NO LARGO DO KINAXIXI, O TERRITÓRIO É SAGRADO
KINAXIXI’S SQUARE, THE TERRITORY IS SACRED
NO LARGO DO KINAXIXI, O TERRITÓRIO É SAGRADO
Revista Prâksis, vol. 2, pp. 36-50, 2018
Universidade Feevale
Recepção: 27 Fevereiro 2018
Aprovação: 02 Junho 2018
Resumo: O texto propõe uma leitura do livro O desejo de Kianda (1995), do ficcionista angolano Pepetela, focalizando os acontecimentos que ficaram conhecidos como a “síndrome de Luanda”, discussão centrada na ação política de pessoas públicas empenhadas no próprio enriquecimento, ignorando a população necessitada. Paralelamente, destaca a figura da Kianda, ser mítico do imaginário do povo luandense, inserida na narrativa para alertar sobre a perda dos valores éticos dos tempos de lutas libertárias, como também para a divulgação e preservação das raízes identitárias angolanas, outrora ameaçadas de apagamento pelo processo de colonização.
Palavras-chave: Pós-colonialismo, Povo, Poder, Tradição.
Abstract: The text proposes a Reading of the book O desejo de Kianda (1995), from the Angolan fiction writer Pepetela, focusing the events that has been known as the “Luanda syndrome”, a discussion centered on the political action of public people committed in their own enrichment, ignoring the needy population. At the same time, highlights the figure of Kianda, a mythical being from the Luanda´s people imaginary, inserted in the narrative to alert about the ethical values loss in the libertarian fights times, as well as to disclose and preserve the Angolan identity roots, which were once threatened with the extinction by the colonization process.
Keywords: Post-colonialism, People, Power, Tradition.
INTRODUÇÃO
“Angola, avante!/ Revolução pelo poder popular/ Pátria unida, Liberdade/ Um só povo, uma só nação!” Ler estes versos que compõem o refrão do hino nacional1 de Angola faz pensar sobre a luta e o sonho de unidade tão desejado da nação angolana, e não só dela, como também dos demais países lusófonos que sofreram as ações deletérias da colonização e as consequentes e sangrentas guerras civis que sucederam o 25 de abril de 1974, marco importante na história das ex-colônias portuguesas.
Escrito às vésperas da proclamação da independência nacional, 11 de novembro de 1975, por Manuel Rui, o hino que tem como título “Angola, avante!” foi pensado, segundo o autor, principalmente para “marcar a identidade angolana, o patriotismo de quem sofreu durante muitos anos para ver o país livre do colonialismo português” (RUI, 2015). Isto explica o tom ufanista e o entusiasmo traduzido na convocação do homem angolano para uma marcha conjunta e solidária, conforme apregoam dois outros versos da composição: “Marchemos, combatentes angolanos/ Solidários com os povos oprimidos”. O tom enfático, e de uma certa maneira belicoso, revela o espírito de luta e o inconformismo reinante no país, mesmo após o cessar fogo oficial e a relativa paz prometida nos acordos então celebrados. Diante da consumação de fatos como o fim das lutas internas, o rescaldo de refregas e ideologias nem sempre pacificadas, como era de esperar, mantiveram aceso o fogo da luta adormecida artificialmente, em grande parte, por um pacto que contemplou o anseio da maioria vitoriosa. Isto, entretanto, não impediu a persistência da brasa encoberta pelas cinzas. Este fogo no monturo não aconteceu apenas em Angola, mas suas faíscas ainda queimam nas ex-colônias portuguesas, a exemplo de Moçambique e da Guiné Bissau para não nos afastarmos do foco.
A unidade e a igualdade, porém, parecem ainda ser o sonho perseguido por esses povos, já que ageração dos idealizadores da nação justa e igualitária – a chamada geração da utopia, como a denominou Pepetela – viu-se traída pelos seus próprios integrantes que, envolvidos em negócios escusos, transformaram suas pátrias e, notadamente, Angola em uma nação bastante diferente do imaginado, ao ponto de torná-la um dos países mais corruptos do mundo, conforme registram os dados do último Índice de Percepção de Corrupção da Transparência Internacional2.
Esse cenário, por conseguinte, revela-se na ficção angolana, na escrita de autores como Manuel Rui, Arnaldo Santos, José Eduardo Agualusa e, principalmente, em Pepetela, um dos escritores que mais revisitam a História e denunciam os sinais do desmoronamento político-ideológico da nação, basta lembrar seu romance Predadores (2005), em que Vladimiro Caposso representa o malogro do sonho de liberdade e igualdade, de “Angola para os angolanos”, pelo qual lutaram os homens inconformados com a subalternidade e a exploração do povo, dentre os quais se destaca o autor, que não hesitou em alternar a bala e a pena.
No romance O desejo de Kianda (1995), objeto desta leitura, ocorre um fato estranho, que gera desconforto e insegurança entre os luandenses. Os edifícios localizados no Largo do Kinaxixi, no centro de Luanda, iniciam um desabamento sistemático, sem qualquer explicação racionalmente aceitável. O fato inédito atravessou o país e ganhou os noticiários internacionais, sendo conhecido como a “síndrome de Luanda” (PEPETELA, 2008, p. 05).
Este evento inquietante e inédito, lido por alguns cidadãos como uma represália dos deuses africanos contra a invasão cristã, principalmente representada por padres e pastores, espoliadores dos novos convertidos, apresenta representantes dessas denominações religiosas como indivíduos inescrupulosos que não se furtavam a capitalizar o pânico instaurado em benefício próprio:
Um tipo mulato e de óculos estava em cima de um monte de destroços, fazendo um discurso inflamado, que aquilo tudo era castigo de Deus, os habitantes do prédio da Cuca tinham recusado pagar o dízimo à sua igreja e agora ele ria, gargalhava mesmo, bem vos avisei que as vias do Senhor são imperscrutáveis, não quisestes acreditar, quisestes continuar na devassidão, na luxúria, no egoísmo, sem quererdes ajudar a construção da Casa do Senhor, da Igreja do Senhor, pois agora é muito bem feito, e o artista mudava de tom de voz e também quase de língua, agora perderam os cúbicos, não têm onde cubar, porque o Senhor vos vuzumunou com a sua ira (PEPETELA, 2008, p. 37).
A discursos amedrontadores no gênero do acima citado, proferido por um pastor, somam-se pregações dos representantes dos recém-formados partidos políticos e os simples oportunistas de ocasião. Os primeiros, insatisfeitos com o monopartidarismo, não perdem a ocasião de imputar ao governo os danos ocasionados pelos desabamentos, ousando mesmo explicar a causa de tais eventos: “[...] um orador, dum partido recém-criado, acusando o Governo de partido único de ser responsável por aquela catástrofe, pois nunca se tinha interessado em fazer manutenção dos prédios” (PEPETELA, 2008, p. 43). Já os segundos, aproveitando-se da desdita alheia para a obtenção de lucro fácil, roubam a cena dos desabamentos e, como jogadores, empenham-se em fazer o próspero negócio das apostas:
Um tipo vendia uns cartõezinhos com toscos desenhos dos dois prédios de pé, para as pessoas porem uma cruz naquele que pensavam ser o próximo. Foi rápido, disse ele.Ainda andava a vender a ficha anterior com o terceiro edifício quando este caiu, disse o vendedor. Já estou a preparar novas fichas (PEPETELA, 2008, p. 93).
Na realidade, estes eventos podem indicar uma metáfora do quadro caótico em que o país se encontrava, representando a perda dos valores éticos e a adoção do arrivismo, tão bem representados por Carmina, personagem símbolo do descalabro político-social instaurado no país: “Todos os que são ou foram responsáveis se estão a ajeitar. Uma coisa aqui, outra coisa ali. Por exemplo, o Samuel, conheces, abateu à carga todos os carros do Ministério e ficou logo com cinco, os outros foram um para cada diretor, forma de lhes calar o bico” (PEPETELA, 2008, p. 19).
Carmina desde a infância “não tinha boa fama junto das pessoas mais velhas” (PEPETELA, 2008, p. 06). Era considerada uma afronta social por, já aos doze anos, assumir as rédeas da família, mandando na mãe viúva e nos três irmãos mais velhos e machos. “Ainda por cima [era] mandona, resmungona e respondona” (PEPETELA, 2008, p. 07), características que a distanciavam principalmente do sogro Mateus Evangelista que a considerava uma “satânica”. Por seu comportamento destoante do padrão imposto pela sociedade passa a ser conhecida por Carmina Cara de Cu (ou, simplesmente, CCC como é cognominada durante a maior parte da narrativa), alcunha que, embora injuriosa, não prejudica psicologicamente a personagem que passa a adotá-la em sua vida social e política: “[Carmina] Até já tinha inventado um slogan para a campanha, se fosse necessário: ‘CCC pró CC’” (PEPETELA, 2008, p. 11).
A comparação do rosto com o traseiro no cognome da personagem, ou como diz Bakhtin (1999, p. 329), “a substituição do alto pelo baixo e da face pelo traseiro”, além de designar negativamente Carmina, rebaixando-a por contrariar as tradições que a mesma considerava “obscurantistas” (PEPETELA, 2008,p. 11), pode indicar também seu destronamento na narrativa, isto é, sua perda de privilégios durante a transição do regime marxista-leninista para o sistema de democracia multipartidária. A reascensão de Carmina, no entanto, logo após a sua adesão aos novos segmentos governamentais, parece sugerir uma inversão daquilo que a alcunha de CCC assinala inicialmente, ou seja, aparenta aventar um movimento de baixo para o alto, em que a personagem consegue se reerguer, mesmo que para isso continue fazendo uso de métodos vis e fraudulentos.
Destaque-se que a sigla que compõe o nome da protagonista, além de aludir ao CC, isto é, ao Comitê Central do MPLA, remete-nos aos inúmeros partidos e instituições privadas que se formaram no fim de 1990 e que passaram a se autobeneficiar “pouco depois [que] ‘os sóis das independências’ começaram a pôr-se e ‘os sóis das ditaduras’ começaram a brilhar”, conforme registra Mata (2003, p. 49), ao referenciar a paráfrase que o togolês Yoshua Kossi Elui fez do título do romance Les soleils dês indépendences (1964), do escritor costa-marfinense Amadou Kourouma.
Há de se considerar, ainda, que o nome de CCC também lembra o Carmina Burana3, conjunto de canções profanas medievais, cujo símbolo é a Roda da Fortuna, ou seja, um timão em que seus integrantes ora encontram-se em cima, ora encontram-se embaixo, devido à constante mobilidade do objeto. Trazendo mais especificamente para o contexto da narrativa, vê-se em Carmina – e em outros personagens que agem de forma usurária – a aspiração incessante de estar sempre no topo da roda, mesmo que para isso outros precisem ser esmagados. A partir dessa alusão, pode-se afirmar que, além de mostrar a intensa mobilidade social da sociedade angolana daquele período, tem-se na narrativa uma crítica à perda dos valores éticos dos tempos revolucionários.
O casamento de Carmina e João Evangelista, fato que abre a narrativa, aponta para uma união insólita. O interesse e o oportunismo representados por ela encontram refúgio na acomodação de uma certa indiferença quanto ao destino do país, revelada por João Evangelista, que apesar de trazer o nome de grande representatividade da história cristã, de anunciador das boas novas, restringe-se às batalhas de jogos de computador, exilando-se do mundo que desaba lá fora.
No decorrer da narrativa, a cada conquista do casal (ela, através do enriquecimento ilícito; ele, pela conquista de impérios virtuais), novos prédios desabam, resultando na destruição da capital angolana. Assim, a união dos protagonistas, segundo Secco (2009) e Mata (2012), representa a aliança de ideologias antes incompatíveis (marxismo, a religião e o neoliberalismo), ilustrando o processo de disjunção e diluição de valores que o país vive.
Nesse sentido, sob o signo de uma consciência pós-colonial que recusa o abuso de poder e todas as mazelas que a partir de então se desencadeiam, a narrativa significativamente denuncia as iniciativas em prol da consecução de benesses em proveito de uma minoria, à medida que ecoa o grito libertário do povo que acreditava em dias melhores – após a libertação do jugo colonialista – e que continua imerso num mar de nepotismo e clientelismo, onde o ter se torna mais importante que o ser.
Paralelamente ao registro da corrupção do poder e do caos provocado pela “síndrome de Luanda”, ficcionalizam-se, em O desejo de Kianda, fatos históricos que marcaram a década de noventa em Angola, a saber: introdução do sistema multipartidário, realização de eleições presidenciais, privatização de empresas e “a rápida formação de uma nova burguesia oriunda do próprio MPLA” (VISENTINI, 2012, p. 86). Não se pode desconsiderar que tudo isso está diretamente relacionado ao abandono das referências socialistas pelo MPLA, fato que na narrativa desestabiliza Carmina, inicialmente – sendo a magreza e a depressão da personagem evocadas na narrativa como forma de demonstrar a sua desorientação após a perda do regime monopartidário –, até o momento em que a mesma resolve aderir aos projetos de enriquecimento ilícito como seus demais companheiros:
Os mujimbos de corrupções e desfalques são centenas e alguns são verdadeiros – prosseguiu Carmina. É o fim dum reinado e tudo está a tentar safar-se enquanto é tempo, assegurarem a reforma no estrangeiro se as eleições correrem mal. E eu estou a ser parva, armada de última socialista. Que achas?[...]Acho que não deves desanimar. Tens de continuar a viver, não é? Encontra maneira de gastares as energias que sempre tiveste demais. Mas pensas em abandonar a política?Para isso é que te pergunto. Posso virar empresária, é o que todos fazem. [...] Até já vou com certo atraso, uns tantos se adiantaram e ocuparam espaço, mas sempre consigo qualquer coisa. Também posso lutar para o CC do Partido, o que assegura um lugar na lista de deputados para as eleições. E é isso que te pergunto: empresária ou política?-É proibido ser as duas coisas?Agora já não, claro... quer dizer que tu... és um gênio, João. Pois está visto, vou fazer as duas coisas, casam perfeitamente, uma atividade ajuda a outra (PEPETELA, 2008, p. 20-21).
Ironicamente, aquilo que representou o idealismo passa a ser compreendido como tolice, abnegação fora de propósito, desprendimento, em uma ocasião em que salvar a própria pele era a palavra de ordem entre eles. Carmina, que poderia representar um bastião da ideologia socialista norteador das ações revolucionárias em Angola, passa a encampar o ideal capitalista, a política da mais-valia, da subjetividade e do individualismo perverso.
A referência ao abandono do crédito socialista denuncia claramente a renúncia desses ideais, anunciando não mais o flerte, mas o esposamento do regime capitalista patrocinador e avalizador das táticas da mais-valia, do enriquecimento a despeito de qualquer circunstância e do desprezo pelas questões e anseios representados pelo povo. Diante do possível fracasso daquilo que Carmina simbolicamente chama de reinado, abrem-se as portas do antes execrado capitalismo selvagem mantenedor de um sistema de exploração incompatível com ideais que nortearam as lutas independentistas. Sob a ameaça da perda de privilégios, CCC não hesita em mudar de lado, instância que afinal nunca esteve tão longe de certos idealistas interessados na gestão da própria fazenda. O apagamento dos ideais pregados no período revolucionário e as promessas feitas ao povo são relegados sem cerimônia ao olvido, como um valor caído em desuso, um autêntico conto do vigário. As demandas da massa importaram muito no momento da luta. A colheita prometida para o pós-independência resultou parca para os que garantiramo sucesso da empreitada coletiva. “Angola para os angolanos” tornou-se letra morta na burocracia dos interesses capitalistas.
A propósito do que vimos tratando em O desejo de Kianda, outros romances como A geração da utopia (1992), do próprio Pepetela, O sétimo juramento (2000), da moçambicana Paulina Chiziane, e ainda Eterna paixão (1994), do guineense Abdulai Silá, são exemplares dessa “representação orgíaca do novo poder” (MATA, 2003, p. 47). Vítor/Mundial (A geração da utopia), David (O sétimo juramento), e Ruth (Eterna paixão), assim na mesma maneira de agir própria de Carmina, aproveitam-se das brechas existentes nas organizações das quais faziam parte para pôr em prática seus intentos pessoais em detrimento do projeto coletivo que outrora credibilizavam. Têm-se, portanto, uma busca paranoica e obsessiva destas personagens para a realização de projetos individuais e imediatistas, ao mesmo tempo em que se busca, nestas narrativas, representar a nova burguesia e a elite que “tenderam a substituir a força colonial por uma nova força de tipo classista, em última análise exploradora, que reproduzia as velhas estruturas coloniais em novos termos” (SAID, 1995, p. 282). Assim, tanto Carmina quanto Ruth, subjugadas pelo “sintoma de prepotência e elitismo”, passam a humilhar suas empregadas, quebrando acordos selados, ou mesmo substituindo seus nomes, conforme faziam as senhoras coloniais:
João foi se refugiar no escritório, incomodado com a pergunta que lhe fazia lembrar uma maka antiga com Carmina. Eram as senhoras coloniais que mudavam os nomes das empregadas para Maria ou Joana, vem mesmo na literatura. E a sua mulher tinha aprendido com as colonas e usava depois da independência o mesmo sistema (PEPETELA, 2008, p. 64).
Situação semelhante de reprodução do colonialismo também ocorre em A geração da utopia, quando o neoburguês Malongo agride e despede seu serviçal João pelo fato de o mesmo ter se esquecido de colocar sal nos ovos de seu café da manhã:
[Malongo] Provou os ovos e merda, falta sal. O cozinheiro ensinara o criado, João, a fazer os ovos, para não ter de vir trabalhar logo de manhã cedo. Mas duas em cada três vezes, o João esquecia o sal nos ovos ou punha demais. O berro de Malongo fê-lo comparecer, assustado. Aparentava cerca de inquietos dezoito anos.Você não aprende, não é, seu negro burro? Esqueceste outra vez o sal, filho duma puta velha. Vem cá, vem provar aqui.Importar listaMalongo segurou-lhe a cabeça com as duas mãos, enfiou-lhe a cara no prato, prova, cabrão, prova para aprenderes. João estrebuchava, mas o patrão era demasiado forte, e a cara dele só largou o prato quando uma chapada monumental o atirou contra a parede da varanda (PEPETELA, 2013, p. 355).
Em todos os casos, os autores laboram na construção alegórica da perda da inocência e da consciência do início do tempo da distopia em seus países, caracterizada pela opressão, autoritarismo e corrupção político-social.
Para Inocência Mata (2003, p. 56), essa distopia gera “uma escrita que se propõe subverter as combinações hegemônicas do que existe”. De fato, esta escrita permite uma leitura que transcende o “colorido do estético” (MACEDO, 1989, p. 33), denunciando situações injustas e desumanas, ao mesmo tempo em que cumpre com eficácia uma função extratextual e ocupa um lugar sociológico, em que é possível perceber inquietações e polêmicas. Trata-se, sobretudo, de narrativas em que, claramente, há o entrecruzar da ficção e da história, tendência muito privilegiada na atual literatura africana e mais frequentemente na literatura angolana, sendo Pepetela um dos escritores mais representativos e sistemáticos cultores dessa modalidade ficcional, conforme já afirmamos anteriormente.
Mais do que narrar o passado como parece acontecer nas obras já mencionadas e em muitos outros romances africanos pós-coloniais, o que ocorre, conforme chama a atenção Mata (2003), é a reinvenção do passado para “moldá-lo às exigências das interpretações eficazes e iluminar segmentos sociais, ideias e eventos históricos antes na opacidade” (MATA, 2003, p. 60).
No caso de Pepetela, a inovação decorrente da leitura da história “reside no repovoamento da paisagem e na remitologização do espaço da utopia roída pelos descasos da revolução” (MATA, 2003, p. 60). Isto embasa a crítica santomense quando alude a possibilidade de “reutopização” na obra romanesca de Pepetela.
Tratando especificamente de O desejo de Kianda, essa “reutopização” ou “heterotopia”, como prefere Boaventura de Sousa Santos (2010), pode ser muito bem representada pela cena em que os moradores, destituídos de tudo o que tinham, após as quedas dos prédios, decidem protestar contra a inação dos governantes, usando a nudez como único traje compatível com a pobreza em que se encontravam. O despojamento das personagens remete à ideia de retorno ao estado original - como diz o vulgo: “Nu como nasceu” - e permite perceber, principalmente através do discurso contestatório do personagem Honório, uma tentativa de mudança, considerando o fato de que existe um movimento em prol dessa, uma luta que se ressignifica a partir de acontecimentos inesperados, mas nem por isso menos intuídos ou mesmo profetizados, seja pelas palavras da Kianda, seja pela crescente insatisfação do povo humilde, cujos lamentos não encontram eco face à surdez dos poucos que se constituíram, sem legitimidade, representantes da esmagadora e sufocada maioria.
Desse modo, a proposta contida em O desejo de Kianda não seria unicamente apresentar uma visãodistópica do país, destituída por completo da utopia, mas propor um projeto heterotópico munido dapossibilidade de construção de um espaço “com base na negociação de contradições, de diferenças e de particularismos, sem se perder, porém, o sentido identitário do conjunto” (MATA, 2012, p. 302). Nesse caso, como preceitua o autor de Pela mão de Alice, “em vez da invenção de um lugar totalmente outro”, o que se propõe é a “deslocação radical dentro de um mesmo lugar” que é de todos, cujos esforços almejam os mesmos objetivos, “de modo a expandir as alternativas de prática social e pessoal e as possibilidades de lutar por elas” (SANTOS, 2010, p. 325-326). Em outras palavras: a expectativa de atender a um programa que traduza Angola em um país ideal ainda existe, no entanto, sabe-se que para alcançar tal objetivo tem-se a necessidade de acatar outros procedimentos e fundamentos metodológicos.
Em contraponto ao discurso distópico do narrador, Pepetela insere em O desejo de Kianda – como o próprio título já sugere – a fabulação lendária da Kianda, deusa das águas e símbolo de proteção para os pescadores angolanos, por meio da intervenção de uma instância narrativa remota, espécie de backing vocal, marcada a itálico, que vez ou outra é inserida na trama. Tal alegoria, associada ao elemento insólito, serve na narrativa como explicação para a “síndrome de Luanda”, pois é o canto, ou melhor, o lamento desse ser, com o intuito de libertar-se dos escombros herdados pelo colonialismo e restaurar a antiga geografia do Kinaxixi, que provoca a queda dos edifícios:
[...] enquanto no prédio em construção Cassandra contava para velho Kalumbo a letra completa da canção que finalmente conseguia perceber. Se tratava dum lamento de Kianda, como já tinham previsto anteriormente, que queixava de ter vivido durante séculos em perfeita felicidade na sua lagoa, até que os homes resolveram aterrar a lagoa e puseram cimento e terra e alcatrão por cima, construíram o largo e os edifícios todos à volta. Kianda se sentia abafar, com todo aquele peso em cima, não conseguia nadar, e finalmente se revoltou. E cantou, cantou até que os prédios caíssem todos, um a um, devagarinho, era esse o desejo de Kianda. E foi isso que Cassandra contou a mais velho Kalumbo (PEPETELA, 2008, p. 108, itálico do autor).
A ruína dos prédios – resultado dos desabamentos, que, diga-se de passagem, não causa ferimentos nas pessoas e nem danos aos objetos domésticos – evoca, por um lado, o passado glorioso da Kianda e a caducidade do ideário utópico da nação; por outro lado, parece despertar a atenção para o estabelecimento de uma ponte entre a tradição e a modernidade, posto que traz de volta a imagem paisagística primeva, para assim se pensar numa forma de redefinir os novos caminhos do país. Talvez isso explique a recorrência à imagem do tradicional, simbolizada principalmente por Kalumbo (velho cego à semelhança dos oráculos e, assim como tais, obtentor de respostas sobre coisas do passado e do futuro), associada à imagem do moderno, representada por Cassandra (criança inspirada na personagem mitológica grega, desacreditada e tida como louca tal qual a profetisa helênica), únicos a ouvir o canto e adecifrar o desejo da Kianda, dado que ambos, ignorados, tiveram seus discursos rechaçados pela maioria: “Se devia avisar as pessoas do prédio que ele também vai cair, [diz o mais velho Kalumbo]”. “Ninguém vai acreditar, nunca ninguém me ouviu, [responde Cassandra]” (PEPETELA, 208, p. 108).
Há de se notar que a inserção na narrativa da figura mítica da Kianda, conjuntamente com sua lenda, favorece para a divulgação da oratura tradicional angolana, reafirmando seu valor no imaginário local e recusando sistematicamente os mitos, imagens e modelos impostos pelo colonizador que a todo custo forçou o apagamento das raízes identitárias das nações colonizadas. Paradigmático, nesse caso, é o excerto em que Kalumbo esclarece a Cassandra sobre quem é a Kianda, rejeitando a imagem corrompida pela ideologia colonial:
Tenho visto uns desenhos de Kianda. Metade mulher, metade peixe.Não – disse mais velho Kalumbo com súbita irritação. Isso é coisa dos brancos, a sereia deles. Kianda não é metade mulher metade peixe, nunca ninguém lhe viu assim. Os colonos nos tiraram a alma, alterando tudo, até a nossa maneira de pensar Kianda. O resultado está aí nesse País virado de pernas para o ar. (PEPETELA, 2008, p. 97, itálico do autor).
Não obstante, não é apenas Pepetela quem escreve sobre a figura imaginária da Kianda. “Referida por numerosos autores, pode-se dizer que ela habita especialmente os textos de Luandino Vieira e Arnaldo Santos, autores que são considerados os ‘escritores da Kianda’” (MACÊDO, 2008, p. 137). Possivelmente por serem referenciais no assunto, Pepetela os incorpora em seu texto, fazendo uso do recurso roman à clef, de modo que os mesmos advoguem a seu favor sobre a lenda da deusa angolana das águas:
Ouviu a estória um dia, ali mesmo numa esplanada do Kinaxixi, quando se sentou com o maior respeito à mesa onde se encontravam dois escritores, Luandino Vieira e Arnaldo Santos, grandes sabedores das coisas de Luanda. Como não podia deixar de ser, os kotas falavam da sua meninice kinaxixense, embora Luandino fosse do Maculusso, que de fato era ali ao lado. E foi ele mesmo que contou, lembras, Arnaldo, quando a mafumeira chorou sangue durante sete dias, não se sabe se de dor de ser cortada se de pesar por tirarem a lagoa à Kianda? Arnaldo Santos, no seu jeito manso de ser e falar, sorriu para o copo de cerveja, explicou com calma para João, aqui à volta da lagoa era tudo terra vermelha, essa terra muceque, do cepo cortado saía um líquido que talvez fosse a seiva misturada com os produtos que a raiz chupava da terra vermelha, as pessoas achavam era sangue. Deixa de tentar explicar o inexplicável, cortou Luandino de forma viva, com um sorriso indefinível, era sangue, o povo disse, afinal mafumeira chora sangue quando lhe cortam (PEPETELA, 2008, p. 45-46).
Ainda sobre o imaginário de Luanda em relação à Kianda, é conveniente que se registre a devoção dos angolanos por essa divindade. É a ela que são dedicadas as festas que acontecem na Ilha de Luanda,assim como também a ela é dedicada a capital angolana, conhecida como a “cidade da Kianda” (MACÊDO, 2008, p. 137). Em sua homenagem – semelhantemente ao culto prestado a Iemanjá, também divindade das águas, reverenciada no Brasil pelos adeptos das religiões de matrizes africanas –, organizam-se rituais de oferendas de alimentos regados ao toque de batuques e danças tradicionais, seguidos de uma procissão no mar, onde as oferendas serão depositadas.
Segundo Tania Macêdo (2008), para quem a Kianda é “a moradora mais ilustre da cidade de Luanda”, a presença dessa divindade continua segundo o imaginário luandense a morar no Kinaxixi, de onde nunca se ausentou. Ainda, conforme a pesquisadora:
Como abono dessa tese, aponta-se o fato de que o edifício de dezessete andares que se intentou construir sobre o aterramento da antiga lagoa teve de ser abandonado, pois uma infiltração do lenço freático fez com que se formasse em seu alicerce uma... lagoa! Isso inviabilizou a ocupação desse prédio que passou a ser conhecido como “Prédio da lagoa” ou “Prédio da Kianda”. Com a guerra, refugiados de todo o país – sem o imaginário luandense – passaram a residir no edifício inacabado hoje ocupado por cerca de 1.500 pessoas que vivem em péssimas condições, sob o risco constante de desabamento do prédio condenado. (MACÊDO, 2008, p. 140-141, aspas da autora).
Interessante comentar que a Kianda na narrativa habita o sopé do edifício inacabado do Largo do Kinaxixi, logo, o mesmo prédio ao qual se refere Tania Macêdo na citação acima. É nesse espaço que se origina a lagoa da Kianda, inicialmente formada como poça de águas verdes até se transformar em torrente capaz de provocar “gigantesca onda”, inundando toda a avenida até encontrar-se com as águas do mar, onde o espírito das águas pôde finalmente tornar-se livre. Para Carmen Secco (2009, p. 156), a fuga da Kianda configura “não só a impossibilidade de os antigos ideais socialistas persistirem, mas se constitui como alegoria de uma esperança latente e desesperada rebeldia”.
Sem dúvidas, O desejo de Kianda é um dos livros mais violentos de Pepetela, conforme admite o próprio autor em entrevista concedida a Maura Eustáquia de Oliveira: “Ao sentir a desilusão que se seguiu às eleições – que todos esperávamos democráticas – tive a ideia de colocar tudo isso num livro [...]. Escrevi O desejo de Kianda com muita raiva, com muita revolta e talvez por isso seja um dos meus livros mais violentos” (PEPETELA, 2003, p. 364-365). No entanto, diante da atmosfera violenta e apocalíptica imposta pela realidade ficcionalizada, o que o autor pretende é restaurar a esperança exterminada pelos discursos ideológicos que se firmaram por meio de procedimentos autoritários e dominadores.
Elemento da tradição frequentemente visitado por artistas, a Kianda não é só representada por suas ações repressivas, mas também aparece como deusa generosa, capaz de facilitar o trabalho da pesca nas suas águas, desde que lhe seja solicitado de forma ritual e reverente. No romance A rainha Ginga, do também escritor angolano José Eduardo Agualusa, temos uma invocação das Kiandas por um grupo de pescadores:
Escutem, águas, senhoras das águas, pedimos permissão para entrar, deixem que entremos pois vimos em paz. Afastai os crocodilos, afastai os cavalos-marinhos. Deixai que entremos nas águas que dormem. Dai-nos os peixes, os peixes alegres e velozes, como raios de prata. Dai-nos os peixes, senhoras das águas, dai-nos o fulgor e a presteza dos peixes. (AGUALUSA, 2015, p. 41).
A saudação e o pedido de licença para adentrar os domínios das senhoras das águas funciona no texto de Agualusa como uma autorização. Entretanto, a invasão iconoclasta do território sagrado ocorrida em O desejo de Kianda acarretou as consequências desastrosas comentadas aqui.
Há muito ainda a aprender, nessa desenfreada e gananciosa escalada do poder, protagonizada por personagens da estirpe de CCC e de outros, representantes, na ficção, de pessoas que lutaram por um ideal, viram perderem-se muitas vidas e perderam-se, afinal, eles próprios, inebriados com o canto do antes execrado lucro desenfreado, seduções de falsas sereias que sufocam o homem do passado, revestindo-o de uma couraça de indiferença e egoísmo, para quem, o centro não está no Largo do Kinaxixi, mas nas artificiais lagoas da corrupção e do esquecimento dos ideais.
O texto de Pepetela pode indicar a indignação dos muitos desvalidos no sistema desumano implantado por alguns que já apagaram a mais importante parcela da história de lutas do angolano: o sonho de “Angola para os angolanos”, bandeira desbotada, incompatível com as novas demandas de uma burguesia empenhada na construção do império faustoso que o povo possibilita, com seu sacrifício, erigir.
É preciso reverenciar as Kiandas.
REFERÊNCIAS
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Notas