A INFLUÊNCIA DA GLITCH ART NO DESENVOLVIMENTO DE NARRATIVAS VERBAIS NAS TECNOLOGIAS CONTEMPORÂNEAS

Rodrigo Antunes Morais
ontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil

A INFLUÊNCIA DA GLITCH ART NO DESENVOLVIMENTO DE NARRATIVAS VERBAIS NAS TECNOLOGIAS CONTEMPORÂNEAS

Revista Prâksis, vol. 2, 2016

Centro Universitário Feevale

Resumo: O presente artigo busca estudar a influência dos signos sonoros e visuais da glitch art no desenvolvimento de signos verbais no processo de comunicação nas tecnologias contemporâneas. Devido aos recursos pelos quais o processo de glitch art acontece, a linguagem verbal muitas vezes é sublimada na análise perceptual. Portanto, a presente pesquisa tenta entender como o processo de glitch art influencia nos diferentes tipos de linguagens perante a comunicação nas tecnologias digitais comunicacionais atuais; iniciando uma vertente de estudos que entenda o processo de glitch art como pertinente a uma multiplicidade de linguagens possíveis nessas tecnologias citadas. Para isso o estudo tem base em um levantamento bibliográfico pautado em Rosa Menkan para a reflexão sobre a natureza, as etapas e os limites das imagens geradas pela degeneração digital e ainda uma reflexão feita a partir da obra Matrizes de linguagem e pensamento: sonora, visual, verbal: aplicações na hipermídia de Lucia Santaella para demonstrar que, a partir da teoria peirceana, é possível entender que a linguagem sonora na glitch art é pautada em uma esteticidade que é corporificada em signos visuais que também passam por um processo de ressignificação e incorporam a lógica da verbalidade.

Palavras-chave: Glitch art, Linguagens, Ressignificação, Narrativas verbais, Tecnologias contemporâneas.

Abstract: This paper aims to study the influence of sound and visual signs from glitch art in the development of verbal signs in the communication process in contemporary technologies. Due to the resources for which the process of glitch art happens, verbal language is often sublimated in the perceptual analysis. Therefore, this research tries to understand how the process of glitch art influences in different languages before the communication in the current communication digital technologies; starting a strand of studies to understand the process of glitch art as relevant to a multitude of possible languages in these technologies mentioned. For this, the study is based on a literature review guided by Rosa Menkan for reflection on the nature, the steps and the limits of the images generated by digital degeneration and also a reflection on the work Matrizes de linguagem e pensamento: sonora, visual, verbal: aplicações na hipermídia by Lucia Santaella to show that, from Peirce’s theory, it is possible to understand that the sound language in the glitch art is guided by an aesthetic that is embodied in visual signs that also undergo a process of resignification and incorporate the logic of verbality.

Keywords: Glitch art, Languages, Resignification, Verbal narratives, Contemporary technologies.

A Glitch art

A glitch art já carrega em seu nome certos significados que fundamentam o propósito de sua existência. A palavra inglesa glitch, que pode ser entendida como um sinônimo de bug, traz o conceito da falha de um sistema e pode estar ligada etimologicamente ao verbo “to glide”, ou “deslizar”, proveniente da palavra “glitsh” do ídiche, um idioma de subgrupo germânico adotado por judeus na Europa Central e na Europa Oriental. De fato, o termo “glitch”, em seu uso contemporâneo, está carregado de uma significação estética vinculada ao erro técnico de produção, ou seja, trata da estetização de erros sistêmicos a partir da aceitação da transitoriedade e da imperfeição. Com isso, é possível iniciar o entendimento do contexto da estetização artística dos erros de sistema: a glitch art.

Rosa Menkman inicia sua explicação sobre a glitch art a partir de uma passagem de Paul Virilio e Sylvere Lotringer na qual os autores dizem:

Mau funcionamento e fracasso não são sinais de produção inadequada. Pelo contrário, eles indicam a produção ativa do “potencial acidental” em todo o produto. A invenção do navio implica seus destroços, a máquina a vapor e a locomotiva descobrem o descarrilamento.1 (VIRILIO; LOTRINGER apud MENKMAN, 2011, p. 26)

O que Rosa Menkman expõe com essa citação é que, quando a causa do ruído de um artefato é conhecida, este ruído não é entendido apenas como uma falha, mas sim como uma significação de um novo artefato. Sendo assim, um resultado não intencional de um sistema não pode apenas ser visto como um resultado, mas como uma força conceitual determinada pelo aparato técnico. “A partir de uma perspectiva informacional (ou tecnológica), a falha é melhor considerada como uma ruptura de (um dos) fluxos de dados protocolizados dentro de um sistema tecnológico.”2 (MENKMAN, 2011, p. 26). Segundo essa proposta, em uma perspectiva da cultura das mídias, uma falha em um sistema pode ser entendida como uma interpretação de um fenômeno definida por um contexto social ou cultural. Isso quer dizer que uma falha está aberta para conotações simbólicas a partir de uma percepção estetizada de ruídos.

Na glitch art o ruído aparece, portanto, como um elemento significante que produz estética em uma linguagem digital. O ruído pode se revelar à percepção como um acidente e pode ser vislumbrado em uma linguagem digital dada por algoritmos computacionais. “Ao invés de criar a ilusão de uma interface bem trabalhada transparente à informação, a glitch captura a máquina se revelando”3 (ibid.: 30). Desta forma, a glitch art desponta como uma relação entre humano e máquina que revela uma simbiose na qual os seres humanos se submetem às máquinas para produzir obras que revelam a essência involuntária da linguagem causal dos dispositivos.

É possível entender que esse processo vai além da interação do artista com seu aparato técnico, pois a linguagem gerada pela glitch art pressupõe valores estéticos gerados ao acaso por um aparato tecnológico. Sobre isso, é relevante destacar a importância dos estudos de Vilém Flusser acerca do aparato técnico:

Por conseguinte, não mais vale a pena possuir objetos. O poder passou do proprietário para o programador de sistemas. Quem possui o aparelho não exerce o poder, mas quem o programa e quem realiza o programa. O jogo com símbolos passa a ser jogo do poder. Trata-se, porém, de jogo hierarquicamente estruturado. O fotógrafo exerce poder sobre quem vê suas fotografias, programando os receptores. O aparelho fotográfico exerce poder sobre o fotógrafo. A indústria fotográfica exerce poder sobre o aparelho. E assim ad infinitum. No jogo simbólico do poder, este se dilui e se desumaniza. Eis o que sejam “sociedade informática” e “imperialismo pós-industrial”. (FLUSSER, 1985, p. 17)

Evidente que a passagem de Flusser não está diretamente ligada ao contexto da glitch art, mas é importante entendê-la como uma possível precursora para essa questão. O que o autor destaca é o poder que o aparelho pode exercer sobre o produtor de imagens, enquanto no contexto da glitch art o que se destaca é o poder do aparelho sobre o resultado da proposta, ou seja, esse processo artístico não está apenas pautado na forma com a qual o aparato técnico pode determinar a ação do artista, mas sim na forma com a qual o aparato técnico pode produzir linguagem estética na obra de arte.

Há uma relação única entre o artista e seu meio na criação de glitch art, que vai além da interação entre um ilustrador e sua caneta, ou um pintor e sua tela. Ilustrações, pinturas, esculturas, desenho industrial, gifs, tecidos – esses meios exigem um domínio de diferentes ferramentas que o artista, em última análise, empunha com um alto nível de controle (se eles são considerados “bons” em seus meios). Uma vez que estas formas mais convencionais de arte permitem ao artista assumir plenamente a propriedade, responsabilidade e controle durante o processo de tomada de arte, o produto final é a forma mais desenvolvida e intencional de comunicação entre o artista e o público. Em outras palavras, a estética final quase sempre reina suprema, enquanto o processo do artista é secundário. Artistas glitch, por outro lado, utilizam um meio que desempenha um papel ativo na determinação da obra de arte final. A perda de controle do artista e a imprevisibilidade do dispositivo são aspectos fundamentais na produção da obra; o artista tem poder sobre uma parte do processo artístico no dispositivo e permite que a glitch tome as rédeas.4 (ROY, 2014, online)

Essa dependência digital da glitch art demonstra uma relação de deformações temporais no artefato artístico. À exemplo das imagens da glitch art, pode-se perceber que essas imagens digitais, ou eletrônicas, têm capacidade de transformação muito semelhante ao campo sonoro:

A imagem eletrônica é sempre e necessariamente uma anamorfose cronotópica, de onde advém sua extraordinária capacidade de metamorfose. [...] Ora, que na imagem é anamorfose, manipulação da sua integridade formal, constitui-se justamente na sua conversão morfológica a algo que se assemelha à natureza constitutiva do som. (SANTELLA; NÖTH, 2013:97)

Isso significa que as imagens digitais são capazes de serem comprimidas, dilatadas, multiplicadas e torcidas até o limite da transfiguração pelo tempo, ou seja, possuem uma capacidade muito grande de metamorfose por serem constituídas por pixels. “O pixel é localizável, controlável e modificável por estar ligado a matriz de valores numérico. Essa matriz é totalmente penetrável e disponível, podendo ser retrabalhada” (ibid.).

Para esse tipo de produção é necessário entender que a causalidade dos aparatos técnicos pode ser estabelecida a partir desde tecnologias analógicas com mau funcionamento até processos mais complexos como a alteração de um circuito interno do aparato, a abertura de arquivos por softwares determinados para outros tipos de arquivos, criação de algoritmos para manipular aleatoriamente um arquivo ou deterioração intencional por meio de perda de dados em um processo de compressão. A autora Lana Polansky refere-se a esses processos em alusão ao dadaísmo e à ideologia punk:

Eu não me refiro apenas como uma questão de processo, mas como uma questão de história: o movimento Fluxus, talvez melhor exemplificado pelo artista coreano Nam June Paik, tem raízes no dadaísmo (que é também conhecido, na verdade, como “neo-dada”), que em si foi uma forte influência filosófica e estética do movimento punk. Podemos até mesmo desenhar conexões entre “glitch” como sensibilidade, talvez, e ideologia “punk”, em termos de reaproveitamento e corrupção deliberada de materiais, impropriedade, declarações de radicalismo, de desmantelamento sistêmico ou pelo menos interrogatório, e assim por diante.5 (POLANSKY, 2014, online)

Essa relação leva a entender o tipo de estética pertinente à glitch art sob um aspecto fenomenológico na classificação das ciências feita por Charles Sanders Peirce. Dentro de seu quadro das ciências filosóficas pode-se, então, perceber uma divisão em três segmentos: a fenomenologia, as ciências normativas e a metafísica. Sendo assim, para que se entenda a estética da glitch art, torna-se necessário recorrer ao estudo das categorias universais da experiência: a fenomenologia.

A fenomenologia ou phaneroscopia (este último termo preferido por Peirce) tem origem na palavra grega phaneron que, traduzindo para o português, obtém-se a palavra fenômeno. Faneroscopia é a descrição do fenômeno. E por fenômeno, Peirce entende tudo aquilo, qualquer coisa que se apresenta à percepção e à mente. (CHIACHIRI, 2010, p. 39)

Dessa forma, Peirce chega as três categorias formais e universais da experiência:

Os estudos que empreendeu levaram Peirce à conclusão de que há três, e não mais do que três, elementos formais e universais em todos os fenômenos que se apresentam à percepção e à mente. Num nível de generalização máxima, esses elementos foram chamados de primeiridade, secundidade e terceiridade. A primeiridade aparece em tudo que estiver relacionado com acaso, possibilidade, qualidade, sentimento, originalidade, liberdade, mônada. A secundidade está ligada às ideias de dependência, determinação, dualidade, ação e reação, aqui e agora, conflito, surpresa, dúvida. A terceiridade diz respeito à generalidade, continuidade, crescimento, inteligência. A forma mais simples da terceiridade segundo Peirce, manifesta-se no signo, visto que o signo é um primeiro (algo que se apresenta à mente), ligando um segundo (aquilo que o signo indica, se refere ou representa) a um terceiro (o efeito que o signo irá provocar em um possível interprete). (SANTAELLA, 2005, p. 7)

Enquanto a fenomenologia estuda os fenômenos tais quais eles aparecem, as ciências normativas estudam esses fenômenos na medida em que eles podem agir sobre mentes interpretadoras e na medida em que essas mentes podem agir sobre eles. “Elas estão voltadas, assim, para o modo geral pelo qual o ser humano, se for agir deliberadamente e sob autocontrole, deve responder aos apelos da experiência” (SANTAELLA, 1994, p. 113-14). Ainda nesse contexto da divisão principal da filosofia proposta por Peirce, “a metafísica investiga o que é real, na medida em que esse real pode ser averiguado na experiência comum” (ibid.: 114).

Para que se possa entender essa relação, é relevante para o processo de pesquisa destacar mais uma subdivisão na classificação das ciências de Peirce. Desta forma, as ciências normativas ainda se ramificam em mais três itens: a estética, a ética e a lógica ou semiótica. Sendo que a fenomenologia, dentro desse contexto, deve servir como alicerce para essas ciências:

No que diz respeito à fenomenologia, para começar, seu conteúdo deve ficar bem claro se quisermos compreender as ciências normativas, visto que essas são alicerçadas naquela, o que significa que é da fenomenologia que as ciências normativas emprestam seus princípios. Tendo por função observar os fenômenos encontrados na experiência comum, para extrair deles as mais simples generalizações, a fenomenologia é o alicerce de toda a filosofia, pois seus conceitos simples e elementares dão sustento a todo o edifício. (SANTAELLA, 1994, p. 114)

A estética está, portanto, relacionada a descoberta do que deve ser tido como o ideal supremo da vida humana. De forma mais ampla do que apenas uma teoria do belo, cabe à estética investigar a potencialidade de admiração das coisas sem que haja relação com qualquer outra coisa. “Estados de coisas que, mais cedo ou mais tarde, todos tenderão a concordar que são dignos de admiração” (SANTAELLA, 2005, p. 38).

Já a ética dá continuidade a esse pensamento e trata de entender aquilo que o ser humano está deliberadamente preparado para conceber como afirmação de suas vontades.

Também para a ética Peirce deu uma interpretação tão original quanto deu para a estética. Costuma-se definir a ética como a doutrina do bem e do mal. Peirce discordou disso. O que constitui a tarefa da ética é justamente justificar as razões pelas quais certo e errado são concepções éticas. (SANTAELLA, 2005, p. 38)

Seguindo esse desencadeamento, a lógica pode ser vista sob dois panoramas. Primeiro como uma ciência que estuda as condições para que a verdade seja atingida. Porém, de forma mais ampla e em segundo lugar, a lógica trata das regras requisitadas para o pensamento. Sendo assim, considerando que todo pensamento é dado por signos, a lógica se refere diretamente à semiótica geral.

Para Peirce, a lógica tem dois sentidos: um mais estreito e outro mais vasto. No primeiro, lógica é a ciência das condições necessárias para se atingir a verdade. No sentido mais amplo, é a ciência das leis necessárias do pensamento. Mas, uma vez que todo pensamento ocorre em signos, a lógica, no seu segundo sentido, é semiótica geral, tratando não apenas da verdade, mas também das condições gerais dos signos como signos. (Ibid.: 39)

É possível perceber que Peirce usou nomes extremamente tradicionais em sua classificação das ciências normativas, mas ressignificou suas atuações através de uma regulamentação de interdependência. Nesse sentido, a lógica como estudo das leis necessárias do pensamento, necessita da ética como fator condicional para que esse pensamento ocorra como juízo. E, por consequência, a ética também é dependente da estética no que diz respeito à concepção do estado das coisas.

O empenho ético é, portanto, o meio pelo qual a meta do ideal estético se materializa, assim como a lógica é o meio pelo qual a meta ética se corporifica. As ciências que estão acima no diagrama perfilam o ideal, as que estão em baixo lhe dão corpo. Uma vez que cada uma das ciências normativas diz respeito a um aspecto particular do ideal geral, cada uma continuamente retifica e adiciona conteúdo às outras, e, assim fazendo, aumenta a compreensão das outras. (Ibid.: 39)

Estética e ética levam à lógica e é aqui que se abre a possibilidade para entender a influência dos signos sonoros e visuais da glitch art no desenvolvimento de signos verbais no processo de comunicação nas tecnologias contemporâneas.

A Estética sonora da Glitch art

Uma análise estética da glitch art deve, necessariamente, iniciar pelos termos da sonoridade, uma vez que, sob a influência da fenomenologia, é possível entender essa linguagem sob o domínio da primeiridade. Santaella (1994, p. 115) destaca que “onde quer que haja indefinição, acaso, espontaneidade, frescor, originalidade, indeterminação, sentimento flutuante e desencarnado, aí haverá primeiridade”. E essas são as características essenciais no contextos dos sons da glitch art.

Resgatando o conceito de “ruído” já citado anteriormente, tona-se clara e essência sonora da gitch art.

A estética do ruído representa um desafio tecnológico e perceptual às convenções habituais ou ideológicas. Enquanto os desenvolvedores de mídia projetam suas tecnologias, a fim de que o usuário esqueça a presença do meio, seguindo a lógica ideal de imediatismo transparente, na realidade, a complexidade das respostas inerentemente estéticas e de percepção do usuário para a interface homem-computador requer uma abordagem mais matizada. Como Ernst Gombrich declarou: “No entanto, analisamos a diferença entre o regular e o irregular, que deve finalmente ser capaz de explicar o fato mais básico da experiência estética, o fato de que o prazer está em algum lugar entre o tédio e a confusão”. Situações de ambos, o extremo imediatismo ou a extrema confiabilidade, não contribuem, como seria de esperar, para a riqueza real de uma experiência de mídia. A maioria das pessoas precisa de algum tipo de interação entre surpresa e uniformidade para mantê-los ativamente envolvidos.6 (MENKMAN, 2011, p. 29)

São esses ruídos que compõem grande parte de estética sonora da glitch art, demonstrando um tipo de linguagem que leva em consideração os sons acidentais da captura de um aparato como uma consequência positiva. Nesse sentido, a glitch art coloca em pauta um sistema em alto grau de entropia que revela o que Santaella determina por sintaxes do acaso: “Sob o ponto de vista da sintaxe, possibilidades qualitativas, altamente indeterminadas, que dizer, libertas de quaisquer regras ou leis regendo suas ocorrências, só podem ser sintaxes do acaso” (2005, p. 120).

O acaso sonoro da linguagem sonora na glitch art cresce por meio do poder da espontaneidade e mostra que o sistema pré-estabelecido do ato de uma composição está exposto a diferentes possibilidades:

No momento em que a linguagem musical rompe as molduras dos sistema pré-estabelecidos de leis e regras que prescrevem o ato de compor, essa linguagem fica mais flagrantemente exposta às irrupções do acaso. Isso se acentua sobremaneira a partir do alargamento desmesurado dos materiais sonoros resultantes do advento de tecnologias sonoras, especialmente da síntese numérica que, permitindo a produção de efeitos sonoros de todas as ordens, transformou a composição musical em atos de escolhas numa miríade de possíveis. Prenunciando essa revolução que estava por vir, desde o início do século, principalmente depois de Mallarmé, e desde o movimento Dada, os artistas fizeram do caos um tema artístico de relevância. (Ibid.: 121)

Essa classificação sonora pode ter uma complexidade ainda maior quando vista sob a influência da fenomenologia, de acordo com o que Santaella classifica como “o puro jogo do acaso”, “o acaso como busca” e “as modelizações do acaso”, porém, o que se busca nesse momento é entender a influência desse tipo de linguagem no desenvolvimento de signos verbais. Portanto, para isso, é necessário buscar anteriormente pelas formas que a glitch art corporifica esses sons em signos visuais.

A ESTÉTICA VISUAL DA GLITCH ART

As imagens visuais da glitch art são sua manifestação mais evidente e mais disseminada. Essas imagens revelam um fenômeno no qual os dados digitais se decompõem espontânea e rapidamente, criando uma cultura pop visual que passa por temas como memória, perda, destruição, criação e etc.

Apesar de não ser nova, a arte do ruído surge imprevisivelmente em novas formas através de diferentes tecnologias e cenas culturais. Ao longo do tempo, os artistas do ruído migraram de explorar o grão, raspar e queimar celulóide [...] para a distorção e digitalização de linhas magnéticas do tubo de raios catódicos [...]. Posteriormente, os artistas glitch vagaram pelos planos de queima de fósforo [...]. Com a chegada da tecnologia LCD (liquid crystal display), os pixels mortos eram friccionados, erros foram presos entre cristais líquidos ou expositores de plástico e as performances violentas de quebra de telas de LCD tomaram lugar.7 (MENKMAN, 2011, p. 33)

Sendo assim, os ruídos entendidos na estética sonora da glitch art passam a tomar corpo visual por meio de algoritmos computacionais defeituosos, adulteração de câmeras, softwares incompatíveis ou qualquer outro processo pretendido pelo artista. Sob um olhar da fenomenologia, a estética dessas imagens revela uma invariância de qualidades visuais que emergem de sistema constituídos por unidades de base e regras gramaticais próprias do aparato técnico.

Qualquer declaração visual, mesmo quando reduzida a seus elementos básicos, tende para a organização de uma estrutura de acordo com leis que se manifestam nas relações de repetição, variação, contraste e integração. A série, o ritmo, a progressão, a polaridade, a regularidade, a lógica interna da sequência e do arranjo são leis da estrutura. (SANTAELLA, 2005, p. 221)

Essas leis do acaso na linguagem visual da glitch art estão relacionadas ao contexto da causalidade digital experimental. Isso quer dizer que a degeneração digital gera signos visuais cada vez mais evidentes nas tecnologias contemporâneas. Portanto, é coerente afirmar que o processo de ressignificação desse tipo de linguagem pode evidenciar uma influência direta na construção narrativa nesses mesmos meios: “uma narrativa que vários artistas têm explorado através da glitch art é a corrupção de memória em uma era tecnológica”8 (ROY, 2014, online).

Aqui, é possível iniciar uma vertente de estudos que entenda o processo de glitch art como pertinente a uma multiplicidade de linguagens possíveis nessas tecnologias. Não somente nos âmbitos das linguagens sonora e visual, mas também no domínio da linguagem verbal, algo ainda pouco explorado na literatura sobre a glitch art. Desta forma, se esse tipo de produção artística desponta como um processo de proliferação de imagens por meio de diferentes técnicas, é possível afirmar que as narrativas não lineares pertencentes ao universo das tecnologias contemporâneas sofrem influência dessa percepção sobre novos meios digitais. Com isso, é necessário, então, iniciar uma análise sobre a estética possível para a linguagem verbal na glitch art.

A Estética verbal da Glitch art

Uma análise inicial sobre a estética verbal da glitch art, com a contribuição da fenomenologia, leva a um entendimento primário dos valores dessa linguagem na poesia, até mesmo por sua ligação com o dadaísmo. Porém, o que se busca nesse momento não é apenas entender os valores qualitativos dessa estética, mas sua possibilidade de criar narrativas. Com isso, deve-se levar em consideração os aspectos da narração de uma sucessão de fatos que sofrem uma influência do descompasso temporal originado pelo suporte no qual a narração pode ser feita.

Enquanto na espacialização icônica, os jogos paralelísticos se formam graças aos vários tipos de justaposição entre as sequências daquilo que é narrado, no descompasso temporal, os jogos de projeção colocam em ação dois estratos narrativos distintos: o estrato da história que é contada e o estrato da escritura, isto é, do ato de narrar. Essa distinção não significa que ambas as submodalidades não possam se misturar. (SANTAELLA, 2005, p. 333)

Na glitch art, portanto, a estética verbal não pode ser vista apenas de acordo com os valores do fato narrado, mas também a partir de sua fragmentação por meio de tecnologias digitais. Trata-se de uma combinação de linguagens que busca sua fonte nas matrizes sonora, visual e verbal para explorar a relação dos humanos com tecnologias digitais. Essa não linearidade da estética verbal confere à glitch art um caráter ressignificado do caminho de leitura a partir de sequências aleatórias geradas por uma linguagem computacional.

Esse contexto está diretamente ligado às características hipertextuais da web, uma vez que a narrativa gltich fornece a possibilidade de uma leitura sequencial associativa ou dissociativa entre vínculos interconectados que não são presos a um desencadeamento linear. Sendo assim, é possível compreender a influência da glitch art no desenvolvimento de narrativas verbais nas tecnologias contemporâneas, pois, se o caráter não linear e fragmentado da linguagem verbal nessas tecnologias é dado pelo percurso das características hipertextuais da web, torna-se possível traçar uma análise de que esse processo é dado a partir do repertório do usuário proveniente da degeneração digital na ressignificação de imagens. Com isso, cabe entender, portanto, em que medida a influência dos signos visuais provenientes da degeneração digital podem afetar o desenvolvimento de conteúdo verbal na comunicação feita através das tecnologias contemporâneas.

A influência verbal nas tecnologias contemporâneas

Um exemplo para essa proposta é o feed de notícias do Facebook, pois trata de um hibridismo composto por humanos e algoritmos que forma redes textuais que emergem para cada pessoa que acessa seu perfil nessa plataforma.

Podemos dizer que os textos que emergem de cada um desses acessos são únicos, uma vez que se trata de uma conformação de posts particulares, que envolvem uma lista de amigos e de algoritmos de uma determinada conta na mídia social em um momento específico de nossa experiência, temporalmente. Também são únicos porque, à media que o tempo passa, novos posts vão sendo adicionados e os algoritmos vão sendo agenciados a partir das nossas interações com esses posts e com a interface do Facebook. (JURNO; D’ANDREA, 2015, p. 22)

Esse ambiente sociotécnico do feed de notícias pode ser visto sob a influência da glitch art sob dois aspectos iniciais: (1) pela interação de elementos humanos com algoritmos e (2) pela condição temporalmente fragmentada dada pela involuntariedade humana diante desses algoritmos.

A forma com a qual os algoritmos do Facebook agem dando visibilidade ou invisibilidade aos post no feed de notícias trata de lógicas desconhecidas pelos usuários. Por isso, entender o próprio Facebook como um aparato técnico que pode produzir ruídos na linguagem é necessário para a compreensão da estética verbal que pode sofrer influências da glitch art.

Assim, a partir de cálculos desconhecidos, os algoritmos instauram uma lógica própria de administração dos fluxos de informações, reorganizando os conteúdos a fim de contemplar aquilo que detectam como sendo de interesse de cada um, instaurando um regime peculiar de visibilidade e invisibilidade e uma nova lógica de conhecimento. Torna-se impossível, portanto, separar a agência dos algoritmos da emergência das redes textuais no acesso do usuário ao seu feed de notícias. (JURNO; D’ANDREA, 2015, p. 26)

Essa cartografia verbal gerada pelo processo algorítmico do Facebook funciona como uma ressignificação imagética da narrativa do feed de notícias de cada usuário em um processo similar ao databending usado na glitch art. Originalmente o databending trata da manipulação de um tipo de formato arquivo sendo rodada em um software designado para formatar outros tipos de arquivos, como por exemplo, abrir uma fotografia em um software que apenas tenha suporte para a leitura de arquivos de texto. A glitch art se encontra exatamente nas distorções que esse software pode promover para a leitura desse arquivo original. Porém, no contexto aqui proposto a analogia a esse processo pode ser feita na forma com a qual os algoritmos do Facebook fazem com que o feed de notícias perca sua dimensão linguística temporal:

Nessa visada, o texto deixa de ser pensado somente em sua unicidade para se tornar “muitos”, composto por diversas hibridações e agenciamentos de fragmentos textuais, linguagens e perspectivas sociossemióticas prévias. (JURNO; D’ANDREA, 2015, p. 26)

Com isso, essa característica de ressignificação da influência da glitch art no desenvolvimento de narrativas verbais nas tecnologias contemporâneas está muito próxima do contexto de uma atividade de tradução intersemiótica hibrida, pois tanto o humano quanto o algoritmo são aspectos fundamentais no processo de interpretação de dados. Essa tradução intersemiótica pode ser entendida por meio do seguinte diagrama:

Figura 1 - Processo de tradução intersemiótica

Nesse processo é possível entender a seguinte relação: a etapa 1, que trata de conteúdos e dados como necessidades problemáticas, se refere ao conteúdo a ser elaborado verbalmente por um usuário do Facebook e, na fase 1, a pré-tradução desse conteúdo se estabelece por meio de uma organização mental do discurso levando até a etapa 2, a etapa de conteúdos e dados analisado e textualizados. Essa segunda etapa está ligada a uma imagem mental da narrativa a ser elaborada pelo usuário e, na fase 2, sua interpretação é feita por meio da elaboração da narrativa para a inserção dos dados no Facebook. Isso quer dizer que, enquanto a etapa 1 trata apenas de uma mera possibilidade narrativa, a etapa 2 consiste de uma busca mental para a corporificação desses dados. E é nessa busca pela corporificação de dados que chega-se à etapa 3, a etapa de conteúdos e dados reinterpretados e mediados. Essa reinterpretação e mediação é dada exatamente pelo ato de inserção dos dados no Facebook, o que pressupõe a ação concomitante da etapa 4, uma etapa das possibilidades técnicas do aparato que revela a ação das possibilidades técnicas dadas pelos logaritmos próprios do Facebook. Essa ação logarítmica é o que leva ao processo da fase 3 na tradução de um conteúdo inicial em um artefato pertinente à etapa 5, a etapa de conteúdos e dados traduzidos em um artefato. Essa etapa final está vinculada ao próprio artefato digital da narrativa mediado pelas possibilidades entre humano e máquina.

Portanto, o caráter estético verbal de influência da glitch art nas tecnologias contemporâneas demonstra uma mistura entre ação física (humana) e ação digital que é criadora de um espaço intersticial. É através disso que se torna possível entender como a fragmentação temporal dada por ruídos constitui grande parte da comunicação verbal na contemporaneidade, uma vez que é nessa formação interativa que grande parte da comunicação humana hoje é feita. É justamente esse potencial que confere à glitch art o caráter de uma linguagem eminentemente interativa e necessária no mapeamento de uma cartografia mental da comunicação digital.

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