Resumo: A temática da educação no campo social tratada neste artigo, em um sentido amplo, advém de análises de pesquisas sobre experiências produzidas no interior de projetos socioeducativos e cuja a metodologia das investigações é qualitativa, de tipo descritiva com característica longitudinal. Neste artigo defendemos que práticas de educação não escolar constituem estratégias pedagógicas alternativas que, em certa medida, enfrentam o processo de exclusão social de crianças, adolescentes e jovens constituindo práticas sociais de produção de novos saberes. O texto visa ressaltar o caráter central da figura do educador quando se empenha em encontrar formas de interagir e de se deixar transformar pelo Outro. Neste processo apontamos outro modo de educar, enquanto campo de possibilidades, se não como vetor de transformação social como experiência que repercute sobre a educação.
Palavras-chave:Educação não escolarEducação não escolar,Movimentos pedagógicos alternativosMovimentos pedagógicos alternativos,Educadores sociaisEducadores sociais.
Abstract: The theme of education in the social field comes from research on experiences produced within socio- educational projects and whose qualitative methodology is descriptive and characteristically longitudinal. We argue that non-school education practices are alternative pedagogical strategies that, to a certain extent, face the process of social exclusion of children, adolescents and young people, and constitute social practices for the production of new knowledge. This article aims to emphasize the central character of educators when they strive to find ways of interacting and being transformed by the Other. In this process we point to another way of educating, as a field of possibilities that challenges academic formation as a vector of intensification and social transformation.
Keywords: Non-school education, Alternative pedagogical movements, Social educators, Academic education.
EDUCAÇÃO NÃO ESCOLAR. ESTRATÉGIAS PEDAGÓGICAS ALTERNATIVAS
NON-SCHOOL EDUCATION. ALTERNATIVE PEDAGOGICAL STRATEGIES
Recepção: 24 Setembro 2018
Aprovação: 15 Dezembro 2018
Este artigo retoma e articula achados empíricos decorrentes de pesquisas do tipo qualitativo que vêm sendo realizadas desde 2010, com financiamento do CNPq, junto a um grupo de educadores sociais que atuam em projetos socioeducativos executados por Organizações Governamentais (OGs), Organizações Não Governamentais (ONGs) e por entidades do Terceiro Setor, na região metropolitana de Porto Alegre/RS, Brasil. Tais estudos objetivavam conhecer a ação metodológica e as finalidades de práticas delimitadas a programas e/ou projetos socioeducativos, endereçados a crianças, adolescentes e jovens vulnerabilizados socialmente.
As ações socioeducativas tornaram-se a expressão de ações de intervenção no que temos compreendido como sendo práticas de educação não escolar protagonizadas, mais recentemente, por entidades sociais (Organizações Não Governamentais/ONGs e/ou do Terceiro Setor) que, nas últimas décadas, emergiram no Brasil como uma espécie de movimento pedagógico que, em conjunto com os movimentos sociais, a educação comunitária e a educação popular pode ser denominado, grosso modo, como educação no campo social. Desenvolvidas, geralmente, à margem do sistema educacional, agem em complementariedade à escola, uma vez que assumem, no caso das práticas socioeducativas, caráter “extraclasse”, mediante um entendimento de que educar extrapola a instituição escolar, porque é prática social, conforme estabelece a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB/1996.
A emergência de tais práticas alavancou, inclusive, a implementação de políticas públicas de enfrentamento à exclusão social - tanto no campo da assistência social, quanto na educação - enquanto experiências intersetoriais necessárias à inclusão social1 de segmentos populacionais socialmente vulnerabilizados, no caso, crianças e adolescentes. Tais sujeitos demandam por permanecer em outros espaços educativos, quer por necessidades familiares, pela situação de vulnerabilidade, por ordens judiciais e/ou pelo simples desejo de permanecer mais tempo em atividades sociais, comunitárias, de lazer.
As pesquisas que vimos realizando têm permitido explorar as potencialidades de uma educação do e no campo social. Mesmo que configurando um campo de dissensos e de importantes contradições, nossas investigações permitem delimitar e fixar contornos disciplinares e até interdisciplinares de tais intervenções. Tais achados nos permitem pensar uma educação para além do que se oferece na escola. Subjaz a tais práticas a emergência de um novo ator no processo de ensinar e aprender enquanto sujeito fundamental, cujas ‘novas’ características serão tratadas na sequência do texto.
Partimos do entendimento que o exercício de práticas de educação no campo social implica reconhecer que as mesmas possuem sustentação em teorias e conceitos oriundos de diversas áreas do conhecimento. Tal afirmação recupera o apoio das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas através da Filosofia, Psicologia, Antropologia, Sociologia, Economia, entre outras, enquanto saberes que sustentam as experiências realizadas.
Alinhadas a Ema (2013, p. 31), acreditamos que “as ciências sociais têm efeitos políticos e que é, portanto, conveniente uma problematização politizadora do trabalho [...]”, com tal assertiva, queremos demarcar uma posição ética que “se abre a perguntas que questionem os sentidos estabelecidos pondo o foco sobre o que não era visto e escute o que não era ouvido” (EMA, 2013 p. 32). E é desde este lugar que revisitamos nossas pesquisas, retomando dados primários construídos a partir dos diálogos com as educadoras e educadores participantes daqueles estudos, para interrogar como situam suas práticas a partir de três ações: o que fiz, porque fiz e para quem fiz?
Para o desenvolvimento da reflexão aqui proposta organizamos o texto em quatro subseções. A primeira intitula-se “Práticas socioeducativas no âmbito da educação não escolar”. Nela, à luz de uma conjuntura marcada pela brutal diferença de acesso a bens coletivamente produzidos e individualmente apropriados, historicizamos, ainda que de forma breve, e apresentamos as alternativas de Práticas e Projetos de Educação Não Escolar que vêm sendo implementadas por diferentes instâncias sociais.
Na segunda subseção nomeada “A artesania deste estudo”, descrevemos o percurso metodológico adotado no conjunto de pesquisas que serviu de ancoragem para este artigo. Na terceira, apresentamos “A prática dos educadores entre impasses, dilemas e (in) experiências”, e discutimos, a partir da voz de alguns dos/as participantes do estudo, a emergência da figura do educador social contemporâneo.
“Educação não escolar e a perspectiva de um novo movimento pedagógico” é a quarta subseção. Nela convida-se a pensar acerca da mudança de sentido que se gesta no interior do discurso pedagógico, a partir do momento em que a perspectiva da Educação Popular, enquanto base teórica que sustenta a reflexão sobre a prática, vai cedendo espaço para atividades mais ligadas ao plano mecânico do fazer fomentando a lógica da produtividade.
Em “À Guisa de Encerramento”, recupera-se o fazer de educadores sociais que, mesmo diante da flexibilização e da precarização do trabalho, na modalidade de emprego, dão visibilidade a um modo muito particular de educar. Desfigura-se o clássico perfil do professor em favor de uma intervenção que vem se caracterizando por uma pedagogia da manualidade e pela emergência do diálogo entre saberes diversos. Mesmo sem o aprofundamento que a temática demanda, nas considerações finais pergunta-se sobre a relação da Universidade com a sociedade no que tange à questão objeto de análise neste artigo.
Historicamente, a realidade brasileira – caracterizada pela desigual distribuição de renda – produziu um contexto de desigualdade e exclusão social cuja solução, necessariamente, passa pela instauração de uma nova ordem social que demanda tempo e investimentos. A fim de amenizar essa situação, tradicionalmente, inúmeras entidades e organismos sociais têm buscado alternativas a partir de intervenções baseadas em práticas educativas. Em geral, tratam-se de propostas engajadas (ao menos formalmente) em projetos de transformação social que, geralmente, desenvolvem-se no âmbito do que chamaríamos uma educação no e do campo social.
São experiências voltadas para mudanças objetivas, evetualmente, espelham-se nos movimentos sociais populares ocorridos no Brasil, principalmente, após a década de 1980 quando surge um novo modo de educar nas periferias urbanas que busca, em alguma medida, valorizar os saberes populares e/ou, a partir deles, problematizar a relevância dos conteúdos aprendidos na escola para a melhoria nas condições de vida dos piores situados socialmente. Mas são experiências que não podem ser denominadas de educação popular porque, muitas vezes, carecem de substancial dimensão política e forte engajamento popular.
A partir de 1990, numa crescente aproximação com o Estado, entidades sociais e a livre iniciativa tornaram-se parceiras na disponibilização de recursos públicos para a execução de diferentes projetos. Em conjunto, configuram um cenário, por vezes promissor, noutros, nem tanto, para as experiências de educação fora do âmbito da escola.
Ocorreu aqui uma mudança relevante no que diz respeito ao fato de que práticas de educação não escolar vêm perdendo muito de suas características de projeto popular de transformação social e de formação da consciência, para assumir um papel mais difuso quanto a suas finalidades sociais (MOURA; ZUCCHETTI, 2010; ZUCCHETTI; MOURA, 2007). Lima (2005, p. 74) compartilha tal inquietação em artigo no qual discute as relações entre cidadania e Educação quando afirma que “não pode existir cidadania democrática sem direitos sociais”. Nesse cenário, constituem exceção aquelas experiências que nasceram e ainda permanecem vinculadas aos movimentos sociais populares e a segmentos específicos da Igreja, que demarcam sua luta nas dimensões ético-políticas e educativas.
Mesmo que suscitando polêmicas e inúmeras críticas, na medida em que são protagonizadas pelo Estado e/ou executadas pelo Terceiro Setor e por ONGs, as práticas de educação não escolar priorizam ações voltadas para grupos vulneráveis, entre eles jovens, crianças, deficientes, trabalhadores desempregados. Embora, algumas vezes, venham fundamentadas em conceitos como “risco social2”, “vulnerabilidade social3”, “exclusão social4”, tais práticas acabam contribuindo pouco ou quase nada para uma efetiva transformação das condições de existência objetiva, servindo mais para definir e demarcar quem são os novos sujeitos a serem socialmente temidos (BAUMAN, 1999).
Por outro lado, mesmo que ressaltadas tais contradições, em grande número são experiências que referenciam uma educação voltada à cidadania, ainda que não mais no sentido da garantia da participação e organização da população civil – tal como ocorria no período dos anos 70 e 80 – mas no sentido de uma cidadania ressignificada. Hoje se constituem em experiências voltadas ao exercício da civilidade, da responsabilidade individual com vistas à responsabilização social de todos (GOHN, 2002).
Em suma, vivemos um tempo em que o complexo processo histórico brasileiro produziu a necessidade de convocar a sociedade civil a “parceirizar” com o Estado, intervindo sobre o campo social, inaugurando um crescimento vertiginoso de projetos sociais de caráter socioeducativo, com características compensatórias. Na sociedade contemporânea, diferentes modelos de prática de educação no campo social coabitam em relação de constante tensionamento, porque disputam espaços de construção social cujos efeitos miram diferentes sujeitos, mais ou menos assujeitados.
Este artigo se ancora em um conjunto de pesquisas qualitativas realizadas nos últimos sete anos cujos objetivos vertem para o mesmo objeto: experiências de trabalho de educadores/professores/monitores, compreendidas como práticas de educação implementadas no âmbito de projetos socioeducativos realizados por ONGs, no turno contrário ao da escola e no Programa Mais Educação. Ao longo desses anos de investigação compreendemos que os dados de pesquisa não se constroem fora do sistema de ideias e conceitos que o/a pesquisador/a leva para o contexto investigado. Aprendemos, com Madeira- Coelho (2014, p. 95), que:
[...] a empreitada empírica em vez de procurar um fim em si mesma, articula-se às questões teóricas e epistemológicas. E então, de forma coerente, o trabalho de construção da informação se organiza em processos de idas e vindas que relacionam planos epistemológico, teórico e empírico. Ao mesmo tempo em que permite o delineamento do estudo empírico, o marco epistemológico e teórico é transformado pelo próprio estudo que o gerou, com um retorno de problematizações que permitam o avanço continuado da reflexão teórica.
Nessa perspectiva, assumimos uma compreensão ampliada da investigação que nos autoriza exercitar um processo reflexivo por meio de um contínuo movimento “de idas e vindas”. Trata-se de um processo no qual “a produção de informação desloca-se das respostas ao processo de construção” (MADEIRA- COELHO, 2014, p. 97).
Assim, nossas investigações, com suas variantes de tipo descritiva, com característica longitudinal, buscaram identificar, na prática individual e/ou coletiva, “o que fez, porque fez e para quem fez”, considerando os objetivos institucionais, as orientações pedagógicas e as formações específicas desses sujeitos que nomearemos, em consonância com estudos desse campo, de educadores sociais.
Do ponto de vista analítico, o conjunto das investigação lançaram mão de metodologias dialógicas a partir da realização de: a) entrevistas de tipo dialogada (MORIN, 1998), b) registros em diário de pesquisa (BARBOSA; HESS, 2010), c) participação em grupos dialogais (DOMINGUES, 2006) buscando identificar, nos dados coletados, regularidades, deslocamentos, transformações, continuidades e descontinuidades, semelhanças e diferenças. Os resultados das investigações vêm sendo problematizados a partir da socialização no âmbito de congressos nacionais e internacionais, publicações em periódicos e livros, o que tem permitido assinalar as mudanças que se operam na concepção do trabalho realizado no âmbito de educação não escolar.
Além disto, estas pesquisas e seus achados têm suscitado indagações que vêm fomentando a escrita de Dissertações e Teses, no contexto do Grupo de Pesquisa Estudos, Pesquisas e Práticas, do Programa de Pós-Graduação, as quais colocam em questão a emergência e produção de sentidos que conformam as práticas que se colocam em movimento quando o foco é a prática de educadores na educação em espaços não escolares.
Um dia a professora de uma escola lá de perto disse: - Qual é a diferença da escola para este espaço aqui? E ela viu a diferença. Os mesmos alunos da escola, mas num espaço de acolhimento pra eles, que eles gostam de estar ali, se sentem bem. Eu afirmo que é bem diferente de uma escola, até porque uma professora com 30, 40 alunos, como é que ela vai dar atenção para cada um deles como fazemos aqui? (EDUCADORA G).
Iniciamos com a reflexão de uma educadora que questiona acerca da diferença entre a escola e o socioeducativo. Em geral, os educadores entendem que esta diferenciação passa pelas finalidades de ambos. Porém, a nós interessa demarcar o que ela anuncia ao dizer “e ela viu a diferença”, o reconhecimento da interpelação constante do fazer educativo em uma concepção que apela à formação do sujeito para além do processo de escolarização.
Na escola tem um conteúdo para trabalhar, tem que passar esse conteúdo porque tem um objetivo a atingir, assim, a curto prazo. Que eu vejo que no socioeducativo não tem isso. Tem seus objetivos, mas eles não acontecem a curto prazo. Então, eu acho que essa mudança aconteceu, de não imaginar mais o espaço como uma sala de aula, mas um espaço diferenciado. A gente tem um programa, tem um conteúdo para trabalhar, coisas que a gente pretende passar para os alunos, para os educandos, mas a gente não tá preso dentro a uma estrutura fechada, assim. A gente muda conforme o perfil da turma e isso porque são diversos níveis, têm crianças de primeira, segunda, terceira série, todos juntos, tem criança, adolescentes de oitava série também juntos com os de quinta, as idades diferentes de 11 a 15 anos. Então não dá para fazer um trabalho parecido com o de sala de aula. (EDUCADOR H).
As falas dos educadores G e H expressam uma compreensão ampliada de educação que insinua a emergência de um outro movimento pedagógico com traços distintos da escola. Evidentemente que essa compreensão ampliada dos modos de educar também implica uma concepção da realidade, na qual o real não se encontra aí pré-definido, mas resulta de uma elaboração social e coletiva que se faz e se desfaz a todo instante. Isso porque são os próprios sujeitos que definem a situação na qual se encontram e que, portanto, estão a construí-la e reconstruí-la. Tal fato implica, também, e de forma muito relevante, em romper com as certezas de que partilhamos um mundo comum com pontos de vista idênticos sobre uma realidade, sempre e, sobretudo, incontestável.
Consideramos válido afirmar, na sequência do que vem sendo apresentado, que a emergência das práticas de educação não escolar pode constituir uma ruptura em relação às tradicionais propostas educativas que visam operar mudanças significativas nos modos de ensinar e aprender, em especial quando repercutem no interior da escola, encerrando uma esperança, nem sempre experimentada, de aplicar outros modos de educar e quiçá vivermos “melhor” em/na sociedade. Em particular, as intervenções de caráter socioeducativo, de atenção à proteção social básica, geralmente (de)marcados por ações pontuais, de baixo custo e com recursos materiais, financeiros e humanos escassos, têm sido apresentados como direito dos que deles necessitam, conforme anuncia a Lei Orgânica da Assistência Social, de 1993, e o Sistema Único de Assistência Social, instituído em 2005.
Neste cenário, a partir das investigações em questão, vimos observando a emergência de um sujeito que se convencionou chamar de educador social e que tem sido, via de regra, um grande articulador do que nomeamos práticas socioeducativas no interior da educação não escolar. Campo histórico de trabalho de educadores leigos, atualmente conta, também e principalmente, com a inserção de estagiários de cursos de formação de professores, na modalidade de Licenciaturas. Inseridos nas práticas de educação não escolar, esses estudantes, em geral, referem que se veem despreparados frente aos desafios de uma área complexa e contraditória, que exige conhecimentos pertinentes e a apropriação de conceitos que extrapolam ou evidenciam as falhas da formação acadêmica oferecida. Tomamos como exemplo o caso da Pedagogia e Educação Física enquanto formação de professores, cuja centralidade recai sobre a educação escolar.
Como é que eu vou dizer, assim... é automático, a gente vai aprendendo na prática, né. Como eu disse, eu fazia a Graduação, mas ela não é voltada para isso. Ela é voltada para uma sala de aula, uma escola. A prática de um projeto socioeducativo é bem diferente. (EDUCADOR I).
Antes de ser educadora, antes de ser professora, eu fiquei dos meus 7 até meus 14 anos sendo aluna numa instituição que era o Monteiro Lobato [...] lá eu já brincava de querer ser educadora, de querer ser tia, de querer ser profe, assim. Então já iniciei brincando disso e depois gostei, fui tomando gosto e fui estudar, fiz o Magistério, depois eu parti para uma graduação que foi a faculdade de Educação Física. Levei 10 anos para me graduar, e nesse tempo sempre trabalhei como educadora social. (EDUCADORA F).
Lá eu encontrei pessoas que já desenvolviam essa função. O primeiro diretor que eu trabalhei foi quem me passou muitas dicas, as educadoras do local, assim [...] fui aprendendo com elas muito dessa prática [...]. Sem muito referencial, foi bem na prática mesmo. (EDUCADOR A).
Assim, em geral, a prática implementada no âmbito das ações de caráter socioeducativo vem sendo protagonizada por jovens que pouco se diferenciam entre educadores jovens e jovens socialmente vulnerabilizados. Ambos estão prejudicados em seu direito ao emprego, geralmente desassistidos de direitos sociais, em especial, aqueles do campo da seguridade e sem remuneração adequada. Entre os jovens educadores sociais evidencia-se, mais do que os saberes da formação acadêmica, a existência de conhecimentos que emergem da prática e de muitas vivências que vieram a se constituir em experiência (DEWEY, 1979). Na grande maioria, estes são os primeiros de gerações que adentram o campus universitário; muitos deles frequentaram projetos socioeducativos quando crianças; são oriundos das classes que vivem do trabalho e mediante a ausência de um emprego na escola regular têm nas práticas de educação não escolar, geralmente vistas como provisórias, sua inserção inicial no campo da educação. Pode-se referenciar, também, neste caso, que a presença do “outro” educador é fundamental nesta formação, o que caracteriza um outro sentido para a formação em serviço que, em geral, é desprovida do olhar externo que se coloca como coautor.
Então, o que acontece, a formação, o educador social - aqueles com quem eu tenho contato - é forjado no trabalho. Sempre no trabalho. E aí o que acontece, cada um de nós leva a suas experiências pessoais também. (EDUCADOR E).
Embora os grupos de trabalho sejam coordenados por pedagogas, contam com a presença das diretoras dos referidos projetos nas atividades de formação, que se caracterizam por serem sistemáticas, onde se dialoga sobre questões ditas pedagógicas, de acompanhamento e avaliação.
Sobre a prática pedagógica propriamente dita, o vínculo dos educadores com os jovens é trabalhado e estimulado como um recurso para a boa convivência. Dar-se bem com o jovem aparece como um atributo natural e/ou necessário a ser desenvolvido para que o trabalho flua e para que os objetivos sejam atingidos. Talvez na base dessa boa convivência esteja, ao menos discursivamente, uma relação educador/educando pretensamente horizontalizada, conforme enunciado por A: " [...] a gente se trata de igual para igual. Eu aprendo com eles assim como eles aprendem comigo". Observa-se, nesta fala, a força de um discurso institucional que tem na manutenção do jovem no Projeto, independentemente do como ele se mantém, seu grande propósito.
O que mais influencia o meu trabalho aqui é o vínculo, que aumenta a cada dia. [...] eu consigo trabalhar através da alegria, do entender, consigo trabalhar tranquilamente o meu conteúdo. (EDUCADOR B).
Este, ao mesmo tempo em que adere ao discurso positivo do vínculo, deixa subjacente a ideia de que nem sempre se está disponível a essa abertura. “Ter esse vínculo é entrar na sala de aula e dar um sorriso, dar um bom dia antes de entrar na matéria, mas você não está sempre sorridente e com essa ideia de estar sempre disposto a acolher”, afirma B.
Os socioeducativos se constituem, então, supostamente, como um lugar de trocas, de produção de solidariedade, onde a crítica social nem sempre se faz presente. Embora estes atributos ao trabalho, a importância da qualificação da formação acadêmica é sempre referida: "O trabalho de forma mais estruturada, mais formalizado, nos remete a uma coisa mais profissional", afirma C. Nesse sentido, D expressa sua preocupação com a "mesmice" das práticas ao afirmar que: "fica difícil exigir do nosso aluno qualificação se a gente não se qualifica, se a gente não busca melhoria".
Nesse sentido, Boaventura de Souza Santos (2010), com sua teoria de tradução, nos ajuda a compreender a contradição presente nas práticas emergentes.
O trabalho de tradução tanto pode ocorrer entre saberes hegemônicos e saberes não hegemônicos. A importância desse último trabalho de tradução reside em que só através da inteligibilidade recíproca e consequente possibilidade de agregação entre saberes não hegemônicos é possível construir a contra-hegemonia (SANTOS, 2010, p. 126).
Ainda referindo Santos (2005), nos seus estudos sobre a experiência, destacamos sua tese de que não é mais possível defender a emergência de estratégias pedagógicas genuínas e emancipatórias no âmbito do que ele denomina como sendo da alçada do paradigma dominante. Este paradigma, em geral, tem por finalidade a regulação e não a emancipação. Horizontes emancipatórios, segundo o autor, são anunciados desde o paradigma emergente, aquele que subjaz dos resíduos e das ruinas dos bens culturais, das relações sociais e da política. Também faz referência que, enquanto estratégia para aprofundar a tensão entre regulação e emancipação, vale dar importância à emergência dos espaços públicos não estatais, inclusive àqueles espaços públicos que vêm sendo privatizados por grupos dominantes, a fim de que se busque a radicalização da democracia.
Do campo da Educação é possível recuperar a Educação Popular enquanto tendência pedagógica e metodológica para uma melhor promoção das relações humanas (STRECK, 2006), tomando-a como um fio que costura todas as áreas de conhecimento entre si. Entretanto, a perspectiva da educação popular se faz mais presente enquanto fundamento dos Projetos Políticos Pedagógicos (PPP) das práticas socioeducativas assinaladas do que enquanto base teórica que faz refletir a prática. Tal afirmativa constitui um dos achados do conjunto das pesquisas referidas na Introdução do texto. Temáticas como emancipação, autonomia, empoderamento e participação são recursivas na escrita dos PPPs. Interessante observar que alguns pressupostos freirianos5 também se mostram nas atividades de formação dos educadores, em especial, quando da escolha de livros para leitura e discussão na perspectiva da formação em serviço. Isso é identificado nos grupos de formação dos educadores que geralmente ocorre no âmbito das instituições onde atuam e que nos é informado pelos sujeitos da pesquisa.
Contudo, na intervenção, os fundamentos da educação popular perdem espaço para atividades que, de modo mais pragmático, organizam ações onde o trabalho e/ou a cultura do trabalho se apresentam enquanto estratégias de inclusão social. Criança, adolescente e jovem como sujeitos de direito, cidadania na perspectiva do acesso a bens e serviços são temas que transitam no interior dos grupos de trabalho que, na modalidade de oficinas, aludem à arte, o esporte, o reforço escolar, como meios para atingir os objetivos propostos pelos educadores, ainda que, muitas vezes, sem uma escuta aos sujeitos para os quais se voltam.
De modo geral, as falas dos educadores remetem à ênfase de que a dimensão profissional da prática emerge do fazer em conjunto, através do exercício da manualidade - "colocando a mão na massa” -, como referiu uma de nossas interlocutoras. Daí que o sentido atribuído ao que podemos nomear de uma pedagogia da manualidade não prescinde do conhecimento intelectual, aquele que reflexiona a prática para a construção da teoria. Aqui o saber acadêmico não é tão central porque cede lugar para a experiência, aquela que emerge da memória, das vivências do dia a dia, do modo como o educador lê o mundo. Uma Pedagogia da Manualidade tal como aqui concebemos não está circunscrita à dimensão procedimental. Envolve uma dimensão epistemológica, uma dimensão ético-política e uma dimensão dialogal.
Importante destacar que, no limite, o senso comum pode naturalizar o fazer pedagógico, banalizando a experiência pedagógica e o compromisso com um pensar ativo: “O ambiente ensina”, “o encontro ensina”. Neste sentido específico, a propalada qualificação não ultrapassa a experiência do doméstico. Entretanto, se consideramos a força e as possibilidades colocadas no diálogo enquanto ferramenta que aciona o pensamento coletivo, esse fazer pedagógico se reveste de outro sentido. De acordo com Bohm (2005, p. 35), “o diálogo é mais uma participação, na qual não jogamos uns contra os outros, mas com cada um deles. No diálogo, todos vencem”.
É exatamente aqui que se produz um importante campo de tensão. A formação em serviço, aquela que ocorre no âmbito da prática destes educadores sociais, embora com forte caráter dialógico, ainda é pouco refletida e com escasso aporte na formação acadêmica. Isto produz, muitas vezes, uma prática ligada ao plano mecânico fomentando a lógica da produtividade: o que produz uma intervenção sem uma reflexão mais consistente. Para melhor esclarecer a ideia de que o processo educativo demanda por uma “uma quieta reflexão”, nos aproximamos de Dewey (1979, p. 62) quando anunciava: “Para que haja genuína reflexão, é necessário que tais períodos sejam breves, sucedam a períodos de ação e sejam utilizados para organizar o que se aprendeu nos períodos de atividade, em que as mãos e as outras partes do corpo, além do cérebro, estiveram em exercício”.
Por outro lado, quando o educador, para além da formação em serviço, está engajado em um processo vivo que reconhece as culturas , as vivências e as limitações do outro, as suas intervenções podem vir a constituir-se em possibilidades de ação que passam pelas imagens de suas experiências, mas que nelas não se fecham, na medida em que, por vezes, de forma intuitiva, reconhece que o conhecimento é produzido a partir da interação que estabelece com todos aqueles que estão ao seu lado, o que gestará as condições para que um saber outro, coletivo, possa emergir.
Estas considerações permitem pensar um modo de educar que não se constitui como uma disciplina, mas como uma “indisciplina” do pensamento de quem aceita os riscos de articular distintas formulações teóricas para fundamentar as práticas educativas que ocorrem no (entre) meio das relações sociais. Entretanto, este entendimento demanda por ampliar o conceito de educação, permitindo pensar que não é somente a escola que educa.
O que é possível pensar de alternativo à educação a partir de uma prática pedagógica do que temos apresentado neste texto? Considerando nossos estudos, entendemos ser permitido pensar que a dimensão “reflexiva” da prática dos educadores sociais, por um lado, se reduz à organização e reorganização de atividades. Por outro lado, mesmo que não plenamente, os educadores, ao acessarem os conteúdos dos PPPs, verificam fortes elementos teóricos - a exemplo dos saberes da educação popular - que podem permitir um processo de ação mais refletido, contudo, geralmente a prática está deslocada da teoria.
Mesmo que, de modo geral, uma ação da ação evidencie um grande distanciamento aos mais caros postulados freireanos6, faz-se importante reafirmar que, grosso modo, esses se fazem presentes e balizam os PPPs institucionais. Ainda que diante de evidente quadro de contradições manifestas, todavia, consideramos haver um forte potencial relacional em tais práticas. Elas ganham visibilidade e positividade pela mediatização/intervenção do educador evidenciando a emergência de um outro movimento pedagógico no interior dos processos educativos que se consolidam no campo social.
Na medida em que, para os educadores, as estratégias educativas no e do campo social se constituem a partir de suas experiências, estas tendem a se apresentar, desde a nossa compreensão, enquanto desafios para criar alternativas aos modos dominantes de ensinar e aprender. Isto porque os educadores que participaram das investigações tendem a se colocar sempre como aprendentes neste modo de produzir educação.
Importante relembrarmos que a maioria dos projetos socioeducativos - ora em curso - distanciam-se significativamente da educação popular, na medida em que boa parte deles emergem do chamado Terceiro Setor. Portanto, estão longe das propostas oriundas dos setores das igrejas, dos partidos políticos e das universidades que, nos anos 60 e 70, organizaram-se em entidades – organizações não governamentais e/ou associações civis sem fins lucrativos - para se dedicarem ao trabalho de intervenção com fins de emancipação social. Entretanto, a emergência deste novo educador reaviva o necessário debate sobre a mediação pedagógica, atualizando não somente a dimensão educativa, isto é, aquilo que é da relação entre o educador e o educando, mas também a dimensão do próprio contexto social onde esta intervenção acontece, o qual, em um significativo número de casos, é o Terceiro Setor, cuja intervenção social possui outros interesses e finalidades.
As entrevistas com os educadores recuperam a presença de uma dimensão da prática educativa invocando muito mais a ideia de um educador “animador”, um sujeito que apenas contando com sua disponibilidade e abertura sensível se oferece ao inédito da prática, numa experiência de (trans)formação intuitiva baseada e orientada pelas evidências que se manifestam à posteriori em si e no outro da relação educativa. Tal afirmação decorre do entendimento de que, pelos dados trabalhados, as questões o que fiz e para que fiz, enquanto questões que acompanharam o conjunto das pesquisas realizadas, foram suficientemente respondidas. Contudo, o por que fiz é ainda uma incógnita. Tal assertiva nos permite levantar como hipótese para futuros estudos a presença de uma certa naturalização da desigualdade social, a qual ambos, educador e educando estão submetidos. Nesta perspectiva, o tema da exclusão/ inclusão, enquanto discursos presentes no campo destas práticas, parece se manter sem uma reflexão mais consistente. Situação que pode sugerir que também no campo da formação esta questão não esteja suficientemente problematizada.
Contudo, há de se reconhecer que os educadores, apesar de todas as problemáticas aqui levantadas, estão desenvolvendo uma marca na educação baseada em maneiras coletivas de construção de modos de conhecer e viver no mundo cujo aprendizado e investigação constituem seu arsenal de transformação. Trata-se de práticas cotidianas, difusas e pouco visíveis, mas que constituem poderosos instrumentos de criação de novas formas de existência. Práticas que, abrindo outras possibilidades de ensinar e aprender, produzem não apenas novos saberes, como também novos sujeitos. São práticas que, descoladas dos arranjos normativos ordinários, porque ocorrem no “vácuo” das prescrições mais vigorosas, carregam a potência para produzir os mais surpreendentes efeitos de transformação.
Nesse contexto, o educador social se constituir uma figura chave pois, mesmo em condições tão adversas, pode protagonizar experiências socioeducativas (trans)formadoras cujo impacto poderá repercutir, inclusive, sobre a educação escolar.