Resumo: Este artigo apresenta resultados de uma investigação no Médio Vale do Itajaí (estado de Santa Catarina, Brasil) cujo objetivo foi analisar a Cuca (Kuchen) como elemento emblemático de identificação dos seus moradores e a sua relação com o desenvolvimento no território. Entendemos que a Cuca (Kuchen) tem posição de elemento emblemático dentro do sistema alimentar que se formou no Médio Vale do Itajaí. Isto porque está frequentemente presente na mesa de seus moradores até os dias atuais, estando relacionada à uma tradição e identidade local. Trata-se também de um importante produto do comércio étnico (ligado diretamente à manutenção da agricultura familiar) e recentemente vem sendo percebida como alimento “típico”, enquantoatrativo do turismo gastronômico local. Este estudo busca preencher a lacuna existente nos estudos relativos à relação entre identidade,alimentação e desenvolvimento entre grupos oriundos de imigrantes no Brasil, especificamente do Médio Vale do Itajaí. Para tanto, partimos do arcabouço da Antropologia da Alimentação e do método etnográfico com oito entrevistas em profundidade, além de pesquisas de campo, para obter informações relevantes ao estudo sobre a Cuca (Kuchen). Observamos que a Cuca (Kuchen) resultou de um sistema alimentar que foi constituído pelos imigrantes teutos na região, tendo se tornado ao longo do tempo um elemento essencial de sua identidade no terrirório e fez parte do desenvolvimento da região, acompanhando suas transformações.
Palavras-chave:CucaCuca, Identidade Identidade, Médio Vale do Itajaí Médio Vale do Itajaí, Território Território, Desenvolvimento Regional Desenvolvimento Regional.
Abstract: This article presents results of an investigation in the Middle of Itajaí (Santa Catarina state, Brazil), whose objective was to analyze the Cuca (Kuchen) as an emblematic element of the identification of the inhabitants and the relation with the local development. We understand that Cuca (Kuchen) has a position as an emblematic element within the food system in the Middle Itajaí Valley because it is frequently present at the table of its residents, being related to local identity, it is important product of the ethnic trade (directly linked to the maintenance of agriculture familiar) and has recently been perceived as "typical" food, capable of being attractive to local gastronomic tourism. This study seeks to fill the gap in the studies related to the identity and feeding relationship between groups originating from immigrants in Brazil, specifically in the Middle Vale do Itajaí. To do so, we started with the framework of Food Anthropology and the ethnographic method with eight in-depth interviews, as well as field surveys, to obtain information relevant to the study on Cuca (Kuchen)
Keywords: Cuca, Identity, Médio Vale do Itajaí, Territory, Regional Development.
TERRITÓRIO, CAMPESINATO E TRADIÇÃO: A Cuca (Kuchen) como elemento emblemático da alimentação no Médio Vale do Itajaí e sua relação com o desenvolvimento local
TERRITORY, PEASANTRY AND TRADITION: The Cuca (Kuchen) as an emblematic element of food in the Middle Itajaí Valley and its relation with local development

Recepção: 19 Agosto 2017
Aprovação: 13 Novembro 2017
Nesta pesquisa pretende-se discutir e compreender a forte presença da Cuca (Kuchen) no Médio Vale do Itajaí, percebendo-a como um elemento emblemático[1] dos hábitos alimentares dos moradores desta região, estando ligada à identidade, história, gastronomia e economia locais. Para encontrar os motivos que levaram ao hábito de se comer Cuca (Kuchen), buscamos a compreensão relacionada às mudanças pelas quais a região passou especialmente no que se refere ao seu processo de urbanização e industrialização (SILVA, 2016) desde o início oficial do processo de colonização, em 1850. Cabe ressaltar que partimos da perspectiva de que a territorialidade é definida como empreendimento conjunto de um grupo social para “ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico convertendo-a assim em seu “território” ou “homeland” (SILVA, 2016, p. 4). O território pode ser compreendido, portanto, como resultado das manifestações de um ou mais atores em determinado espaço. Trata-se de um campo onde se estabelecem e desenvolvem-se diferentes forças que constituem relações sociais (ALBAGLI, 2004). Distintos campos podem constituir um território, do bairro ao estado, da casa à escola, por isso o ponto de observação destes também podem ser os mais distintos.
Observa-se que a microrregião de Santa Catarina se constituiu como um território em que se atualizou a tradição de se comer Cuca (Kuchen) por meio da presença de imigrantes de origem teuto e seus descendentes. Por isso, entender a relação da Cuca (Kuchen) e seus comensais é também compreender a história do Médio Vale do Itajaí (MVI) e os vínculos que se estabelecem em torno da identidade de seus comedores, a organização do espaço e a construção de um sistema alimentar que irá gerar produtos importantes para o desenvolvimento da economia local e que podem ser pensados na perspectiva de um desenvolvimento rural sustentável (SILVA, 2016). Para Braga (2004, p. 39), “símbolos, significados, situações, comportamentos e imagens que envolvem a alimentação podem ser analisados como um sistema de comunicação, no sentido de que comunicam sobre a sociedade que se pretende analisar”.
Esta investigação percorre caminhos que buscam responder lacunas que até o início desta pesquisa, em 2015, não tinham sido preenchidas sobre a presença da Cuca (Kuchen) nas mesas dos habitantes das comunidades que se formaram no Médio Vale do Itajaí, bem como as mudanças que aconteceram no modo de fazer e servir este alimento ao longo do tempo. Pretendemos ainda compreender a importância da Cuca (Kuchen) para o desenvolvimento do Médio Vale do Itajaí e como se constituiu o comércio étnico (feiras livres, padarias e confeitarias) com a presença dos imigrantes na região. Partindo do método etnográfico, que inclui um levantamento de campo subsidiado por pesquisa bibliográfica em obras de referência e documentos, buscamos contribuir para o tema em estudo, pouco conhecido e que ocupa pouco espaço no âmbito dos estudos na área do desenvolvimento regional, apesar da sua importância. Em outras áreas de conhecimento tais como antropologia, história, literatura, economia, gastronomia, etc. trata-se de uma discussão já consolidada.
Com o objetivo de fornecer subsídios à pesquisa, procuramos por meio de entrevistas obter informações de vivências de moradores do Médio Vale do Itajaí com a Cuca (Kuchen)Num primeiro momento, fizemos entrevistas em profundidade com moradores mais idosos, por deterem uma “memória alimentar” (WOORTMANN, 2016) sobre o assunto, podendo abarcar várias gerações e que viveram no ambiente rural da região na primeira metade do Século XX. Neste caso, procuramos tanto descendentes de imigrantes alemães quanto de outras etnias, como italianos. Depois, entrevistamos pessoas de diferentes idades e vivências, com a intenção de compreender como se dá a interação dos moradores mais jovens do MVI com a Cuca (Kuchen). Ao todo, realizamos oito entrevistas semiestruturadas. O número de entrevistas mostrou-se suficiente quando começamos a perceber que as entrevistas não traziam mais nada de novo em relação aos objetivos pretendidos. Em conversas informais, em ambientes como feiras livres, padarias e supermercados, utilizamos da observação participante, obtendo mais informações importantes para o trabalho.
Mais do que carga nutricional essencial à manutenção da vida, o alimento pode ser acrescido de significados que geram conexões e identidade, sendo transformado através de sabres e modos de fazer ligados a diferentes tradições em comida, ou seja, o alimento é transformado de natureza em cultura (SILVA, 2014). Entendendo onde, quando, com quem, o que e por que se come é possível ter pistas significativas sobre quem é o comensal e a qual classe social ele pertence. A apreciação de determinados alimentos em detrimento de outros “é engendrado a partir do estilo de vida das pessoas, que, por sua vez, se vincula à sua classe social e ao habitus de um grupo ou de uma sociedade” (SILVA, 2007, p. 104). Pierre Bourdieu define habitus como componente de ligação entre a estrutura social e a prática. Silva (2007, p. 104) explica que o habitus pode ser “definido como um sistema socialmente constituído de disposições, tendências e matrizes de percepções”. Sendo o “produto da interiorização das estruturas objetivas [...] que enquanto princípio que produz e confere sentido às práticas características de um grupo de agentes, o habitus tenderá a reproduzir as estruturas externas das quais é, em última instância, o produto” (SILVA, 2007, p. 104).
Para se compreender as conexões que se criam em volta do alimento e da mesa é preciso previamente entender as diferenças entre alimento e comida. Toda comida é alimento, mas nem todo alimento é comida. Da Matta (1986) explica que a diferença básica entre os dois está no significado. Enquanto o alimento é algo que se leva à boca com a intenção de saciar a fome ingerindo nutrientes, a comida carrega conteúdos, rituais, memórias e confere identificação a quem o consome. Da Matta (1986, p. 33) compreende que a “[...] comida se refere a algo costumeiro e sadio, alguma coisa que ajuda a estabelecer uma identidade, definindo, por isso mesmo, um grupo, classe ou pessoa”. Portanto, a comida está para além do alimento. O autor esmiúça: “alimento é tudo aquilo que pode ser ingerido para manter uma pessoa viva, comida é tudo que se come com prazer de acordo com as regras mais sagradas de comunhão e comensalidade” (DA MATTA, 1986, p. 32-33). Diferente do alimento, a comida carrega complexidade cultural e social. O alimento está na natureza enquanto a comida compreende o campo da cultura.
O alimento transformado pela cultura se torna comida, resultando em mais do que apenas substâncias nutricionais, mas na conjunção de significados. A complexidade da comida está na existência de “regras que estão implícitas no ato de comer [...] as horas em que se deve comer, o número de refeições diárias, com quem se deve comer [...]. Regras que todos seguem sem saber que estão seguindo” (FISCHLER, 2011, p. 236). Entendemos, então, que
a comida não é apenas uma substância alimentar, mas é também um modo, um estilo e um jeito de alimentar-se. E o jeito de comer define não só aquilo que é ingerido como também aquele que ingere. De fato, nada mais rica, na nossa língua, que os vários significados do verbo comer em suas condições (DA MATTA, 1986, p. 33-34).
A conversão do alimento em comida se dá por meio da culinária, que “é um meio através do qual a natureza é transformada em cultura” (LÉVI-STRAUSS, 1985 apud SILVA, 2000, p.2). Ao transformar alimento em comida por meio da cultura, constrói-se um sistema complexo de identidade. A comida está ligada ao contexto em que está inserida em termos sociais e históricos, a um modo de fazer e consumir. Um comedor (FISCHLER, 2010) reforça o significado da comida ao mesmo tempo em que a comida reforça o significado de quem come. Portanto, hábitos alimentares estão conectados a um sistema cultural. Braga (2004, p. 39) afirma que esse sistema cultural é “repleto de símbolos, significados e classificações, de modo que nenhum alimento está livre das associações culturais que a sociedade lhes atribui”.
A escolha do que comer e os hábitos alimentares ganham significados a partir de aspectos identificados na cultura alimentar. Escolhemos o que vamos comer conforme nossas memórias, sendo a opção, portanto, relacionada ao sentido que damos a nós mesmos (BRAGA, 2004). Por isso as práticas alimentares “revelam a cultura em que cada um está inserido, visto que comidas são associadas a povos em particular” (BRAGA, 2004, p. 39).
A inserção do indivíduo neste sistema que aos poucos constrói identificação com determinados alimentos começa na infância, podendo permanecer durante toda a vida. Hábitos incutidos por adultos que exercem poder sobre a criança, influenciam o seu comportamento de forma duradoura. Por estar relacionada tão intrinsicamente com as bases de uma pessoa, a comida pode ser um dos principais elementos que despertam memórias e sentimentos, especialmente os ligados à infância, à identidade – que se constrói, também, pela boca. Por isso, “a comida pode também despertar certas emoções ligadas às memórias. Alguns alimentos podem nos levar a lembrar de alguém ou de um lugar, através da dimensão afetiva e prazerosa a ele ligada pela lembrança” (SILVA, 2000, p. 3).
O processo migratório da Europa para o Brasil impôs aos imigrantes diversas adaptações ao modo de vida. Entre as principais mudanças determinada aos imigrantes teutos quando chegaram ao Brasil foi a adaptação de seus hábitos alimentares. As mulheres foram as responsáveis por adaptar os produtos da agricultura local à culinária alemã “em um habitus de origem trazido e modificado em função do novo contexto agrícola” (SILVA, 2016, p. 9). Ao chegar no Brasil, os imigrantes se depararam com as dificuldades na adaptação das plantas que estavam acostumados a cultivar na Europa, ao clima e à terra. O trigo e o centeio, por exemplo, que após colhidos e processados eram usados na fabricação de pães e bolos, não vingaram. Ao amargar as perdas das safras e perceber que as condições locais não eram adequadas para o que costumavam plantar antes de cruzar o Atlântico, esses imigrantes tiveram de se adaptar às práticas agrícolas a partir da experiência dos “caboclos”, como os colonos alemães denominavam os camponeses brasileiros (SILVA, 2007; MENASCHE; SCHMITZ, 2009). Aipim, milho e cana-de-açúcar eram os produtos nativos básicos dos caboclos (SEYFERTH, 1990). Então, se antes esses imigrantes conheciam trigo, cevada, repolho, batata inglesa, lentilha, videira, leite, carne de porco e defumados, no Brasil incorporaram muitos alimentos, como feijão, milho, aipim, amendoim e diversas frutas que antes não conheciam (SILVA, 2007; MENASCHE; SCHMITZ, 2009). Assim,
[...] no contexto da alimentação, portanto, houve uma adaptação dos hábitos dos colonos às condições e cultivos da região, da qual a utilização do aipim e do milho são exemplos. Ao mesmo tempo, difundiram hábitos alimentares característicos dos seus países de origem e aceitaram outros, típicos do Brasil (SEYFERTH, 1990, p. 35).
Com as adaptações à culinária e saberes trazidos na bagagem cultural dos imigrantes alemães, cria-se uma culinária adaptada ao contexto local. No Médio Vale do Itajaí ─ território desta pesquisa ─ a colonização se deu por meio de instituição de pequenas propriedades rurais policultoras. Essas propriedades eram mantidas pela própria família do proprietário, tendo cada membro da família suas atividades, sendo o patriarca o gestor maior. À mulher, entre outras funções, cabia os trabalhos na cozinha. Munida dos conhecimentos adquiridos ainda na terra natal, viu-se diante da necessidade de aprender a lidar com novos alimentos, mesclando suas bagagens com o que conheceu na nova casa. Os imigrantes e descendentes teutos acabam aprendendo com caboclos ─ estes já conhecedores da terra, que também adquiriram conhecimentos com os índios ─ novos alimentos e jeitos de prepará-los, como taiá, cará, aipim etc.
Por outro lado, Calvo (1982) salienta que a incorporação de novos alimentos em processos de migração nem sempre acontecem de forma pacífica ou tranquila. Muitas vezes, ressalta o autor, essas mudanças acontecem em contextos de fome e más condições nutricionais. A comida como marcador cultural (identidade) também pode acarretar em conflitos em torno do alimento. As adaptações e mudanças, portanto, podem acontecer em contextos de disputas ou manutenção de espaço, sendo estes velados ou não (CALVO, 1982).
Desta forma, diversos alimentos passam a fazer parte dos hábitos alimentares dos imigrantes e descendentes. Entre os mais significativos está o milho, que substituiu o trigo e o centeio na dieta de colonos alemães e italianos. O milho, em especial, ganhou destaque nas roças por sua versatilidade. Moído tornava-se fubá, usado para fazer polenta (aos italianos) e pães e bolos (tanto no caso de imigrantes e descendentes de alemães quanto italianos). Em grãos, alimentava a criação de animais (porcos, galinhas, vacas). Cigarros e colchões eram feitos de palha do milho; os caules e folhas tornavam-se forragem (SEYFERTH, 1990). As múltiplas funções atribuídas ao milho fizeram dele destaque no sistema agrícola de pequenas propriedades familiares, adotado na Colônia Blumenau. Também era cultivado o aipim, que pode adquirir diferentes roupagens, do polvilho ao consumo simples da raiz cozida acompanhada de carne ensopada, como o Goulash. Da cana-de-açúcar eram feitos o melado e o açúcar mascavo, e também era obtido o mosto fermentado usado como fermento para produzir pão.
A adesão de novos hábitos culinários não aconteceu apenas por parte dos colonos. Os caboclos – camponeses brasileiros – também aderiram a algumas práticas e alimentos trazidos pelos imigrantes (SEYFERTH, 1990). A polenta é uma delas, que foi introduzida nos hábitos alimentares dos brasileiros. Outros alimentos também foram incorporados, como o Sauerkraut (conhecido também como chucrute, que é basicamente repolho fermentado); Mus (geleia de frutas de consistência mais firme); compotas e conversas de frutas e legumes variados como forma de conservação por prazos maiores). A Cuca (Kuchen), objeto central desta pesquisa, também ganhou adeptos fora do círculo de imigrantes alemães e seus descendentes.
A comida guarda uma estreita relação com o território ainda que na contemporaneidade ela se encontre em processo de deslocamento do seu local de origem, devido a vários processos que não iremos aqui discutir. Para entender a comida é preciso também compreender os processos que a vinculam com um determinado território. Por isso, precisamos compreender como se dá a ocupação dos imigrantes europeus no território que passam a ocupar na região catarinense do Vale do Itajaí no século XIX. Posteriormente a área é fragmentada em microrregiões, sendo uma delas o Médio Vale do Itajaí, área de recorte espacial ao qual se dedica esta pesquisa.
No Vale do Itajaí temos uma tradição alimentar que foi formada a partir da ocupação do território de Santa Catarina por grupos de várias etnias e em momentos diferenciados. A culinária regional tem a ver com a história e a adaptação no território realizada por esses diferentes grupos. A Cuca (Kuchen), em especial, faz parte da tradição da culinária trazida e adaptada ao território por imigrantes de origem alemã. A ocupação da região que deu origem ao que hoje forma o Médio Vale do Itajaí remonta ao início do século XIX.
A imigração organizada no Brasil começou em 1808, com a abertura dos portos. Após a imigração de chineses e suíços para o Rio de Janeiro, no início da década de 1820 começa a chegada dos alemães ao Brasil. Neste caso, falar de imigrantes alemães é generalizar os povos oriundos de diversos reinados próximos territorialmente que ao fim do século XIX formariam a Alemanha efetivamente (SEYFERTH, 1974). A imigração de europeus se deu por motivos diversos. No caso dos alemães, o período entre o século XVIII e o XIX na Europa foi marcado por mudanças econômicas, conflitos, exploração de camponeses e escassez de alimentos. Na primeira metade do século XIX, companhias colonizadoras faziam propaganda das áreas brasileiras a serem colonizadas. Conquistavam novos migrantes com a promessa de terra própria e fértil, ainda que não contassem sobre as dificuldades que aguardavam quem aceitava cruzar o Atlântico em busca de nova vida (SEYFERTH, 1974).
Um dos interesses do Brasil com a imigração era a ocupação de terras ainda não povoadas – ainda que tivessem forte presença dos índios, não eram considerados na conta de população. Questões econômicas e culturais também foram fundamentais na política de imigração implantada à época, como o branqueamento da população – naquele período majoritariamente negra após séculos de escravidão. Havia interesse também nos conhecimentos agrícolas dos imigrantes europeus (SILVA, 2001) e na produção de uma agricultura que alimentasse com seus produtos a Colônia.
A ocupação do território que hoje é o Vale do Itajaí foi estratégia do Governo Imperial para que se fizesse a ligação entre o litoral e o planalto catarinense, criando um novo caminho entre a capital Desterro e a região serrana produtora de gado de corte. A área entre o mar e a serra era considerada desabitada, apesar de contar com sertanejos e indígenas ─ os primeiros moradores da região. As tentativas de avançar pelo vale começaram em 1807, pelo litoral, mas foram frustradas. A segunda colônia particular autorizada pelo governo brasileiro na região foi oficialmente implantada em 1850, pelo filósofo e farmacêutico alemão Hermann Bruno Otto Blumenau. Blumenau chegou em agosto daquele ano acompanhado de 17 imigrantes, aportando na região onde hoje fica o Centro de Blumenau.
Blumenau conduziu a Colônia São Pedro de Blumenau até o início de 1860, quando o projeto foi vendido ao Governo Imperial. Em 1873 a colônia tornou-se distrito. Apenas em 1880 o governo confere por meio de lei a condição de município a Blumenau (DEEKE, 1995). O filósofo alemão permanece como diretor até 1882, quando foi dispensado da função pelo governo, retornando à Alemanha.
O território começou a ser ocupado a partir de leitos secundários do rio. Adotou-se o sistema de propriedades agrícolas menores, a exemplo do que já se praticava na Europa na época. Cada família imigrante recebia um pedaço de terra com 300 metros de largura e 1.000 metros de comprimento, geralmente indo da beira do rio e chegando até a encosta. A presença do rio ou ribeirões na região dos terrenos garantiam o abastecimento de água na propriedade tanto para consumo humano quanto animal e uso na lavoura, bem como a comunicação entre as propriedades. Quando não havia ligação por meio de rio ou ribeirões, era improvisado um caminho que cortava os morros, as chamadas picadas. Mais tarde as picadas transformaram-se em passagens maiores, dando origem às estradas que cortam o município hoje. Esta forma de expansão fez com que a colônia fosse ocupada primeiro na região central do grande território, que abarcava a região próxima à Itajaí (litoral) até os limites com o planalto catarinense. Essa localidade central era chamada Stadplatz (Stad = cidade; Platz = lugar). Neste local ocorriam os principais acontecimentos da vida social, econômica e religiosa dos moradores (SEYFERTH, 1974).
O principal recorte territorial que daria origem ao que hoje conhecemos como Vale do Itajaí aconteceu em no início da década de 1930. Até então Blumenau detinha 11,1% do território de Santa Catarina. Somava, ao todo, 10.619 km² de extensão. Ser a maior cidade do estado garantia peso político e econômico à cidade. Com indústrias têxteis e de beneficiamento de leite e derivados, bem como destaque ao se tornar polo comercial em Santa Catarina, a robustez econômica tornava a cidade referência. Por outro lado, a grande extensão territorial dificultava as ligações dentro do município, a manutenção de estradas e de outros equipamentos públicos. Após sucessivos recortes no território (Figura 1) ─ quando antigos distritos foram alçados a municípios ─, Blumenau, em 1933, contabilizava área de 900km².
Gradativamente outros recortes aconteceram até que Blumenau estabelecesse seu território atual, com 519,8 km², 19 bairros e dois distritos (Vila Itoupava e Garcia). Desde a década de 1930, vários municípios foram criados configurando o Vale do Itajaí como o conhecemos hoje.
O Vale do Itajaí é uma das seis mesorregiões dentro do estado de Santa Catarina (Oeste, Grande Florianópolis, Norte, Serra e Sul). A região é nominada pelo rio que corta boa parte de seu território, o Itajaí-Açu, que é formado pelos rios Itajaí do Oeste e Itajaí do Sul. No trecho final, já na foz, na cidade de Itajaí, o Itajaí-Açu recebe as águas do afluente Itajaí-Mirim. Localizado numa porção territorial de 13 mil quilômetros quadrados, o Vale é formado por 55 municípios e um total estimado de 1,5 milhão de habitantes. Dentro do Vale do Itajaí são feitas outras subdivisões, sendo que cada uma conta com cidades polo: Alto Vale (município de Rio do Sul), Médio Vale (município de Blumenau) e Litoral (município de Itajaí), conforme Figura 2. Para esta pesquisa, como já mencionamos, foi feito um recorte com foco no Médio Vale.
A preferência pelo Médio Vale do Itajaí para esta pesquisa se dá pelas características semelhantes de povoamento do território com a presença de imigrantes europeus não lusos (alemães, sobretudo, mas também italianos, austríacos e poloneses) vindos na segunda metade do século XIX. Devido a isso, a região também é conhecida como “Vale Europeu”, uma denominação determinada por programas ligados ao turismo regional instituídos pelos governos federal e estadual nos anos 2000. Cabe ressaltar que o “Vale Europeu” inclui mais municípios que o Médio Vale, como, por exemplo, Rio do Sul. Fazem parte do Médio Vale do Itajaí os municípios de Apiúna, Ascurra, Benedito Novo, Blumenau, Botuverá, Brusque, Doutor Pedrinho, Gaspar, Guabiruba, Indaial, Pomerode, Rio dos Cedros, Rodeio e Timbó (conforme Figura 3). Há, ao todo, cerca de 700 mil habitantes numa área aproximada de 4,6 mil quilômetros quadrados (FECAM, 2016).
A Cuca (Kuchen) é tradicional em regiões brasileiras colonizadas por imigrantes europeus a partir da segunda metade do século XIX. O sistema alimentar de populações emigrantes perpetua-se, apesar das adaptações à nova realidade da região. Silva (2007, p. 08), corrobora ao dizer que “as populações que se deslocam (ou foram deslocadas) trazem com elas seus hábitos, costumes e necessidades alimentares, enfim, todo um conjunto de práticas”.
Não se sabe ao certo por quais mudanças passou o modo de fazer da Cuca (Kuchen) que se consome no Médio Vale do Itajaí desde o início da imigração europeia da região, no século XIX. Foi com os imigrantes que a receita chegou ao Brasil. Em alemão, bolo é Kuchen, que aqui se traduz como um bolo alemão, recheado de frutas ou de queijo normalmente servido no café da manhã (REINHARDT, 2014). Hoje a Cuca (Kuchen) está além das regiões de colonos descentes de imigrantes e espalhou-se pelos centros urbanos, fazendo parte, junto com Mus (também conhecido como Schmier, é uma geleia de consistência mais firme) nos cafés coloniais que atraem pessoas interessadas em mesas fartas nas cidades do Sul do Brasil (SEYFERTH, 1990).
Estima-se que a partir das adaptações orgânicas da língua, a palavra que designa bolo em geral acabou sendo usada para referenciar uma receita em específico, Kuchen tornou-se Cuca (Kuchen). A adaptação variou conforme os dialetos locais. No Paraná, na região de Curitiba, a mesma receita é chamada de Cuque (REINHARDT, 2014). No Médio Vale do Itajaí é a Cuca (Kuchen) que está presente no dia a dia dos moradores, do café da manhã às celebrações.
Na Alemanha, a receita similar ao que temos hoje por Cuca (Kuchen) no Médio Vale do Itajaí é a StreuselKuchen. Entre os alemães são tradicionais as StreuselKuchen que têm cobertura de ameixa, creme, queijo, damascos, pêssego, mirtilo, framboesa ou morango (EBEL, 2015). A lógica da StreuselKuchen e da Cuca (Kuchen) do Médio Vale do Itajaí é a mesma: a base é feita a partir de massa levedada obtida com o fermento de pão à qual se acrescenta uma segunda camada doce e se finaliza com uma farofa. A farofa, neste caso, é doce. Trata-se de uma mistura feita a partir da farinha de trigo branca, açúcar branco e manteiga ou outra gordura. Os três ingredientes são misturados com as pontas dos dedos até que se formem pequenos gomos, formando uma farofa grossa. Em inglês usa-se o termo crumble para este tipo de preparo. Gabrolle (2016) explica que a receita da Cuca (Kuchen) provada nas regiões brasileiras povoadas por imigrantes alemães pode ser também nomeada de BlechKuchen (Blech = camada e Kuchen= bolo). A receita ainda pode ter variações conforme a região, mas mantém algumas características semelhantes.
Além de ter três camadas, é comum em todas as variações da receita o fato de ser doce. Muito recentemente é que surgiu uma versão que mistura doce e salgado, atendendo aos apelos comerciais. A Cuca (Kuchen) de linguiça Blumenau conseguiu unir dois alimentos marcantes nas mesas locais. A linguiça Blumenau é um embutido feito com carne de porco temperada alocada em vísceras e depois defumada. Muito usada no período da colonização do Vale do Itajaí, antes da expansão da rede elétrica, como método de conservação da carne. Esta linguiça, em específico, ganhou o nome do município de Blumenau por ser muito fabricada nesta localidade. Hoje, feita em grande escala, ganhou notoriedade como alimento emblemático local, sendo amplamente consumida.
Apesar de muito parecidas, a diferença básica da StreuselKuchen e da Cuca (Kuchen) está na matéria prima. Tanto na Alemanha quanto no Médio Vale as frutas usadas são as da estação disponíveis. Abundantes, mais baratas e de fácil acesso, incrementavam o doce que originalmente era servido apenas em ocasiões especiais tanto na Alemanha quanto no Vale. Enquanto no país europeu o hábito é fazer coberturas com ameixas, damasco e cerejas, frutas típicas de lá, no Brasil adaptou-se com banana (a mais popular, inclusive) e abacaxi, por exemplo (Figura 4).

Hoje a Cuca (Kuchen) está disseminada por todo o território do Médio Vale do Itajaí. Está no dia a dia dos moradores, especialmente em refeições coletivas, bem como no comércio étnico que se desenvolveu também em torno dela (além de outros alimentos tradicionais da região). Há poucos anos vem ganhando o status de comida “típica”, sendo percebida como atrativo turístico nos municípios da região.
Para traçar um esboço da presença da Cuca (Kuchen) no Médio Vale, três moradores da região foram entrevistados. A intenção das entrevistas semiestruturadas foi apurar a importância da Cuca (Kuchen) nos hábitos alimentares no decorrer do século XX por meio das memórias dos entrevistados. Com as informações concedidas à pesquisadora foi possível traçar as relações estabelecidas em torno da Cuca (Kuchen).
A memória afetiva em torno da Cuca (Kuchen) ganha contornos nítidos quando Gerold Matthes (informação verbal, 2015) lembra que o bolo era servido apenas no dia de Natal. Ele recorda dos preparativos para fazer vários tabuleiros de Cuca (Kuchen) assada no forno à lenha, o único disponível na época num bairro interiorano do município de Ascurra, no Médio Vale do Itajaí. A presença da Cuca (Kuchen) à mesa dependia de fatores externos (logística) e internos da família (dinheiro e disponibilidade para preparar). Para que se tivesse Cuca (Kuchen) no Natal era necessário que o carregamento de farinha de trigo branca chegasse à venda de secos e molhados da cidade.
Gerold (informação verbal, 2015) rememora que por se tratar de uma cidade pequena, nem sempre o caminhão chegava à cidade em dezembro. Em época de escassez de trigo, em eventual quebra de safra, por exemplo, os municípios maiores eram abastecidos em detrimento dos menores. Era pelo rádio que se ouvia a notícia que o carregamento de trigo estava com data agendada para chegar ou que as prateleiras da venda de secos e molhados já estavam abastecidas. Garantir o trigo para a aguardada Cuca (Kuchen) de Natal exigia esforço. Sendo o filho mais velho da família agricultora, Gerold acordava por volta das 4h, caminhava cerca de 13 quilômetros (por trecho) para chegar à região central de Ascurra e garantir o ingrediente. Com a farinha comprada, era hora de aguardar a convocação da mãe para fazer a Cuca (Kuchen).
Na casa de Hanna-lora Dahlke (informação verbal, 2015), em Pomerode, a Cuca também era quase exclusividade natalina. Ela conta que raramente o doce era servido em outras épocas: “às vezes, no aniversário de alguém importante da família, como o Opa [avô] ou então na Páscoa” (HANNA-LORA, informação verbal, 2015). Gerold (informação verbal, 2015) conta que outra exceção para servir a Cuca (Kuchen) era na festa do Espírito Santo, estando também ligada nesse caso à importância do sentimento religioso das famílias que era marcado com uma comida especial. Ainda assim, a receita usada em datas que não fosse o Natal continha ingredientes mais baratos e disponíveis na região, como farinha de milho, banha e melado. A Cuca (Kuchen) de farinha de trigo branca, açúcar refinado, ovos e manteiga era servida apenas no dia da comemoração do nascimento de Jesus. Assim como Gerold, Hanna-lora recorda o esforço para conseguir o trigo refinado. A família, que também vivia da agricultura de subsistência, vendia madeira destinada aos fogões à lenha para obter dinheiro e comprar o insumo. A preparação da Cuca (Kuchen) envolvia os filhos, quase como num ritual. Um ajudava a sovar, enquanto outro cortava as frutas e um terceiro organizava o feitio da farofa doce. Tudo sob supervisão da mãe, figura central na cozinha familiar e que sinaliza as relações de gênero no âmbito da família. Neste caso cabe recordar David M. Schneider (1980) que, ao questionar seus informantes sobre as especificidades da família dentro de grupos étnicos, ouviu de italianos, irlandeses e judeus que não seria possível entendê-las sem compreender o lugar especial da mãe e do alimento dentro do grupo familiar.
As assadeiras fumegando dentro do forno à lenha ainda estão frescas na memória de Gerold (informação verbal, 2015), que no dia da entrevista estava com 75 anos. Mareja os olhos azuis ao lembrar que, ao todo, eram preparadas 15 fôrmas que levavam dois dias para ficarem prontas. A massa era preparada de véspera. O fermento usado era natural, feito a partir da garapa (restos de cana usada na produção de açúcar) levedada conseguida num engenho. Gerold lembra que a massa ficava parecida com pão, com a diferença que recebia mais açúcar e manteiga ou banha na composição, além de ovos. Com as massas descansadas e crescidas por cerca de 24 horas, cobria-se com a fruta fresca ou compota, caso constasse no estoque doméstico.
O entrevistado lembra que as frutas frescas eram transformadas em compotas com o objetivo de conservá-las para serem consumidas o ano inteiro sem prejuízos. Boa produção de frutas significava garantia de variedade de coberturas de Cucas (Kuchen) no Natal. Geralmente, conta Gerold (informação verbal, 2015), as Cucas (Kuchen) eram cobertas com bananas (sempre disponíveis), abacaxi doce fresco (que amadurece no verão) e eventualmente flauma (tipo de ameixa vermelha) ou outro doce em compota, como pera e pêssego, por exemplo. As cerca de 15 Cucas (Kuchen) natalinas, “feitas em fôrmas muito grandes, porque era muita gente para servir”, recorda Gerold, eram cobertas com farofa feita a partir de trigo e manteiga ou banha. Prontas, eram assadas na véspera de Natal. Para decepção dos estômagos apetecidos com o aroma que tomava conta da casa, os doces eram servidos apenas a partir da manhã do dia seguinte, 25 de dezembro.
Além da Cuca (Kuchen), no dia de Natal também eram servidos bolos secos cobertos com açúcar branco fino (outro insumo que dependia de abastecimento externo) e os docinhos de Natal, que eram preparados cerca de 15 dias antes e também envolviam toda a família em sua confecção. Como a Cuca (Kuchen), os docinhos não poderiam ser degustados antes. A exceção eram as bolachas queimadas ou quebradas. Para garantir um pequeno pote de doces de “segunda linha” a serem comidos antes, Gerold (informação verbal, 2015) conta que às vezes deixava queimá-los de propósito.
Apesar de a receita tradicional de Cuca (Kuchen) conter farinha de trigo refinada, ovos, açúcar e manteiga ou banha, nem sempre a receita original era seguida, lembra Hanna-lora (informação verbal, 2015). Ela conta que, apesar de morarem numa área rural e viverem da agricultura familiar, nem sempre os insumos eram de fácil acesso. Em caso de falta, a Cuca (Kuchen) era feita sem trigo, mas com farinha de milho, cobertura com bananas ou sem frutas, e o açúcar branco era substituído por melado ou açúcar grosso. A manteiga era substituída por banha. Hanna-lora recorda que no dia de Natal as crianças eram colocadas no jardim enquanto os pais - ou o São Nicolau, como contavam aos pequenos – concluíam a decoração da casa distribuindo doces de Natal e servindo a mesa do café da manhã com a ansiada Cuca (Kuchen). Os biscoitos pendurados pela casa eram o presente de Natal.
Apesar de a tradição estar presente nas famílias de origem alemã, a Cuca (Kuchen) também estava na casa de descentes de imigrantes de outras nacionalidades. Gerold (informação verbal, 2015) rememora que os vizinhos descendentes de italianos também faziam Cuca (Kuchen), com a diferença que adicionavam raspas de limão à farofa. O contrário também acontecia. Hanna-lora (informação verbal, 2015) lembra que, em casa, consumiam polenta, um preparo habitual aos descendentes dos imigrantes italianos. Mas a Cuca (Kuchen) não estava presente em todas as casas da região naquela época.
Idalina Matthes (informação verbal, 2015), casada com Gerold havia 55 anos na época da entrevista, aprendeu a fazer Cuca (Kuchen) com a sogra. De família humilde e numerosa, lembra que durante a infância em Apiúna comeu Cuca (Kuchen) apenas na casa de vizinhos e em festividades comunitárias, ainda assim, poucas vezes. O pai era trabalhador da linha férrea, e a mãe, empregada doméstica. Cabia a Idalina cuidar dos irmãos menores e fazer a comida. Como Hanna-lora, que começou a cozinhar aos sete anos para que o restante da família pudesse ir à roça, Idalina também foi introduzida ainda criança à cozinha, mas não soube precisar a idade. A partir de 1960, quando casou aos 17 anos, é que Idalina aprendeu com a sogra as receitas tradicionais entre os descendentes de imigrantes alemães.
A receita de Cuca (Kuchen) que Idalina aprendeu com a sogra era a tradicional da época: fermento natural, farinha branca (nesta época de acesso já mais facilitado), ovos e açúcar. Lembra que, quando casou, ainda não havia energia elétrica na região em que foi morar, no limite entre os municípios de Ascurra e Indaial, localidade conhecida como Damiana. Por algum tempo que não soube precisar ainda usou para pães e Cucas (Kuchen) o fermento natural, feito a partir da garapa. Como não tinham energia elétrica, mantinha o fermento conservado em lugar seco e coberto. Lembra que por volta de 1970 começou a usar o fermento biológico fresco Fleischmann. Naquela época ainda usava o fermento biológico, originalmente destinado a pães, para o preparo da Cuca (Kuchen). Idalina acredita que nos anos 1980, mesmo período em que a energia elétrica chegou à região que morava (especificamente 1982), é que aderiu ao fermento químico para o preparo da Cuca (Kuchen). A diferença entre os fermentos diferencia os preparos. O fermento biológico possui leveduras que se alimentam de glicose, por isso reagem em contato com o trigo liberando gás carbônico e álcool, enquanto o químico contém uma mistura de bicarbonato de sódio, que reage em contato com a umidade e libera dióxido de carbono.
A mudança no preparo, aos poucos tornando-se muito mais rápido, os ingredientes - com acesso facilitado - e o consumo, que passa a ser freqüente, refletem também as alterações da própria sociedade em que a Cuca (Kuchen) está inserida. As cidades do Médio Vale cresceram em população (161% em Blumenau, entre 1970 e 2000 [SIGAD, 2016]) e urbanização (em Blumenau a população urbana cresceu 179,7% entre 1970 e 2000 [SIGAD, 2016]). Além disso, a Cuca (Kuchen), de elemento chave nas refeições natalinas, passa a fazer parte do dia a dia dos moradores da região com a popularização das padarias, que comercializam as Cucas (Kuchen) prontas. No Médio Vale do Itajaí são comércios que fabricam e comercializam pães, bolos, tortas e outros alimentos ligados à panificação. Mesmo com a aquisição do hábito de comprar Cuca (Kuchen) já pronta, muitas vezes abrindo mão do seu preparo, na memória dos comensais permanece o afeto relacionado ao tradicional modo de fazer e o consumo em datas especiais.
Após a entrevista, Gerold (informação verbal, 2015) e Idalina (informação verbal, 2015) servem o café da tarde. À mesa, pão, nata, linguiças, manteiga, queijo e Cuca (Kuchen). Entre uma garfada e outra do doce, o entrevistado reflete:
Olha, aqui passa um padeiro aqui de Ascurra, nem sei se é alemão, mas marca lá Padaria do Alemão ou Padeiro Alemão, sei lá, então ele ali como é da padaria dele, a receita é da vovó. Aquilo, a gente compra uma cuca daquela eu já saio da mesa só quando não cabe mais. Aquela cuca feita com fermento de bolo, que todo mundo quer amassar agora e daqui a pouco servir, pra quando vem visita. Rapidinho tira do forno, cuca de geleia, cuca de não-sei-o-quê (MATTHES, G., informação verbal, 2015).
À mesma conclusão chega Hanna-lora, que trabalha como cozinheira escolar concursada no município de Pomerode, mas também faz Cucas (Kuchen) para vender. Ela é a responsável pela confecção de centenas de Cucas (Kuchen) feitas no forno à lenha vendidas durante a Festa Pomerana (festa que celebra tradições locais, atraindo turistas). Também apela para a modernidade: a massa e a farofa são feitas à mão, mas a cobertura de frutas é de compota ou geléia industrializadas. Com a facilidade das padarias, ela teme o fim do preparo caseiro. “As mulheres trabalham fora, não têm mais tempo para fazer em casa. No fim de semana estão cansadas, aí preferem comprar na padaria”, acredita Hanna-lora (2015). Porém, percebe que a Cuca (Kuchen) ainda tem lugar afetivo na mesa. Conta que em Pomerode são comuns as “cucadas”, festas ou organizações que fabricam e vendem Cuca (Kuchen) para arrecadar fundos (como pastelada, feijoada ou galinhada, por exemplo). Nestas ocasiões é fabricada grande quantidade de Cucas a serem vendidas com o objetivo de arrecadação de fundos para alguma causa, organização etc. Nessas ocasiões, Hanna-lora explica, vende-se muita Cuca (Kuchen), chegando, às vezes, a faltar. “A Cuca está no nosso coração, não adianta” (DAHLKE, informação verbal, 2015).
Com a discussão proposta vimos que a comida é um elemento que contribui para a formação da identidade de uma sociedade. No caso desta pesquisa, nota-se que a Cuca (Kuchen) resultou de todo um sistema alimentar desenvolvido no territóriopelos imigrantes que atualmente compreende a microrregião Médio Vale do Itajaí.. Apesar das mudanças apresentadas na receita, adaptando à realidade local e mesmo ao movimento de urbanização da região, a Cuca (Kuchen) esteve presente à mesa desde o início da história da colonização europeia local. Convergindo com a ideia de que a comida carrega significados e convenções sociais, a Cuca (Kuchen) tem espaço desde o início na mesa dos moradores como um alimento que identifica a região e aos seus habitantes como comedores de cuca (Kuchen).. Se era exclusividade no Natal, passa, aos poucos, a tornar-se mais acessível e fazer parte do dia a dia de seus comedores até espalhar-se massivamente através do comércio étnico constituído na região, através das padarias e feiras livres, no meio urbano e também no rural. Apesar das mudanças, a Cuca (Kuchen) mantém em torno de si a tradição de ser degustada de forma coletiva, como, por exemplo, refeições em família ou comemorações, acentuando a sua importância para a comensalidade na região.
