mobilidade, pudemos evidenciar que o funcionamento de potentes redes de suporte, atravessadas por uma concepção personalizada da deficiência, sustentaram a implementação de estratégias e soluções que lhes permitiram encaminhar a vida a partir de suas próprias escolhas e decisões.

No que diz respeito à autonomia, quais sentidos interessam movimentar atualmente, quando tal questão é abordada na dimensão contemporânea da vida de pessoas com deficiência? Costa (2014) problematiza a polissemia vigente em torno dessa questão no campo discursivo atual. Trata-se, para o autor, de um apelo legítimo das pessoas com deficiência em diversos planos de existência. Contudo, adverte que não se deve negligenciar o fato de que, no contexto liberal atual, cada vez mais individualista e competitivo, a palavra autonomia ganha certas conotações a partir de um viés meritocrático bastante questionável.

Neste ponto, Costa (2014) traz uma reflexão importante no campo do trabalho para exemplificar a questão. Salienta que, diante do preconceito e da falta de preparação das empresas, uma enorme barreira de acesso aos postos formais de trabalho é enfrentada pelas pessoas com deficiência no Brasil. Neste caso, a ‘alternativa’ ao trabalho ‘autônomo’, tantas vezes valorizada no discurso social enquanto ‘atitude empreendedora’, longe de ser uma escolha, é uma necessidade decorrente da falta de oportunidades.

Ou seja, como enfatiza o autor, a autonomia de que se trata “remete a uma situação de fragilidade e precariedade da pessoa com deficiência em sua tentativa de se tornar empreendedor” (Costa, 2014, p. 106), o que acaba por fazer obstáculo ao seu processo de inclusão social. Outro aspecto abordado pelo autor é o da ‘autonomia’ no plano da funcionalidade do corpo, supostamente obtida mediante a prática de atividades físicas regulares, atrelada à noção de autoestima e de uma “condição de suficiência do indivíduo” (Costa, 2014, p. 108), que decorre de seu nível de conscientização e de autogerenciamento.

O autor recupera, ainda, outros sentidos do termo autonomia que circulam socialmente, reforçadores da demanda genuína das pessoas com deficiência pelo alcance dessa condição. Entretanto, deixa ver que as estratégias de autonomia propagadas discursivamente na sociedade, hoje, remetem a noções atreladas à “condição de autogoverno das condutas das pessoas com deficiência, de forma a assegurar que elas possam gerir suas vidas por conta própria”. Nesse sentido, um modo de “[unificar] as ações de atores e campos dos mais heterogêneos” pela via da responsabilização (Costa, 2014, p. 110).

A reflexão do autor dá ênfase ao fato de que, por trás de um discurso corrente e bastante sedutor acerca da autonomia, pessoas com deficiência são situadas em posição de desvantagem, na medida em que tal discurso desobriga a sociedade de lhes ofertar todos os bens e oportunidades de que necessitam, num país extremamente desigual como o Brasil.

Retomando a questão inicialmente colocada neste tópico de discussão, enfim: quais sentidos interessam movimentar atualmente, quando abordada a questão da autonomia na dimensão contemporânea da vida de pessoas com deficiência? Mais uma vez, nos alinhamos ao pensamento de Costa (2014, p. 112-113), ao afirmar:

Nada nos impede, contudo, de colocar a seguinte questão: autônomo em relação ao quê? Autônomo para entrar em relação. A conquista da autonomia significa a superação [de certos planos] da dependência e, portanto, uma condição para se estabelecer relações que se consideram equipotentes. Como se diz: estar em pé de igualdade em uma relação, estar potente o suficiente para estabelecer uma boa relação, eis o que busca, nos diversos sentidos de autonomia, uma pessoa com deficiência ou não. Para além de sua suposta bioidentidade, o que uma pessoa com deficiência almeja é a realização de sua biopotência, que nada mais é que a expansão de sua existência no domínio diverso das relações humanas. Essa seria outra maneira de se entender os desafios da inclusão.

A Revolução pela via da Deficiência

O que permitiu, afinal, que o acampamento dos Crip desse passagem à Disability Revolution, conforme enunciado no título original do documentário?

“No acampamento, vimos que as nossas vidas podiam ser melhores.” (James LeBrecht)

“Nós conversávamos muito e isso permitiu que conhecêssemos que precisávamos encontrar formas de fazer as coisas juntos. Não só no acampamento, mas fora também [...] Eu nunca senti vergonha da minha deficiência, só senti exclusão. Para mim, o acampamento foi empoderador, porque nos ajudou a entender que as coisas não precisavam ser do jeito que eram.” (Judy Heumann)

Judy tornou-se uma das principais protagonistas na luta pelos direitos civis das pessoas com deficiência nos EUA. Enquanto presidente da Disabled in Action, uma organização política destinada a defender os direitos desse segmento da população, convidou e reuniu ex-campistas do Jened, além de outras pessoas, para participarem de vários protestos, com o objetivo de pressionar o governo na implementação de leis enquanto dispositivos jurídicos necessários à concretização desses direitos.

Ao longo do documentário, contrastando com a potência desse movimento, o desprezo da classe política pela vida das pessoas com deficiência é escancarado. Inicialmente, isso é evidenciado na argumentação de que o projeto de lei da reabilitação seria insustentável em termos de custo-benefício. Mais tarde, quando aprovada, sob pressão popular, essa lei não é, de fato, implementada ou respeitada. Enfim, poderíamos resgatar muitas passagens interessantes nessa trajetória, mas faremos um recorte neste ponto, com o objetivo de interrogar sobre a suficiência das legislações para a concretização das ações no plano da inclusão social da pessoa com deficiêcia.

Ao lado de Costa (2014, p. 89), podemos reconhecer a existência de limites no Plano dos Direitos, mesmo que, por essa via, condutas sejam normatizadas e regras sejam instituídas. O problema é que, fora de seu escopo, permanece “a natureza intrínseca das relações sociais”, ou seja, a maneira como as pessoas serão tratadas a partir das leis, e isso diz respeito ao modo de implicação do outro, o que remete ao plano da ética.

A Lei, de forma alguma, pode garantir este aspecto. O autor nos permite compreender o quão paradoxal é esta questão, uma vez que, se pelo lado do campo jurídico, uma espécie de ‘passaporte’ é emitido, a ausência de acolhimento no plano das relações pelo lado não-jurídico torna impossível a ‘entrada no recinto’. E mesmo que se entre, não há encontro, de fato! Mas por que motivo não há? Segundo Costa (2014, p. 90):

[...] é preciso caminhar na direção de uma ética da vida, ética que cria as condições para gerar um comum, ali onde é possível que uma alteridade possa se dar, onde as relações de implicação e engajamento permitam que as diferenças circulem, apesar dos estigmas, pois se está instalado desde sempre em um comum, que deixa as bioidentidades em seu devido lugar : um simples recurso para se obter alguns direitos. Nesse momento começa a real discussão sobre inclusão social, quando o fato de ser pessoa com deficiência é simplesmente envolvido [na questão] por sua cidadania, pelo ser humano que ela representa.

Pois bem, a produção do comum pode ser apreendida em Crip Camp em vários momentos, mas em um deles, particularmente, torna-se evidente a força das redes de relações operando em Berkeley (São Francisco), um território que nos pareceu muito rico nos modos de viver. Ali funcionava (e funciona ainda hoje) um dos Center for Independent Living (CIL) americanos.

Este Centro foi administrado por Judy Heumann e outros ex-campistas na década de 70. Tratava-se de um espaço onde pessoas com deficiência ajudavam-se para solucionar problemas em comum. A estrutura do Centro foi registrada por meio de uma sequência de cenas de uma matéria jornalística. O foco era dirigido para o acolhimento dos usuários e para a alta tecnologia de seu laboratório, na época, com equipamentos eletrônicos de ponta para carregar cadeiras de roda e baterias, além de serviços de transporte, cujo objetivo era melhorar a autosuficiência da pessoa com deficiência.

“Não será problema encontrar um cuidador. Vou te dar uma lista de pessoas que querem trabalhar na hora que você precisa e o telefone delas, ok, e o que precisar estamos aqui.” (Nanci D’Angelo)

“Se quiser morar numa casa é seu direito. Vamos te ajudar a encontrar uma. É aqui que você pode solicitar dinheiro para pagar um cuidador.” (Judy Heumann)

Nancy Rosenblum surge numa cena em seu apartamento. Ela está morando sozinha. Tem uma cuidadora para ajudá-la.

“Na primeira semana em Berkeley recebi uma cadeira motorizada pela primeira vez na vida. Foi uma libertação! (Denise Sherer Jacobson).

“Ao longo de toda essa discussão, a gente percebe o quanto é complexo essa questão de poder ver na deficiência um potência. Olha só esse território de Berkeley, olha a organização toda, o apoio todo que existe aí. A gente pode dizer que essas pessoas levam uma vida como elas desejam graças a esse apoio! Onde existe aqui no Brasil esse tipo de ajuda, esse tipo de estrutura?”(estudante 9)

“É mesmo, aquela moça, a Nancy, morando sozinha, é impensável aqui! (estudante 10)

“O que acontecia no acampamento e o que acontecia em Berkeley eu acho que já era bem a concretização do lema das pessoas com deficiência: nada sobre nós sem nós!” (estudante 11)

A experiência desenvolvida em Berkeley ultrapassa o plano da jurisdição no sentido de que aquilo que foi apresentado e vivenciado vai além do que deve ser instituído por força da Lei. Vimos encontros se tecendo num movimento de implicação verdadeira, na produção intensiva das vidas, o que implica a convivência na sociedade a partir do respeito à diferença e do reconhecimento das pessoas com deficiência em sua alteridade. Trata-se de um arranjo social também conformado por ajudas técnicas, estratégias e recursos, os quais dão materialidade efetiva à cidadania e à dignidade humana inscritas no plano jurídico.

Já sabemos que a deficiência não está na pessoa. Ela decorre da falta de respostas efetivas do Estado, e da sociedade como um todo, em favor da eliminação dos obstáculos que impedem o exercício dos direitos e liberdades de todo e qualquer ser humano (Brasil, 2009; 2015).

Neste ponto, é preciso interrogar sobre o Brasil. Num país constituído amplamente por territórios de pobreza, pela marginalidade de muitas de suas populações e pela violência, em que pé estamos na conscientização das diferenças quando, em questão, estão as pessoas com deficiência?

Souza (2021) toca diretamente nessa questão, referindo que sistemas, valores e práticas arraigadas na história deste país, como o paternalismo, o preconceito, o desconhecimento, dentre outros, fizeram da discriminação à pessoa com deficiência algo trivial, expresso nas barreiras físicas e atitudinais encontradas em quase todos os lugares de circulação pública e privada. O autor salienta “a inconsciência generalizada” de nossa sociedade, que, ao apagar o caráter de marginalização desses sistemas, valores e práticas, transforma “o que [é] direito e dever em favor”. E pela via do favor torna, ainda, “o direito de cidadania e dignidade humana, uma violência” (Souza, 2021, p. 45).

São incalculáveis os esforços ainda necessários para que a sociedade brasileira afaste a violência caracterizada acima e trate a questão da deficiência no Brasil em sua integralidade, a partir do que é preconizado nos paradigmas da inclusão social e dos direitos humanos. É preciso dar um basta à “banalização da inconsciência”, a qual invisibiliza de forma vergonhosa a discriminação histórica dirigida às pessoas com deficiência neste país. O projeto de extensão ora abordado neste estudo pretendeu contribuir nessa direção.

Considerações Finais

Esta pesquisa não objetivou produzir conhecimentos sobre deficiências, tampouco nos autorizamos a falar pelas pessoas com deficiência. Tratou-se de apreender os efeitos, em nós, dos encontros com essas pessoas, o que se deu pela via do cinema, tão potente para deterritorizaliar pré-concepções. Efeitos que colocaram nossos discursos e nossos olhares em suspensão e nos permitiram submeter à reflexão as temáticas acima discutidas.

Futuramente, alguns dos estudantes participantes deste estudo poderão encontrar-se com pessoas com deficiência no campo do cuidado ou da educação. Espera-se que a experiência sensível vivenciada nas rodas de conversa durante a Extensão “A pessoa com deficiência: diálogos a partir do cinema e de outras mídias audiovisuais”, ainda que corresponda a uma pequena parte de seu processo formativo, e muitas vezes seja estrangeira aos saberes dos núcleos profissionais movimentados na graduação, possa interceder radicalmente nos modos de olhar essas pessoas. Quem sabe, reposicioná-los nesses encontros, de modo a valorizarem a importância de compartilhar com elas o que dos saberes nucleares de sua profissão interessa mobilizar nos processos de cuidado e nos processos educativos. É nessa medida que poderão abrir-se ao devir dos encontros de forma sempre implicada, respeitosa e ética.

Fecho este artigo com uma produção sensível que, de certa forma, sintetiza o efeito provocado por Crip Camp em nós. Trata-se do poema de Ademar Ferreira dos Santos, no prefácio do livro A Escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir, de Ruben Alvez (2001). Dele, trazemos algumas estrofes que apontam para o deslocamento necessário à capacidade de reconhecer o outro na sua diferença e de acolhê-la em nós. O poema nos remete à alteridade!

Não cobiço e nem disputo os teus olhos

Não estou sequer à espera que me deixe ver através dos teus olhos

Nem sei tampouco se quero ver o que veem e do modo como veem os teus olhos

Nada do que possas ver me levará a ver e a pensar contigo

Se eu não for capaz de aprender a ver pelos meus olhos e a pensar comigo

Não me digas como se caminha e por onde é o caminho

[...]

Não me prendas as mãos

Não faças delas instrumento dócil de inspirações que ainda não vivi

Deixa-me arriscar o molde talvez incorreto

Deixa-me arriscar o barro talvez impróprio

Na oficina onde ganham forma e paixão todos os sonhos que antecipam o futuro

[...]

Protege-me das incursões obrigatórias que sufocam o prazer da descoberta E com o silêncio (intimamente sábio) das tuas palavras e dos teus gestos Ajuda-me serenamente a ler e a escrever a minha própria vida.

Referências

BRASIL. Decreto n° 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Brasília, DF, 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm. Acesso em: 05 jul. 2023.

BRASIL. Lei n° 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Brasília, DF, 2015. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: 05 jul. 2023.

COSTA, Rogério. A biopolítica nos estudos sobre pessoas com deficiência. In: SOUZA, Luiz Augusto de Paula et al. (org.). Diálogo (bio)político sobre alguns desafios da construção da Rede de Cuidados à Saúde da Pessoa com Deficiência do SUS. Brasília, DF 2014. p. 84-130. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/dialogo_bio_politico_pessoa_deficiencia.pdf. Acesso em: 01 jun. 2023.

DELEUZE, Gilles. Espinosa: Filosofia Prática. São Paulo: Escuta, 2002.

GARCIA, Eduardo de Campos. Deficiência: gênese e crítica de um conceito. 2011. Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura) - Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, 2011. Disponível em: https://dspace.mackenzie.br/items/442fec07-1bcd-4ab7-803c-c097df265bbf. Acesso em: 03 jun. 2023.

GUATARRY, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 1996.

MARTINS, Lilia Pinto. Artigo 2 – Definições. In: RESENDE, Ana Paula Crosara; VITAL, Flavia Maria de Paiva (org.). A Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência Comentada. Brasília, DF: Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, 2008. p. 28-30. Disponível em: https://www.gov.br/governodigital/pt-br/acessibilidade-digital/convencao-direitos-pessoas-deficiencia-comentada.pdf. Acesso em: 20 fev. 2023.

MELLO, Anahi Guedes. Deficiência, incapacidade e vulnerabilidade: do capacitismo ou a preeminência capacitista e biomédica do Comitê de Ética em Pesquisa da UFSC. Cien Saude Colet., Rio de Janeiro, v. 21, n. 10, p. 3265-3276, oct. 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/J959p5hgv5TYZgWbKvspRtF/abstract/?lang=pt. Acesso em: 01 jun. 2023.

MERHY, Emerson Elias. As vistas dos pontos de vista. Tensão dos programas de saúde da família que pedem medidas. Revista Brasileira de Saúde da Família, Brasília, v. 14, 2014. Disponível em: http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/documentos/artigo_emerson_merhy.pdf. Acesso em: 01 ago. 2023.

METZ, Christian. A significação do cinema. São Paulo: Perspectiva, 1972.

NOGUEIRA, Geraldo. Artigo 1 – Propósito. In: RESENDE, Ana Paula Crosara; VITAL, Flavia Maria de Paiva (org.). A Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência Comentada. Brasília, DF: Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, 2008, p. 26-28. Disponível em: https://www.gov.br/governodigital/pt-br/acessibilidade-digital/convencao-direitos-pessoas-deficiencia-comentada.pdf. Acesso em: 20 fev. 2023.

ONU. Declaração dos Direitos Humanos de 10 de dezembro de 1948. Proclama a declaração universal dos direitos humanos. Disponível em: https://nacoesunidas.Org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf. Acesso em: 01 ago. 2023.

ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. 2.reimp. Porto Alegre: Sullina/Editora da UFRGS, 2011.

SOUSA, Caio Silva. A dignidade da pessoa com deficiência no Estado Democrático de Direito. In. Dias, Joelson; Santana Neto, Joaquim (org.). In: Comentários aos direitos da pessoa com deficiência. 2. ed. Brasília, DF: OAB Editora, 2021, p. 35-47. Disponível em: https://www.mpba.mp.br/sites/default/files/biblioteca/direitos-humanos/direitos-da-pessoa-idosa/publicacoes/comentarios_aos_direitos_da_pessoa_com_deficien-cia_2._ed.pdf. Acesso em: 20 fev. 2023.

VASCONCELLOS, Jorge. A Filosofia e seus intercessores: Deleuze e a não Filosofia. Educ. Soc., Campinas, v. 26, n. 93, p. 1217-1227, set.t 2005. Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/vxm4Hnh5fhbMFjpTLLqRbZN/?format=pdf. Acesso em: 01 jun. 2023.

VENDRAMIN, Carla. Repensando Mitos Contemporâneos: o capacitismo. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL REPENSANDO MITOS CONTEMPORÂNEOS, 2019., p. 16-25. Disponível em: https://www.publionline.iar.unicamp.br/index.php/simpac/article/view/4389. Acesso em: 10 fev. 2023.

Notas

1 A palavra “deficiência” tem origem no Latim nas palavras “deficere”, “deficiens”, “de facere”, as quais remetem, respectivamente à falha, decadência e à negação/privação em relação a um “fazer” (Garcia, 2011).


Buscar:
Ir a la Página
IR
Visor de artículos científicos generados a partir de XML-JATS4R por