Resumo: A intenção deste artigo é investigar as relações entre os imigrantes alemães e a escravidão no espaço de Porto Alegre (RS), na segunda metade do século XIX. Centraremos nossa análise na concessão de alforrias, usando estes documentos como pistas das experiências sociais compartilhadas por teutos e os cativos da capital da província de São Pedro do Rio Grande do Sul.
Palavras-chave:EscravidãoEscravidão,ImigraçãoImigração,LiberdadeLiberdade,AgênciaAgência.
Abstract: The intention of this article is to investigate the relations between German immigrants and slavery in the space of Porto Alegre (RS), in the second half of the nineteenth century. We will focus our analysis on the granting of manumission, using these documents as clues to the social experiences shared by teutos and the captives of the capital of the province of São Pedro do Rio Grande do Sul.
Keywords: Slavery, Immigration, Freedom, Agency.
NÃO PODERÁ EM TEMPO ALGUM, NEM POR NENHUMA CIRCUNSTÂNCIA, SERVIR AOS MEUS DESCENDENTES. IMIGRAÇÃO ALEMÃ E ESCRAVIDÃO NO BRASIL MERIDIONAL (PORTO ALEGRE, RS, SÉC. XIX)
IT WILL NOT, IN ANY CIRCUMSTANCES, BE ABLE TO SERVE MY DESCENDANTS IN TIME - GERMAN IMMIGRATION AND SLAVERY IN SOUTHERN BRAZIL (PORTO ALEGRE, RS, XIX CENTURY)
Recepção: 24 Setembro 2018
Aprovação: 15 Dezembro 2018
Parece interessante intitular um artigo com o trecho de um documento. Este artifício atiça a curiosidade de eventuais leitores, ilustra e antecipa o teor do texto e denuncia o caráter essencialmente empírico da narrativa que se pretende empreender. Neste caso, a frase com que encetamos este texto foi encontrada em um documento manuscrito, redigido em 1868 pelo alemão Frederico Bier e que hoje faz parte do acervo custodiado pelo Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul.
Na verdade, são sete cartas de alforria, escritas individualmente em 25 de junho de 1868 e registradas quatro meses depois, em 22 de outubro do mesmo ano, no livro 19 do 1º Tabelionato de Porto Alegre e que possuem idêntico teor. Trata-se de concessões de liberdade feitas por Bier a sete de seus escravizados, gratuitamente, ou seja, sem ônus ou condição, em retribuição aos bons serviços prestados. Na verdade, o senhor de escravizados Frederico Bier subordinou a outorga destes documentos de liberdade a apenas uma singular cláusula, a ser cumprida por seus cativos já em suas vidas em liberdade. Escreveu Bier:
Devendo observar ser a única e expressa condição, de que a mesma escrava não poderá em tempo algum nem por nenhuma circunstância servir aos meus descendentes, isto é, filhos ou filhas, visto terem eles tornado-se para mim as pessoas mais ingratas e desejosas que sobre mim venham os maiores males.1
Esta amostra da escravaria do senhor Frederico Bier demonstra um elevado padrão de africanidade. Apenas Veridiana (de 44 anos) era crioula e os demais eram oriundos do continente africano: o moçambique Joaquim (alfaiate, de 41 anos), um rebolo também denominado Joaquim (de 45 anos) e quatro nagôs: Margarida (38 anos), Antônio (50 anos), João (40 anos) e Pantaleao (40 anos). Eram todos cativos maduros (com uma média etária de cerca de 37 anos) e deviam trabalhar e viver, ou na chácara de Bier na estrada de Belas ou em seu armazém, na rua Nova da Praia (hoje Sete de Setembro, no centro de Porto Alegre).
Os heterogêneos processos de diásporas pelos quais inúmeros grupos humanos passaram, mudando- se de seus locais de origem para terras distantes, de forma voluntária ou involuntária, provocaram contatos pluriétnicos densos como o evidenciado nestes documentos citados acima2. Bier nascera na Alemanha e já estava em terras brasileiras tempo suficiente para entender o português; os africanos que o serviam certamente já estavam ladinizados e comunicavam-se sem dificuldades, tanto com seu senhor como com sua parceira Veridiana. Não sabemos com exatidão através de que línguas e dialetos estes africanos expressavam seus sentimentos, mas os quatro nagôs deviam se entender sossegadamente (e sem serem compreendidos por seu proprietário europeu) usando, por exemplo, o yorubá. Coexistiam todos numa babel linguística!
Encontramos vários exemplos de escravizados (africanos e crioulos) falando o idioma alemão de seus senhores, mas até agora nenhum exemplo do inverso, ou seja, proprietários germânicos se expressando em alguma língua africana (MOREIRA, 2009). Autores como FREYRE (1981) e SCHWARCZ (1987) já salientaram a potencialidade dos anúncios de fuga de escravos para o estudo do cotidiano escravista. A necessidade de uma descrição pormenorizada da peça em fuga faz destes anúncios jornalísticos uma fonte rica de informações. Natural de Baden (Alemanha), com 38 anos, casado, morador na rua do Paraíso nº 19, em Porto Alegre, filho de Jacob Traub3, o negociante e pintor Germano Traub assim descreveu o seu cativo fujão:
No dia 20 do corrente fugiu a Germano Traub um pardinho de nome João, com os sinais seguintes: 18 anos de idade mais ou menos, magro, estatura regular, sem barba, fala alemão, é pintor, levou vestido calça de chita e jaqueta do mesmo; desconfia-se que segue para Santo Antônio da Patrulha, onde tem irmão. Quem o agarrar e levar a seu senhor na Praça do Palácio, loja de pintor nº 7, será bem gratificado. Protestando-se com todo o rigor da lei contra quem o tiver acoutado (MCSHC – Jornal Mercantil, nº 90, ano XV, domingo, 26 de abril de 1863, folha 3, grifos nossos)
Já o alemão protestante João Daniel Collin, negociante que atuava em Porto Alegre e possuía fazenda e casa de negócio na Linha Nova do Hortêncio, também noticiou a fuga de um casal de escravos, os quais possuíam algumas características comuns com o pardinho João:
Continuam a andar fugidos há mais de 1 ano, de sua fazenda rural na Linha Nova, os escravos Ambrósio, com 40 anos, e Eva, de 18 anos, ambos de cor preta e falam alemão; foram vistos em Porto Alegre, quem agarrar ou der notícias será gratificado e quem ocultá-los será punido com as penas da lei. Pode-se dar notícias ou levar os mesmos à rua Voluntários da Pátria nº 25 ou em sua fazenda na Linha Nova do Hortencio. São José do Hortencio, 28 de dezembro de 1886. João Daniel Collin (MCSHC - O Conservador, 16/12/1887, folha 4, grifos nossos) 4
Os dois anúncios acima tratam de escravizados poliglotas em fuga. Imaginamos que entender e se expressar em alemão era necessário para estes cativos, mais do que para falar com seus senhores, mas para atender os clientes dos negócios dos mesmos. Talvez Ambrósio e Eva atendessem na venda de Collin e o pardinho João atuasse na loja de pintor de Traub.
Em princípios da década de 1860 apareceu o anúncio de venda, em um dos jornais de Porto Alegre, de um trabalhador cativo altamente especializado:
Vende-se um escravo: por 800$, que existe na Cadeia desta cidade, tem de idade 28 a 30 anos, sabe ler e escrever e é perfeito litógrafo, dava 60$ de jornal no Rio de Janeiro; entende bem francês e alguma cousa de alemão. Para tratar na rua da Alfândega nº 51, com o abaixo assinado. Porto Alegre, 13 de março de 1863. Joaquim Caetano Pinto (MCSHC – Jornal Mercantil, nº 82, ano XV, quinta-feira, 16 de abril de 1863, folha 2)
Mas deixemos momentaneamente de lado o alemão Frederico Bier e os africanos e crioulos que o sustentavam, eles reaparecerão mais tarde. Nossa intenção neste artigo é, retomando pesquisas como as de Zubaran (1994) e Gans (2004), investigar as relações entre os imigrantes alemães e a escravidão negra no espaço de Porto Alegre, capital da província do Rio Grande do Sul, na segunda metade do século XIX. Centraremos nossa análise na concessão de alforrias, usando estes documentos como pistas das experiências sociais compartilhadas por teutos e os cativos da capital da província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Zubaran (1994, p. 73), observando a concessão de cartas de alforria por senhores teutos, entre 1871 e 1888, alertou que:
Quanto as representações dos imigrantes teutos e seus descendentes a respeito do escravo e da concessão da liberdade, estas revelaram também alguns traços comuns à sociedade escravista rio-grandense, tais como a ideologia paternalista, a concepção de negócio dada à liberdade, assim como a influência do movimento abolicionista.
Claro que devemos lembrar que, conforme explana corretamente Magda Guns, o núcleo de alemães radicado em Porto Alegre se constituiu a revelia das políticas imperiais e, portanto, não possuía qualquer impedimento legal de possuir e transacionar com a propriedade escrava. As expressões dos representantes intelectuais deste agrupamento étnico manifestavam a convivência sem percalços destes estrangeiros (e seus descendentes) com as práticas e mentalidades características de uma sociedade escravista.
Em 1883, por exemplo, o jornalista Carl Von Koseritz viajou ao Rio de Janeiro e depois publicou suas impressões nas páginas do jornal Deutsche Zeitung. Comentando sobre a ação da polícia contra os caftens e cafetinas na Corte, mencionava que estas infelizes moças vinham da “Galícia, Hungria e Rússia, mas também a Alemanha, e mesmo a Pomerânia oferecia o seu contingente”. Caminhando pelo Rio de Janeiro em outubro de 1883, Koseritz (1980, p. 229) comentava:
Este negócio de prostituição é um dos lados vergonhosos do Rio e não posso afastar um certo mal-estar quando vou pela rua 7 de Setembro e vejo as infelizes moças alemãs, com seus olhos azuis e seus cabelos louros, obrigadas a conseguir o seu ganho com mulatos e negros, pois elas não podem contar com o chamado público melhor, pois este é monopolizado pelas cocottes de luxo, que levam vida faustosa, são caras e arruínam muitos homens.
A germanidade de Koseritz se compadecia do triste destino destas moças criminosamente iludidas, mas o que lhe parecia mais degradante era pensar que elas – com seus olhos azuis e cabelos louros – tinham que se deitar com mulatos e negros. Mais do que a atuação dessas mulheres brancas europeias como profissionais do sexo pago, o que incomodava aquele intelectual – causando-lhe mal-estar -, eram os clientes que elas eram obrigadas a aceitar. Suas noções de decência e moralidade eram afetadas pelo seu etnocentrismo, que não podia aceitar o aparente (des)regramento racial daquele mercado dos prazeres do sexo e do afeto. Relações afetivo-sexuais inter-raciais, monetarizadas ou não, estavam na base da questionável e indesejada miscigenação, que articulava raça, mestiçagem, gênero e erotismo.5
Ainda em sua estada na Corte, Karl von Koseritz testemunhou que o assassinato do jornalista abolicionista Apulcro de Castro, editor do jornal Corsário, tumultuou o clima da cidade. O baiano Apulcro era o redator-chefe do Corsário e vinha angariando inimigos junto aos militares, por difamar constantemente oficiais do 1º Batalhão de Cavalaria da Corte e o próprio Imperador. Em plena luz do dia, em 15 de outubro de 1883, no centro do Rio de Janeiro, ele foi assassinado com sete facadas e dois tiros (PRIORE, 2007). Voltando de uma Soirée no Botafogo, Koseritz presenciou alguns tumultos promovidos por indivíduos patibulares, mas os conflitos de maior vulto ocorreram na praça de São Francisco e na rua do Ouvidor, quando capoeiras quebraram lampiões da iluminação pública aos gritos de Viva a Revolução! Koseritz descreve os capoeiras como negros escravos amotinados e salienta a má influência dos abolicionistas: “O Rio tem nos seus capoeiras um mau elemento e deles se aproveita a propaganda revolucionária dos abolicionistas, sublevando os homens de cor pela morte do negro Apulcro” (KOSERITZ, 1980, p. 243).6 Em sua crônica, o monarquista Koseritz salienta a pretensa negritude do assassinado como uma forma consciente de diminuí-lo (denegrí-lo), associando-o a malta capoeira, não que essa auto-percepção étnico-racial fosse assumida publicamente pelo jornalista linchado em pleno centro da Corte. Quando do casamento do abolicionista negro José do Patrocínio com branca Maria Henriqueta, a Bibi (PINTO, 2014, p. 93), preconceitos raciais afloraram e o jornalista Apulcro de Castro não se poupou a entrar nesta discussão, escrevendo no Corsário: “Casou-se o preto cínico da Gazeta e está muito ancho o manganão. Mas, com quem ele foi casar-se? Procurou por acaso fazer a felicidade de uma pretinha, sua parenta? Escolheu uma dama de sua própria raça? Não. Nessa, não caiu o nosso moleque, um espertalhão, um negrinho que quis por força uma noiva, dengosa, alva e branca” (MELO FILHO, 2003, p. 130).
Em Porto Alegre, nos primeiros dias de 1863, um conflito entre brasileiros e alemães quase ocorreu, por conta de alguns artigos provocativos publicados no jornal alemão Deutsch Zeitung. Segundo ofício reservado dirigido pelo Presidente da Província do Rio Grande do Sul Espiridião Eloy de Barros Pimentel ao Ministro dos Negócios da Justiça Conselheiro Cansansão de Sinimbu, em 29.01.1863
O periódico – Deutsch Zeitung – que nesta Cidade se publica em língua alemã, tem desde algum tempo inserido em suas colunas artigos ofensivos aos Brasileiros, aos quais apelidava de raça degenerada e podre, com quem os alemães se não deviam misturar, aconselhando-os que conservassem, isento de toda a nodoa e impuro contato, o seu germanismo (ANRJ - Série Justiça – Gabinete do Ministro – IJ1853).
Em um longo e detalhado relatório, o Chefe de Polícia Dario Rafael Calado descreveu os dias tensos pelos quais passou a capital da província, com mobilizações agressivas de ambos os lados, brasileiros e alemães, começando na manhã do dia 23 de janeiro de 1863, quando um grupo tentou arrombar a porta da casa em que se encontrava a tipografia alemã, na rua da Praia junto a de Santa Catarina (atual Dr. Flores), no centro de Porto Alegre (OLIVEIRA, 1985, p. 76).
Mesmo que em alguns momentos se verifique atritos entre brasileiros e teuto- brasileiros pelas ruas e redações jornalísticas da capital da província sulina, estas animosidades se diluíam rapidamente quando um inimigo comum emergia. É o que podemos perceber quando se propagou a notícia de uma possível insurreição escrava, em 1864. Naquele ano, era dado como certo um levante escravo, que aconteceria nas noites de festejos na Capela do Menino Deus, e as autoridades provinciais, em nome “da ordem e tranquilidade pública”, requisitaram à Guarda Nacional 20 praças de cavalaria para “coadjuvarem o serviço da polícia” e ao Arsenal de Guerra 20 espadas e 20 talins para armar àquelas praças. O Delegado Luiz Afonso de Azambuja agradeceu ao oferecimento feito por 50 alemães, de coadjuvarem no caso da concretização da tentativa insurrecional e pediu que, em caso positivo, se reunissem no Quartel da Polícia. Um ofício foi remetido ao Chefe de Polícia, em 22 de dezembro de 1864, por alemães residentes em Porto Alegre, se oferecendo “para correrem ao lugar do perigo no caso de ser alterada a tranqüilidade pública desta Capital, e verificarem os boatos de levante de escravos que está no domínio público”.
Os abaixo assinados, tendo conhecimento de que V. Exa. tem tomado providências acerca dos boatos de uma próxima insurreição de escravos, e tendo em consideração as faltas de tropas que possam garantir a vida e propriedades dos cidadãos e suas famílias, os abaixo assinados reunidos com seus companheiros, em número de 60, tem resolvido oferecerem seus serviços na ocasião de perigo, dignando-se V. Exa. providenciar o lugar de reunião e fornecimento de armamento e cartuchame. 7
Conforme Magda Gans (2004, p. 204): “Se por um lado [os teutos] cultivavam uma identidade étnica própria em relação aos luso-brasileiros, por outro encontravam-se em uma posição de identificação social com eles, em contraposição aos negros”.8 Ou seja, a experiência social de senhores de escravizados tornava os alemães e seus descendentes ali residentes, aliados dos brasileiros no caso de uma insurreição cativa.
Como já dissemos, não havia qualquer impedimento legal quanto à propriedade de mercadorias humanas por parte dos teutos residentes em Porto Alegre ou em qualquer cidade brasileira. As dezenas de cartas de alforria registradas por senhores teuto-brasileiros nos cartórios da capital da província atestam que o investimento em mão-de-obra escrava era um costume arraigado entre estes indivíduos, e que as políticas de controle senhorial eram também similares.9
Os teuto-brasileiros não apareciam nestes documentos de liberdade apenas como proprietários. Eles assinavam como testemunhas, redigiam alforrias a rogo de senhores analfabetos e adiantavam a quantia necessária aos escravizados para agenciamento de suas alforrias. Habitantes de um mundo escravista, os teutos eram personagens que cotidianamente compartilhavam o palco social com escravizados, libertos, ingênuos.
A preta Marcolina, nascida em Porto Alegre, com 18 anos de idade, foi libertada em 27/11/1877 (sendo a carta registrada em 04/12 do mesmo ano) e como sua senhora, a preta africana Gertrudes Maria da Conceição, não soubesse ler nem escrever, pediu a Nicolau Engelsdorf que a redigisse e assinasse a rogo. O preto baiano Tulio, de 21 anos, foi alforriado por José Maria da Silva Paranhos Sobrinho através de uma carta redigida e registrada em 02/07/83, mediante o pagamento de 700 mil réis, quantia entregue pelas mãos de Germano Sommermeyer. Já o cabra carpinteiro Júlio pagou um conto e trezentos mil réis a sua senhora Caetana Maria de Jesus, quantia adiantada por André Kochenborger “a quem deveria servir por 10 anos” e, em caso de fuga, deveria ser indenizado. O Juiz de Órfãos suplente Manoel da Silva Pinto passou carta de alforria para Bento, escravo de Antônio Rodrigues Bizarro, morador na Vila de Taquari, mediante o pagamento de um conto de réis por Miguel Ruschel, residente na Freguesia de Estrela, a quem o dito escravo ficou obrigado a servir por 7 anos, como forma de pagamento da referida quantia.10
O alemão Paulo Diehl adiantou 800 mil réis para que a moçambicana Albina indenizasse seu casal de senhores (Manoel Antonio de Souza e sua mulher Francisca Candida de Figueiró). A carta foi passada em 2 de outubro de 1846 e inscrita no cartório dez dias depois. O texto deste documento de liberdade explicita uma mera transação mercantil, pois Albina deveria como forma de indenização do capital adiantado servir Paulo Diehl até a morte do mesmo. Três anos depois Albina e Paulo protagonizaram uma cena de violência no Beco do Barbosa (atual rua Barros Cassal). Talvez Koseritz ficasse escandalizado, mas Diehl alforriou Albina e com ela viveu amasiado, até que em 1849 esta africana decidiu trocá-lo pelo baiano liberto Manoel de Barros.11
Assim como o caso acima descrito, outros documentos de liberdade contavam com personagens teutos antecipando os valores precisos para as respectivas alforrias, mas sem o conteúdo afetivo da relação entretida entre Albina e Paulo. Nos referimos a cartas passadas para escravizados ao longo do período da Guerra do Paraguai, nas quais cidadãos teuto-brasileiros procuravam substitutos para si próprios ou pessoas de suas redes sociais ou familiares. Era necessário participar do esforço nacional de luta contra o ditador paraguaio, mesmo que esta participação fosse feita através do envio de substitutos que representariam física e moralmente o benemérito (mas não muito corajoso) promotor da liberdade alheia.
Teodoro (cabelos carapinhos soltos, olhos pardos, solteiro, pardo, crioulo da Bahia, 40 anos, Sapateiro), senhor: João Pedro de Abreu, carta de 19/12/1866, registrada na mesma data. A carta foi concedida mediante o pagamento de 900$ por Alexandre Weingaertner, com a condição de o escravo o substituir no exército; (APERS – 1º Tabelionato de Porto Alegre, livro 18, folhas 194 e 210)
Apolinário (crioulo), senhor: Capitão da Guarda Nacional João Dias da Costa, carta de 07/09/66, registrada em 17/09/66. A carta foi concedida mediante o pagamento de 700$ por Daniel Collin, com a condição do escravo substituir Pedro Winter (morador em São Leopoldo) no exército. Dos 700$ pagos, 60$ foi para o escravo, o qual o receberia somente depois de jurar bandeira e sentar praça; (APERS – 1º Tabelionato de Porto Alegre, livro 18, folhas 156)
Manuel (pardo/mulato), senhora: Felicidade Antonia da Cunha, carta de 17/11/66, registrada em 19/11/66. A carta foi concedida mediante o pagamento de 950$ por Gabriel Weinsmann, com a condição do escravo o substituir no exército (APERS – 1º Tabelionato de Porto Alegre, livro 18, folhas 179)
Tomas (cor parda, 26 anos), senhor: Major Bernardo Lopes Duro (por sua mulher e procuradora), carta de 18/08/66, registrada em 06/09/66. Carta concedida mediante o pagamento de 1:000$ por Francisco Jacob Konver, o qual deve substituir no Exército, em cumprimento do decreto 3509 de 02-09-65; (APERS – 1º Tabelionato de Porto Alegre, livro 18, folhas 129)
José (cor parda, crioulo de POA, 22 anos), senhor: Antonio José da Silva Guerra, carta de 18/08/66, registrada em 20/08/66. A carta foi concedida mediante o pagamento de 1:150$ por Carlos Schuler, com a condição do escravo substituir seu filho, André, no corpo de voluntários Pedro II; (APERS – 1º Tabelionato de Porto Alegre, livro 18, folhas 149)
Modesto, senhor: Antonio Riopardense de Macedo, carta de 07/02/67, registrada no mesmo dia. Carta concedida mediante o pagamento de 800$ por Guilherme Bier, com a condição de substituí-lo no exército; (APERS – 1º Tabelionato de Porto Alegre, livro 18, folhas 155v)
Adriano Pereira de Oliveira (cor preta), senhor: Miguel Pereira de Oliveira Meireles, carta de 26/11/66, registrada no mesmo dia. Carta concedida mediante o pagamento de 1:000$ por Frederico Heineck (1° Sargento da Guarda Nacional de São Leopoldo), a quem deve substituir no Exército; (APERS – 1º Tabelionato de Porto Alegre, livro 18, folhas 134v)
Antonio José (crioulo), senhor: José da Cunha Oliveira, carta de 26/11/66, registrada em 26/11/66. Carta concedida com a condição de substituir Jacob Steichleter no Exército; (APERS – 1º Tabelionato de Porto Alegre, livro 18, folhas 135v)
Alexandre (crioulo de Rio Pardo, 22 anos), senhor: Luiz Francisco da Silva Filho, carta de 20/08/66, registrada na mesma data. A carta foi concedida mediante o pagamento de 1:000$ por Henrique Konrath, com a condição do escravo substituir seu filho, Jacob, no exército; (APERS – 1º Tabelionato de Porto Alegre, livro 18, folhas 147v)
Vitorino (cor parda), senhor: José Gonçalves Viana, carta de 12/12/66, registrada na mesma data. A carta foi concedida mediante o pagamento de 1:000$ por Ph. Jacob Selback, com a condição do escravo substituir seu filho menor, Jacob Selback, no exército (APERS – 1º Tabelionato de Porto Alegre, livro 18, folhas 187)
Todos os casos elencados acima são exemplos de liberdades fardadas, nas quais a alforria ficava subordinada/condicionada ao alistamento militar. A autonomia de fato só seria gozada após os indivíduos conseguirem dar baixa do recrutamento militar, tarefa difícil a ser cumprida em um período de conflito armado internacional.
Do banco de dados onde coletamos todas as alforrias registradas nos cartórios de Porto Alegre entre 1748 e 1888, encontramos 197 cartas expedidas por senhores alemães, ou melhor, teuto-brasileiros.

Como podemos perceber na tabela acima, a participação das alforrias passadas por senhores teuto-brasileiros, em comparação com o número geral, é irrisória. Sua distribuição é irregular, destacando-se o ano de 1884 com 35, ou seja, 18 % do total. As concessões, obviamente, concentraram-se na segunda metade do século XIX, período em que esta comunidade étnica se formou e prosperou economicamente, tornando possível a posse cativa. De qualquer forma, apenas 3,24 % (197) das 6.075 cartas registradas nos cartórios de Porto Alegre neste período, foram redigidas por teuto-brasileiros. Lembrando que, de acordo com os cálculos da historiadora Magda Gans (2004: p. 24), os alemães seriam cerca de 6 % da população total da capital. Estes cálculos aproximados estimulam novas pesquisas que congreguem os inventários post-mortem (e com eles se verifique a posse de escravizados entre este segmento étnico), os documentos eclesiásticos e testamentos (para constatar se as concessões de alforria dos teutos não se concentravam no momento do batismo ou da morte), etc. Outrossim, como mostrou Magda Gans,muitos teutos casaram com lusos, o que exigiria uma pesquisa mais complexa, pois muitas mulheres teuto-brasileiras poderiam estar citadas unicamente com seus sobrenomes lusos.12
Das 197 cartas encontradas, 83 foram passadas para cativos do sexo masculino e 114 para mulheres, perfazendo, respectivamente, 42,13 e 57,87 %, o que repete o índice geral das alforrias de Porto Alegre: 56.01 % para mulheres e 43,94 % para homens. Em termos de origem, conseguimos coletar este dado em 117 documentos de liberdade, sendo 65 crioulos (55,56 %) e 52 africanos (44,44 %). Infelizmente, temos 5 mencionados apenas como africanos e 7 de nação, sendo os demais assim distribuídos, conforme os seus grupos de proveniência (SOARES, 2000).

De acordo com a tabela 2, temos 30 alforriados da costa ocidental (57,7 %), 7 da costa Atlântica (13,46 %) e 3 da costa oriental (5,77 %), sendo 23,07 % de denominações genéricas. Quanto as formas de concessão temos:

No cômputo geral – considerando as 170 cartas em que conseguimos identificar claramente a forma de concessão -, temos um predomínio das concessões pagas (47,65 %), seguidas pelas condicionais (31,17%) e pelas gratuitas (21,18%).
Considerando a variável procedência, constatamos que 33 africanos pagaram pecuniariamente pela quebra de seu cativeiro (67,35 %), 9 receberam a alforria gratuitamente (18,37 % - uma verdadeira falácia já que remuneraram seus senhores com anos de trabalho forçado) e 7 receberam alforrias condicionais (14,28 %). Entre os nascidos no Brasil, 51,85 % (28) pagaram pela liberdade, 27,78 % (15) foram libertados mediante o cumprimento de alguma condição, e 20,37% (11) foram libertados sem ônus ou condição. Nesta perspectiva os senhores teuto-brasileiros deram preferência a uma alforria que fosse retribuída pelo pagamento pelos cativos em dinheiro.
Classificar as alforrias por tipologia é uma forma evidentemente arbitrária de procurar uma aproximação com as experiências sociais que almejamos analisar. As realidades são muito mais complexas que nossas vãs tentativas de abarcá-las, mas agregar estes documentos de liberdade desta forma é uma estratégia de corporificar aquele mundo social. De qualquer forma, frisemos o fato de que, imersos nestes rótulos ou tipologias, encontram-se labirínticos arranjos (e negociações) entre cativos, seus senhores e outros personagens sociais. Os textos das cartas de alforria, quando lidos com atenção e sensibilidade, clarificam múltiplas experiências sociais e humanas.
Se observarmos a tabela 1 (Número de Alforrias Concedidas) veremos que o ano de 1884 concentra o maior número de alforrias concedidas por senhores teuto-brasileiros. Este período foi o auge do movimento abolicionista provincial, no qual centenas de senhores de escravizados trataram de alforriar seus escravizados, a maioria através de contratos de prestação de serviços (ZUBARAN, 1998; MOREIRA, 1990, 2003).
Em 20 de agosto de 1884, o senhor João Carlos Dreher alforriou sua única escrava, a africana mina Rosa, com 55 anos:
Com a condição, porém, de nos acompanhar e ficar debaixo de nossa guarda e prestar o serviço doméstico de nossa casa pelo tempo de 3 anos, contados da data de hoje, reservando o direito de velar pelo seu futuro para que não se entregue a perdição. Declaro mais que se a mesma escrava, depois do prazo marcado de 3 anos, preferir continuar a morar conosco, achará agasalho, alimento e vestuário, como se fosse pessoa de minha família (APERS – 1º Tabelionato de POA, Livro 27, folha 183).
Em 16 de agosto do mesmo ano, Lúcio e Maria Luise Schreiner registraram o documento de liberdade da cativa Francisca, então com 18 anos incompletos:
Com a condição, porém, de nos acompanhar, ficar debaixo de nossa guarda e prestar o serviço doméstico de nossa casa, até completar a sua maioridade de 21 anos, reservando o nosso direito de velar por seu futuro para que não se entregue a perdição [pois] desde a sua infância sempre foi por nós tratada com a humanidade que devemos aos nossos fâmulos, sem que nunca sentisse o vigor da escravidão (APERS – 2º Tabelionato de Porto Alegre, Registros Gerais nº 22, folha 74).
O estratagema de postergar a liberdade através de contratos de prestação de serviços teve êxito durante algum tempo, mas longo os jornais passaram a denunciar a ingratidão destes indivíduos, que simplesmente passaram a negar seu trabalho aos beneméritos ex-senhores (WEIMER, 2009). Em 3 de maio de 1887, um ano antes da abolição da escravatura, o jornal republicano A Federação anunciava a prisão de Joana, contratada e ex-escrava de Carlos Von Koseritz, por estar fugida e negar-se a prestação de serviços devida a seu ex-senhor.13
Mas, como mencionamos acima, a maioria das liberdades concedidas por senhores de escravos teuto-brasileiros, foram em retribuição a quantias recebidas de seus cativos ou de terceiros. Muitos indivíduos adiantavam recursos para que os cativos indenizassem seus senhores pela quebra do cativeiro, ficando estes sujeitos ao pagamento através de serviços diversos (ou até mesmo ao recrutamento militar).
A viúva Maria do Carmo de Castro Werna e Billstein alforriou o crioulo pardo Vitor, de 30 anos, filho da liberta Alexandrina (que havia pertencido a mesma senhora), em 14 de outubro de 1882. Maria do Carmo recebeu em remuneração deste ato a quantia de setecentos mil réis, por intermédio do Dr. Carlos Lisboa. A expressão por intermédio não nos possibilita saber com clareza se Lisboa adiantou a quantia para o pardo Vitor, ou se apenas guardava o pecúlio acumulado pelo mesmo. O prazer de pesquisar fontes primárias é prejudicado pelo excesso de lacunas como esta. Um bom recurso a ser utilizado para a reconstituição de existências como a de Vitor e Alexandrina, apesar de difícil de ser acionado, é o cruzamento entre fontes primárias diversas.14
Desta forma, conseguimos saber que Vitor era figura tarimbada na paisagem urbana da capital da província. Às 14 horas do dia 3 de janeiro de 1879, momento característico de calor insuportável do verão porto-alegrense, o pardo Vitor foi preso por se envolver em uma confusão e nesta ter sido ferido pela paraguaia Ângela Maria de Oliveira. Não sabemos se em consequência desta barafunda entretida com Ângela Maria, mas quatro meses depois, em 19 de maio de 1879, o veador Werna e Bilstein publicou no jornal Mercantil um anúncio comunicando a fuga do pardo Vitor, boleeiro da Cia. de Carros Porto-Alegrense. Talvez em decorrência do trabalho de Vitor no transporte urbano o ter tornado figura corriqueira nas ruas da urbe, seu senhor não se estendeu na descrição de seu cativo fujão como era esperado, mas apenas mencionou sucintamente que ele era bem conhecido. Não sabemos quanto tempo Vitor demorou para voltar ao poder de seu senhor, mas o mesmo jornal, em 14 de outubro de 1882, estampou um anúncio oferecendo o cocheiro pardo Vitor à venda, novamente com a concisa menção de que ele era bem conhecido nesta capital.
Pois foi na mesma data da publicação do anúncio de venda acima que a carta de alforria foi passada. Talvez a referência a parda Alexandrina no documento de liberdade de Vitor seja uma pista: não era comum ser mencionado o nome da mãe de um cativo em um documento que se referia a um escravo de 30 anos de idade. Isso, no nosso entendimento, fortalece a hipótese de que Alexandrina forneceu recursos para a liberdade de seu filho. Ela foi libertada no último dia do ano de 1878, por seu senhor Ernesto Frederico de Werna e Bilstein (e sua mulher), gratuitamente, em retribuição aos bons serviços prestados ao senhor e aos seus filhos. Vitor nasceu em 08/12/1849 e foi batizado em 07/04/1850. Era filho natural da parda Alexandrina, ambos escravos do Excelentíssimo Ernesto Frederico de Werna e Billstein e sua mulher. Foi padrinho Máximo Antônio Vieira e madrinha Nossa Senhora. Não sabemos quantos filhos Alexandrina deu a seus senhores, mas além de Vitor, encontramos outro registro relativo a esta parda: em 17/10/1851 faleceu de disenteria Efraim, com 8 anos de idade, filho natural da parda Alexandrina, escrava de Ernesto Frederico de Werna e Bilstein. O anúncio de venda foi publicado pela viúva Maria do Carmo e não é necessário um exercício muito grande de imaginação histórica para crermos que Alexandrina mobilizou todas as suas redes sociais (e étnicas) para agenciar rapidamente recursos que impedissem o afastamento de seu filho, quem sabe para fora da capital, quem sabe sugado pelo tráfico interprovincial.15
Claro que a dúvida sempre permanece sobre a origem dos recursos acumulados pelos cativos e que possibilitaram tantas alforrias pagas. A proliferação de alforrias pagas por cativos africanos nos faz pensar em arranjos coletivos baseados em parentescos étnicos, mas certamente as solidariedades familiares (consangüíneas e/ou espirituais) tiveram importância crucial.16
Alguns recursos foram obtidos de forma curiosa, como a do crioulo Luiz, o qual com 30 anos obteve alforria de seus senhores João Raupp & Irmãos. Corria o ano de 1860 e Luiz indenizou seus senhores com 1:600$ réis, sendo que o escravo obteve esta elevada quantia na “loteria de Nossa Senhora das Dores, quarta parte da sorte corrida há 2 meses”.17
Algumas das cartas gratuitas são mais fáceis de explicar, já que se referem a cativos de idade avançada, que já indenizaram vantajosamente seus senhores com décadas de trabalho e que pouco mais tinham a render em termos laborais, além de onerar seus senhores com tratamento médico e despesas funerárias. A parda crioula Luiza, com 70 anos de idade, foi libertada por Miguel Kraemer em 4 de dezembro de 1879, "sem ônus nem retribuição alguma”. O africano Francisco, com a mesma idade de Luiza, foi também alforriado por seu senhor Guilherme Eggers gratuitamente “em retribuição aos bons serviços prestados”.18
Algumas cartas de alforria foram passadas à revelia de seus senhores, como os alvarás de liberdade passados em março de 1878 pelo Juiz de Direito da 1ª Vara Salustiano Orlando de Araújo Costa, para as cativas Leonidia (parda, escravizada de Ernesta Fayete Cândida Becker) e Maria da Conceição (parda, escravizada de Joana Maria Hebert). Ambas escravas obtiveram a liberdade pois seus senhores descumpriram o artigo 8º da Lei de 28 de setembro de 1871, que obrigava a matrícula de todos os cativos.19
Voltando ao caso de Frederico Bier, notamos que, além daquelas alforrias gratuitas, passadas a escravizados que certamente estavam a serviço de sua cozinha e de seu armazém há décadas, ele alforriou outro africano, mediante o pagamento de 1 conto e duzentos mil réis. Tratava-se do africano gêge José, de 37 anos, cuja carta de alforria foi redigida em 18 de janeiro de 1867, quando estava se desenrolando o inventário da primeira esposa de Frederico Bier.20
Em 1865, quando se procedeu ao inventário dos bens de Mariana Bier, foram arrolados como herdeiros, além do viúvo Frederico, quatro filhos do casal, a saber: Maria Carolina (casada com Joaquim Caetano Pinto Junior, residente nesta cidade), o Dr. Frederico Bier (morador na Alemanha)21, Maria Luiza (casada com Rodolfo Lukzinger, residente na Suíça) e Leopoldo Bier (23 anos, em serviço na Campanha como Oficial da Companhia de Artilheiros alemães). Geralmente se salienta que a morte dos senhores e os respectivos inventários são elementos potencialmente desestabilizadores da vida dos escravizados, já que negociações que estavam em curso com os finados corriam o risco de naufragar. Não foi o que ocorreu com os cativos pertencentes ao casal Bier, antes pelo contrário, o atrito entre Frederico e seus filhos fez com que os cativos, como já vimos, fossem libertados gratuitamente. Em 18 de dezembro de 1865, Leopoldo Bier, filho de Frederico, protestou junto à justiça que seu pai não deu andamento ao inventário, “resultando desta demora graves prejuízos ao suplicante que, sendo maior e podendo ter já uma posição social definida, não o tem por falta de meios”.22 Pretextando doença, Frederico retardou o andamento do inventário até 1867, quando finalmente os bens são listados, em maio daquele ano. Em dezembro seguinte os conflitos entre Frederico e seu filho Leopoldo chegaram ao limite. Segundo o depoimento de Frederico Bier (54 anos, casado, da Prússia, morador desta cidade, negociante):
Respondeu que vindo do Paraíso [atual Praça 15 de Novembro] para a sua casa de negócio a rua Sete de Setembro23, ao chegar ao portão de Pacheco encontrou-se com seu filho Leopoldo, que já há muito o desobedecia e desrespeitava, tendo também rompido as suas relações com ele respondente, a quem conforme constava ao mesmo respondente ameaçava com pancada, pelo que para não se encontrar de frente com o filho desobediente, ao passar por ele, entortou um pouco o chapéu de sol já para cobrir- lhe o rosto e não ser visto pelo filho, e já por causa do sol, mas que o dito seu filho aproximando-se dele respondente o foi espancando com a bengala que trazia, depois do que segurou-o pelas barbas com uma mão e pelos escrotos com outra e foi o empurrando pelo portão adentro até umas pedras, por sobre as quais o atirou, sendo que neste estado Pacheco e seu sócio de nome Abreu é que os encontraram, tendo sido esses senhores que tiraram Leopoldo de cima do respondente, e que nessa ocasião ainda era mal tratado por seu filho, que comprimia-lhe a garganta e com as mãos arrancara-lhe as barbas, tal era a força com que as segurava; disse mais que seu filho malquistou-se com ele respondente por causa de questões de inventário e principalmente pelo casamento dele respondente a cuja senhora constantemente a deprime (APERS - Cartório Sumário Júri, maço 40, processos 1168 e 1169)
Observando o atrito familiar entre os Bier, podemos finalmente entender a condição imposta por Frederico a seus escravizados: nunca servir seus herdeiros, tidos como ingratos e desobedientes!
Às 3 horas da manhã do dia 16 de outubro de 1886 faleceu em Porto Alegre um indivíduo chamado Pantaleão Bier. O sobrenome e o fato de ter sido registrado no livro de óbitos de livres poderia nos fazer pensar que era um membro da comunidade teuto-brasileira de Porto Alegre. Ledo engano. Pantaleão já foi mencionado neste artigo, quando em 25 de junho de 1868 foi alforriado gratuitamente por seu senhor Frederico Bier. Como era prática usual, Pantaleão passou a portar o sobrenome familiar de seu ex-senhor, como se fosse um direito adquirido pelos anos de cativeiro, talvez como uma estratégia de se servir das redes sociais e políticas dos Bier e construir para si um lugar social seguro, dado aos riscos de reescravização, tendo em vista a precariedade estrutural da liberdade no Brasil ainda escravista (CHALHOUB, 2010 e 2012; LIMA, 2005).
Mesmo que Pantaleão, ao incorporar o sobrenome Bier, procurasse alguma vantagem ao se inserir ou aproximar das redes de seu antigo proprietário, isso não quer dizer que ele não investisse na composição de alianças próprias. Em 16 de junho de 1884 Pantaleão Bier casou na Igreja do Rosário com Vitória Maria do Bomfim. Ambos eram provenientes da Costa da África, de onde vieram como vítimas do tráfico transatlântico, filhos de pais incógnitos e tiveram como padrinhos de seu desenlace matrimonial Antonio José Pires e Gregório João do Nascimento.24
Sintomático de um plano conjunto de sobrevivência e ascensão social, dois meses depois do casamento (16 de agosto), estes africanos fizeram um testamento conjunto, nomeando-se mutuamente como inventariantes e herdeiros. Esclareceram que eram africanos, o que deixava claro que foram vítimas do tráfico escravista transatlântico, por isso “não temos notícia de nossos pais e supomos serem falecidos”, que não tinham filhos do casal, mas que Vitória tinha uma filha, de nome Eva, liberta por sua mãe e que vivia fora da companhia materna25. Complementou Vitória que por morte sua e de seu companheiro, passaria a herança “a meus netos, filhos da minha filha Eva”. O testamento foi aberto quando se apresentou o preto nagô Tomas do Vale26 ao Juiz de Direito, e Vitória nomeou como seu procurador o Solicitador Apolinário Luiz Teixeira. Segundo o arrolamento de bens, o casal de africanos tinha:
* Casa na rua Duque de Caxias nº 299, com 4 metros de frente, de porta e janela, com sala, quarto, um passadiço com um quarto, área pequena, uma saleta para jantar, cozinha e quintal – avaliada em 1:200$000 réis;
* Móveis: 10$000 réis;27
Se Pantaleão Bier não usasse seu testamento como uma espécie de autobiografia (MATTOSO, 1979) e nos informasse ser egresso do continente africano, seu sobrenome nos teria feito incluí-lo entre a comunidade teuta da capital da província. Tendo em vista que em muitos documentos verificamos o silenciamento da cor (MATTOS, 1995), o caso de Pantaleão nos alerta para os cuidados que temos que tomar quando da pesquisa que envolva egressos do cativeiro de famílias teutas.
Encerramos assim este artigo, onde procuramos desenvolver algumas questões sobre as interdependências encontradas entre os integrantes da comunidade teuto-brasileira de Porto Alegre e os escravizados, na segunda metade do século XIX. Tomamos como fonte primordial as cartas de alforria, mesclando-as com outros eventuais documentos, como inventários, jornais, documentos eclesiásticos e jornais, procurando corporificar a inserção destes europeus e seus descendentes na sociedade escravista meridional.
AHCMPA: Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre AHRS – Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul
ANRJ: Arquivo Nacional (Rio de Janeiro)
APERS: Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul MCSHC – Museu de Comunicação Social Hypólito da Costa


