Dossier
Recepción: 01 Octubre 2024
Aprobación: 03 Febrero 2025
Resumo: Ao estabelecer vínculos teóricos entre o Jornalismo para Paz e a comunicação decolonial, o artigo propõe a leitura crítica de narrativas jornalísticas em torno da violência direta (Galtung, 1969) contra mulheres brasileiras. São tensionadas teorias feministas decoloniais para refletir sobre as estruturas de violência provenientes da colonialidade do poder (Quijano, 2009), presentes nos discursos contemporâneos e legitimadoras de violências contra diversos grupos sociais. Por meio de análise de conteúdo, com categorias embasadas no Jornalismo para Paz, demonstra-se como esta abordagem contribui para a leitura de narrativas sobre as violências, e se apresenta como caminho de enfrentamento às lógicas de colonialidade.
Palavras-chave: Jornalismo para a Paz, Estudos feministas, Pensamento decolonial, Violência contra mulheres, Análise de conteúdo.
Resumen: Al establecer vínculos teóricos entre el Periodismo para la Paz y la comunicación decolonial, el artículo propone una lectura crítica de las narrativas periodísticas en torno a la violencia directa (Galtung, 1969) contra mujeres brasileñas. Se tensionan teorías feministas decoloniales para reflexionar sobre las estructuras de violencia provenientes de la colonialidad del poder (Quijano, 2009), presentes en los discursos contemporáneos y que legitiman violencias contra diversos grupos sociales. A través de un análisis de contenido, con categorías basadas en el Periodismo para la Paz, se demuestra cómo este enfoque contribuye a la lectura de narrativas sobre las violencias, y se presenta como un camino para enfrentar las lógicas de la colonialidad.
Palabras clave: Periodismo para la Paz, Estudios feministas, Pensamiento decolonial, Violencia contra mujeres, Análisis de contenido.
Abstract: By establishing theoretical connections between Peace Journalism and decolonial communication, the article proposes a critical reading of journalistic narratives surrounding direct violence (Galtung, 1969) against Brazilian women. Decolonial feminist theories are scrutinized to reflect on the structures of violence stemming from the coloniality of power (Quijano, 2009), present in contemporary discourses and legitimizing violence against various social groups. Through content analysis, with categories based on Peace Journalism, it is demonstrated how this approach contributes to the interpretation of narratives about violence and presents itself as a pathway to confronting the logics of coloniality.
Keywords: Peace Journalism, Feminist Studies, Decolonial Thought, Violence Against Women, Content Analysis.
Introdução
Pensar a constituição histórica e cultural da América Latina é, sobretudo, revisitar a formação de um processo violento instaurado pelos europeus, baseado na exploração e subjugação dos povos nativos, além do domínio territorial, político e econômico de modo forçado. Em um sentido do colonialismo do poder (Quijano, 2005) observamos como se formaram as próprias relações humanas, estabelecidas a partir de uma hierarquia não apenas social e de classe, como também racial e de gênero.
E neste sentido, enquanto crise social, econômica e política que assola toda a América Latina de modo profundo, as demandas apresentadas pelas mulheres dessa região se tornaram secundárias para os projetos de governo instaurados nesses países. Sobretudo porque as representações políticas não se dão em uma esfera plural e diversa, mas sim em um sentido unilateral, privilegiando determinadas camadas sociais e sujeitos que não se apresentam enquanto minorias em seus marcadores raciais e de gênero.
A questão da violência de gênero na região da América Latina não apenas abarca casos domésticos, que já são uma constante, como também cenários que contam com feminicídios, estupros, assédios e abusos de ordem moral e sexual. A região apresenta a maior taxa de mortalidade entre mulheres no mundo, segundo a geógrafa e pesquisadora da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Giovanna Moscatiello (2020). O Brasil é o país com o maior contingente em números absolutos, enquanto El Salvador e Honduras apresentam as maiores taxas em números relativos.
Deste modo, acreditamos ser salutar refletir a condição de gênero das mulheres na América Latina a partir da abordagem decolonial, amparada em especial na autora María Lugones, com sua proposição de pensar um feminismo decolonial. Objetivamos assim, em um primeiro momento, fundamentar as discussões do nosso trabalho sob o olhar atento da perspectiva interseccional, sem, contudo, estabelecer separações entre categorias de análise. A proposta é justamente tensionar os contrastes situacionais de violência vivenciados por essas mulheres, sob uma ótica integrada entre raça, classe e gênero, em um contexto latino-americano.
Entendemos que as marcas de colonialidade estão presentes na estrutura social, e culminam em violências de ordem estrutural e cultural (Galtung, 1969), que tendem a legitimar a violência direita. Ademais, essas violências promovem cisões entre os grupos que integram a sociedade, de modo a determinar quem pode ou não ter acesso aos direitos sociais básicos. Desse modo, o artigo propõe cruzamentos entre a comunicação decolonial e a perspectiva do Jornalismo para a Paz (JP) (Peace Journalism) a fim de analisar como essas abordagens incidem na identificação de narrativas que reproduzem e reforçam violências.
Partimos do pressuposto de que as marcas da colonialidade se fazem presentes na sociedade contemporânea e, tal como a violência cultural, se revelam nas práticas, nos discursos sociais e nas narrativas midiáticas. O jornalismo, com potencial educativo e imbuído de responsabilidade social, é um importante caminho para a naturalização ou ruptura de violências na dimensão cultural, a depender do direcionamento assumido na elaboração de narrativas, que podem enfatizar tanto a violência quanto a desnaturalização das opressões, com vistas para a denúncia e o enfrentamento de dinâmicas de dissenso.
Empiricamente, demonstramos como os direcionamentos do Jornalismo para a Paz (JP) se configuram como categorias para análise de conteúdo. Trazemos como exemplo breves análises de coberturas empreendidas pelo Portal G1, do grupo Globo, no Brasil, acerca da violência direta contra mulheres, por meio de publicações realizadas no Dia Internacional da Mulher, em 2023.
Caminhos do feminismo decolonial: um breve olhar sobre a violência de gênero
Pensar o feminismo decolonial a partir da interseção entre raça, gênero, classe e sexualidade é essencial para uma análise aprofundada da violência sistêmica contra as mulheres na América Latina. Com base em uma perspectiva que considere essas variáveis interligadas ao processo histórico da colonialidade do poder (Quijano, 2005), e, de forma mais assertiva, à colonialidade de gênero proposta por Lugones (2020), é possível compreender como ocorreu a dominação efetiva sobre as mulheres, especialmente as negras/pardas e de baixa renda.
Neste sentido, associamos, em termos estruturais, a discussão proposta por Aníbal Quijano acerca de dominação e exploração do Norte sobre o Sul global, calcada em um capitalismo neoliberal situado em um contexto da modernidade (Giddens, 1991) e, mais especificamente, a importância de analisar a situação de violência enfrentada por mulheres, não em categorias separadas, mas sim em um viés da interseccionalidade, reconceitualizando a lógica da intersecção, como afirma a própria Lugones (2020: 60):
“É evidente que a lógica da separação categorial distorce os seres e fenômenos sociais que existem na intersecção, como faz a violência contra as mulheres de cor. Devido à maneira como as categorias são construídas, a intersecção interpreta erroneamente as mulheres de cor. [...] Por isso, uma vez que a interseccionalidade nos mostra o que se perde, ficamos com a tarefa de reconceitualizar a lógica da intersecção, para desse modo, evitar a separação das categorias existentes e o pensamento categorial.”
Deste modo, o feminismo decolonial, em sua episteme, evita condicionar o pensamento acerca da situação de mulheres em uma lógica de separação de categorias, além de reforçar a importância de não invisibilizar as demais variáveis em relação à questão de gênero. Frente a isso, Lugones (2020) destaca, para além da não fragmentação das opressões, a importância de refletir acerca de um sistema moderno-colonial de gênero, conceito ampliado a partir da teoria da colonialidade do poder, introduzida por Quijano. Tal axioma levantado por Lugones corrobora que existe uma relação intrínseca entre trabalho, sexo e colonialidade no sentido do controle exercido pelo sistema moderno-colonial de gênero, promovendo uma espécie de “autoridade coletiva[1]” (2020: 79), instrumentalizada por meio da relação capital x trabalho.
Para Lugones se faz necessário “entender a organização do aspecto social para conseguirmos tornar visível nossa colaboração com uma violência de gênero sistematicamente racializada” (2020: 79), ou seja, compreender o todo para entender como funcionam as implicações que resultam em práticas violentas contra mulheres racializadas, sob jugo do sistema colonial de gênero. Em outras palavras, pensar a violência de gênero em um âmbito latino-americano, é sobretudo, ter como eixo central a relação classe e raça associados à perspectiva de gênero.
Neste sentido, desenvolver mecanismos de conscientização coletiva acerca dos fundamentos que devem permear a luta do feminismo decolonial, sobretudo na América Latina, é acima de tudo, não pensar raça e classe como aspectos à parte, ou menos importantes, em relação às causas que servem de pilar para o movimento feminista. Afinal, ainda que o feminismo tenha se tornado global, foi no ocidente, a partir das categorias mulher, gênero e sororidade (em um cenário primeiro europeu, depois estadunidense) que os fundamentos do movimento feminista moderno/contemporâneo se formaram em um viés da branquitude, de classe média, em um contexto da chamada “família nuclear[2]” (Oyewùmí, 2020: 85).
Assim, neste trabalho tencionamos refletir acerca da condição de violência sistêmica em relação às mulheres latino-americanas a partir das considerações de autoras feministas que trazem em suas reflexões uma perspectiva decolonial, como Lugones, Oyewùmí e Espinosa Miñoso. Dentre outras questões, essas pensadoras defendem uma crítica à razão feminista moderna eurocêntrica, promovendo assim uma ruptura de pensamento sobre as disputas de sentido e como são construídas as hegemonias de poder e relações hierárquicas, sobretudo, a partir das categorias raça e classe associadas à questão de gênero.
Deste modo, salientamos a importância de destacar como os feminismos hegemônicos do Norte acabam por não contemplar a perspectiva decolonial dos feminismos do Sul global, sobretudo por não existir, de fato, um “sujeito universal” mulher, mas sim uma diversidade de sujeitos mulheres que resistem em um campo vivo de disputas de sentidos, cujos corpos se apresentam demarcados por traços de violências de ordem simbólica e material, sobretudo em contextos de imensa desigualdade social, como é o caso da América Latina.
No entanto, Espinosa Miñosa (2020: 100) questiona também esse ethos, essa identidade cultural que caracteriza uma suposta genealogia latino-americana:
“A pergunta fundamental não é sobre o que caracteriza uma identidade latino-americana previamente dada, mas sobre o que a torna possível, quais são suas condições de existência. De que maneira a identidade latino-americana foi produzida como uma forma de ser e pensar?”
As discussões propostas por Espinosa Miñosa só ratificam como a questão da colonialidade do poder está diretamente interligada ao processo de dominação de gênero na América Latina, sob jugo da colonialidade de gênero, como proposto por Lugones. Afinal, o que nos faz ser quem somos, enquanto mulheres, decorrente de um processo histórico-colonial impetrado pela violência? Outra pergunta cabível trazida à tona pela autora seria “O que estamos fazendo, enquanto feministas da América Latina, com o nosso fazer e o nosso dizer?” (Espinosa Miñosa, 2020: 102). Uma possível resposta a tal indagação seria como estamos repensando nossos dilemas, contradições, disputas, estratégias políticas e construção de discursos na tentativa de criar uma razão feminista de ordem coletiva e própria de uma diversidade presente no território latino-americano.
Neste estudo, propomos um entrelace com o campo da comunicação, a partir de uma perspectiva decolonial. A proposta comunicacional visa ampliar a possibilidade de que vozes subalternas se tornem protagonistas de suas próprias lutas, especialmente em relação à violência de gênero, no contexto do Jornalismo para a Paz. Levamos em conta a comunicação e, especialmente, o jornalismo, como potenciais agentes de transformação social, visto que os conteúdos elaborados e propagados pelos veículos midiáticos podem caminhar no sentido de promover o enfrentamento dessas violências na dimensão cultural. Ademais, podem influenciar o engajamento social diante dessas pautas.
Propomos a seguir algumas reflexões em torno de práticas comunicacionais que se distanciam dos cânones historicamente legitimados no campo, ao passo que indicam outras direções possíveis para um fazer comunicacional mais democrático, plural e engajado, visibilizando narrativas historicamente silenciadas por meio das múltiplas violências inerentes a um contexto com fortes marcas de colonialidade. A comunicação decolonial e o Jornalismo para a Paz têm em comum o enfrentamento às opressões, ao passo que sugerem outras formas de narrar.
Comunicação Decolonial e Jornalismo para a Paz: possíveis relações
Amparamo-nos nas perspectivas teóricas da comunicação decolonial e no Jornalismo para a Paz que, embora distintas, podem ser relacionadas quando a finalidade é a leitura crítica diante de estruturas de violência e opressão. Como visto anteriormente, o feminismo decolonial tensiona as lógicas do patriarcado, cujas bases naturalizam e legitimam a violência na medida em que colocam a masculinidade em posição de superioridade. Nesse sentido, consideramos que a comunicação midiática, especialmente no jornalismo, pode contribuir para reforçar determinadas narrativas de violência ou desconstruí-las, a depender do direcionamento assumido. É esta a chave para se estabelecer vínculos epistemológicos entre a comunicação decolonial e o JP. Neste tópico, apresentamos alguns marcos conceituais dessas perspectivas.
A comunicação decolonial nasce no contexto do pensamento decolonial, uma teoria que apresenta críticas à colonialidade, isto é, as marcas de opressão colonialista que persistem na sociedade mesmo com o término do colonialismo no sentido de administração territorial. Como explica Ballestrin (2013), a colonialidade se expressa em diversas esferas, dentre elas o poder, o saber e o ser, impondo formas de pensar e de existir que têm como parâmetro o norte Global branco, masculino, cristão e capitalista.
Na América Latina, se destacam as contribuições do coletivo Modernidade/Colonialidade (M/C), constituído na década de 1990. Os pensadores e pensadoras integrantes do grupo promoveram a renovação crítica e utópica latinoamericana e radicalizaram o argumento pós-colonial no continente ao apresentarem a proposta de “giro decolonial” (Quijano, 2009). O M/C defende a opção decolonial nos níveis epistêmico, teórico e político, como possibilidade de compreender criticamente a permanência da colonialidade, manifestada na vida pessoal e coletiva (Ballestrin, 2013).
Amaral (2021) destaca que o pensamento decolonial teve como referência os estudos pós-coloniais, no entanto, tal perspectiva se tornou insuficiente para o reconhecimento das identidades dos grupos e sujeitos subalternos, que sempre eram equiparados aos colonizadores. A proposta decolonial, por sua vez, reconhece que os grupos de regiões subalternas “podem elaborar conhecimento e oferecer visibilidade a partir das realidades vividas dentro de seus espaços sem a necessidade de observação e interface de olhares colonizadores” (Amaral, 2021: 474).
Em algumas áreas, o pensamento decolonial é consolidado, como é o caso dos estudos feministas, que trazem outros horizontes de análise a partir das interfaces de gênero, raça e classe (Amaral, 2021). No que tange à comunicação, a decolonialidade busca contemplar as narrativas que, costumeiramente, são silenciadas pelos esquemas rígidos que perpassam o campo e que são reproduzidos frequentemente pelos canais midiáticos situados em lógicas hegemônicas de produção. A crítica decolonial à epistemologia da comunicação se refere às teorias clássicas, centradas em pontos de vista tecnocêntricos e funcionalistas, em que o processo comunicacional é entendido como uma relação de causa e efeito. Essa compreensão, porém, ignora a dimensão convivial, dialógica e dialética em torno da comunicação, que é um processo social (Amaral, 2021; Torrico Villanueva, 2019).
Castro Lara (2023) traz algumas reflexões sobre como o campo da comunicação é afetado pelos traços de colonialidade do saber, comuns às ciências sociais, definidas por meio dos cânones que, ao longo da história, definiram as dinâmicas da ciência. Segundo a autora, a modernidade ocidental impôs uma ciência sustentada por mecanismos de hierarquizações e opressões, definida por ela como prática de um capitalismo cognitivo. Nesse contexto, o conhecimento comunicacional também foi colonizado e “posto a serviço de um padrão pragmático e positivista de modernidade/colonialidade” (Castro Lara, 2023: 74, tradução nossa). Por isso, a principal crítica dos teóricos decoloniais diante das teorias da comunicação é a ênfase na transmissibilidade e na técnica. Conforme assevera Torrico Villanueva (2019), entender a comunicação a partir da transmissão é reproduzir as dinâmicas opressoras da colonialidade: há a existência de um emissor, que sabe, e de um receptor, que pouco sabe.
Frente a esta crítica, Torrico Villanueva (2019) escreve sobre a premente necessidade de pensar a comunicação “ex-cêntrica”, isto é, deslocada dos centros de saber que delinearam o campo ao longo da história. Para o teórico boliviano, a visão ocidental, predominante nas ciências da comunicação, carrega consigo uma aura de hierarquia colonial, refletida “tanto na relação entre emissor e receptor quanto na prerrogativa de gerar conhecimento relevante, atribuído quase exclusivamente à academia dos países que tradicionalmente dominam o âmbito do conhecimento” (Torrico Villanueva, 2019: 95). Em suma, a comunicação decolonial incide no reconhecimento das diversidades de identidades que contribuem tanto na elaboração epistemológica como nas práticas comunicacionais (Amaral, 2021). Ao encontro desses argumentos, Castro Lara nos ensina que a problemática da comunicação
“não pode se restringir às questões técnicas, utilitárias ou mídia centristas, como sugere o campo da Comunicação institucionalizado no ocidente. O campo deve responder a um contexto ontológico-epistémico-político-histórico-ético-territorial e explorar uma outra comunicação possível, ancorada em outras existências e repertórios” (Castro Lara, 2023: 75, tradução nossa)
Desse modo, a comunicação decolonial segue na contramão da lógica desumanizadora reforçada pela comunicação ocidental, que tende a reforçar silenciamentos e invisibilidade das tramas sociais e dos grupos e sujeitos afastados das lógicas dos emissores. Trata-se, pois, de uma comunicação que parte das camadas sociais subalternizadas, cuja mobilização caminha no sentido de combater e resistir frente às diversas violências provenientes da colonialidade.
É neste ponto que estabelecemos relações entre a comunicação decolonial e o Jornalismo para a Paz. Este último trata de uma proposta elaborada no cerne dos Estudos para a Paz (Peace Studies), na década de 1970, e tem como principal porta-voz o sociólogo norueguês Johan Galtung. Essa forma de fazer jornalismo foi articulada em contraposição à supervalorização da violência direta, observada principalmente no jornalismo praticado pelas grandes mídias tradicionais. O JP evidencia as violências de ordem estrutural e cultural, pois incidem na naturalização da violência direta (Salhani, Santos e Cabral, 2020). Segundo Galtung (1969), a violência direta é a camada visível, na qual podemos identificar vítimas e agressores; a estrutural, por sua vez, alude aos sistemas sociais, políticos e econômicos, que geram desigualdades e, portanto, opressões. Já a violência cultural se relaciona às camadas mais profundas, pois se trata da violência presente nos discursos e práticas socioculturais, que são assumidos com naturalidade e, portanto, legitima as categorias anteriores; a título de exemplificação, podemos considerar a misoginia como expressão de violência cultural, presente na estrutura social e desencadeadora de agressões contra as mulheres.
Consideramos o potencial do jornalismo na legitimação ou desconstrução das lógicas de violência cultural presentes na sociedade (Cabral e Salhani, 2017). A prática, nesse sentido, visa promover a cultura de paz, tendo em vista a premissa de estimular o posicionamento crítico da sociedade acerca das violências presentes nos discursos e nas narrativas, pois, como assevera Arévalo Salinas (2014), o foco em aspectos negativos da realidade social gera desconfiança e medo e, por consequência, o conformismo que inibe a mobilização popular para a transformação. O JP surge como um itinerário crítico para reorientar a prática jornalística em contextos de guerra, e, conforme Lynch e McGoldrick (2007), os estudos sobre a abordagem se popularizaram nos anos 1990 entre os profissionais de mídia em geral, pois, para além das guerras, possibilita olhar para as coberturas de violências diversas que perpassam a sociedade. Destarte, “é possível que editores e repórteres, visando ao desenvolvimento do Jornalismo para a Paz, façam as escolhas do quê e como reportar, de modo a criar oportunidades à sociedade de considerar e valorar a não-violência como resposta aos conflitos” (Cabral e Salhani, 2017: 4).
Salhani, Santos e Cabral (2020) trazem para discussão o argumento de Kristin Orgeret (2016), que relaciona os fundamentos do JP com os do feminismo pós-colonial. Esta vinculação é possível porque ambos se voltam para a inclusão e pluralidade de vozes e priorizam a realidade de mulheres e homens com base no contexto social, econômico e político. Assim, o itinerário de Galtung pode ser agregado à perspectiva da comunicação decolonial, pois se contrapõe às lógicas de violência que subjugam as mulheres, sempre com vistas para os marcadores de gênero, classe, raça, nacionalidade, entre outros. Destarte, o JP é orientado para as soluções, pois destaca iniciativas que promovem a mediação e que denunciam violências. Ademais, contempla todos os sujeitos envolvidos no conflito e não somente aqueles que ocupam posições de poder, de modo que os indivíduos costumeiramente silenciados possam ser ouvidos nas coberturas (Cabral e Salhani, 2017).
“O jornalismo, em sua natureza, deve servir ao interesse público e primar pela pluralidade de abordagens e opiniões e pela diversidade, o que é, até mesmo, assegurado pela Legislação Brasileira: a Lei nº 11.652, de 2008, outorga que a prestação de serviços de radiodifusão pública preze pela não discriminação religiosa, político-partidária, filosófica, étnica, de gênero ou de opção sexual” (BRASIL, 2008) (Salhani, Santos e Cabral, 2020: 6)
Inferimos, portanto, que os vínculos entre a comunicação decolonial e o JP apontam caminhos para a efetiva análise crítica de conteúdos jornalísticos acerca da violência contra mulheres, com o objetivo de demonstrar como se dá o tratamento desta temática por um veículo inserido no contexto da grande mídia brasileira: há o esforço de tratar a violência contra as mulheres de forma crítica ou o veículo se limita a externalizar a violência patriarcal, fruto de uma realidade que ainda reproduz visões colonialistas?
A Aplicabilidade do Jornalismo para Paz diante da Análise de Conteúdo
No presente tópico, empregamos as categorias do JP para demonstrar como a abordagem pode ser agregada à metodologia da análise de conteúdo. Como explica Bardin (2011), as categorias são entendidas como “gavetas” ou “rubricas” que permitem a classificação dos elementos semânticos que constituem determinada mensagem. Destarte, se trata de um processo que viabiliza a consecução de análises qualitativas, em consonância com as teorias que integram o corpus de determinado estudo.
Procedemos com a análise de conteúdo de textos jornalísticos divulgados pelo Portal G1, do grupo Globo, no Brasil. A escolha se deu pelo fato de ser um dos portais noticiosos mais acessados do Brasil, além de pertencer a um grupo comunicacional situado na lógica hegemônica de produção de conteúdos. Criado em 2006, o portal alcança média mensal de 55 milhões de usuários[3]. Os conteúdos jornalísticos elaborados pelo G1 têm abrangência nacional, internacional e regional. Além do site, o conteúdo pode ser acessado por meio de aplicativo para celulares.
Selecionamos o período de março de 2023 pelo fato de ser o mês dedicado à comemoração pelo Dia Internacional da Mulher. Inicialmente, no campo de busca do próprio portal, realizamos uma pesquisa com os termos “feminicídio” e “violência contra a mulher”, a fim de identificar registros de narrativas focadas na violência direta. Identificamos 257 registros de matérias concentradas nessa temática, o que ressalta a urgência de pensar como se dá a representação jornalística diante dessas manifestações de violência. Para a análise no presente artigo, focaremos nos conteúdos divulgados em 8 de março, data que contou com o maior número de matérias: 20, no total. Neste universo, apresentaremos qualitativamente a análise de algumas reportagens, com o fim de aplicar o JP como possibilidade analítica.
As categorias de análise levam em conta os critérios que diferenciam o jornalismo para a paz do jornalismo de guerra/violência, o que nos leva a compreender as dinâmicas que prevalecem nas narrativas, isto é, se são voltadas para a ressignificação ou se estão limitadas à mera reprodução da violência direta. A partir das articulações teóricas apresentadas, estruturamos as análises a partir das seguintes categorias de JP, sintetizadas por Cabral e Salhani (2017): a) narrativa orientada para a paz; b) orientada para a verdade; c) orientada para as pessoas; d) orientada para soluções.
Uma narrativa orientada para a paz se contrapõe às narrativas que focam exclusivamente na violência direta; nesse sentido, há o esforço de trazer humanização a todas as partes envolvidas, ao contrário do jornalismo voltado para a violência, cujo foco é realçar o antagonismo entre os sujeitos, de modo a apresentar uma parte ganhadora e outra perdedora. A orientação para a verdade também é característica do JP, visto que o jornalismo de violência tende a ser orientado para a propaganda, isto é, com a ênfase nas “verdades” dos grupos dominantes. As narrativas orientadas para as pessoas correspondem à multiplicidade de vozes contempladas, visto que o jornalismo de violência considera somente as fontes oficiais, ou seja, os grupos hegemônicos (elites). No que tange à orientação para soluções, é característica do JP apresentar alternativas diante do conflito narrado, ressaltando iniciativas de paz voltadas à prevenção de novos conflitos; o jornalismo de violência, por sua vez, foca na vitória e no cessar-fogo, sem trazer para o debate as críticas em torno do conflito.
A reportagem “Dia da mulher: tortura, ciúme e ameaças antecederam morte de vítimas de feminicídio em 2022[4]” é um exemplo do direcionamento jornalístico que se afasta da perspectiva do JP. A narrativa parte da violência direta praticada contra mulheres e inclui relatos explícitos de agressões, como no trecho: “Francielle foi torturada com choques elétricos e pauladas em frente ao filho, de 1 ano, pelo marido [...]. Ele também arrancou os dentes da mulher com alicate de unha e a esfaqueou nas costas e na costela”. O relato da violência é típico do jornalismo de guerra/violência, ao qual o JP faz severa oposição.
A matéria traz este e outros relatos de violência direta, sempre de forma detalhada, e em momento algum apresenta visões críticas sobre o contexto subjacente à violência. Há um infográfico que ilustra o aumento nos casos de feminicídio no Brasil, de 2017 a 2022, todavia, em momento algum o conteúdo problematiza as diversas camadas inerentes a estes casos. Ademais, não existem menções sobre os marcadores de classe e raça, que são fundamentais para que os leitores possam identificar as variáveis relacionadas à prática de violência contra a mulher. Ao encontro do argumento de Arévalo Salinas (2014), a superexposição da violência cerceia o engajamento social em prol da ressignificação das realidades de opressão. Ao contrário do que supõe o JP, esta narrativa é focada na violência e não caminha ao encontro de soluções; aborda a penalização dos agressores, mas não indica os mecanismos possíveis para a efetivação de denúncias.
A reportagem “Números de uma tragédia anunciada: 10 mulheres assassinadas todos os dias no Brasil”[5], assinada por Samira Bueno e Isabela Sobral, traz um recorte bastante específico acerca da realidade de violência contra mulheres no país. O foco está na apresentação dos dados do Monitor da Violência acerca dos feminicídios praticados no Brasil em 2022. A narrativa não se concentra exclusivamente na apresentação dos dados numéricos, o que seria uma característica relacionada ao jornalismo com ênfase na violência, mas traz alguns pontos analíticos diante desses números, como mostra o fragmento a seguir:
“Em relação à qualidade da informação sobre o registro dos feminicídios, é de se destacar que estamos diante de uma melhoria na classificação destes crimes. Ainda que estes dados tenham como fonte o boletim de ocorrência, o primeiro registro formal daquele assassinato e que eventualmente será reclassificado, temos observado que em vários estados o percentual de feminicídios em relação ao total de assassinatos têm crescido, o que denota uma melhoria no trabalho de investigação da Polícia Civil” (Bueno e Sobral, 2023: web)
O texto “Aumento dos feminicídios no Brasil mostra que mulheres ainda não conquistaram o direito à vida[6]”, assinado pelas pesquisadoras da Universidade de São Paulo (USP), Debora Piccirillo e Giane Silvestre, possui teor analítico diante da realidade exposta na narrativa anterior. Neste caso, não são apresentados aspectos da violência direta, que dão espaço para a externalização de pontos de vista de duas especialistas na temática, o que vai ao encontro da perspectiva do JP, na medida em que proporcionam ao público leitor o contato com uma visão crítica e analítica a partir de um dado social. São apresentados os números do Monitor da Violência, que revelam a expansão dos casos de feminicídio e homicídio de mulheres na maior parte dos estados brasileiros. O foco em dados estatísticos, desprovidos de análises e interpretações, é marcante no jornalismo de guerra/violência. No entanto, na narrativa publicada no G1, as pesquisadoras autoras indicam argumentos que auxiliam na compreensão sobre a realidade, como no seguinte fragmento, cuja crítica é direta quanto ao patriarcalismo colonialista, que impera na sociedade:
“motivações são as mais variadas, os feminicídios têm sempre o mesmo cerne: a desigualdade de gênero. Esta desigualdade, que está presente nas relações sociais, é baseada na crença de que as mulheres são subalternas aos homens e que suas vontades são menos relevantes. A violência de gênero reflete a radicalização desta crença que, muitas vezes, transforma as mulheres em objetos e "propriedade" de seus parceiros. Os casos de feminicídio estampados nos jornais quase que diariamente mostram como a iniciativa de romper com um relacionamento indesejado resulta, com frequência, em morte ou ameaça por parte do parceiro que não aceita o fim da relação” (Piccirillo e Silvestre, 2023: web)
Observamos que a narrativa em questão se aproxima da perspectiva do JP ao passo que é orientada para a promoção da paz, por meio da exposição e denúncia de uma realidade caracterizada pela expansão dos casos de feminicídio. Para além da exposição da violência, traz o olhar crítico diante dos dados, explica as legislações vigentes e, portanto, se volta para a solução e enfrentamento da violência.
O texto “Idoso é preso suspeito de estuprar neta após mãe da menina denunciar crime, em Goiânia”[7], escrito por Michel Gomes, enfatiza um ato de violência direta. Com abordagem curta, apenas relata a ocorrência do crime e expõe a penalização. Há somente o relato da autoridade responsável pela condução do caso. A abordagem carece de informações mais precisas quanto à denúncia de crimes como este, bem como de contextualizações contundentes sobre casos de estupro no Brasil, uma violência de raiz misógina, em um contexto marcadamente patriarcal.
Por fim, a matéria “Dia internacional da mulher: agente federal ensina técnicas de defesa pessoal para agressões mais comuns contra mulheres[8]”, assinada por Samantha Silva, versa sobre a prática da defesa pessoal em situações de risco. A ênfase está em apresentar técnicas de autodefesa, inclusive por meio de vídeos intercalados com o texto. A matéria é focada na região de Piracicaba (SP), que, segundo a matéria, registra média de um estupro a cada 41 horas. Na sequência, apresenta o agente da Polícia Federal, que é instrutor de Kalah Combat System, um sistema de combate israelense “criado para proteger e salvar vidas”; a partir daí, a matéria expõe três situações comuns de agressão às mulheres e demonstra, por meio de vídeos, como elas podem agir para autodefesa.
Observamos a inexistência de qualquer problematização acerca da realidade, pois o texto parte do entendimento de que a violência contra as mulheres está na estrutura social e que, desse modo, cabem às mulheres o conhecimento sobre técnicas de defesa pessoal. Neste sentido, não indica caminhos para o enfrentamento dessa dinâmica estrutural; apresenta índices da violência na região da cidade paulista, mas não há indicativos de como essa situação pode ser ressignificada. O caminho apresentado é o da autodefesa, o que pressupõe certo conformismo com a realidade de violência estrutural e cultural.
Considerações finais
O objetivo do presente artigo foi estabelecer relações entre as perspectivas teóricas da comunicação decolonial e do Jornalismo para a Paz, por meio de cruzamentos com o feminismo decolonial. Partimos do pressuposto de que essas teorias se complementam na medida em que indicam caminhos para o enfrentamento das diversas violências que impactam as mulheres. Essas opressões advêm de lógicas colonialistas, latentes na estrutura social, que afetam discursos e práticas, e impactam os produtos culturais e midiáticos, na medida em que reproduzem tais lógicas.
Entendemos que o jornalismo, imbuído de sua função social, pode contribuir com a desnaturalização das violências. Encontramos no Jornalismo para a Paz a possibilidade de analisar criticamente narrativas jornalísticas acerca da violência contra as mulheres. As breves análises apresentadas indicam a necessidade de descolonizar o jornalismo e trazer novos olhares para a prática, sobretudo em narrativas em torno das múltiplas violências que incidem sobre grupos historicamente minorizados.
O olhar interseccional, por sua vez, pode encontrar, no jornalismo, um vasto rol de possibilidades para a elaboração de conteúdos de enfrentamento às opressões colonialistas, que geram e fortalecem violências de ordem estrutural e cultural. O artigo foi um ponto de partida para análises mais aprofundadas sobre essas intrincadas relações epistemológicas.
Referências bibliográficas
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Notas