Resumo: Dialogando com os trabalhos de teóricos críticos contemporâneos como Axel Honneth, Nancy Fraser e Rainer Forst e tomando por base uma série de atividades de pesquisa conduzidas com jovens estudantes brasileiros, argumentamos que a discussão sobre a paz positiva, entendida como justiça social, precisa ir além da dimensão material e redistributiva originalmente pensada por Johan Galtung. Notando que várias formas de violência indireta se expressam na esfera cultural, não refletindo preocupações redistributivas stricto sensu, defendemos um refinamento teórico do nexo entre paz e justiça social para incorporar as questões de reconhecimento.
Palavras-chave: Paz positiva, Violência cultural, Justiça social;, Reconhecimento, Teoria crítica.
Resumen: Dialogando con los trabajos de teóricos críticos contemporáneos como Axel Honneth, Nancy Fraser y Rainer Forst y a partir de una serie de actividades de investigación realizadas con jóvenes estudiantes brasileños, sostenemos que la discusión sobre la paz positiva, entendida como justicia social, debe ir más allá de la dimensión material y redistributiva originalmente pensada por Johan Galtung. Observando que varias formas de violencia indirecta se expresan en la esfera cultural, sin reflejar preocupaciones redistributivas en sentido estricto, abogamos por un refinamiento teórico del nexo entre paz y justicia social para incorporar cuestiones de reconocimiento.
Palabras clave: Paz positiva, Violencia cultural, Justicia social, reconfirmación, teoría crítica.
Abstract: Engaging with the works of contemporary critical theorists such as Axel Honneth, Nancy Fraser and Rainer Forst and based on a series of research activities conducted with young Brazilian students, we argue that the discussion around positive peace, understood as social justice, needs to go beyond of the material and redistributive dimension originally thought by Johan Galtung. Noting that various forms of indirect violence are expressed in the cultural sphere, not reflecting redistributive concerns stricto sensu, we argue for a theoretical refinement of the nexus between peace and social justice to incorporate issues of recognition.
Keywords: Positive peace, Cultural violence, Social justice, reconfirmation, critical theory.
Dossier
Paz como justiça social: reflexões a partir do diálogo com estudantes sobre paz, violência e poder
La paz como justicia social: reflexiones desde el diálogo con estudiantes sobre paz, violencia y poder
Peace as social justice: reflections based on dialogue with students about peace, violence and power
Recepción: 01 Octubre 2024
Aprobación: 03 Febrero 2025
Quando Johan Galtung (1969) propôs o conceito de violência estrutural – uma forma de violência indireta resultante da distribuição desigual de recursos e de poder entre grupos sociais e nações –, a pesquisa da paz, especialmente da paz positiva, convergiu para as preocupações com a justiça social. Nessa agenda, porém, a justiça social foi geralmente tratada como uma ideia auto evidente, como um conceito articulado com a noção de distribuição igualitária de recursos e de poder a ser alcançada por medidas de desenvolvimento (Galtung, 1969, 1976), mas que não demanda uma discussão teórica mais aprofundada.
Este artigo propõe uma atualização desse debate, indo além do seu foco redistributivo original. Dialogando com a mais recente geração de teóricos vinculados ao pensamento social-crítico da Escola de Frankfurt (Honneth, 1995; Fraser e Honneth, 2003; Forst, 2018), procura-se refinar a discussão sobre o nexo entre paz positiva e justiça social pela introdução das questões de reconhecimento. Ainda que se reconheça a relevância da redistribuição no tratamento da violência estrutural, outras formas de violência indireta, sobretudo aquelas que se expressam na esfera simbólica da existência humana – relacionadas, por exemplo, com as questões de status, identidade, afetos, respeito, dignidade, empoderamento, etc. –, não refletem preocupações redistributivas stricto sensu, mas remetem a uma dimensão da justiça social que se resolve no campo das lutas por reconhecimento. Assim, argumentamos que há duas balizas do debate sobre justiça social na teoria crítica contemporânea – redistribuição e reconhecimento – que podem contribuir para a revitalização do quadro conceitual da paz positiva a partir de uma perspectiva crítico-emancipatória mais ampliada.
Essa discussão é especialmente relevante no contexto atual brasileiro, dadas as múltiplas formas de violência presentes, expostas em diversos relatórios e bases de dados (Institute for Economics and Peace, 2024; UNICEF-FBSP, 2024; Cerqueira e Bueno, 2024). Perante esse quadro, alguns autores têm defendido a necessidade de reorientar o debate sobre a violência a partir do conceito de paz e por uma discussão aprofundada sobre o que a sociedade brasileira entende por paz (Maschietto e Ferreira, 2024; Oliveira et.al., no prelo). Embora se observem políticas públicas que se referem ao termo paz ou defendem uma abordagem mais abrangente para lidar com a violência (Brasil 2007; Brasil, 2023), o problema tem sido geralmente tratado dentro da moldura restrita da segurança, com suas correspondentes respostas de imposição da lei e da ordem e militarização (Ferreira e Maschietto, 2024; Ferreira e Gonçalves, 2023), o que contribui para exacerbar, em vez de amenizar, o quadro de violências que se pretende resolver.
Para além desse quadro, a discussão aqui proposta também está amparada pelos resultados parciais de uma pesquisa conjunta em andamento que procura identificar as percepções de jovens estudantes brasileiros sobre violência, paz e poder. A população jovem tem sido altamente vitimada pela violência no país (UNICEF-FBSP, 2024; Cerqueira e Bueno, 2024; FBSP, 2022), o que reforça a importância de compreender como essa população percebe as expressões e dinâmicas da violência e suas articulações com as noções de paz e poder. Esse estudo empírico procura dar voz para que eles próprios, a partir de suas vivências concretas, expressem suas opiniões, experiências e expectativas sobre esses temas caros à juventude. O lastro dado pelo contexto vivido pelos participantes e pelas suas habilidades reflexivas é o ponto de referência que nos permite evitar uma discussão verticalizada, abstrata, idealizada e descolada da realidade concreta estudada.
Os dados utilizados foram obtidos a partir de grupos focais e atividades escritas realizadas com alunos do ensino médio e de licenciatura nos municípios de Ouro Preto (MG), João Pessoa e Baía da Traição (PB) (entre agosto de 2019 e março de 2020) e no Rio de Janeiro (RJ) (entre setembro de 2023 e março de 2024). Esses municípios são diferentes tanto em termos de localização, tamanho, perfil demográfico e econômico, bem como níveis de violência e presença de crime organizado, o que traz uma diversidade importante para a amostra. No total, foram conduzidos 13 grupos focais mistos (entre 7 e 25 participantes cada) durante cerca de uma hora em diferentes turmas de oito escolas públicas e duas universidades, totalizando 207 alunos (113 do sexo feminino e 94 do sexo masculino), com idades entre 16 e 25 anos. As discussões foram semi-estruturadas, centradas nos três temas, visando explorar como as(os) estudantes definiam e vivenciavam a paz, a violência e o poder/empoderamento no seu cotidiano, e como percebiam os obstáculos e as possíveis soluções para a redução da violência no país.
Os grupos focais foram precedidos de um exercício escrito individual, em que os(as) estudantes escreveram a primeira ideia que lhes veio à cabeça ao pensar em paz, violência e poder. Ao final, também tiveram a oportunidade de escrever anonimamente sobre um dos temas abordados, o que abriu espaço para compartilhamento de experiências pessoais, muitas vezes cruas e difíceis, sobre a vida desses e dessas estudantes.
Tabela 1: Perfil dos(as) estudantes
O artigo está organizado em quatro seções. A primeira procura encontrar, na teoria crítica contemporânea, especialmente no debate sobre redistribuição e reconhecimento, indicações que revitalizem o debate crítico sobre o nexo entre paz positiva e justiça social. A segunda faz um breve panorama sobre o quadro de violências no Brasil. A terceira apresenta os resultados parciais da pesquisa sobre as percepções sobre violência, paz e poder entre jovens brasileiros, procurando identificar até que ponto elas sugerem preocupações redistributivas e de reconhecimento. Uma seção conclusiva faz uma síntese dos aspectos examinados no artigo, procurando destacar as implicações desse estudo para a agenda positiva dos Estudos para a Paz.
Um olhar sobre os desenvolvimentos conceituais dos Estudos para a Paz demonstra que essa área de pesquisa só incorporou uma preocupação emancipatória mais radical quando o conceito de paz foi conectado ao de justiça social. Desafiado no final dos anos 1960 por jovens pesquisadores marxistas, que criticavam o utilitarismo e o viés idealista que guiava a pesquisa da paz até aquele momento, Galtung (1969) introduziu em suas considerações teóricas o conceito de violência estrutural, entendido como um tipo de violência indireta, embutido nas estruturas sociais injustas, cuja origem estava na distribuição desigual de recursos e de poder entre grupos sociais e nações. Assim, Galtung mantinha uma concepção bidimensional da paz, fundada numa epistemologia negativa e numa epistemologia positiva (Galtung, 1964), porém assim reformulada: a superação da violência pessoal e direta, incluindo a guerra, continuava a ser definida como paz negativa, enquanto a superação da violência estrutural, através de medidas redistributivas de justiça social, passava a definir a paz positiva (Galtung, 1969).
Ao estabelecer esse nexo entre paz positiva e justiça social, Galtung (1969, 1976) tomou esse último termo como uma ideia auto evidente, sugerida através de uma breve indicação redistributiva e de uma conexão com medidas de desenvolvimento econômico, sem que uma discussão teórica mais aprofundada sobre justiça social fosse desenvolvida. A expansão do quadro conceitual da paz positiva na década de 1990, através da reflexão sobre violência cultural, distanciou-se da ênfase na justiça social. Galtung definiu o conceito de violência cultural "como qualquer aspecto de uma cultura que possa ser usado para legitimar a violência em sua forma direta ou estrutural" (1990: 291). Isto deu a esse conceito uma característica essencialmente funcional: foi sua função simbólica na legitimação das demais formas de violência que se colocou no núcleo do problema da violência cultural.
Assim, a violência cultural emergiu na agenda dos Estudos para a Paz como uma categoria estática, uma condição permanente, “uma invariância”, um substrato de onde os dois outros tipos de violência podiam “tirar os seus nutrientes” (Galtung, 1990: 294). Dessa perspectiva, a violência cultural não foi problematizada por Galtung como um processo dinâmico, mas como um pano de fundo relativamente perene, como uma instância legitimadora “de longa duração”, sedimentada, segundo Galtung, pela lentidão com que os alicerces básicos da cultura podem ser transformados (1990: 294). De certa forma, essa concepção estática de violência cultural surgiu como uma premissa, como um dado da esfera simbólica da existência humana, sem que suas características relacionais, intersubjetivas, tenham sido devidamente consideradas.
Destarte, notam-se algumas limitações na agenda dos Estudos para a Paz, do ponto de vista da análise social e teórica, sobre o modo como a paz positiva se conecta com uma teoria crítica da justiça social. Diante dessa lacuna, os esforços de problematização das demandas sociais de redistribuição e reconhecimento, que alimentam uma das linhas centrais de reflexão sobre justiça social na perspectiva da teoria crítica contemporânea, podem oferecer balizas importantes para que as dimensões estrutural e cultural da paz sejam integradas a uma teoria crítica da justiça social.
O diálogo entre Axel Honneth e Nancy Fraser (2003) representa, conforme Rainer Forst (2018), a mais abrangente e sistematizada teoria crítica da justiça fundada num princípio normativo regulador e justificador imanente às próprias lutas sociais. Para Honneth e Fraser, esse princípio regulador deve ser identificado nas demandas de redistribuição e nas demandas de reconhecimento que movem as lutas emancipatórias da sociedade. Apesar desse consenso, Fraser e Honneth divergem em pontos relevantes, em especial em relação ao ponto de referência normativo de suas teorias. Fraser olha a redistribuição e o reconhecimento de uma perspectiva dualista, como duas formas diferenciadas de lutas sociais, consideradas como pontos de referência normativos distintos, ainda que possam ser combinadas dentro de uma teoria multidimensional de justiça social (Fraser, 2003: 8-9). Para Fraser, essas duas dimensões estão subordinadas a lutas que são analítica e politicamente distintas:
"A dimensão do reconhecimento corresponde a uma subordinação de status, enraizada em padrões institucionalizados de valor cultural; a dimensão distributiva, em contraste, corresponde à subordinação econômica de classe, enraizada nas características estruturais do sistema econômico." (Fraser, 2003: 50)
Diferentemente, Honneth identifica nas lutas por reconhecimento a orientação normativa geral de uma teoria da justiça social, propondo, assim, uma perspectiva monista que absorve a redistribuição como uma dimensão intrínseca às lutas por reconhecimento (Fraser e Honneth, 2003: 2-4). Na busca de "traços" dessa abordagem monista dentro da tradição da filosofia social, Honneth recorre às obras de George Sorel e Jean-Paul Sartre e aos textos de juventude de Karl Marx, mostrando que esses pensadores deram indicações de que as demandas materiais geralmente vinham acompanhadas de aspirações de “dignidade” e expectativas morais e que "a autocompreensão dos movimentos sociais de sua época estava permeada pelo potencial semântico do vocabulário conceitual do reconhecimento" (Honneth, 1995: 160). A alternativa proposta por Honneth oferece, portanto, um modelo de justiça que olha para as lutas sociais a partir dos sentimentos de indignação diante das experiências de desrespeito que ferem as expectativas morais das pessoas, ainda que essa indignação moral possa estar ligada à insatisfação com as desigualdades objetivas na distribuição das oportunidades materiais (1995: 161).
Essa argumentação sustenta a oposição a Fraser. Honneth rejeita a distinção entre aspectos “materiais” e “culturais”, como se fossem dimensões independentes e separadas da justiça social, e propõe uma abordagem unificada, dentro da qual os aspectos redistributivos, enfatizados na tradição mais instrumental e estratégica da crítica social, são absorvidos formando um quadro teórico unificado, normativo e afetivo que define a justiça social com base na luta por reconhecimento (Honneth, 2003: 113).
Honneth (1995) inspira-se nos escritos da juventude de Hegel notando que, apesar do caráter especulativo desses textos, eles fornecem duas indicações importantes sobre a gramática dos conflitos sociais e as lutas por justiça social. A primeira está no deslocamento de um modelo de luta social orientado por interesses instrumentais, estratégicos e materiais para um modelo de conflito social baseado em impulsos morais, próprio das demandas por reconhecimento. A segunda indicação está na ideia de que o reconhecimento está ligado ao processo formativo das identidades das pessoas e, mais importante, na ideia de que esse processo não se dá de forma individual e solitária, mas na relação com o Outro, sugerindo uma perspectiva intersubjetiva e relacional da identidade humana.
Buscando uma base empírica que sustente as especulações originais de Hegel, Honneth encontra em George Herbert Mead as indicações que permitem entender, de uma perspectiva informada pela psicologia social, como o caráter intersubjetivo das relações humanas contribui para a formação da consciência que temos de nós mesmos a partir de um “outro” que nos reconhece a partir de suas reações (Honneth, 1995: 75). Segundo Honneth, tanto Hegel quanto Mead convergem para essa concepção relacional das identidades e para a visão de que esse processo se dá em três estágios de reconhecimento. O primeiro se baseia nas relações de amor, afeto, amizade e cuidado (entre pais e filhos, entre amigos e entre casais, por exemplo), constituindo o contexto primário de experiências em que os indivíduos adquirem a consciência sobre a possibilidade de conexão entre sujeitos mutuamente distintos – dessas relações afetivas primárias surge a autoconfiança como forma prática de relacionamento do sujeito consigo mesmo (Honneth, 1995: 38, 129). O segundo estágio se baseia nas relações legais, constituindo o contexto em que os indivíduos “aprendem” a se ver dentro de um quadro de direitos intersubjetivamente aceitos e a se compreender como sujeitos de direito – dessas relações legais emerge o auto-respeito como forma prática de relacionamento do sujeito consigo mesmo (Honneth, 1995: 43-44, 129). O terceiro e mais elevado estágio de interações sociais é aquele onde o indivíduo toma consciência de sua identidade enquanto sujeito vinculado, por laços de pertencimento e solidariedade, a uma “comunidade ética” mais ampla – dessas relações de solidariedade, baseadas na afirmação das qualidades e valores particulares que caracterizam as pessoas em suas diferenças dentro de suas comunidades, emerge a auto-estima como forma prática de relacionamento do sujeito consigo mesmo (Honneth, 1995: 62, 129).
De um lado, essas relações intersubjetivas de reconhecimento são cruciais para a formação de identidades a partir da autoconfiança, do auto-respeito e da auto-estima. De outro, as experiências de negação do reconhecimento – que Honneth chama de “desrespeito” (1995: 131) – ferem o processo de construção da identidade, levando à perda da autoconfiança, do auto-respeito e da auto-estima (Honneth, 1995: 131-139). Para Honneth, o ponto crucial nessas experiências de desrespeito é que elas proveem um ímpeto motivacional para a resistência social e o conflito, abrindo o caminho para as lutas por reconhecimento. A plausibilidade dessa dinâmica se deve, segundo ele, à incapacidade psicológica dos seres humanos de reagir "de uma forma emocionalmente neutra às injúrias sociais" (Honneth, 1995: 138).
A base psicológica desse modelo em três etapas permite uma generalização do nível das emoções afetivas mais individualizadas para o nível das relações coletivas e políticas mais abrangentes. A partir do momento em os sentimentos de tratamento injusto (desrespeito) passam a ser experimentados por um círculo maior de sujeitos submetidos a uma condição típica e compartilhada de humilhação e degradação de suas identidades, cresce a possibilidade de articulação social e política das demandas de reconhecimento (Honneth, 1995: 162). Essa possibilidade, porém, depende do contexto e da disponibilidade de canais e meios para a ação coletiva – o que requer, segundo Rainer Forst (2018), a existência de uma estrutura básica na sociedade, definida em termos discursivos e procedimentais, que permita que as demandas de reconhecimento sejam justificadas reciprocamente entre as pessoas e grupos sociais que lutam por justiça social.
Forst (2018) chama a atenção, portanto, para a questão da justificação. Segundo Forst, a teoria do reconhecimento fornece um "sensor" importante para a apreensão das "experiências de sofrimento social" e da "injustiça" no mundo contemporâneo (2018: 2739), mas falta nesse debate uma preocupação com a justificação das pretensões de justiça – mais especificamente, com as assimetrias sociais e políticas que interferem na distribuição do "poder de justificação" na sociedade. Por isso, ele enfatiza a importância de uma estrutura básica de justificação, definida em termos discursivos e procedimentais, que permita que o "poder político de justificação" seja exercido de forma crítica, autônoma, recíproca e em igualdade de condições entre as pessoas e grupos sociais (Forst, 2018: 2746, 2539).
Para Forst, a questão da justificação está no cerne das demandas de justiça, constituindo-se como uma força crítica imanente aos conflitos sociais. Seu potencial emancipatório reside na expectativa que cada pessoa tem de ser respeitada como agente autônomo que "deve aos demais" – e que merece receber dos demais – "boas razões" que justifiquem as estruturas, as instituições e os preceitos morais e culturais que regem as suas relações sociais e políticas (2018: 2996). Subjacente a essa perspectiva de justiça social está uma compreensão de "dignidade" e "respeito" que é "violada quando alguém é tratado como invisível", como alguém destituído de sua "autoridade de justificação", como alguém a quem não se devem "boas razões" – a negação desse direito, segundo Forst, é uma ofensa que se sente profundamente e que afeta a "autocompreensão" e o "auto respeito" de quem tem esse direito anulado (2018: 3001-3007). Pode-se derivar dessas indicações de Forst uma noção de empoderamento que se constrói em um campo de lutas discursivo, no qual o direito à voz e de ser ouvido – o direito à justificação – é uma forma de reconhecimento e a negação desse direito como uma forma de desrespeito.
Essa discussão é importante para se compreender a "gramática moral dos conflitos sociais", expressão legada por Hegel e incorporada à teoria do reconhecimento de Honneth (1995), pois quando o potencial de autorrealização é negado ou bloqueado, fazendo com que as pessoas sintam que "o reconhecimento que elas merecem" foi frustrado, elas geralmente reagem, "com sentimentos morais que acompanham a experiência de desrespeito – vergonha, raiva ou indignação" (Honneth, 2007: 71). A partir do momento em que as pessoas conseguem canalizar esses sentimentos para o espaço público, organizando-se coletivamente em um grupo social que compartilha a mesma sensação de desrespeito, cria-se então um ímpeto político que move as lutas por reconhecimento.
Sob a luz das reflexões sobre reconhecimento, é possível atualizar o debate sobre violência e paz a partir da revisão da conceituação de paz positiva. Sob essa perspectiva, a violência cultural pode ser reelaborada como uma experiência de desrespeito, uma injúria social que decorre da ausência de reconhecimento moral e cultural das identidades. Assim, a violência cultural adquire substância: ela produz um tipo de sofrimento específico; ela fere a autoconfiança, o auto respeito e a auto-estima das pessoas, ou seja, a própria possibilidade de afirmação de suas personalidades.
Com base nessa redefinição, há pelo menos duas implicações importantes para a reflexão sobre paz positiva. A primeira é que o ponto de vista da vítima passa a ser considerado na análise da violência cultural. Na perspectiva conceitual de Galtung, o sofrimento da vítima encontra-se apagado, pois o que importa destacar no seu modelo de paz é a função legitimadora que a violência cultural exerce na normalização da violência direta e estrutural. Ele não discorre sobre o tipo de sofrimento que a violência cultural provoca e como as pessoas aceitam ou resistem a ela. Importante mencionar a visão de Philippe Braud (2012) sobre violência – particularmente o seu argumento de que "o evento vivenciado pela vítima é o elemento comum de todas as formas de violência" (Braud, 2012: 61), independentemente da existência ou não de um perpetrador diretamente identificado ou da característica física, estrutural ou simbólica do ato. Nessa abordagem, a compreensão da experiência vivida pelas pessoas ou grupos sociais que têm as suas expectativas de reconhecimento desrespeitadas é um elemento central da violência cultural e seus desdobramentos do ponto de vista da paz positiva e consolidação da paz.
A segunda implicação importante para a agenda da paz positiva é que a violência cultural, ao contrário de sua concepção estática original, passa a ser vista como um processo social dinâmico, intersubjetivo, dentro de um quadro de referência afetivo, moral e cultural, que pode ser explicitamente conectado, na mesma posição de centralidade da violência estrutural, a uma teoria da justiça social. Assim, a consolidação da paz, enquanto abordagem pragmática para a realização da paz positiva, assume uma dimensão crítica mais radical, que incorpora as lutas pelo reconhecimento das identidades como parte fundamental dos processos transformativos na esfera cultural que, ao lado das medidas de redução da desigualdade econômica e política, caminham na direção da construção de uma paz abrangente, entendida como justiça social.
Ainda que a sociedade brasileira seja muito diversa – 45.3% de pardos, 43,5% de brancos, 10,2% de pretos, 0,6% de indígenas e 0,4% de amarelos (IBGE, 2024) – é igualmente marcante que a relação dos brasileiros com o diverso é, frequentemente, pautada pela violência. Desde a opressão histórica aos povos indígenas, às mulheres e à população negra até as inúmeras expressões atuais das violências culturais e estruturais que se mantêm no país, parte relevante da sociedade brasileira normaliza a violência (Martins, 2022).
Para além de seu histórico, o Brasil está inserido em um contexto regional violento. Das 50 cidades mais violentas do mundo, 39 estão localizadas na América Latina e apenas 4 na África (Martins, 2024). Quanto à desigualdade econômica, dos dez países mais desiguais do mundo, oito são africanos. O Brasil (o 7º mais desigual) e a Colômbia (o 3º mais desigual) são as únicas exceções (World Bank, 2024). A conjunção dessas informações indica que há países mais desiguais que os latino-americanos em que a violência não é uma realidade tão evidente, o que demonstra que, apesar da relação entre injustiça social e violência, a América Latina é excepcionalmente marcada por uma combinação bastante peculiar de violência direta, estrutural e cultural.
Na história brasileira, a violência não se restringe aos atos de um agressor contra uma vítima, mas é parte central das estruturas da sociedade, como o próprio sistema legal, o sistema penitenciário, as políticas públicas não inclusivas e, como reflexo dessas estruturas, as relações interpessoais. Desde o início de nossa história, o Brasil tem sido um país violento, em especial com suas populações minoritárias.
A violência é intrínseca ao processo de colonização que o país vivenciou por mais de três séculos. A chegada das esquadras portuguesas, a partir de 1500, iniciou um processo de invasão e saque em uma terra com uma população de dois a cinco milhões de nativos. A população indígena foi inicialmente vitimada por doenças como varíola e gripe, além das armas de fogo. O massacre foi tão intenso que, menos de cem anos depois, apenas 10% dos povos originários na costa estariam vivos no seu território ancestral (Ferreira e Maschietto, 2024). Este quadro permanece atualmente, tanto nos diversos assassinatos em disputas de terra quanto pela invisibilização cultural e o não reconhecimento do indígena como parte relevante da sociedade. O genocídio dos Yamonamis devido a fome, doenças e assassinatos pelos garimpeiros ilegais que atuam na Amazônia é somente o mais recente episódio dessa violência (Casemiro e Costa, 2024). O apagamento das populações indígenas e de sua cultura tem outra consequência muito negativa: os conhecimentos indígenas, que são ignorados pelos agressores ocidentais, poderiam ser utilizados para criar uma visão mais ampla e necessária de segurança que, por estar baseada na colaboração de toda a comunidade com o meio ambiente, poderia contribuir para minimizar as principais inseguranças enfrentadas pela humanidade atualmente (Cortinhas et. al, 2024).
A escravidão e seu legado é outro exemplo de violência direta, estrutural e simbólica contra minorias brasileiras. Estima-se que 40% dos cerca de 10 milhões de africanos traficados para as Américas tiveram o Brasil como destino final (IBGE, 2000). Além de ser o maior receptor de pessoas escravizadas, o Brasil foi o último país das Américas a encerrar a escravidão. A abolição, porém, não resultou no fim da violência contra a população negra. Logo após o fim dessa instituição nefasta, “o ministro Ruy Barbosa ordenou que todos os documentos referentes à escravidão desaparecessem. E assim foi feito. No dia 14 de dezembro de 1890, o ritual macabro de acabamento da memória teve início” (Bento, 2024: 21). Trata-se, portanto, de um país que historicamente utilizou diversas formas de apagar o passado e impedir o reconhecimento de suas vítimas. Ao apagar os registros da escravidão, nosso país dificulta o reconhecimento dos laços familiares e ancestrais da parcela negra de nossa sociedade. Processo semelhante de apagamento ocorreu também ao fim da ditadura militar, com a Lei da Anistia, de 1979.
A violência contra a população afro-brasileira continua a ser grave ainda hoje, sendo esse grupo a maior vítima da violência do próprio Estado. Os negros representam 82,7% das mortes por policiais (FBSP, 2024: 14). Ademais, representam 78% das vítimas de mortes violentas intencionais, o que confirma a conotação racial da violência no país (FBSP, 2024: 33).
Destaca-se também, no Brasil, as muitas violências contra as mulheres. As brasileiras têm sido submetidas, desde o período colonial, a abusos físicos, sexuais e psicológicos. Em muitas ocasiões, são tratadas como propriedades e subjugadas a uma condição de inferioridade. Essa violência institucionalizada foi reforçada ao longo dos séculos pela cultura patriarcal, que naturalizou o controle e a opressão das mulheres em diversos aspectos da vida social, econômica e política. Os dados da violência contra as mulheres no Brasil são alarmantes: enquanto os homicídios têm diminuído nos últimos anos, em 2023 o número de feminicídios aumentou 0,8%, os casos de estupro aumentaram 6,5% e os de violência doméstica 9,8%. De fato, todas as modalidades de violência contra as mulheres aumentaram em 2023 (FBSP, 2024: 16). A violência de gênero também pode ser observada nos dados referentes à população LGBTQIAPN+. O Brasil é o país com o maior número de assassinatos contra esse grupo no mundo (Cavalcante, 2023).
Todo esse histórico de violência afeta os jovens. Entre todas as mortes violentas intencionais ocorridas no Brasil em 2023, 49,4% foram de pessoas com até 29 anos (FBSP, 2024: 32).
Como se observa, apesar de recentes períodos de redução da desigualdade e das mortes violentas intencionais no Brasil, diferenças brutais entre ricos e pobres, o racismo estrutural que permeia a sociedade e a injustiça contra as mulheres permanecem. Recentemente, a pandemia escancarou ainda mais alguns desses problemas fundacionais. Pesquisas têm apontado para os efeitos desiguais da pandemia em populações negras, marginalizadas e periféricas, demonstrando que as condições de insegurança humana que já existiam para estas populações foram decisivas na sua ulterior vulnerabilização ao enfrentar a Covid-19 (Tomesani et al., 2024; Santos et al, 2020).
Este contexto se soma a um cenário político que flerta historicamente com o autoritarismo e que tem se tornado ainda mais violento nos últimos anos. Durante a gestão Bolsonaro, o então presidente comumente realizava manifestações violentas contra minorias, levando ao aumento dos padrões já violentos da sociedade brasileira (Maschietto et. al, 2022). Sua substituição por Luiz Inácio Lula da Silva trouxe a esperança de retorno a tempos menos sombrios. Ao assumir a Presidência, Lula criou diversos órgãos que objetivam proteger as minorias e acelerar a diminuição das desigualdades no país, como o Ministério dos Povos Indígenas e o Ministério da Desigualdade Racial. Entretanto, o próprio Lula, por vezes, demonstra também ser influenciado pela cultura e pelas tradições patriarcais e excludentes da sociedade brasileira, como no episódio em que afirmou que “se o cara é corinthiano, tudo bem”, ao comentar pesquisa que demonstrou o aumento da violência de gênero após jogos de futebol no Brasil (Gomes, 2024). Apesar do efeito benéfico de substituir um Presidente extremamente violento por um governante mais atento à necessidade de reduzir a desigualdade social e as violências estrutural e cultural no país, esse fato, por si só, não será capaz de minimizar as raízes profundas da violência. É preciso mudanças mais profundas e muitos desses esforços dependerão da juventude.
Os dados e o contexto aqui apresentados ilustram inúmeras expressões de violência direta, estrutural e simbólica que atentam contra a sacralidade da vida no país. Ao longo do tempo, houve avanços importantes em termos de reconhecer e valorizar identidades e grupos marginalizados. Esses avanços, ainda que imperfeitos, podem ser observados, por exemplo, no âmbito das políticas e programas de conscientização social que oferecem bases para passos adicionais na construção da paz. Superar a cultura da violência exige, entre outros, ampliar a convivência entre os diferentes, desenvolver capacidades morais e criar oportunidades para que atuem juntos pelo bem comum. É, possivelmente, nessa arena, que poderemos romper os muros que nos separam, e forjar os elementos de uma identidade coletiva. Essa identidade deve reconhecer que, ao contrário do que é propagado, a natureza humana não é violenta e a paz pode ser construída como atividade humana de responsabilidade coletiva.
A pesquisa conduzida com estudantes sobre suas percepções sobre violência, paz e poder identificou múltiplos pontos de vista, alguns fortemente relacionados com aspectos mais consolidados na discussão sobre paz, como a preocupação com a ausência de violência direta ou com a discussão mais específica sobre violência estrutural e cultural. Outros aspectos, porém, transcendem a dimensão material subjacente ao binômio violência direta/violência estrutural e sugerem, em especial, uma dimensão afetiva e moral que perpassa as percepções de paz, violência e poder (incluindo aspectos relacionados à noção de empoderamento), remetendo, deste modo, a um repertório conceitual típico das demandas de reconhecimento. Esses temas são discutidos nas subseções a seguir.
Ao escrever a primeira ideia que vinha à mente ao pensar em paz, as(os) estudantes mencionaram em suas respostas, repetidamente, as palavras ‘tranquilidade’ e ‘respeito’. Esses dois termos apontam duas dimensões importantes da paz na percepção desses jovens, reiteradas nos grupos focais. A primeira dimensão, que se poderia organizar sob o 'guarda-chuva' da ideia de tranquilidade, indica uma percepção predominantemente voltada para a paz interior, relacionada a sentidos e sensações subjetivas, o que também é sugerido em palavras como ‘calma’, ‘felicidade’, ‘harmonia’, ‘bem-estar’, ‘sossego’, ‘despreocupação’, ‘relaxamento’, ‘leveza’. A ideia de solitude, também presente nas respostas, aparece frequentemente conectada à sensação de tranquilidade em expressões como ‘estar sozinho(a)’, ‘trancada dentro do quarto’, ‘quando boto meu fonezinho e minha musiquinha’. Também há menção a elementos da natureza e experiências sensoriais como sentir ‘aquele sol bem fraquinho’ do fim da tarde, um ‘mergulho no mar’, ou ‘o cheirinho de bolo com café’. Nessas e em outras correlações, as percepções de paz vão em direção semelhante: a necessidade de isolamento para se separar do mundo exterior e encontrar algum tipo de silêncio e calma, porque “pra gente encontrar paz a gente precisa encontrar sozinho, a nossa própria paz, a gente tem que identificar o que a gente quer”. Trata-se de “não ter que se preocupar se alguém ou algo vai tirar a sua tranquilidade ou vai te machucar”.
De outro lado, sugerindo uma perspectiva mais relacional – e, portanto, menos individualista e solitária da paz – muitos estudantes referiram-se ao termo ‘respeito’, que apareceu como a segunda palavra mais citada para se referir à paz. Aqui, o respeito conecta-se à paz reforçando a qualidade das relações entre indivíduos na sociedade, o que é sugerido também em outras palavras frequentemente mencionadas, como ‘amor’, ‘empatia’, ‘reciprocidade’, ‘gentileza’, ‘sem preconceito’, dentre outras. Isto mostra uma percepção de paz que se articula dentro de um quadro de referência que incorpora, parafraseando Honneth (1995: 160), o potencial semântico do repertório conceitual do reconhecimento.
Esses resultados sugerem duas perspectivas de paz: uma solitária, subjetiva e interior; e outra relacional, intersubjetiva e aberta para as interações sociais. Para alguns/algumas estudantes essas duas dimensões não são mutuamente excludentes, conforme sugerem os depoimentos a seguir:
"A paz é também você estar bem consigo mesmo porque não adianta você querer a paz se você não a tem consigo mesmo [...] para viver em sociedade você tem que ter uma paz em conjunto com quem você gosta e com quem você não gosta..." (estudante do ensino médio, João Pessoa)
"Talvez dependa dos dois [interior e exterior] [...]. Não adianta nada você querer ter um dia calmo sendo que lá fora está caindo bomba, né?" (estudante de graduação, Rio de Janeiro)
Se alguns depoimentos giraram em torno dessa dicotomia paz interior versus paz exterior e da possibilidade de inter-relacionamento entre elas, outros indicaram uma conexão mais clara com o repertório conceitual do reconhecimento. Quando uma das estudantes afirma “Eu senti paz quando pude morar sozinha e passei na faculdade e consegui um emprego” , está aí sugerida uma noção de paz que decorre de um sentimento de auto realização produzido por algum grau de justiça redistributiva (acesso ao trabalho, moradia e ao ensino superior), mas que resulta, sobretudo, da dignidade que se alcança através dessas conquistas e da emancipação e autonomia, o que remete a uma concepção de justiça que se realiza no campo do reconhecimento.
O potencial semântico do reconhecimento mostra-se, também, nesses dois depoimentos:
"Paz. Quando estou num lugar onde não está presente o julgamento, a falta de respeito, a falta de empatia. Um lugar onde as pessoas não têm medo de ser quem elas realmente são. Atualmente o lugar em que mais me sinto assim é no Grêmio, minha família, meus amigos, pessoas que me deixam à vontade para ser quem sou." (estudante do ensino médio, Ouro Preto)
"Ir à Igreja e participar de cultos, embora possa parecer subjetivo, é uma experiência que nos traz paz para mim e ao meu irmão." (estudante da graduação, Rio de Janeiro)
O primeiro depoimento sugere uma percepção de paz que se equaciona no estágio de relações afetivas primárias, ao nível das interações familiares e de amizade, indicando um modo de relacionar-se consigo e com o Outro que reforça a autoconfiança, permitindo que "as pessoas não [tenham] medo de ser quem elas realmente são". O segundo depoimento mostra uma perspectiva de paz que pode estar associada à sensação de tranquilidade de um espaço religioso, mas que pode estar associada também ao reconhecimento de uma identidade socialmente compartilhada dentro de uma comunidade ética – no caso, a comunidade religiosa frequentada pelo estudante e por seu irmão. A auto-estima que resulta desse laço de pertencimento e solidariedade dentro de uma comunidade unida por uma identidade coletiva pode ser a razão de fundo que leva esse estudante a relacionar a ida à igreja com seu irmão, vitimado por uma ato violento que o deixou paraplégico, a uma experiência de paz.
Quando indagados(as), finalmente, sobre se haveria paz no Brasil, a reação geral dos(as) estudantes nos diferentes grupos foi sempre acompanhada de risadas e resposta negativas em coro. Nesse momento, o foco na dimensão interior da paz e na escala microssocial das sensações de tranquilidade perde ênfase, abrindo espaço para as preocupações com a dimensão estrutural da paz e da violência, vista como grande obstáculo para a paz no país.
A discussão sobre violência nos grupos focais foi mais fluida. Pensar a paz e como ela acontece no seu dia-a-dia parecia exigir alguma reflexão, uma pausa antes de falar. Mas a violência era demasiadamente óbvia e presente, ainda que assumindo expressões distintas, seja interpessoal, latente, estrutural, quando não silenciosa. Muitos participantes compartilharam exemplos concretos e pessoais de violência, alguns extremamente fortes e traumáticos.
A nuvem de palavras na Figura 2 ilustra a conotação majoritariamente ligada a esse conceito: trata-se de agressão de natureza física ou psicológica e verbal. O destaque dado à palavra ‘pessoa’ também é relevante. A violência é percebida primordialmente como algo relacional, ligado a ações de um ou mais indivíduos sobre outro(s), ainda que haja referência a dimensões estruturais. À diferença da paz, que expressa uma conotação interior, espiritual, quando não intangível, a violência é tangível e visível. Ela perpassa a relação entre indivíduos, entre instituições e indivíduos, do estado até a família. É onipresente.
Outro elemento importante nas definições, e que também apareceu nos grupos focais, é a violência não apenas pela ótica do violador — como uma ação intencional conduzida por um agente — mas pela ótica de quem a recebe. ‘Sofrimento’, ‘tristeza’, ‘dor’, ‘desespero’ e ‘medo’ foram algumas das palavras associadas à violência que refletem o olhar da vítima.
Ao mesmo tempo, assim como a paz é muitas vezes definida pelo seu oposto, em várias instâncias a violência foi definida como ‘falta de’ alguma coisa, como amor, respeito, empatia e educação. Aqui reforça-se a dimensão afetiva associada à violência.
No que concerne à vivência da violência, vamos nos deter aqui em alguns temas que apareceram de forma muito acentuada nas atividades e que remontam diretamente à questão do reconhecimento (ou respeito) e como estes elementos estão ligados a questões de distribuição de poder, seja material, seja moral.
O primeiro tema, que dominou a discussão na maioria dos grupos focais, foi o da violência contra a mulher, relatada a partir do cotidiano, em diferentes espaços públicos e privados, sendo sua principal manifestação o assédio.
"Quando eu tinha 15/16, pela primeira vez eu tive consciência da violência que as mulheres sofrem diariamente. Eu estava indo em uma loja de conveniência perto do meu colégio, e um taxista desacelerou o carro e foi me seguindo lentamente até eu chegar na loja. Naquele dia eu pude realmente entender que não tem horário, idade ou até mesmo lugar para que as mulheres se sintam realmente em segurança plena, sempre tendo que olhar com a atenção redobrada o seu entorno." (estudante de graduação, Rio de Janeiro)
"Outro dia eu tava no ônibus, tava eu e minhas amigas, voltando pra casa e entrou um cara bêbado [...] E ele ficou esfregando em mim. [...] Aí eu tirei o braço, só que ele fez isso de novo, aí eu falei com a minha amiga e minha amiga me puxou do lado dela e eu saí de perto dele. [...] acabou que umas pessoas se meteram no meio, mas não deu em nada. Aí eu desci no ponto e ele sentou do lado de outra menina e começou a falar na cabeça dela também..." (estudante do ensino médio, Ouro Preto)
O medo e desconforto causado pelo assédio abala a sensação de liberdade, desde andar na rua a como se vestir, uma vez que a violência é introjetada na vítima.
"Eu sofri uma tentativa de abuso, uma não, várias, e uma pessoa muito próxima a mim falou que era culpa minha, pelo jeito que eu me visto e pelo jeito que eu sou. E eu, pra mim paz é viver do jeito que eu sou, com as roupas que eu gosto e que ninguém tentasse algo contra mim ou me julgasse por isso." (estudante do ensino médio, João Pessoa)
Os muitos relatos mostram que essa sensação de desconfiança, desconforto e receio permeia todo tipo de espaço, inclusive a própria escola. Em um grupo focal em Ouro Preto, uma aluna observou:
"Professores também na sala de aula cercando as alunas porque chamam ela pra dar exemplo na frente, aí fica... tem muitos casos desse, fica esfregando nela na frente da turma... enfatizando o corpo que ela tem." (estudante do ensino médio, Ouro Preto)
Neste caso, seguiu-se a pergunta sobre o que tinha sido feito após o episódio em questão, mas a resposta foi “Não tem o que fazer, porque cê fala alguma coisa, a sociedade do jeito que é ela não te ouve. Então se você fala alguma coisa pode até ser pior pra você.”
Episódios de violência contra a mulher na escola também foram relatados em João Pessoa, incluindo abuso sexual por parte de colegas e episódios de masturbação na frente das meninas. Além disso, refletindo as estatísticas, também houve relatos de violência contra a mulher no âmbito doméstico, especialmente do pai em relação à mãe, em todas as cidades pesquisadas.
Estes relatos refletem uma violência claramente pautada na dimensão simbólica: eles apontam a percepção social de que o simples fato de ser mulher de alguma forma permite a invasão do espaço alheio, o assédio, a subjugação, o que leva à normalização desse tipo de violência.
Os relatos de violência contra pessoas LGBTQIAPN+ e pessoas negras refletem a mesma lógica. Assim como no caso das mulheres, essas expressões de violência perpassam diversos ambientes, do público ao familiar e trazem inúmeros traumas psicológicos, pois trata-se de violência direcionada à própria identidade. A exemplo,
"No ano da eleição [...] eu tava voltando de um treino de vôlei, aí de repente ele apareceu, e aí ele mandou eu andar direito… [...] E ele perguntou assim “olha viadinho, anda direito que aqui só tem lugar de macho, tem que ser macho”. Com isso, aquilo ali, eu fiquei constrangido e fiquei com medo, entendeu? [...] De repente ele desapareceu mas lá na frente eu pensei “meu deus, e se esse rapaz tá lá na frente e ele vai me machucar, vai tentar fazer alguma coisa comigo?”. [senti] como se a sociedade virasse pra mim e eu ficasse sozinho encolhido lá chorando e pedindo ajuda e sem ninguém me ouvir." (estudante do ensino médio, João Pessoa)
"Ter vivido e crescido numa sociedade onde a branquitude é a norma me fez detestar minhas características por muito tempo. Por exemplo, comecei a alisar o cabelo aos 6 anos e só parei aos 15. Graças ao “boom” de representativamente negra nas mídias fui capaz de me aceitar mais. Entretanto, o racismo é algo que danifica a essência e te acompanha até a hora de dormir. Ainda assim fico super ansiosa em ambientes brancos e sinto vontade de “ser um deles”." (estudante de graduação, Rio de Janeiro)
Esse rechaço identitário também acontece em casa, e, em muitos casos, é amenizado quando um dos parentes apresenta uma postura de acolhimento. Entretanto, um aspecto mais específico associado ao racismo, reportado em algumas atividades, refere-se à violência policial. O relato brutal de um estudante no Rio de Janeiro ilustra o desespero associado a essa questão:
"Quando estava no meu último ano do Ensino Médio, a polícia matou um garoto da minha escola por ter confundido ele com bandido (era preto e usava um colar de corrente de prata) e então jogou seu corpo no valão. No dia seguinte todos os garotos pretos estavam com medo de sair sozinhos da escola e ficamos “ilhados” na escola até 14h (estudava de manhã)." (estudante da graduação, Rio de Janeiro)
A menção à polícia e sua relação com a violência nos leva a um tema mais amplo, que remete ao papel das instituições do estado, seu papel em conter a violência e sua legitimidade. Traz, assim, uma ponte muito forte com a discussão sobre violência estrutural, ainda que nos relatos dos estudantes a dimensão relacional (representada pelos policiais de um lado, e pelos agentes do crime, por outro) seja muito vívida.
Em teoria, ao refletir se a violência pode ser legítima em alguns casos, boa parte dos participantes concordou que, a depender do contexto, a violência pode ser justificada. Ao mesmo tempo, rapidamente problematizaram a questão, destacando a necessidade de se ter “um certo controle”, caso contrário “rapidamente essa justificação vai ser utilizada pra qualquer tipo de ação que pode ser considerada irracional”. Vozes mais críticas alertaram para as contradições subjacentes a essa instituição: “A polícia tem arma, tem total liberdade pra exercer violência no próximo e ela traz segurança para tipos de pessoas, mas para outras ela é o principal símbolo do medo”.
O debate sobre a polícia não pode ser compreendido de forma separada da questão criminal, tema que apareceu de forma mais marcada em João Pessoa e Rio de Janeiro, devido à presença do crime organizado nessas cidades. Alguns participantes, por exemplo, relataram experiências ligadas ao controle social do bairro pelo crime organizado, tanto em termos de proteção, quanto em termos de repressão via levantamento de barricadas.
Essa experiência em alguma medida influenciou o debate sobre o papel da polícia. O debate foi mais acirrado no Rio de Janeiro, onde a violência policial nas favelas é notória. Alguns estudantes justificaram algum grau de violência policial devido à própria presença de violência pelo crime organizado: “Não dá para chegar na favela, ou em um ambiente de guerra literal, e querer, aí, paz, tranquilidade, vamos cessar fogo”. Outros participantes destacaram o recorte social das ações policiais, onde “são as pessoas de classes sociais mais baixas que acabam sempre sendo dano colateral.”
Ainda que remetam a áreas diferentes, as manifestações de violência levantadas pelos/pelas estudantes, seja no âmbito das questões de gênero, seja no que concerne ao papel da polícia perpassam uma questão importante: a desigualdade, tanto em termos de acesso a direitos quanto em termos de representatividade. O que nos leva ao tópico seguinte, o último discutido nas atividades.
Compreender como diferentes grupos de pessoas entendem o que é ‘poder’ e como percebem seu poder pessoal é fundamental para pensar rotas de mudança social. Neste caso, prevaleceu uma visão negativa sobre como o poder tem circulado na sociedade, essencialmente reforçando assimetrias, como aponta a Figura 3. O tamanho desproporcional da palavra ‘pessoa’ na nuvem de palavras mostra o quanto esse conceito foi associado à dimensão interpessoal. Poder é quando ‘uma pessoa’... ‘influencia’, ‘controla’, ‘manipula’, ‘comanda’ outra pessoa. É a “capacidade de controle de um indivíduo/grupo em relação ao outro”, “está relacionado com superioridade de vários tipos”, seja no âmbito material, em especial financeiro, mas também tem a ver com status.
Majoritariamente, tanto nas definições escritas quanto nos grupos focais, o poder foi associado a algum grau de assimetria, seja material, quanto moral. Palavras como ‘hierarquia’ e ‘autoridade’ foram utilizadas, bem como os supostos meios para exercer esse poder, sendo ‘dinheiro’ e elementos materiais muito citados, mas também houve referência a afetos, inclusive ‘medo’, além de ‘força’. Referências a questões de classe também apareceram, como a palavra ‘opressão’, ‘exploração’, ‘burguesia’, ‘capitalismo’, ‘elite’ e ‘privilégio’.
Pensando no diálogo com a ampla literatura sobre poder, essas conotações reforçam a ideia de poder como dominação, cuja lógica se baseia na existência de um conflito de interesses entre as partes. Essa, entretanto, é apenas uma das visões sobre poder. Outras, igualmente importantes e muito presentes na sociologia, consideram que o poder é algo que depende de um mínimo de consenso na sociedade, que lhes confere legitimidade. Ou seja, o poder é gerado socialmente, e não algo que se possui por meio de insumos (seja materiais ou não). Essa visão também abre margem para se pensar poder como algo que surge do coletivo, como capacidade. No âmbito dos relatos e dos grupos focais, esta última visão apareceu de forma muito pontual, quando poder foi definido como “capacidade de mudar algo” ou associado a “autonomia”.
Essa assimetria entre visões conflitivas sobre poder, de um lado, e focadas nas capacidades pessoais e expressões cooperativas, de outro, reverberou na discussão sobre empoderamento. Ao serem questionadas(os) se se sentiam empoderadas(os), houve muitos momentos de silêncio, seguidos de respostas que não apontaram necessariamente para um consenso sobre o tema. A exemplo:
“Eu me sinto empoderada em manifestação... Porque, tipo assim, eu sozinha, é só eu sozinha. Se eu quiser fechar a rua sozinha, eu não vou fechar, entendeu? Mas se tiver uma galera, uma união ali, aí as coisas começam a acontecer.” (estudante do ensino médio, Ouro Preto)
“Me sinto empoderado quando deito a cabeça no travesseiro e tenho a consciência de que só fiz coisas boas... Ou... Tentei...” (estudante de graduação, Rio de Janeiro)
“Eu acho que o suporte também dos seus amigos ou pessoas que você se inspira, eu acho que cê ter suporte e saber que te empodera de algum jeito, seja pegando sua maior fraqueza e transformando em algo bom é algo que influencia muito a gente a ser otimista e a querer ajudar outras pessoas.” (estudante do ensino médio, Ouro Preto)
“A gente? Nós mesmos? Não. Eu não tenho poder nem na minha vida quanto mais nas outras pessoas.” (estudante do ensino médio, João Pessoa)
“Eu acho que a gente contém um poder limitado, só que a gente não usa.” (estudante do ensino médio, João Pessoa)
No geral, ainda que alguns estudantes tenham observado que o poder é “uma força que pode ser usada para o bem ou para o mal”, houve mais referências a como é muito mal utilizado, fomentando assimetrias. A própria menção a ‘manipulação’, ‘ganância’, ‘abuso de poder’, ‘política’, ‘corrupção’, dentre outros termos com conotação negativa, exemplificam essa associação. Como lembrou um participante, “no caso atual em que a gente escuta poder a gente já pensa nas piores coisas”.
Essa utilização deturpada do poder foi exemplificada em várias instâncias, inclusive na microescala do cotidiano, como na escola e na família. Mas ficou mais evidente no âmbito do estado e suas instituições, em especial ao se falar sobre poder, mudança social e o papel da violência nesse contexto.
Aqui, observa-se, de um lado, a detenção da legitimidade do uso da força pelo estado como um elemento que mantém a assimetria social e, de outro, a violência como possível força motriz de mudança quando outras formas parecem não ter efeito.
“Em relação ao poder, é importante mantermos uma igualdade perante o Estado. Pois a partir do momento que se têm pessoas ‘podendo’ mais que as outras você acaba abrindo uma brecha para a violência e para uma segregação de minorias. [...] Vale lembrar que atualmente o poder tem cor, gênero e condição financeira. São os homens, brancos, héteros ricos.” (estudante do ensino médio, Ouro Preto)
“Eu acho que entra a questão também de quem tem poder no país, porque a gente sabe que o poder é concentrado na mão de pessoas que geralmente não têm que temer a polícia, que não tem essa preocupação.” (estudante do ensino médio, Ouro Preto)
“A autoridade do estado muitas vezes é exercida com violência. (estudante de graduação, Rio de Janeiro)
“A violência pode ser também uma forma de resistência.” (estudante de graduação, Rio de Janeiro)
Perante as assimetrias de poder na sociedade, e a percepção de que as instituições não são representativas da população como um todo — ao contrário, muitas vezes contribuem para essa assimetria — como mudar então? Qual o lugar de mudança para a população jovem? É nas respostas a essa questão que vemos o entrelace entre a paz, a violência e o poder. De um lado, houve muitas referências à necessidade de mudanças de natureza institucional, especialmente no sistema de justiça, desde a implementação de penas mais rígidas a aspectos como a humanização da polícia, a preocupação com a questão de gênero no acesso à justiça e até a ressocialização de pessoas que saem da prisão.
De outro lado, e de forma mais marcada, os grupos focais apontaram para a necessidade de uma mudança de mentalidade e de consciência e que capture os elementos prevalecentes da nuvem de palavras sobre paz, como o respeito, a empatia e o diálogo. O meio para tanto foi quase uníssono: a educação. Mas não uma educação meramente conteudista, e sim humanizada, focada na promoção de valores e princípios que levem ao respeito mútuo, o fim do preconceito e à conscientização. Nesse sentido, percebe-se aqui mais uma vez o ponto chave ligado a questões de identidade e (des)igualdade, repetidamente associadas às várias formas de violência e assimetria de poder na sociedade. Se esse é o problema central, então aqui reside a solução.
A 'paz violenta' sem justiça social vivida no Brasil e as percepções de jovens estudantes sobre paz, violência e poder discutidas nas seções anteriores mostram dinâmicas, experiências, expectativas e pontos de vista variados que nem sempre podem ser enquadrados em uma moldura utilitária, caracterizada essencialmente por cálculos materiais, econômicos e estratégicos. Parte considerável dos aspectos identificados na análise relacionam-se com expectativas de realização do potencial de desenvolvimento afetivo, do potencial de desenvolvimento moral e do potencial para uma vida mais solidária em sociedade.
A análise do contexto social e político brasileiro mostra um quadro de violência direta, estrutural e cultural que atravessa a história do país, vitimando as populações originárias, a população afro-brasileira, as mulheres, a população LGBTQIAPN+, as populações submetidas à condição de pobreza, com particular impacto sobre os(as) jovens. Dentro desse quadro, a necessidade de se reconhecer e valorizar identidades e grupos marginalizados é uma dívida histórica que, se não for superada, continuará a corroer as possibilidades de uma paz justa e emancipatória.
Os resultados apresentados nas atividades desenvolvidas com jovens estudantes mostram que, para muitos, a violência tem uma expressão física e direta que se expressa no quotidiano de suas vidas; por outro lado, a violência tem também uma dimensão subjetiva relevante que afeta a forma como se sentem em família e em suas relações sociais mais abrangentes, e que são sentidas como uma violação de sua dignidade enquanto seres humanos. Três casos ilustram emblematicamente essa situação: a violência contra as mulheres, contra a população LGBTQIAPN+ e contra a população negra. Participantes desses grupos relatam situações que mostram não só uma banalização da violência física contra seus corpos, mas também de violências que são sentidas moralmente e emocionalmente em decorrência de assédio, desrespeito, humilhação e afronta contra a sua dignidade e autoestima. No caso do racismo, um outro elemento se agrega a essa normalização: a dimensão institucional onde a polícia, representando o estado, tem papel crucial nessa normalização
Estes diferentes pontos de vista sobre a violência permitem-nos entender a razão pela qual muitos dos participantes da pesquisa, ao se referirem ao tema da paz, percebem esse conceito não apenas como um estado de cessação da violência física – incluindo as guerras e conflitos armados –, mas também, e principalmente, a partir de perspectivas mais positivas e relacionais definidas por qualidades associadas a sentimentos, emoções e afetos ao nível mais primário das relações pessoais, familiares e de amizade (como estima e amor) e ao nível das expectativas morais, legais e de solidariedade comunitária (como respeito, empatia, coexistência, diferença, compreensão, justiça ou liberdade).
Esse conjunto de aspectos, quando olhado sob as lentes do debate crítico sobre justiça social examinado neste artigo, tem implicações importantes para os Estudos para a Paz, particularmente para a sua agenda crítica dedicada à paz positiva. No final da primeira seção deste artigo, já delineamos alguns caminhos para incorporar as questões de reconhecimento ao debate sobre paz positiva, basicamente através da redefinição da violência cultural como uma experiência de desrespeito. Isto permite não só que a dimensão simbólica da violência e da paz passem a ser vistas de uma perspectiva intersubjetiva e relacional, mas também que a violência cultural passe a ser vista do ponto de vista do sofrimento das vítimas e dos impactos causados em sua autoconfiança, auto-respeito e auto-estima.
Repensar a violência cultural como uma injúria à identidade das pessoas parece-nos crucial para reforçar a relação e a conexão entre as dimensões direta, estrutural e simbólica da violência, tomando o ponto de vista da vítima como o ponto central de referência. Essas dimensões andam juntas e o estudo aqui apresentado mostra que uma perspectiva mais integrada, que conecte a dimensão direta (física e visível), estrutural (com seu foco redistributivo) e cultural (com sua ênfase nas questões de reconhecimento) permitem um olhar mais holístico, integrado e atualizado sobre as formas concreta de violência e sobre as condições para uma paz comprometida com a justiça social.