AS INFERÊNCIAS DO (NEO) CAPITALISMO NA FORMAÇÃO DO PROFISSIONAL DA SAÚDE: HUMANIZAÇÃO E PERSPERCTIVA PEDAGÓGICA
INFERENCES OF (NEO) CAPITALISM IN HEALTH PROFESSIONAL TRAINING: HUMANIZATION AND PEDAGOGICAL PERSPECTIVE
AS INFERÊNCIAS DO (NEO) CAPITALISMO NA FORMAÇÃO DO PROFISSIONAL DA SAÚDE: HUMANIZAÇÃO E PERSPERCTIVA PEDAGÓGICA
Revista Prâksis, vol. 1, pp. 05-15, 2020
Universidade Feevale
Recepção: 05 Setembro 2019
Aprovação: 15 Novembro 2019
Resumo: Os modelos de capitalismo vêm exercendo acentuada influência na matriz de formação dos profissionais da saúde, obstando uma formação profissional humanizada em suas bases pedagógicas, agudizando condições das mais variadas, refletindo na vertente da saúde, tanto no direito como na realização dos serviços em si. O efeito prático dessa relação impõe distorções que ganham vulto e significância e proporcionalmente destituem Direitos Humanos já consolidados como garantidores de direitos individuais e coletivos no que concerne à tutela da vida. Consequentemente a saúde, o bem de maior significância, que vem sendo cada vez mais mitigada numa perspectiva reducionista para realização de metas quantificadas e mensuradas, capazes de aferir valores distintos, determináveis e divisíveis da vida humana, se presta como marcadores os quais vem permeando a formação do profissional da saúde arraigando a disputa entre quantidade e qualidade, num modelo hegemônico que pretende comportar a formação profissional conciliando-a com diretrizes do mercado capitalista, consubstanciando-se numa modalidade de capital-social, um amálgama intercorrente a várias formas de capital humano, emergindo como o paradoxo próprio produzido no interior da matriz neocapitalista.
Palavras-chave: Educação Profissional, Saúde, Humanização.
Abstract: Capitalism has exerted strong influence on the model of training of health professionals, hindering a humanized training bases in their teaching, sharpening a variety of conditions reflected in the health aspect, both in rights, but also in achieving the services themselves, which has been supporting major distortions and gaining significance while that deprive human rights already established and guarantors of individual and collective rights, as regards the protection of life and consequently the health, well of great significance, which is being increasingly mitigated perspective reductionist to achievement of quantifiable targets and measured, capable of measuring different values determinable divisible human life, criteria that has permeated the training of health professionals is rooted dispute between quantity and quality, in a hegemonic model that you want to include vocational training combining them with guidelines of the capitalist market, consolidating in a form of social capital-an amalgam intercurrent to various forms of human capital.
Keywords: Professional Education, Health, Humane.
INTRODUÇÃO
As transformações sociais são historicamente inerentes a própria noção de formação de Estado e de suas bases axiológicas as quais induzem a razão do esteio teleológico dos direitos e das relações econômicas estabelecidas pela organização estatal denominada “Sociedade”. É assim que a saúde converge com as vertentes do capitalismo, as quais impõe severas transformações no arquétipo, delineando “nova” previsão legal, social e econômica inafastando, no entanto, o determinismo jurídico oriundo dessas transformações, avocando e ampliando a responsabilidade social de maneira irrefutável. Nesta lógica é que o capitalismo debela-se no enfrentamento de questões assiduamente debatidas, como as discussões de classe, pautadas no legado marxista, convergindo ainda com as teorias de Gramsci, elevando a noção de Estado ampliado, atravessado pelas relações sociais, considerando portanto, outras razões que não só aquelas outrora verificadas, transpondo o conflito de classes sinalizando assim outros fatores epistemologicamente relevantes.
Nesse cenário de conflitos, exsurgem interesses econômicos os quais permeiam as políticas públicas de saúde, onde a educação do profissional se volta cada vez mais ao atendimento de demandas, na formação de redes de trabalho, num movimento de formação reducionista, precário, ensejador de distorções notórias, o qual abdica dos critérios de ontológicos do ser social, ponto de apoio das transformações capitalistas da prática médica, e da saúde.
Neste mister, os direitos e garantias fundamentais do homem vem perdendo escopo, quando os Direitos Humanos deveriam permear cada política, cada ação ou projeto pedagógico de formação notadamente do profissional da saúde, eis que, se a vida é direito constitucional tutelado, e bem supremo, o processo de aprendizagem deve conter o referido elemento axiológico, não devendo ser desagregado da noção de direito a saúde, nem mesmo do referido desdobramento no tocante ao serviço.
Portanto, não se pode compreender um projeto pedagógico de formação do profissional da saúde, despido de sua base essencial – direitos humanos – o que enseja distorções na realização da tutela da vida, refletindo ainda nos serviços, a medida em que os modelos econômicos capitalistas se sobrepujam como interesses relevantes a delinear os modelos de atenção, assistência e educação na saúde, restando patente a dificuldade na assimilação dos critérios humanísticos os quais devem compor o processo de emancipação do profissional da saúde.
INFLUÊNCIAS DO (NEO) CAPITALISMO NA SAÚDE E NA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO
No Brasil, o movimento de constitucionalização trouxe importante significância à ordem jurídico, social e econômica, consubstanciado no avatar da “redemocratização” (CF/1988), precursor de uma “nova ordem democrática”, encontrando no direito à vida, e no seu sucedâneo do direito a saúde o bem supremo juridicamente tutelado pelo Estado democrático de direito, decorrendo daí os demais, elencados no rol de Direitos Humanos.
Não se pode olvidar que o capitalismo exerceu e mantém fortes influências não só sobre a formação do Estado, mas também aos seus axiomas, determinando o conteúdo deontológico, aonde a economia vem regulando as relações privadas e públicas, ora distinguindo-as, ora em movimento simbiótico, rompendo com a identidade ideológica de direitos historicamente reconhecidos e tutelados, como por exemplo a saúde.
Nesta seara, depreende-se que a saúde embora figure como direito materialmente e formalmente constituído - entendimento reiterado pelo Supremo Tribunal Federal - compreendendo a saúde como “conseqüência constitucional indissociável do direito à vida”1, donde o capitalismo vem buscando situar o “direito à saúde” numa perspectiva mercadológica, expropriando a lógica de “direito”, impondo valor agregado, passando assim ao entendimento de “serviço”, o que não significa mera mudança de perspectiva, mas expropriação da formação do conceito historicamente concebido de saúde.
Assim é que o capitalismo perpetua a vertente mercadológica do “clientelismo” daquele que compra um serviço (de saúde), despido da materialidade histórica e dialética da construção do direito à saúde; certo é que esses reflexos podem ser desastrosos a medida em que o fortalecimento do cenário perpassa pela precarização do trabalho, do serviço público com as privatizações, entre outras ações que se prestam apenas a depreciar o serviço público, em nome de pseudo transformações e de um suposto bem comum. Entretanto, foi na década de 1990 o marco nas políticas de ajuste e de estabilização econômica circunscritas no modelo neoliberal, tendo sido geradas, “concomitantemente várias condições favoráveis ao crescimento de trabalho precário, informal, sazonal ou terceirizado, para os quais acorreram novos contingentes trabalhadores expulsos do mercado formal e que se somaram aqueles já vitimados por nossa herança histórica de acumulação capitalista, subordinada e dependente” (RUMMERT, 2007), com o apoio de organizações as quais fomentavam noções de qualidade total, polivalência, formação flexível, pedagogias de competências, empregabilidade, empreendedorismo, imputando noções gerais de resultados numa perspectiva de produtividade, o que inevitavelmente induziu a uma reforma na sociedade, e conseguintemente nos modelos da formação profissional.
Por outro lado persiste uma significativa relevância devida a elementos culturais e econômicos, da prevalência de “forças dominantes peculiares do processo de produção capitalista, as quais não viabilizam acesso para que a totalidade da população tenha assegurado o direito à educação de qualidade” (RUMMERT, 1995).
Não obstante, não se pode refutar a questão do enfrentamento da formação dos profissionais da saúde, voltado a atender as demandas de um mercado cada vez mais produtivo e exigente, propugnando uma formação despida da construção efetiva de um conhecimento “emancipador”, oriunda das relações sociais as quais exigem um escopo mais amplo de suas próprias relações, mais humanizado e efetivo, na formação de indivíduos emancipados dotados de responsabilidade social.
Desta feita é que o “pensamento neoliberal – materializado no pretexto de reforma estatal emerge e reforça os conflitos de classe, conferindo maior ampliação do poder do capital sobre o próprio trabalho, derrocando direitos face a internacionalização da economia” (NEVES, 2005), neste mister é que o “Estado regula e alimenta o capital, ora regulando, ora alimentando, sendo maneira de também realizar política” (FRIGOTTO, 2004), embora não necessariamente humanizada.
Exsurge o emblema implícito da função social da educação profissional na saúde, que deve ser pautada e realizada em critérios socialmente sustentáveis, atendendo a interesse público relevante, inafastável da observação dos critérios legais e sociais humanísticos, do “ser social” ontologicamente constituído.
Nesta perspectiva, a realização dos critérios humanísticos legais, se reportarão as diretrizes de garantias fundamentais elencadas pelos Direitos Humanos, enquanto os critérios humanísticos sociais fundam-se na formulação de Políticas e ações correlatas, como por exemplo, a Política Nacional de Humanização – PNH, a qual abarca um conteúdo axiológico diferenciado para a realização da saúde - como direito - e no seu desdobramento enquanto serviço, incidindo nos modelos pedagógicos de formação do profissional da saúde, cumprindo a sua função social.
POLÍTICA NACIONAL DE HUMANIZAÇÃO - CRITÉRIOS QUALITATIVOS E QUANTITATIVOS NO ALCANCE DE METAS E OS REFLEXOS NA FORMAÇÃO PROFISSIONAL
A compreensão dos critérios qualitativos e quantitativos tem alocação histórica por vezes contraposta, seja implícita ou explicitamente, atreladas a ideologia de uma concepção humana e social,
vinculando-se aos mesmos processos históricos das sociedades de classe nos quais estão inseridas as lutas pela igualdade de condições (objetivas e subjetivas) de produção da existência humana(...) do mesmo modo vinculam-se aos processos históricos das lutas pela democracia, liberdade, igualdade(...) (FRIGOTTO, 2009).
Os sentidos dessa contraposição entre critérios qualitativos e quantitativos nos remete as formas dominantes de relação social, sob a mesma perspectiva de classe a que aludia Marx (2006), prelecionado por Gramsci no sentido de que
sustentar a qualidade contra a quantidade significa, precisamente, apenas isto: manter intactas determinadas condições de vida social, nas quais alguns são pura quantidade, outros pura qualidade (MARX, 2006).
A consideração de que os critérios qualitativos são imanentes a interesses ou mesmo a elementos axiológicos os quais uma determinada sociedade concebe, dentro de seu modelo ideológico, nos remete a compreensão de que hodiernamente o que se tem é a tentativa de conciliação entre interesses humanos, doravante aqui concebidos como sociais e aqueles oriundos das relações econômico-capitalistas, onde esta sobrepuja aquela.
Nesta seara, Florestan Fernandes mostra que
no plano estrutural, é que as crises entre as frações da classe dominante acabam sendo superadas mediante processos de rearticulação do poder da classe burguesa numa estratégica de conciliação de interesses entre o denominado arcaico e o moderno, trata- se de um processo de modernização do arcaico. (FERNANDES, 1968).
A necessidade do elemento qualitativo vem sendo atrelada a preceitos legais, sociais e produtivos, a exemplo do principio da eficiência, disposto no artigo 37 da Constituição Federal, promulgado pela Emenda Constitucional 19 de 04 de junho de 1998 consubstanciando a Reforma Administrativa propugnando à Administração Pública a atuação eficiente, pautada em critérios de economicidade, produtividade e melhores resultados, entre outros princípios (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade) numa vertente fundamentadamente principiológica - embora positivada - resultando daí o controle dos atos da administração pública, com base na observação da violação de tais princípios.
A mensuração dos serviços, notadamente na saúde, e a construção de indicadores de qualidade, foram inevitavelmente o caminho que o neoliberalismo encontrou para aferir os critérios quantitativos e qualitativos, respectivamente, voltados a atender o clamor econômico do mercado, ao mesmo tempo que buscava conciliação com necessidades prementes voltados à melhoria da prestação dos serviços e do fomento da saúde. Se por um lado há a preocupação na adoção de caminhos que viabilizem o aporte financeiro, como no caso da acreditação hospitalar que se utiliza por vezes da Política Nacional de Humanização como instrumento de sua realização, tais caminhos são delineados sob um sustentáculo de melhorias na qualidade, que finalmente implica na produção, em resultados, e aporte financeiro, distanciando-se por vezes da proposta inicial.
Esta frente aportou algumas discrepâncias relacionais, depreendendo-se certo grau de dualidade nas políticas e ações correlatas, como por exemplo a Política Nacional de Humanização, que, comporta duas faces na mesma moeda, sendo perfeitamente possível a existência de um atendimento humanizado, sem que o mesmo possa realizar os critérios da integralidade necessariamente, ou ainda, é possível verificar a preocupação com os critérios de qualidade e quantidade de atendimento na assistência hospitalar, que pode ser confundido com uma visão reducionista de cumprimento de metas, e nem sempre traduz uma efetiva qualidade dos serviços ou realização do direito a saúde.
Avocamos ainda o exemplo da gestão participativa, sem que se discuta a emancipação intelectual desses mesmos profissionais a ponto de compor uma efetiva participação e atuação no processo de trabalho, assim, embora possa haver a previsão de participação na gestão, não se identifica os instrumentos mediatos os quais conduziriam o profissional a essa participação.
Desta forma, é possível se depreender a dualidade e as problemáticas de uma Política que surge com o pano de fundo do fomento da saúde e melhoria dos respectivos modelos de qualidade, ora desvinculado, ora vinculado a uma perspectiva funcionalista da realidade, desconsiderando por vezes o processo de produção e reprodução da vida social, como aduz Karel Kosik:
(...) vários aspectos do complexo social se transformam em categorias particulares e independentes; e momentos isoladas da atividade social do homem – o direito, a moral, a política, a economia – transformam-se, na mente humana, em forças independentes que determinam a atividade do homem. (...) A teoria dos fatores subverte o movimento social, mostrando-o de pernas para o ar, pois considera como “responsável” pelo movimento social os produtos isolados da práxis humana objetiva ou espiritual, quando o único autêntico portador do movimento social é o homem no processo de produção e reprodução da própria vida social. (KOSIK, 1996)
Assim, porquanto, a ação política é resultante de uma compreensão distorcida da realidade humana, tratando os efeitos sem atacar as causas ou determinações que as produzem, gerando um raciocínio estrutural linear, aduzindo que, por exemplo, “sem educação profissional com qualidade, não há espaço no mercado de trabalho”, mas para tanto, todos deveriam ter as mesmas condições e acesso a um modelo qualitativo de educação profissional, capaz de promover a emancipação do profissional preparando-o para a participação cognitiva no processo de trabalho, e não para garantir colocação ou ascenção no mercado de trabalho, conforme já preleciona o insigne autor Gaudêncio Frigotto.
HUMANIZAÇÃO COMO MODELO PEDAGÓGICO DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL NA SAÚDE
Inicialmente, mister se faz uma abordagem acerca do trabalho, onde a produção da existência pende de desenvolvimento de formas e conteúdos, a validade do referido processo se dá pela própria experiência, residindo aí o processo de aprendizagem; é assim que segundo dicção de Lukács, o ser humano se define pela sua essência humana – a histórica, que determina a história da humanidade, destacando como fundamentais quatro categorias do mundo dos homens: trabalho, reprodução, ideologia e alienação.
E considerando a assertiva de Saviani, “apenas o ser humano trabalha e educa (SAVIANI, 2006), o que o homem é, é-o pelo trabalho, a essência do homem é um feito humano, onde a existência humana não é simplesmente garantida pela natureza, mas tem de ser produzida pelos próprios homens, sendo pois um produto de trabalho, onde o homem se forma homem, não nasce homem, parte de um processo educativo, donde a origem da educação coincide, então, com a origem do homem mesmo.
A Humanização deve ser compreendida como modelo pedagógico, não apenas concebida como política para atenção, gestão ou assistência em saúde, mas aplicável à compreensão ontológica do ser social, no cumprimento da função social da educação profissional voltada ao próprio homem.
Não obstante, a humanização aqui delineada, deve ser concebida como escopo dos Direitos Humanos, das garantias fundamentais elencadas na norma fundamental, onde a Política Nacional de Humanização representa apenas uma perspectiva singularizada do elemento nodal dos Direitos Humanos.
Assim é que, se a vida é o bem supremo juridicamente tutelado pelos Direitos Humanos, e a saúde é direito sucedâneo à vida – igualmente direito fundamental – cada política, cada movimento, toda a estrutura que ensine, que trabalhe a saúde, deve assim o fazer com fundamento nos direitos e garantias fundamentais, a fim de balizar o processo de aprendizado e emancipação do profissional da saúde, preparando-o para uma participação efetiva em seu próprio processo de trabalho.
Por outro lado, o conteúdo teleológico da Educação Profissional na saúde é o próprio homem, na tutela da vida, e em sua relações sociais, sendo certo que, se o processo de conhecimento emana dohomem para o homem, e se considerarmos que a tutela da vida está pautada nos elementos de Direitos Humanos, positivado pelos Direitos e Garantias Fundamentais, a educação deve balizar-se nos critérios de tutela ampliada da vida e do homem.
O processo de aprendizado deve ser igualmente norteado pelos direitos e garantias fundamentais, bem como pelos Direitos Humanos sendo este o verdadeiro sentido da humanização na saúde - e não a mera realização de uma política, de um conteúdo esvaziado - o que permeia a construção de uma Política Nacional de Humanização efetiva é a conciliação com seu núcleo essencial, não só voltada a assistência ou gestão, mas para todos os indivíduos envolvidos no processo, seja na qualidade de cuidador, seja no mister do cuidado, observadas as peculiaridades de cada qual, não bastando o envolvimento intelectual, mas carecendo também de um certo grau de envolvimento, de criatividade e iniciativa, pautado nos direitos e garantias fundamentais.
Depreende-se assim que a economia exerce a cooptação nesse processo, onde acertadamente aduz Danièle Linhart (2007) que “ao encontrar no trabalho uma referência, a economia pôde conceber a lógica da troca mercantil e dela fazer o fundamento do vínculo social”, onde a lógica mercadológica se supera na sociedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As mudanças econômicas, políticas, sociais e culturais, que ocorreram no mundo e que se intensificaram no deslinde dos séculos, produziram e ainda produzem alterações significativas para a vida em sociedade. Ao mesmo tempo, em que se tem a criação de tecnologias cada vez mais precisas e sofisticadas em todas as atividades humanas e o aumento dos desafios e dos impasses colocados ao viver, ora imposto pelas regras do capitalismo, ora pelos interesses políticos prementes, restando cada vez mais mitigado os elementos humanos no processo de aprendizado e do trabalho.
A saúde, sendo a pedra de toque para a vida do indivíduo, dada em toda sua diversidade e singularidade, não permaneceu fora do desenrolar das mudanças econômicas da sociedade nesse período. O processo de transformação da sociedade é também o processo de transformação do homem, da compreensão ampliada da saúde e dos problemas humanos dela correlatos, elementar para formação da “vida” em todos os seus aspectos.
No Brasil, pensar outros caminhos para garantir a saúde significou pensar a redemocratização do país e a constituição de um sistema de saúde inclusivo, pautado nos direitos e garantias fundamentais, elencados na norma fundamental, materializados na Constituição Federal de 1988.
Depreende-se a indissociabilidade entre a garantia da saúde como direito social irrevogável - hermeneuticamente associado ao próprio direito à vida - e a garantia dos demais direitos humanos e de cidadania.
Destarte, houve a cristalização de uma política de Estado neoliberal, pautada ainda numa pseudo melhoria de qualidade, refutando, através de modelos econômicos o direito à vida e à saúde, obstando o diálogo com as reflexões e os movimentos no âmbito da promoção efetiva e integral da saúde, tendo sido delineado por diretrizes de um interesse econômico estatal constante, cunhado também por interesses da iniciativa privada, o que nos últimos tempos vem fomentando, de forma imensurável a mercantilização da medicina e da saúde e respectivamente da educação profissional, de certo ensejando ruptura sutil na proposta constitucional.
A formação profissional, notadamente na saúde, não ficou imune aos efeitos econômicos. Nesse sentido, as propostas pedagógicas e o modelo de educação do profissional da saúde sofreram impactos carreados pelas diretrizes econômicas, mecanizando o aprendizado, preparando o profissional para o atendimento do clamor do mercado, ditado pelas práticas tecnológicas, cooptando os indivíduos a finalidade imediata de colocação no mercado de trabalho pura e simples.
É desta feita que se pode depreender a intensidade da interferência político-econômica na saúde, provocando severas alterações nos métodos de ensino, organização, planejamento e condução das vertentes do SUS e da saúde pública, repercutindo na exegese da “saúde”, preponderando uma dialética sob a perspectiva mercadológica, que transforma o direito à saúde em serviço, carreando assim um reducionismo no que em outrora se traduzia em uma conquista social.
Não se pode olvidar ser esta uma dialética esvaziada do materialismo histórico das lutas sociais onde a visão de “serviço” imposto pela mercantilização é despida de critérios ontológicos e históricos agregados à proposta de criação do próprio SUS, onde mister se faz a utilização de uma hermenêutica constitucional contemporânea para manter as garantias do direito à saúde integrado com a vida, buscando a conciliação das prerrogativas mercadológicas sob a égide da inafastabilidade do direito à vida, decorrendo daí as limitações das diretivas de mercado.
REFERÊNCIAS
FERNANDES, Florestan. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1968
FRIGOTTO, Gaudêncio. O Brasil e a política econômico-social: entre o medo e a esperança. Observatório Social de América Latina - Clacso, n. 14, p. 95-104, maio-ago. 2004.
FRIGOTTO. Gaudêncio. A qualidade da educação escolar no Brasil: um contraponto à concepção hegemônica. Anuário Educação e Imprensa no Brasil. Editora Cortez: Rio de Janeiro, 2009.
GRAMSCI. Antonio. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1978.
KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. Paz e Terra: Rio de Janeiro, 1986.
LINHART, Danièle. A desmedida do capital. Tradução Wanda Caldeira Brant. In: O rolo compressor da modernização. Editora Boitempo: São Paulo, 2007.
MARX, Karl. Crítica à filosofia do Direito de Hegel. Boitempo: São Paulo, 2006.
NEVES, Lúcia M. W.(Org.). A nova Pedagogia da hegemonia: estratégias do capital para educar o consenso. São Paulo: Xamã, 2005.
RUMMERT, Sonia Maria. Educação de adultos, trabalho e processos de globalização. Contexto e Educação, Ijuí / RS, v. 9, n.39, p. 89-111, 1995.
RUMMERT, Sonia Maria. A educação de jovens e adultos trabalhadores brasileiros no Século XXI. O novo que reitera antiga destituição de direitos. Sísifo - Revista de Ciências da Educação, v. 02, p. 21-34, 2007.
SAVIANI, Dermeval. Trabalho e Educação: fundamentos ontológicos e históricos. GT Trabalho eEducação. 29ª reunião da ANPED: Caxambu, 2006.
Notas