Recepção: 28 Agosto 2019
Aprovação: 09 Novembro 2019
Resumo: Este texto versa sobre as implicações do trabalho docente na saúde e qualidade de vida do professor. A partir da concepção de que o trabalho é uma atividade fundamental para o desenvolvimento dos seres humanos, consideramos que o ato de trabalhar transforma a si mesmo no . pelo trabalho, relacionando-se diretamente com identidade social. Por outro lado, observa-se também que a centralidade que este ocupa na rotina cotidiana da vida humana, em especial da categoria, impõe uma relação conflituosa, pois, apesar de carregada de diferentes investimentos, as condições e as exigências do trabalho também são causas de doenças físicas e mentais. Nesta atividade laboral, articulam-se diretamente relações interpessoais, envolvendo experiências emocionais constantes. É um campo profissional onde a subjetividade dos afetos emerge no cotidiano, em relações diárias, envolvendo, na maioria das situações, crianças e jovens em desenvolvimento. Como tese, sustenta-se que estes movimentos, que possuem reflexo direto na organização dos processos de trabalho, produzem graves consequências sobre a saúde dos professores, em seus aspectos físicos ou psíquicos. Como ponto de partida, consideramos os resultados de um estudo que analisou aspectos referentes à saúde dos docentes da educação básica de sete estados brasileiros, entre outros, articulando uma discussão com uma análise qualitativa de diários de estágio em Psicologia Escolar. Nossas considerações ampliam as questões que se impõe ao docente na contemporaneidade e que lhes causam desgaste e consequente sofrimento psíquico.
Palavras-chave: Trabalho docente, Saúde do trabalhador, Qualidade de vida.
Abstract: This text deals with the implications of teaching work on the teacher's health and quality of life. From the conception that work is a fundamental activity for the development of human beings, we consider that the act of working transforms itself into and through work, relating directly to social identity. On the other hand, it is also observed that the centrality it occupies in the daily routine of human life, especially in the category, imposes a conflicting relationship, because despite being loaded with different investments, work conditions and demands are also causes of illness. physical and mental. In this work activity, interpersonal relationships are directly articulated, involving constant emotional experiences. It is a professional field where the subjectivity of affections emerges in daily life, in daily relationships, involving in most situations children and young people in development. As a thesis, it is argued that these movements, which have a direct reflection on the organization of work processes, have serious consequences on teachers' health, in their physical or mental aspects. As a starting point, we consider the results of a study that analyzed aspects related to the health of basic education teachers from seven Brazilian states, among others, articulating a discussion with a qualitative analysis of internship diaries in School Psychology. Our considerations broaden the questions that are imposed on the teacher in contemporary times that cause them to wear and consequent psychic suffering.
Keywords: Teaching work, Worker's health, Quality of life.
A TÍTULO DE ABERTURA
O trabalho é uma atividade fundamental para o desenvolvimento dos seres humanos. Nossa perspectiva é de que ao desenvolver uma atividade laboral todo indivíduo não está somente buscando meios para manter-se na vida, mas está também, buscando uma forma de inserção social. Trabalhar não é exclusivamente transformar um objeto ou situação numa outra coisa, é também transformar a si mesmo no e pelo trabalho (DUBAR, 2005).
Ancoradas na abordagem psicossocial, reflete-se que o trabalho modifica a identidade do trabalhador, pois ao trabalhar não se está somente fazendo alguma coisa, mas está fazendo alguma coisa de si mesmo, consigo mesmo (TARDIF e LESSARD, 2014).
Identidades sociais se constituem a partir do trabalho, como uma maneira de entrar em contato com a sociedade, e, através deste, considera-se que o homem adquire um status uma representação social. Por outro lado, enquanto instância social, o trabalho modifica o homem, podendo ser fonte de conhecimento e de experiências, influenciando nos seus valores e comportamentos, para além do acúmulo de bens materiais.
Considera-se que a realização de uma atividade laboral engloba aspectos objetivos relacionados à execução de tarefas para a confecção de um produto e de aspectos subjetivos, onde se articula uma história individual com vivências de prazer e de sofrimento.
Trabalho e profissão compõem aspectos das identidades dos indivíduos, sendo fonte de desenvolvimento de potencialidades, autoestima e status social. Por outro lado, a relação do homem com o trabalho é ambivalente; estudiosos da questão como Dejours (1987) e Codo (1999) apontam que as condições e as exigências do trabalho também são causas de doenças físicas e mentais.
O trabalho adquire tal centralidade na vida do sujeito que a ausência de atividade laboral é, para muitos, fonte de sofrimento psíquico, haja vista que situações como o desemprego e a aposentadoria causam adoecimento em alguns indivíduos. Contudo, apesar de ambos terem na ausência do trabalho a origem do sofrimento, tem-se, no primeiro caso, a ruptura das relações de trabalho - por motivações variadas -, gerando diferentes instabilidades, enquanto que na aposentadoria, apesar desta ser um direito (ainda) garantido por Lei, o encerramento do ciclo do trabalho, além de também repercutir em perdas econômicas, ainda é impregnada do sentimento de luto. Em comum, ambas são impregnadas do sentimento de desamparo, numa representação de exclusão social.
Neste contexto, a relação entre saúde e trabalho é tema amplamente pesquisado nas áreas, dentre elas é possível citar: Psicologia, Sociologia, Economia, Direito, Ergonomia e Administração. Na área da Educação, esse tema emerge quando se busca compreender o contexto das relações escolares e as exigências propostas para docência hoje. Os professores, pode-se dizer, são esses profissionais (ou a categoria profissional) que executam o trabalho docente e, neste trabalho articulam diretamente relações interpessoais, envolvendo experiências emocionais constantes (MARCHESI, 2008).
Neste texto buscamos articulações entre Christophe Dejours, Wanderley Codo, Maurice Tardif, José Gimeno Sacriatán, Antonio Nóvoa e Jose Contreras. Nosso objetivo é desvelar e refletir sobre o cotidiano do trabalhador da educação, o professor.
Toma-se como ponto de partida os resultados de um estudo que analisou aspectos referentes à saúde dos docentes da educação básica de sete estados brasileiros (OLIVEIRA; VIEIRA, 2012). Tais achados nos incomodaram e são retomados ao longo do texto. Entendemos que a saúde do trabalhador é uma questão de saúde pública, e o adoecimento do professor um fenômeno social, que representa as manifestações contemporâneas que chegam à escola.
O PERCURSO METODOLÓGICO ADOTADO
Este artigo adota a abordagem qualitativa para desvelar no cotidiano das escolas, manifestações contemporâneas que impactam na saúde e qualidade de vida do(a)s professore(a)s. A partir da metodologia de pesquisas do/no/com cotidiano (FERRAÇO; ALVES, 2015; FERRAÇO, 2004), foram analisadas as narrativas produzidas em diários de 20 estagiário(a)s de Psicologia Escolar de uma Universidade do Sul do Brasil, no período 2017/18. A análise - em andamento - utiliza-se dos pressupostos da análise de conteúdo na perspectiva de Bardin (2009).
REFLEXÕES SOBRE TRABALHO, PROFISSÃO DOCENTE E O TRABALHO DO PROFESSOR
De antemão achamos justo explicitar nossa compreensão sobre trabalho e profissão, conceitos estes caros para discutirmos a profissão docente. Trabalho é a realização de uma tarefa, enquanto o que constitui uma profissão é a harmonia de conhecimentos para a realização do trabalho. Portanto, para nós, ser professor é a profissão de um expressivo grupo de pessoas que realizam as funções ensinantes/ aprendentes, a partir de uma série de conhecimentos que determinamos ciência.
Essa profissão é definida por Sarmento (1994) como “o desempenho de uma atividade humana, apoiada num saber e em valores próprios, possuidora de atributos específicos e, como tal, reconhecida pelo todo social e confirmada pelo Estado”, e profissionalismo como “o estado de todos quantos manifestam a sua adesão prática às normas resultantes do processo de socialização profissional” (p.38). Assim, os professores formam “um grupo profissional em plena profissionalização” (p.43).
As profissões são formas de os homens viverem juntos seus projetos interdependentes de vida e trabalho, relações nas quais os profissionais desenvolvem suas próprias trajetórias pessoais e profissionais, suas identidades, suas forças de criatividade e originalidade, que afetam as vidas e as práticas de todos com quem se relacionam.
Osório Marques (2003) afirma que, no sistema das relações sociais, as relações profissionais ocupam lugar proeminente nas sociedades modernas ao aliarem as configurações específicas das forças produtivas, os avanços das ciências e tecnologias e as intencionalidades políticas de grupos sociais definidos (p.49).
A profissão coloca os homens em determinados sistemas de relações materiais, econômicas, sociais, culturais e éticas e num alto nível de exigência de saber e qualificação técnico-científica específica para campos específicos de atuação.
Compreende-se a profissão não apenas como atividade ocupacional do homem, mas como compromisso solidário, autônomo e reflexivo inserido na esfera política da sociedade. O professor é alguém que sabe alguma coisa e cuja função consiste em transmitir esse saber a outros, segundo Tardif (2002, p.31). O trabalho de Montero (2001) traz a ideia do professor como uma pessoa que está num lugar chamado escola, colégio, instituto, faculdade, a ensinar alguma coisa, durante um tempo determinado (p.86-87).
Essa ideia tem em conta as experiências escolares prolongadas, sobretudo nos países desenvolvidos, vivida pela grande maioria das pessoas, em instituições de ensino, onde tiveram a oportunidade de encontrar homens e mulheres que aprenderam a chamar e reconhecer como professores.
Essa carga experiencial é mencionada por Tardif (2002), quando se refere que os professores são trabalhadores que foram mergulhados em seu espaço de trabalho durante muitos anos, antes mesmo de começar a trabalhar (p.261). Essa imersão se manifesta através de toda uma bagagem de conhecimentos anteriores, de crenças, de representações e de certezas sobre a prática dos professores, e são essas experiências que pairam no imaginário coletivo, nos dando a ideia de quem é e o que faz o professor.
Na obra de Osório Marques (2003) é possível encontrar que o homem não é por natureza o que é ou deseja ser; por isso necessita formar-se, ele mesmo, segundo as exigências de seu ser e de seu tempo; necessita cada homem re-atravessar a história do seu gênero humano e da cultura, para delas fazer-se parte viva e operante (p.41).
Nessa perspectiva, o professor busca em sua profissão, possivelmente, respostas às indagações existenciais de quem está impelido a entender, para melhor realizar as tarefas em que se empenha consigo, com seus alunos, ou mesmo formando outros professores. Enquanto sujeito que aprende, constituído pelo que aprende o homem não pode desvincular o que faz no mundo daquilo que faz de si mesmo, por sua capacidade de reflexão. Na ótica de Osório Marques (2003), articulação dessas duas instâncias – o eu e o mundo – consiste a capacidade de reflexão, isto é, a posse de seus saberes sobre si mesmo e seu mundo (p.41).
Existem resistências a que se atribua o caráter de profissão à dedicação, tempo pleno e apaixonado, à educação. Para Osório Marques (2003), é comum insistir-se na distinção entre o educador do ser humano e o professor, transmissor de conhecimentos acabados e técnicas instrumentais (p.56-57).
O trabalho do professor foi tradicionalmente visto como missão, vocação ou consciência cívica, tarefa que parece estar acima das necessidades de quem ganha a vida nessa profissão. Não se pode, na realidade, ganhar a vida senão no duplo sentido dessa expressão: garantir as condições da sobrevivência não pode separar-se do realizar os sentidos e valores pelos quais se vive, sob pena de o trabalho, a profissão, converter-se em forma de alienação pessoal e social. O sentido humano, espiritual, pessoal e social do trabalho não pode, senão como abstração, existir fora das situações concretas e das condições reais do mundo e da vida (OSÓRIO MARQUES, 2003, p.57).
Na complexidade do mundo atual, a educação se exige, de acordo com Osório Marques (1988), como atuação proposital, explícita e sistemática de professores com preparo específico, em tarefas peculiares e com dedicação exclusiva (p.155-165). Todo professor deve ser esse profissional apaixonado e especializado em educação, educador por inteiro, capaz de conduzir o inteiro processo educativo: do pensar ao agir e fazer e avaliar. Em obra complexa e tarefa imensa como é a da educação, Osório Marques (2003) nos lembram que nem todos serão iguais ou tudo farão, mas a obra é de todos; as responsabilidades compartilhadas e as competências intercomplementares (p.58).
A CONSOLIDAÇÃO DA PROFISSÃO DOCENTE
A profissão professor constituiu-se graças à intervenção e ao enquadramento do Estado, que substituiu a Igreja como entidade de tutela do ensino. Durante o século XIX, consolidou-se uma imagem de professor, que misturou as referências do magistério ao sacerdócio, com a humildade e a obediência devidas aos funcionários públicos, tudo isso envolto num ambiente místico de valorização das qualidades de relação e de compreensão da pessoa humana. Simultaneamente, a profissão docente impregnou-se de acordo com Nóvoa (1992a):
[...] de uma espécie de entre-dois, que tem estigmatizado a história contemporânea dos professores: não devem saber demais, nem de menos; não devem se misturar com o povo, nem com a burguesia; não devem ser pobres, nem ricos; não são (bem) funcionários públicos, nem profissionais liberais, etc. (p. 15-16).
A formação de professores é o momento ímpar da socialização e da configuração profissional, mais do que aquisição de técnicas e de conhecimentos. A profissionalização é um processo através do qual nós, trabalhadores, melhoramos nosso estatuto, elevamos nossos rendimentos e aumentamos nosso poder/autonomia. Ao invés, a proletarização provoca uma degradação do estatuto, dos rendimentos e do poder/autonomia. Nóvoa (1992a) nos lembra de que é útil sublinhar quatro elementos do processo de proletarização: “[...] a separação entre a concepção e a execução, a estandardização das tarefas, a redução dos custos necessários à aquisição da força de trabalho e a intensificação das exigências em relação à atividade laboral” (p. 24).
Essa tendência em separar a concepção da execução trata-se de um fenômeno social que legitima a intervenção de especialistas científicos e sublinha as características técnicas do trabalho dos professores provocando uma degradação do nosso estatuto e retirando-nos margens importantes de autonomia profissional.
Já a tendência da intensificação do trabalho, com uma sobrecarga de tarefas diárias e uma sobrecarga permanente de atividades, leva-nos a seguir por atalhos, obriga-nos a buscar cada vez mais apoio nos especialistas, a esperar que nos digam o que fazer, iniciando um processo de depreciação da experiência e das capacidades adquiridas ao longo dos anos (NÓVOA, 1992a).
A qualidade cede lugar à quantidade. Perdem-se competências coletivas à medida que se conquistam competências administrativas. Finalmente, é a estima profissional que está em jogo, quando o próprio trabalho se encontra dominado por outros atores. (APPLE & JUNGCK, 1990, p. 156)
Há uma tendência na formação de professores em ignorar o desenvolvimento pessoal, confundindo formar e formar-se, não compreendendo que a lógica da atividade educativa nem sempre coincide com as dinâmicas próprias da formação.
A formação de professores pode desempenhar um papel importante na configuração de uma nova profissionalidade, estimulando uma cultura profissional ao professorado e uma cultura organizacional às escolas. Mas também não tem valorizado uma articulação entre a formação e os projetos das escolas, consideradas como organizações dotadas de margens de autonomia e de decisão cada vez mais importantes. Esses dois esquecimentos inviabilizam, segundo Nóvoa (1992a) “[...] que a formação tenha como eixo de referência o desenvolvimento profissional dos professores, na dupla perspectiva do professor individual e do coletivo docente” (p. 24).
SOBRE A BASE SOCIAL E DEFINIÇÃO DA FUNÇÃO DOCENTE
O ensino é uma prática social, não só porque se concretiza na interação entre nós, professores, e nossos alunos, mas também porque enquanto atores refletimos nossa cultura e os contextos sociais a que pertencemos. A intervenção pedagógica do professor é influenciada pelo modo como pensa e como age nas diversas facetas de sua vida.
Os professores possuem, como coletivo social, certo status, que varia segundo as sociedades e os contextos, diferenciando-se em função do nível de escolaridade em que exercem. Os fatores que configuram o status do grupo profissional, nos diversos contextos sociais, são complexos e variados. Conforme Hoyle (1987) há seis fatores que determinam o prestígio relativo da profissão docente,comparativamente com outras:
1) a origem social do grupo, que provem das classes média e baixa; 2) o tamanho do grupo profissional que, por ser numeroso, dificulta a melhoria substancial do salário;Importar lista 3) a proporção de mulheres, manifestação de uma seleção indireta, na medida em que as mulheres são um grupo socialmente discriminado; 4) a qualificação acadêmica de acesso, que é de nível médio para os professores dos ensinos infantil e primário; 5) o status dos clientes; 6) a relação com os clientes, que não é voluntária, mas sim baseada na obrigatoriedade do consumo do ensino. (p. 66-67)
Essa análise nos permite compreender melhor a profissionalidade, na medida em que a atividade docente não é exterior às condições psicológicas e culturais dos professores. Educar e ensinar é, sobretudo, permitir um contato com a cultura, trata-se de um processo em que a própria experiência cultural do professor é determinante. Nesse sentido, é importante repensarmos os programas de formação de professores, que têm uma incidência mais forte nos aspectos técnicos da profissão do que nas dimensões pessoais e culturais.
A função dos professores define-se pelas necessidades sociais a que o sistema educativo deve dar resposta, as quais se encontram justificadas e mediatizadas pela linguagem técnica pedagógica. O conceito de educação e de qualidade na educação tem entendimentos diferentes segundo os vários grupos sociais e os valores dominantes nas distintas áreas do sistema educativo. A imagem de profissionalidade ideal é configurada por um conjunto de aspectos relacionados com os valores, os currículos, as práticas metodológicas ou a avaliação (SACRISTÁN, 1999).
A educação é objeto de um amplo debate social, graças ao qual se constroem crenças e aspirações que formulam diferentes exigências em relação ao comportamento dos professores. Essa diversidade nota-se principalmente em momentos de conflito, nomeadamente entre as expectativas familiares e a ação dos professores.
A evolução da sociedade, conforme Sacristán (1999), “[...] tende a afetar à escola num conjunto cada vez mais alargado de funções, as aspirações educativas a que o professor deve dar resposta crescem, à medida que se tornam dia a dia mais etéreas ou invisíveis” (p. 67). Essa evolução da exigência social, especialmente projetada na escolaridade obrigatória em geral, conduz a uma indefinição de funções. Nessa perspectiva, Sacristán (1999) afirma que:
As profissões definem-se pelas suas práticas e por um certo monopólio das regras e dos conhecimentos da atividade que realizam. Será que os professores dominam a prática e o conhecimento especializado ao nível da educação e do ensino? Em termos gerais a resposta é negativa, ainda que a educação institucionalizada tenda a ser da sua competência (p. 67).
No essencial, a profissão docente não detém a responsabilidade exclusiva sobre a atividade educativa, devido à existência de influências mais gerais (políticas, econômicas, culturais) e à situação de desprofissionalização do professorado, bem evidente na imagem social, na formação de professores e na regulação externa do trabalho docente (APPLE, 1989).
Nós, professores, não produzimos os conhecimentos que somos chamados a reproduzir, nem determinamos as estratégias práticas da nossa ação pedagógica. Por isso, é muito importante analisarmos o significado de nossa prática educativa e compreendermos suas consequências no âmbito da formação de professores e do estatuto da profissão docente.
ANÁLISE E RESULTADOS: UMA DISCUSSÃO SOBRE SAÚDE E SOFRIMENTO PSÍQUICO EM DOCENTES
Um estudo coordenado por Oliveira e Vieira (2012) fez um retrato do trabalho da educação básica de sete estados brasileiros: Minas Gerais, Espírito Santo, Pará, Rio Grande do Norte, Goiás, Paraná e Santa Catariana. Nesse estudo, também são analisados aspectos referentes à saúde dos docentes. Tal estudo tem como importante indicador, o afastamento constante das atividades laborais por motivo de doença. Entre os motivos apontados para os afastamentos, aparecem majoritariamente os chamados distúrbios mentais ou transtornos psíquicos 11,7% por estresse e 12, 7% por depressão, ansiedade e nervosismo, seguidos de 11,7% por doenças musculoesqueléticas e 7,9% de problemas na voz entre outros motivos. No campo dos transtornos psíquicos, 8,7% dos docentes informam fazer uso regular de medicamentos para depressão, ansiedade ou nervosismo e 4,5% para alterações no sono.
Outra fonte de dados emergiu dos diários de estágio em Psicologia Escolar, no período de 2017/18. O escopo de 20 diários apresentaram os elementos presentes no cotidiano escolar, instrumentalizando a importância da reflexão sobre a escola hoje. Nesta parceria e cumplicidade entre a psicologia e a educação, a escola é:
Considerada o lugar onde ocorrer diferentes processos de aprendizagens, espaço amplo de socialização que busca favorecer experiências e a produção de conhecimento para a vida, integrando crianças e jovens às principais redes sociais importantes para sua formação.
Compreendida enquanto instituição, ela produz e reproduz as contradições da sociedade na qual se insere, nem sempre assegurando o exercício de uma cidadania ativa.
Um lugar que não está longe das tensões sociais que apontam para um mundo de fluidez, instantaneidade e consumo. (CFP, 2013, p. 30)Importar lista
Dos diários ressignificamos a escola na contemporaneidade. Velhos problemas conhecidos da escola, como problemas de aprendizagens e questões de comportamento, uniram-se a outros que - em boa parte - sobrepõem-se como principais demandas. São eles: o sucateamento da cultura escolar, o desrespeito para com a escola e os professores, a falta de condições adequadas para o trabalho, que se expressam na violência na escola e com o professor, a escassez de tempo para planejamentos e formação continuada. O descaso social e moral da educação, especialmente a pública, mas não distante a privada.
Foram observados professores “guerreiros”, mas também cansados. A possibilidade de aposentadoria como uma “pedra de salvação”. Em outra face ainda podemos citar questões que chegam à escola que precisam de prontidão dos professores, sobre estes temos que considerar o bullying escolar, os reflexos do crescente incremento dos processos migratórios que transformam a escola num novo lar para alunos de outras regiões do país e diferentes nacionalidades, a medicalização dos alunos, a violência social, estrutural e até familiar.
É preciso considerar que estes elementos têm reverberado na consequente (falta de) saúde dos professores. Caldas (2012) ao referir-se aos indicadores de saúde dos professores da educação básica, denuncia que nas últimas décadas, o registro de licença do trabalho por motivo de saúde na categoria dos professores, em diferentes países, identificou a maior prevalência de distúrbios mentais quando comparados com outros grupos de doenças comunicadas nas declarações médicas. A docência é considerada pela Organização Mundial do Trabalho como uma das categorias profissionais mais estressantes.
No trabalho docente, estão presentes aspectos potencialmente estressores como: baixos salários, escassos recursos materiais e didáticos, classes superlotadas, tensão na relação com alunos, excesso de carga-horária e inexpressiva participação nas políticas educacionais. Segundo Fajardo, Minayo e Moreira (2010) o estresse na profissão docente ocorre porque muitos professores não visualizam perspectivas em seu trabalho, não examinam seu sucesso profissional, sua competência e sua satisfação com a profissão. As autoras ainda apontam que no contexto educacional brasileiro não são raras as vezes que os docentes descrevem sensações de mal-estar e impotência.
No trabalho docente, estão presentes aspectos potencialmente estressores como: baixos salários, escassos recursos materiais e didáticos, classes superlotadas, tensão na relação com alunos, excesso de carga-horária e inexpressiva participação nas políticas educacionais. Segundo Fajardo, Minayo e Moreira (2010) o estresse na profissão docente ocorre porque muitos professores não visualizam perspectivas em seu trabalho, não examinam seu sucesso profissional, sua competência e sua satisfação com a profissão. As autoras ainda apontam que no contexto educacional brasileiro não são raras as vezes que os docentes descrevem sensações de mal-estar e impotência.
A questão do amparo ao trabalhador da educação atravessa necessariamente as condições de trabalho. Nessa perspectiva, percebe-se uma discrepância, pois as políticas educacionais têm visado à educação para todos, mas há de se destacar que muitas reformas oriundas dessas políticas interferiram diretamente sobre as condições de trabalho dos docentes. Na tentativa de garantir a equidade, observa- se uma disparidade entre as metas a serem alcançadas e as condições de trabalho.
As mudanças ocorridas no fazer docente também estão acompanhadas de uma mudança no status social da própria profissão. Para compreender esse processo, observa-se o sistema estatal que estabelece cada vez mais perdas sobre o plano de carreira e impõe o aumento de atribuições aos docentes frente a grande demanda diversificada de alunos.
Justificando a necessidade de garantia de acesso, as reformas educacionais se estruturaram de acordo com a demanda capitalista, pois para nortear as reformas, ficou estabelecido um ordenamento onde o docente cumpre um papel de operador que sob a tutela de um administrador, sendo controlado em relação ao tempo, método e diretrizes. Nesse contexto, o trabalho docente está mais condicionado em atender uma grande demanda diversificada de alunos, onde o foco do processo se torna o ensino e não a aprendizagem.
Como pontua Contreras (2012), diante desse quadro, os docentes, assim como a classe operária, perdem em qualificação e vêm reduzido seu trabalho quanto ao desempenho de tarefas isoladas e rotinizadas, sem compreender com maior grau de clareza e crítica o significado do processo. Os docentes também se aproximam da classe operária quando se articulam em sindicatos, associações de classe e coletivos de trabalhadores que visam melhores condições de trabalho e de remuneração.
Além da perda de controle sobre o processo de trabalho, os docentes estão massificados por rotinas estafantes de trabalho devido à baixa remuneração. Na condição de trabalhadores assalariados com baixa remuneração, sentem a necessidade de ampliar sua carga horária de trabalho, muitas vezes se submetendo a sessenta horas semanais.
Contreras (2012) aponta que a tese básica da proletarização docente se sustenta pela subtração progressiva de uma série de qualidades que conduziram o professor (a) a uma perda de controle e de sentido sobre o próprio trabalho, evidenciando que o que está em jogo é a autonomia desses profissionais. Desse modo, entende-se que os docentes ocupam um lugar de subordinação no campo educacional, visto que, seu papel pode se reduzir a meros executores dos interesses estatais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Cotidiano docente é marcado por experiências que marcam a trajetória dos estudantes e que também ressignificam a identidade profissional do professor. É um campo profissional onde a subjetividade dos afetos emerge no cotidiano, em relações diárias, envolvendo na maioria das situações, crianças e jovens em desenvolvimento.
Para esta atividade profissional é preciso contar com a mediação de um profissional tecnicamente capacitado, formado dentro de preceitos acadêmicos e principalmente contar com a capacidade humana de desenvolver a mediação, a expressão do afeto, a paciência e a fé.
O Cotidiano docente é um campo permeado por muitas lutas e resistência para a manutenção de uma dignidade profissional, como propõe Certau (2014) o Cotidiano se traduz nas maneiras de fazer, constitui essas práticas pelas quais os usuários (docentes) se apropriam do espaço organizado pela produção social, cultural e econômica.
É no cotidiano das escolas que os professores operam estratégias de criação e resistência, os cotidianos escolares remetem ao contexto social, no qual se articulam redes de conhecimento e significação, de produção de sentidos para a manutenção nesta atividade profissional (FERRAÇO, SOARES E ALVES, 2018).
Apoiadas nas ideias de Dejours (1987), as autoras Aguiar e Almeida (2011) enfatizam que existe um paradoxo psíquico do trabalho, pois para uns, ele é fonte de equilíbrio e traz consigo o poder de diminuir a carga psíquica; para outros, o trabalho é vivenciado com sofrimento. Assim, o questionamento que pode ser levantado frente a essa relação é: “como e o que faz o trabalho ser acolhido de maneiras diferentes por diferentes profissionais?”.
Pensamos que, no caso do docente, a interpretação dada às exigências do cotidiano escolar, o estilo de cada profissional dessa área e o significado que é atribuído aos “agentes estressores” produzem os diferentes graus de sofrimento e a variedade de sintomas que afetam a saúde física e psíquica do professor.
Nossas hipóteses são que o ensino é um trabalho emocional, onde cada docente experimenta emoções diferentes. Outra questão que também merece ser considerada é de que os docentes, através de seus recursos psíquicos, buscam estratégias para manter o equilíbrio psíquico frente às demandas do trabalho.
Fatos assim acontecem diariamente no cotidiano da escola e, portanto, as rotinas que se apresentam aos professores são marcadas pela sobrecarga e pelo esforço emocional. Como tese, sustenta-se que, estes movimentos, que possuem reflexo direto na organização dos processos de trabalho nos quais estão inseridos produzem graves consequências sobre a saúde dos professores, em seus aspectos físicos ou psíquicos.
É importante lembrar, também, que a atuação profissional tem seus pressupostos voltados ao aprendizado e domínio das condições materiais para o exercício profissional, como os objetivos postos, as rotinas estabelecidas, as instituições e formas organizativas, os saberes qualificados e as tecnologias necessárias. Pressupostos de uma aprendizagem, mas, sobretudo, pressupostos de uma decidida atuação coletiva no sentido da superação das condições dadas e das imposições de interesses alheios (OSÓRIO MARQUES, 2003, p.48).
Ao entender que solidariedade, autonomia e reflexão estão na base do profissionalismo, é preciso estabelecer espaço para que elas se dêem. No entanto, na formação profissional dos professores, não é isso que acontece. A preocupação tem incidido mais sobre uma aquisição de informações e de competências fragmentadas, dirigidas somente para a prática, deixando de lado uma ampla e verdadeira formação cultural.
Nessa mesma linha de entendimento, Sarmento (1994) destaca o perigo de que o profissionalismo docente seja utilizado como um dos dispositivos de retórica da reforma educacional, que objetiva submeter os professores a uma tecnização de seu trabalho, que em última análise determina uma perda de autonomia e desvia os professores da consciência crítica sobre as condições de produção social do trabalho docente (p. 39-40).
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