Recepção: 25 Agosto 2019
Aprovação: 20 Novembro 2019
Resumo: A estrutura social e os padrões de normalidade refletem diretamente as relações de poder e a naturalização de algumas normas em detrimento de outras. Temos no Brasil uma heteronormatividade compulsória vigente, que se apresenta também dentro da escola, nos conteúdos ensinados e nas condutas de comportamento induzidas ou exigidas. O presente artigo discute esse tema no panorama nacional de forma mais ampla e na região de Sorocaba, em particular. Nesse contexto local, a heteronormatividade tem sido afirmada e reafirmada através de aprovações de leis que desconsideram a identidade de gênero e de medidas que reforçam o preconceito e discriminação em torno de diversas formas de expressão da sexualidade e gênero. Esse desrespeito e as diferentes formas de violências dele advindas são desfavoráveis à saúde mental e física de pessoas que não se enquadram na cisheteronormatividade, fazendo então da escola um ambiente potencialmente lesivo a alunos e funcionários LGBT. Ao mesmo tempo, há a possibilidade de a escola exercer um papel protetivo, ao promover o debate e educação sobre sexualidade, o que tem sido pauta de movimentos sociais sorocabanos ao reivindicarem mudanças nas leis e diminuição da influência do conservadorismo presente no meio político local.
Palavras-chave: Travestis, Transexuais, Heteronormatividade, Saúde Mental, Transfobia na escola.
Abstract: The social structure and patterns of normality reflect directly the relations of power and naturalization of some norms in detriment of others. There is a prevailing compulsory heteronormativity, which also occurs into the school, within the limits taught and conducts of induced or required behaviors. The present article discusses the theme in the national panorama in a broader way and in the region of Sorocaba, in particular way. In this local context, the heteronormativity has been affirmed and reaffirmed through approvals of laws that disregard gender identity and policies that reinforce prejudice and discrimination in the senses of the expressions of sexuality and gender. This disrespect and the different forms of violence that come from it, are unfavorable to mental and physical health of people that doesn’t fit in the cisheteronormativity, making the school to become a harmfull place to LGBT studants and employers. At the same time, there is a possibility of a protective role of school, while promoting debate and education about sexuality, which has been some of the schedule of social moviments of Sorocaba, that claim for chances in the law and for decrease of the influence of conservatism in the local political environment.
Keywords: Transvestite, Transsexuals, Heteronormativity, Mental Health, Transphobia into schools.
INTRODUÇÃO
O presente artigo pretende discutir o tema das homo/transfobias no cotidiano escolar e suas consequências, refletindo também sobre a necessidade da criação de espaços protetivos em seu interior, para a diminuição do impacto negativo dessas modalidades de discriminação sobre a saúde mental destas pessoas. Parte de uma revisão bibliográfica sobre a homo/transfobia no contexto escolar e de suas consequências sobre a saúde mental dos estudantes. Na sequência, faz uma análise documental da legislação relacionada ao tema na cidade de Sorocaba, buscando articulá-la com o cenário nacional, tendo em vista os recentes retrocesso pelos quais passamos no campo do gênero e sexualidade.
O segmento de pessoas LGBT1 (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis) tem sido uma população mais vulnerável socialmente por frequentemente não replicar o padrão heteronormativo2 vigente na sociedade atual e sofrer diversas represálias, desde subliminares, até violências explícitas físicas e emocionais. Dentro dessa população, travestis e transexuais3, sem dúvida, são os/as que mais sofrem preconceito e discriminação, apresentando as consequências disto nos diversos âmbitos da vida, como na vida escolar, laboral, na saúde mental e física, dentre outros. (COSTA et al., 2013).
A esta rejeição - ou mesmo o ódio em relação a gays, lésbicas, travestis e transexuais, presente na estrutura de uma sociedade heteronormativa - chamamos de homo/transfobia. Esta caracteriza-se por manifestações que desqualificam o outro, considerando-o inferior ou anormal, fora do universo dos humanos; e também como um conjunto de emoções negativas (aversão, desprezo, desconfiança, desconforto ou medo), constituindo um fenômeno social relacionado a preconceitos, discriminação e violência contra a população LGBT (BORRILLO, 2010; JUNQUEIRA, 2009).
O modelo heteronormativo é encontrado dentro da escola e serve para pautar as condutas tanto dos alunos/as quanto do corpo docente e demais funcionários/as. A imposição heteronormativa normalmente não é percebida, já que ela foi se naturalizando na sociedade pela repetição ao longo dos séculos (MISKOLCI, 2011).
Algumas escolas, compreendendo que a heteronormatividade impede as possibilidades de expressão de sexualidade e gênero de muitas pessoas, criaram grupos de proteção à população LGBT, a fim de diminuir o bullying com motivação trans/homofóbica entre seus alunos. Isso implica na existência de profissionais capacitados a acolher situações relacionadas a esse tipo de conflito entre os alunos, oferecendo prevenção para as situações discriminatórias que possam acontecer. A base do ensino passa a ser então a diversidade humana e o respeito a ela, visando o bem-estar de todos. Esta medida está de acordo com a percepção de que a homo/transfobia é um problema social, um efeito da heteronormatividade vigente, e como tal, também está presente na escola, mas que a escola tem em si uma capacidade de ser um espaço institucional fundamental para a superação desta violência, contribuindo para o desenvolvimento do respeito à diversidade e aos direitos humanos (JUNQUEIRA, 2009).
Historicamente, a violência homo/transfóbica na escola tem sido frequentemente estudada a partir da categoria “bullying”. No entanto, como aponta Garcia (2009), o recurso ao conceito de bullying traz algumas limitações, como o fato de muitas vezes esconder o quanto os comportamentos associados a este fenômeno estão intrinsicamente ligados a relações sociais de poder e controle, necessitando-se analisá-lo a partir de uma perspectiva social crítica e interdisciplinar e não como um fenômeno apenas interpessoal ou individual.
Os currículos, tanto o formal quanto o oculto, estão repletos de manifestações de valores, crenças e preconceitos que reproduzem a “alienação, desapossamento e hierarquias opressivas” (JUNQUEIRA, 2010, p. 211) e por isso é necessário que hajam ações protetivas e educativas em relação à diversidade sexual e de gênero. Muitas escolas, porém, continuam a reproduzir discursos e práticas preconceituosos e excludentes, se apresentando como espaços hostis à diversidade de expressões e vivências, desconsiderando qualquer variação de sexualidade e gênero que não sejam a hegemônica e reafirmando a heteronormatividade.
Nesses discursos e práticas heteronormativas, frequentemente reproduzidos nas escolas, a heterossexualidade é ensinada como a única opção possível de orientação sexual, bem como a cisgeneridade4. As outras vastas possibilidades de vivência de sexualidade e gênero não costumam sequer serem citadas, dando a entender que não existem ou que não deveriam existir. No ambiente escolar, pessoas LGBT são frequentemente “corrigidas” ao demonstrarem algum comportamento “incompatível” com seu gênero. Cabe lembrar que essa “correção” atravessa também funcionários e professores, que poderão ser considerados como “maus exemplos” para os alunos.
Junqueira (2012) chama, no cotidiano escolar, de “pedagogia do insulto” aos atos discriminatórios que têm transformado a escola em um dos lugares mais nocivos para pessoas LGBT. A pedagogia do insulto é:
[...] uma série de tratamentos preconceituosos, medidas discriminatórias, ofensas, constrangimentos, ameaças e agressões físicas ou verbais que têm sido uma constante na vida escolar e profissional de jovens e adultos que, de maneira dinâmica e variada, podem se identificar ou ser identificados/as como lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais (LGBT) ou outras categorizações semelhantes, análogas ou equivalentes. (JUNQUEIRA, 2012, p. 212-213).
Tratando do mesmo tema, Bento (2011) denomina de heteroterrorismo ao conjunto de insultos, piadas e agressões homofóbicas, constituído no e pelo discurso da patologização da experiência identitária homossexual, que fundamenta a convicção de que pessoas LGBT são inferiores.
HOMO E TRANSFOBIA COMO FATOR DE RISCO PARA O ADOECIMENTO MENTAL
Os estudos relacionados à prevalência de distúrbios mentais na população jovem LGBT mostra que um dos fatores que explicam o adoecimento mental nesse segmento é a rejeição parental, o que pode aumentar a prevalência da depressão e tentativas de suicídio (HUNT, 2012). Isso evidencia a importância da escola como um ambiente que tem o dever de estar preparado para lidar com a diversidade sexual e de gênero, uma vez que a própria casa de uma pessoa que tem ou terá vivências não-heteronormativas tende a ser um ambiente hostil.
A educação acerca de sexualidade e gênero, não contempla apenas as pessoas LGBT, uma vez que conscientiza os alunos em geral acerca da pluralidade de condições possíveis de expressão de si e dos outros, contribuindo para formas menos violentas de existência. Por meio da educação e acolhimento das diversidades, as violências e mortes futuras podem ser evitadas, tanto pela prevenção da hetero-agressividade, cometida por discentes em relação às pessoas homo/transexuais, quanto pela evitação de que a própria pessoa cometa atos contra si, desde automutilação até tentativas de suicídio.
A idação suicida é um achado comum nos estudos sobre pessoas trans. Olson, Schrager, Belzer, Simons, e Clark (2015) encontraram que a maioria dos jovens travestis ou transexuais lutou subjetivamente contra a própria expressão de gênero antes de se assumir para seus amigos e família. Outros problemas de saúde mental, como os derivados do uso prejudicial de substâncias psicoativas, prevalentes entre jovens trans (CLEMENTS, 2006; GROSSMAN; D’AUGELLI, 2007), podem derivar da forma como lidam subjetivamente com sua expressão de gênero dissidente, enquanto outras causas de angústia mental vêm do assédio ou falta de compreensão dos outros. Há também uma diferença significativa nas taxas de transtorno depressivo em pessoas trans quando comparadas à população cis (BUDGE et al., 2013). Isso se dá por haverem sofrimentos constantes, como o estigma vivenciado em decorrência da não-observância das normas e expectativas sociais vinculadas ao sexo atribuído ao nascimento, que coloca a população trans em situações de alto estresse e vulnerabilidade para transtornos mentais, como depressão, ansiedade e comportamento suicida. (BOCKTING et al, 2013). Quanto menos passabilidade, ou seja, quanto mais distante de um padrão hegemônico heteronormativo, mais sofrem-se discriminações (SANTOS et al., 2010).
Um dos modelos explicativos para essa discrepância da saúde mental da população LGBT em relação a outras populações é a teoria do estresse social de minoria (MEYER et al. 2008). Tal modelo se baseia na teoria do estresse social e afirma que condições sociais específicas atuam como estressores, e conforme a falta de recursos de enfrentamentos, podem levar ao adoecimento. A teoria do estresse social fornece uma estrutura teórica útil para explicar as disparidades de saúde (DRESSLER, et al. 2005) e essa estrutura é descrita como um paradigma sociológico que vê as condições sociais como uma causa de estresse para membros de grupos sociais desfavorecidos. (ANESHENSEL et al., 1991). Estudos populacionais têm confirmado o modelo, mostrando, por exemplo, que viver em uma comunidade com legislações que banem as uniões de pessoas do mesmo sexo afeta negativamente a saúde mental da população LGBT (HATZENBUEHLER et al., 2010), ao passo que viver em áreas com legislações protetivas tem impacto positivo. Podemos pensar, a partir disso, que grupos protetivos dentro da escola e aulas com o intuito de aumentar a compreensão e respeito das diversidades, funcionariam como instrumentos tanto de ajuda na resiliência pessoal, através da informação assimilada às emoções, quanto como apoio de grupo, ao poder oferecer recursos de enfrentamento.
O desenvolvimento de medidas protetivas de suporte à população LGBT em escolas possibilita melhor saúde mental para estas pessoas. Nessa mesma, linha, estudos mostram que, em ambientes que permitem e respeitam o uso do nome social para as pessoas trans, a saúde mental das mesmas é significantemente melhor do que naqueles onde não se respeita. (RUSSELL, et al., 2018).
O Brasil é conhecido como o país que mais comete assassinatos direcionados à população LGBT e dentro dela, os crimes são maiores em torno da população trans. (ANTRA, 2017). Há ainda dados que apontam que a maioria das vítimas estão entre 19 e 30 anos, mostrando como a população jovem está vulnerável. (GGB, 2018). Uma pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), que analisou as experiências de adolescentes e jovens LGBT em ambientes educacionais brasileiros (ABLGB, 2016) mostrou que 60% dos participantes se sentiam inseguros na escola por se definirem como LGBTT; 73% disseram ter sido agredidos verbalmente e 36% afirmaram ter sofrido agressões físicas e que a resposta dos profissionais das escolas foi ineficaz para impedir as agressões. Além disso, 39% dos que sofreram agressões relataram que nenhum membro da família conversou com membros da equipe de profissionais da escola quando o estudante sofreu agressão ou violência.
Em Sorocaba, pesquisa feita na parada LGBT local por Garcia, Leite e Mendonça (2015) mostra que 32,7 % dos entrevistados disseram ter sofrido preconceito no ambiente escolar. Para Carrara (2005), os espaços sociais onde há mais discriminação são justamente aqueles onde as homossexualidades são mais assumidas (escola/faculdade, família, amigos/ vizinhos), o que explicaria mais relatos de discriminação nestes campos. Para Venturi e Bokany (2011), a presença de maior homofobia nestes espaços refere-se ao fato de serem locais onde as pessoas passam mais tempo, o que aumentaria a possibilidade de atos discriminatórios.
Portanto, fica nítida a necessidade de programas protetivos que atuem nos ambientes escolares, a fim de se minimizar a violência e exclusão voltadas às pessoas de sexualidade diferente da heterossexual e com expressão de gênero diferente da cisgeneridade. Deve-se investir na permanência na escola com políticas próprias para melhorar a qualidade do ambiente para todos, entendendo que nem sempre o jovem LGBT terá a proteção emocional/física em casa. A escola tem a opção (e eticamente, o dever) de ser esse ambiente mais saudável e minimamente acolhedor para as diversas formas de ser.
HOMO/TRANSFOBIA EM SOROCABA E REGIÃO E AS REAÇÕES DO MOVIMENTO LGBT
A cidade de Sorocaba, embora seja sede de uma região metropolitana e esteja localizada próxima a São Paulo, se configura como um local de intensa propagação de discursos e práticas homo/transfóbicas. (GARCIA et al., 2015).
Em esposta a essas formas de opressão, o movimento LGBT local vem se articulando de diversas formas, entre elas por meio da organização das paradas do orgulho LGBT. Sucedendo as carretas ocorridas nos anos de 2004 e 2005, a primeira Parada, ocorrida em 2006, mostra o caráter de reivindicação de direitos de forma atrelada aos aspectos festivos, já comuns em Paradas pelo Brasil afora, o que foi ressaltado nas reportagens da mídia sobre o evento. Nesse mesmo ano se dá o primeiro embate do movimento com a bancada evangélica na Câmara dos Vereadores, com seus quatro vereadores se recusando a aderir ao voto de congratulações à Parada, proposto pelo então vereador Arnô Pereira (PT). O aumento do número de frequentadores na Parada aumenta substancialmente do ano de 2006 (estimados em 300) para o de 2007 (estimados em 5000), o que em parte pode ser explicado pela mudança no calendário, uma vez que a parada de Sorocaba migra do início de junho para o final de agosto, fugindo da concorrência com a parada de São Paulo. Com o tema “Na luta contra a homofobia, racismo, discriminação, preconceito e toda forma de violência”, a Parada local de 2007 dialoga com os temas de outras Paradas, em especial a do mesmo ano de São Paulo, que busca relacionar a homofobia com outras formas de preconceito (com o tema “Por um mundo sem Racismo, Machismo e Homofobia”). Embora a organização tenha continuado nas mãos do movimento LGBT, a participação do poder público se torna mais evidente a partir desse ano, com a utilização de um trio elétrico cedido pela Prefeitura e com a distribuição de preservativos por parte do Programa de DST/AIDS local.
Se nas duas primeiras edições da parada local (e nas duas edições da carreta que lhe antecederam) o caráter de denúncia da homofobia tinha dado o tom do evento, a partir do ano de 2008, porém, podemos identificar um refluxo em relação ao caráter reivindicatório nas Paradas LGBT locais. Os temas de 2008 (“Expressão com responsabilidade”), de 2009 (“Em cada diferença uma igualdade”) e de 2010 (“Você atrai o que você transmite”), evidenciam as tentativas por parte da organização de que a Parada assumisse um caráter “respeitável”, menos “escandaloso”, o que coincide com a mudança no perfil dos organizadores: com o refluxo do movimento LGBT local, assumem a organização pessoas sem ligação histórica com o movimento local de reivindicação de direitos, em especial dois organizadores presentes nestes anos e que se apresentam como DJ e como “colunista social” respectivamente. Para esse último,
a idéia do evento é politizar as pessoas sobre o direito que cada cidadão tem de viver em paz, desde que se siga os limites permitidos (...) as paradas têm perdido credibilidade porque vêm sendo usadas como expressão sexual e não política (...) ninguém é obrigado a aceitar os homossexuais, e eles [os homossexuais] também precisam entender que não são aceitos por determinados grupos - cada um aceita o que quer, lembrando sempre que há um limite para tudo e para todos. (MENDES, 2008).
O primeiro dos organizadores citados assim se refere ao tema e ao caráter da Parada em 2010: “Quando alguém deseja respeito, deve dá-lo primeiro. É isso que heterossexuais e homossexuais devem fazer antes de mais nada” (JCS, 2010). Observa-se claramente nos temas e nas entrevistas concedidas à mídia local por parte desses organizadores uma guinada da discursividade dos organizadores da parada local em direção a uma lógica assimilacionista, presumindo-se a necessidade das pessoas LGBT “serem discretas” e não chocarem as heterossexuais, para assim obterem maior aceitação. Há até mesmo uma aceitação implícita do direito à homofobia em uma frase como “ninguém é obrigado a aceitar os homossexuais”, o que denota um afastamento em relação à lógica de enfrentamento da homofobia presente nas primeiras edições das paradas e da carreta. Não é possível determinar com precisão se haveria alguma relação na adoção desse discurso assimilacionista dos organizadores com a necessidade de apoio por parte do poder público municipal, mas é possível supor que a ocupação de uma praça localizada em um bairro de alto padrão na cidade como ponto de dispersão da parada se relacione com esse discurso.
O crescimento do número de participantes, que chegam à casa de alguns milhares, a presença cada vez maior de jovens e o caráter festivo e de encontro proporcionado pelas paradas certamente as tornam momentos privilegiados para trocas homoafetivas impedidas de se manifestarem em outros locais. A reação por parte da mídia local a esse “desacobertamento” da homoafetividade se faz sentir nesse mesmo momento:
“Entre transformistas, homossexuais com pouca roupa ou mais comportados, havia casais héteros, crianças e até pessoas de mais idade que surgiam com netos. Beijos homossexuais nas calçadas chamavam a atenção das famílias que trafegavam em seus veículos na avenida Antônio Carlos Cômitre. Algumas famílias riam, outras evitavam olhar ou ficavam sérias. Um travesti vestido com microssaia e de nádegas expostas, provavelmente vestindo um “fio dental” chamou a atenção naquela mesma avenida e provocou abordagens de outros homossexuais.” (NOGUEIRA, 2010)
O movimento LGBT local mais engajado resiste nesse momento a participar do processo de organização das Paradas, por discordar desse discurso assimilacionista e trabalha em outras perspectivas. Assim, entre 2009 e 2011, o Coletivo Mandala (ligado a alunos do campus Sorocaba da UFSCar) organizou três edições da “Semana do Orgulho LGBT”, as duas últimas delas na mesma semana da parada local, como forma de promover um debate mais crítico e aprofundado sobre as temáticas LGBT.
Por outro lado, a reação conservadora às conquistas LGBT, liderada na cidade pelos segmentos evangélicos, se faz bastante presente na cidade. Um debate de grande repercussão se dá em 2010 na Câmara de Vereadores da cidade, quando da apresentação de uma moção de apoio ao tema da 14ª Parada LGBT de São Paulo (“Vote contra a homofobia e defenda a cidadania”). Além de várias falas acerca da suposta anormalidade da homossexualidade, uma vereadora da bancada evangélica diz que aquele tipo de apoio iria “colocar mais orgias nas ruas”, o que repercute nacionalmente e gera manifestações de repúdio por parte de vários grupos LBGT em todo o país. No ano seguinte, nova polêmica se dá em relação à discussão de apoio da Câmara ao tema da 15ª Parada LGBT de São Paulo, com a bancada evangélica se opondo.
A partir de 2012, com a criação da Apoglbt-Sor (Associação da Parada do Orgulho Gay, Lésbica, Bissexuais e Transgêneros de Sorocaba) uma nova inflexão - no sentido de recuperar um discurso mais combativo – pôde ser observada nas Paradas locais. Os temas desde então têm refletido essa postura mais reivindicativas e menos assimilacionista: Dê um basta ao Preconceito e à Homofobia (2012); Justiça e igualdade a serviço da diversidade (2013), Até quando seu preconceito vai tirar meus direitos? (2014), Orgulho de quê? (2015); Mais ativismo trans (2016); Jovens LGBT resistem (2017); Nosso voto é nossa luta (2018). Cabe lembrar que o oferecimento por parte da organização de uma tenda de assessoria jurídica para fornecer orientações sobre união homoafetiva, adoção e homofobia aponta na mesma direção. À exemplo do que pôde ser observado em outros locais, a Parada passa a ter cobertura progressivamente menor por parte da mídia, entre outros motivos por se tornar um evento mais corriqueiro, e o número de participantes passa por uma diminuição sensível, fatores que apontam para um progressivo “esgotamento” das paradas como instrumento de luta política.
Em 2018, ocorre a primeira marcha pela Visibilidade Trans de Sorocaba, organizada pela ATS (Associação Transgêneros de Sorocaba), com apoio da Prefeitura de Sorocaba, por meio da Secretaria de Igualdade e Assistência Social (SIAS). O tema da marcha foi “Viver, resistir, persistir e transformar” e reuniu em média 1000 pessoas (SCINOCCA, 2018), na semana do dia 29 de janeiro, que é o dia nacional da visibilidade trans.
Na mesma época, em 2019, aconteceu a segunda Marcha pela Visibilidade Trans de Sorocaba, com o tema “Acolher é resistir”, já com a participação do Conselho LGBT de Sorocaba, que foi criado em agosto de 2018, passando a compor mais uma representatividade popular LGBT na cidade.
HOMO/TRANSFOBIA NAS ESCOLAS DE SOROCABA E REGIÃO E RESISTÊNCIAS
As escolas de Sorocaba, infelizmente, reproduzem a falta de aceitação do respeito à diversidade (GARCIA et al 2015). Como veremos mais adiante esse processo é relacionado à presença de leis municipais que implementam normas que vão no sentido contrário das medidas protetivas, sendo em si, medidas de dano e injúria às pessoas homossexuais e trans, além de reproduzirem erros conceituais, deixando claro o desconhecimento quanto a assuntos relacionados à identidade de gênero e sexualidade dos envolvidos na elaboração e aprovação das mesmas.
Um exemplo disso é a lei municipal nº 11.185 (SOROCABA, 2015), de 28 de setembro de 2015, que proíbe que o uso do banheiro ou vestiários nas escolas seja de acordo com o gênero com o qual a pessoa se identifica. Essa lei se aplica às escolas que atendem ao ensino fundamental, sejam elas públicas ou privadas. A aprovação desta lei municipal se deu no mesmo ano em que o Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoções dos Direitos de Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, aprovou uma Resolução versando o contrário, ou seja, garantindo o direito da pessoa frequentar o banheiro referente à sua identidade de gênero.
Aprovada por 15 votos a favor e 03 contrários, a referida lei é de autoria do vereador Irineu Toleto (PRB). Pastor da Igreja Universal do Reino de Deus, o vereador disse que o objetivo da Lei era o de proteger “o psicológico das crianças, já que o ensino fundamental abrange alunos com idade entre 7 a 14 anos”. (O ESTADO, 2015)
No mesmo discurso de que não considerar a Identidade da pessoa para o uso do banheiro é considerado uma “proteção”, o “não-falar” sobre gênero nas escolas também é colocado como uma proteção, ao contrário do que apontam os estudos que afirmam a necessidade de se falar sobre gênero justamente para possibilitar a proteção para as crianças e adolescente que sejam ou virão a ser LGBTs e sofrem preconceitos diversos em função disso. Instituir uma lei que negue acesso ao banheiro segundo o gênero com que a pessoa se identifica acaba funcionando como uma educação subliminar contrária ao ensino do respeito, uma vez que é passada a mensagem de que ser trans é algo errado e que deve ser ignorado, corrigido ou punido.
Cabe ressaltar que a expressão “identidade de gênero” foi definida de forma equivocada na referida lei, que afirma que “considera-se identidade de gênero o conceito pessoal, individual, psíquico e subjetivo, divergente do sexo biológico, adotado pela pessoa”. Ou seja, presume-se que só “teria” identidade de gênero quem fosse trans e não as pessoas cis. Essa falta de entendimento conceitual chegou aos olhos da Defensoria Pública de São Paulo, que enviou ao prefeito de Sorocaba um ofício, solicitando o veto à lei sancionada. A Defensora Pública Vanessa Alves Vieira, coordenadora do Núcleo de Combate à Discriminação, Racismo e Preconceito, aponta no ofício que “(...) todas as pessoas possuem Identidade de Gênero, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído ao nascimento e inclui o senso pessoal do corpo e outras expressões, como vestimentas, modo de falar e maneirismos.” (G1, 2015)
A polêmica acerca da referida lei se iniciou ainda durante a tramitação do projeto, que foi acusado de ser transfóbico e excludente. Houve manifestações populares na Câmara dos Vereadores em Sorocaba, com os movimentos LGBT se posicionando contra tal lei. O prefeito da cidade vetou a lei recém-aprovada em 29/08/2015, alegando que os órgãos da Prefeitura envolvidos com a análise do projeto foram procurados por segmentos sociais que pediram o veto do texto e que a Secretaria da Educação local se manifestou sobre o assunto, lembrando que a Constituição prevê que o ensino deve ter como fundamento a igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola. No entanto, esses esforços não foram suficientes e o veto foi derrubado em nova votação na Câmara dos vereadores em 22/09/2015, por 16 x 0. Os 3 vereadores que seriam a favor de manter o veto (do PT e PV) não votaram e não se manifestaram a respeito.
Há ainda a associação feita entre o acesso ao banheiro a pessoas trans e possíveis “abusos” decorrentes disso, no sentido de homens se “aproveitarem” da situação para assediar mulheres, como podemos ver no discurso do autor da referida lei, vereador Irineu Toledo:
“O ensino fundamental, que está a cargo do município, vai do 1º ao 9º ano, com crianças de 6 anos a adolescentes de 14 anos. Isso significa que uma menina de 6, 7 ou 8 anos, de acordo com a portaria do governo federal, será obrigada a conviver no banheiro feminino com um adolescente de 14 anos, bastando que ele, mesmo tendo um aparelho reprodutor masculino, se considere mulher. Como cerca de um em cada cinco estudantes brasileiros, segundo dados oficiais, estão atrasados na escola e muitos só concluem o ensino fundamental aos 16 anos, a situação se torna ainda mais grave: vamos ter verdadeiros rapagões usando o banheiro das meninas”. (G1, 2015)
Observa-se que esse discurso inverte radicalmente o que tem sido denunciado por pesquisas e pela militância LGBT, acerca do frequente abuso direcionado às pessoas trans (em especial mulheres) quando são obrigadas a usarem o banheiro de acordo com o gênero que lhes foi designado ao nascerem. (PATEL, 2017, SCHMIDT, 2013)
A lei em vigor, ainda, conflita com o conteúdo da Resolução 12 de 2015 do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoções dos Direitos de Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais, que diz que os banheiros, vestiários e demais espaços segregados devem ser escolhidos conforme a identidade de gênero do aluno.
“Caso haja distinções quanto ao uso de uniformes, deve haver a possibilidade do uso conforme a identidade de gênero. A garantia do reconhecimento da identidade de gênero deve ser estendida a estudantes adolescentes, sem que seja obrigatória autorização do responsável. Fica ainda reconhecido pelas redes de ensino o nome social no tratamento oral, sendo o nome civil usado na emissão de documento oficias.” (BRASIL, 2015)
Ao incluir esses itens, a resolução leva em consideração, entre outros, o Artigo 5º da Constituição Federal de 1988, que diz que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.” (BRASIL, 1988)
Diante da inconstitucionalidade desta lei, em abril de 2017, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal, também se manifestou. Segundo notícia do Ministério Público Federal, Deborah Duprat (procuradora federal dos Direitos do Cidadão) encaminhou ao Supremo Tribunal Federal uma representação com o pedido de inconstitucionalidade desta lei que proíbe o uso de banheiro em função da identidade de gênero, com os seguintes argumentos:
“Além de violar diversos artigos da Constituição, a lei paulista também afronta princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e da Convenção Americana de Direitos Humanos, além de ferir diretrizes da Convenção Interamericana contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância” (MPF, 2017)
Para além do aspecto legal propriamente dito, cabe ressaltar que a negação do acesso ao banheiro segundo o gênero com o qual a pessoa se identifica impossibilita, na verdade, o uso de qualquer banheiro, uma vez que usá-lo pode levar a constrangimentos e discriminações, deixando as pessoas trans em uma situação que seria indigna e danosa à saúde de qualquer pessoa.
As pessoas que não se identificam com o gênero designado ao nascimento e são submetidas a esse tipo de lei, acabam precisando segurar a vontade de usar o banheiro além do seu limite natural, ou procurar outra solução, que pode incluir um terceiro banheiro, quando por sorte houver, como o de pessoas deficientes ou familiares. Além dos possíveis danos físicos que disto advém, como por exemplo o risco de uma mulher trans sofrer violências e abusos ao frequentar o banheiro masculino da escola, como determina a lei municipal de Sorocaba e os riscos de saúde, como os de retenção urinária, pela tentativa de contenção dos impulsos fisiológicos, gerando possíveis danos como retenção urinária crônica, constipação intestinal, hidratação ou alimentação insuficientes. (ADATTO et al, 1979, SCHMIDT, 2013)
Cabe ressaltar também que a lei sorocabana descrita conflita com a resolução SE 45, de 19 de agosto de 2014 de São Paulo que dispõe sobre o tratamento nominal de discentes transexuais e travestis, no âmbito da Secretaria da Educação, permitindo que alunos adotem o “nome social” nas escolas. (SÃO PAULO, 2014). Outro conflito evidente é com o Decreto n. 24.392, promulgado pelo prefeito de Sorocaba em 11 de dezembro de 2018, que dispõe sobre o direito ao uso e tratamento pelo nome social de travestis e transexuais nos registros municipais de servidores públicos, o que inclui portanto, professores e demais funcionários de escolas municipais (SOROCABA, 2018). Há uma óbvia contradição entre a exigência do uso no nome social para alunos/as trans e a proibição de escolha do banheiro de acordo com o gênero de identificação.
Necessitamos, urgentemente, criar grupos protetivos e educativos nas escolas, com enfoque na vivência LGBT. Isso não significa a criação de um grupo especial ou privilegiado, mas, sim, a garantia de condições mínimas para aproximar um pouco mais a dignidade e qualidade de vida de uma pessoa LGBT daquelas que são cis e heterossexuais.
O PLANO MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DE SOROCABA E AS QUESTÕES TRANS
O Plano Nacional de Educação (PNE) define as metas, estratégias e diretrizes para educação brasileira para os próximos dez anos (2014-2024) e se constitui como o documento que fundamenta a elaboração dos planos de educação de cada município. Sancionado em 2014 pela Presidenta da Republica, Dilma Rousseff, tem como metas gerais: a) a garantia do direito à educação básica de qualidade e a promoção do acesso à educação; b) metas específicas sobre valorização da diversidade e redução das desigualdades, para que a equidade possa ser atingida; c) metas em relação à valorização dos profissionais da educação; d) metas para ensino superior.
Os Planos Municipais de Educação (PME) devem articular suas metas locais às metas nacionais. Porém, o crescimento dos movimentos conservadores em torno do eixo “Escola Sem Partido” e dos críticos à suposta “Ideologia de Gênero” ganharam força no mesmo período, influindo em todo o país na formulação dos planos estaduais e municipais.
As propostas quanto à revisão do formato heteronormativo compulsório do discurso tem sido chamada por grupos conservadores de afiliadas à “ideologia de gênero”. De acordo com Souza (2014), a campanha contra ao que denominam “ideologia de gênero” tem como objetivo criar o “pânico moral” contra o gênero e o feminismo, ao evocar o tema da sexualidade, tão pautado por setores conservadores da sociedade.
Em junho de 2015, o município de Sorocaba iniciou um intenso debate para a elaboração do seu Plano Municipal de Educação 2015-2025, conforme estabelecia o Plano Nacional de Educação 2014-2024 (Lei n. 13.005/2014). Apesar da defasagem dos assuntos de sexualidade e gênero ensinado nas escolas e dos danos causados à população trans pelas falsas crenças reforçadas e discriminações diversas, o PME de Sorocaba, no lugar de prover medidas protetivas e reforço à educação, favoreceu o contrário, após os vereadores da cidade decidirem retirar todas as menções aos termos “gênero”, “diversidade sexual” e “LGBT” do documento, após forte pressão dos parlamentares por parte de lideranças religiosas. O secretário interino da Educação no período, Flaviano Agostinho de Lima, recebeu uma nota da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e referiu que “é uma nota bastante densa nas suas razões; a sociedade tem que ter tempo para fazer um amadurecimento” (SANCHES, 2015). Tal discurso reforça de forma evidente o quanto se associa a discussão sobre assuntos relacionados a sexualidade e gênero nas escolas como algo ameaçador ou perigoso.
Concomitantemente, houve resistências vindas de movimentos sociais da cidade, incluindo grupos de pessoas LGBT, de familiares de LGBT, de feministas e de gênero, que entendem como importante a educação sobre a diversidade no ambiente escolar. O Fórum Popular de Educação local também defendeu a inclusão dos termos retirados pelos vereadores. O PME, porém, acabou sendo aprovado pelos vereadores sem os referidos termos, com apenas 03 votos contrários, todos da bancada do PT.
Ao final da votação, os religiosos, comemorando gritaram: “A família venceu!”, frase esta repetida nos discursos finais de alguns vereadores, que no final da sessão rezaram o “Pai-Nosso” (MENDONÇA, 2017). A Igreja Católica teve um importante papel na retirada dos termos citados do PME. O Bispo local na época, Dom Eduardo Benes de Sales declarou para a imprensa que “na igreja católica não há discussão sobre esse assunto; há um consenso onde não se pode ferir o ‘ideal de família’ de matrimônio como está na Constituição e isso não aceitamos” (SANCHES, 2015, grifo nosso).
Em postagem na rede social Facebook, porém, o mesmo bispo incita os fiéis a se contraporem ao PME por meio de uma terminologia que associa os movimentos de defesa das minorias sexuais ao mal:
Aos Católicos! URGENTE, URGENTÍSSIMO!!!
Insatisfeito com a não inclusão da ideologia de gênero no Plano Nacional de Educação (PNE), (isto é, a ideologia demoníaca de que não existe “menino” ou “menina”, “masculino” e “feminino”, pois você pode escolher ser quem deseja), o governo federal criou uma estratégia ardilosa para implementá-la em nosso sistema educacional por meio dos planos municipais e estaduais de educação. (Bispo Dom Eduardo Benes de Sales, postagem de Facebook, 25/06/2015, grifos nossos).
Há, implícito aqui, a propagação dos dogmas religiosos em escolas que são laicas e deveriam servir à educação geral para a formação de cidadãos mais conscientes e livres para se expressarem de acordo com seus desejos no campo de sua sexualidade e gênero.
Além de ser chamado de “ideológica” a proposta de se abordar sobre todas as manifestações de sexualidade e gênero existentes, essa lógica têm sido absorvida como pauta por partidos políticos específicos, por meio da associação com o movimento “Escola sem partido”, gerando o movimento por uma escola que mantenha a reprodução dos valores heteronormativos, sem atualização ou adaptação dos seus discursos – que têm se mostrado adoecedores, excludentes e não-compatíveis com o respeito às diversidades.
Ao censurar professores para não falarem sobre gênero e sexualidade, há um desrespeito quanto à autonomia dos mesmos, que soma-se às demais modalidades de desvalorização desses profissionais, já existentes. Tal momento coloca-se assim frontalmente contrário aos próprios princípio do PNE, de “valorização dos profissionais da educação”, ao retirar sua autonomia, e de “valorização da diversidade e redução das desigualdades”, ao impedir as discussões sobre gênero e sexualidades não-hegemônicas.
Como vimos anteriormente, na discussão sobre os efeitos da homo e transfobia no campo da saúde mental, ao se colocar de forma alarmante, os assuntos que poderiam e deveriam ser tratados com naturalidade, a pessoa que se percebe com orientação e/ou expressão de gênero diferentes do considerado “normal” pela escola pode se ver em uma situação de negação, gerando interiorização do estigma (GOFFMAN, 2014) e isolamento, culminando em outras possíveis questões mais sérias, com consequências em sua saúde mental e física. Só o fato de palestras e falas sobre o assunto terem tamanho alarde em torno de si e, em geral, requererem supervisão e limites para serem debatidas, já é per se um reforçador de estigmas em torno do tema da diversidade e consequentemente em torno das pessoas LGBT. Como mostra Mendonça (2017, p. 16), refletindo sobre a situação de Sorocaba, em específico:
Não que tenha se tornado proibido em Sorocaba, como em outras cidades brasileiras, até esta data, trabalhar com questões de gênero e diversidade sexual nas escolas, mas todo este debate e embate em torno dos temas gênero e diversidade sexual no PME tem tido efeitos em curto e médio prazo que são preocupantes. Muitas escolas públicas de Sorocaba têm evitado que estudos, palestras e aulas que abordem os temas “gênero” e “sexualidade” aconteçam, ou, se são tratados, apenas acontecem com acompanhamento da coordenação ou direção da escola com a justificativa de que os/as alunos/as são de família religiosas e podem não aceitar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Entendemos que a Educação pode ser uma ferramenta poderosa de transformação, pois consegue atuar na prevenção de violências e de adoecimentos mentais, ao oferecer entendimento sobre assuntos como sexualidade e gênero. Portanto o investimento forte em uma educação completa e sem tabus acerca da sexualidade e gênero seria uma real ação preventiva contra a homo/transfobia.
Garantir os direitos básicos às pessoas trans, como o uso do nome social, uso dos banheiros e segurança para permanecer na escola já seria uma educação feita através da prática. E, complementarmente a isso, faz-se necessário haver uma educação contínua de forma ativa, que inclua ações protetivas contra o bullying ou outras discriminações em torno da identidade sexual e de gênero.
É extremamente importante que a educação aconteça de fato na escola e não dependa tanto de espaços complementares, como plataformas eletrônicas e centros culturais, que no momento - e por enquanto - têm sido lugares um pouco mais livres de mordaças moralistas. Esses lugares de educação extra-escolar são de extrema importância e têm funcionado como um “respiro”, neste momento de censuras e dogmatismos disseminados em espaços que deveriam ser laicos por lei. Não é possível, no entanto, contar apenas com isso, fazendo-se urgente a conscientização das escolas e a elaboração de políticas públicas para ações práticas de cidadania e respeito.
Estamos em um momento político nacional de retrocessos em relação a conquistas de direitos LGBT, com passos para trás quanto a políticas e debates acerca do tema. Este movimento está na contramão do entendimento mundial a respeito da identidade de gênero e sexual, chamando a atenção de países e órgãos, como a UNESCO e a ONU, que sugerem ações para discussão sobre sexualidade e gênero nas escolas, visando principalmente a diminuição da violência. (ONUBR, 2016)
Em sincronia com este cenário brasileiro, Sorocaba segue com leis e medidas que violam direitos fundamentais dentro das escolas, conforme pudemos observar neste artigo, demonstrando ora um desconhecimento sobre o assunto de identidade de gênero e sexualidade de alguns segmentos, ora uma manutenção do conservadorismo acima de qualquer direito à qualidade de vida e saúde da população em ambiente escolar.
Porém, independente das movimentações políticas conservadoras, alunos e funcionários das escolas de Sorocaba merecem ter dignidade para viverem suas diferentes formas de sentir e expressar afeto, independente da religião dominante e as suas influências. Pois “Sorocaba ser de Jesus Cristo” não deveria invalidar que ela seja de todos os cidadãos5.
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Notas