Dossiê: Ócio e Contemporaneidade
Editorial

A proposta do dossiê “Ócio e Contemporaneidade” nasce a partir dos diálogos entre investigadores que integram colegiados de estudiosos da temática “ócio”, sobretudo em sua acepção contemporânea, segundo a qual o termo e as ideias que se convocam a partir desse âmbito conceitual são paradoxais e complexos.
A partir dos diálogos que ocorreram ao longo de um tempo considerável (2013 a 2019), desenvolvidos em encontros promovidos em eventos realizados no Brasil, no Chile, no México, em Portugal, na Espanha e no Uruguai, convocados pela Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Estudos do Lazer e afins – ANPEL, pela Asociación Iberoamericana de Estudios de Ocio – OTIUM e pela Word Leisure and Recreation Asociation – WLRA, considerando que havia bom material para a interessante proposta de divulgar reflexões e dados coletados, instigamos a Revista Subjetividades a nos abrir espaço para lançarmos luz sobre o que vem se organizando em nosso âmbito nos diálogos sobre as apreensões e aplicações do termo ócio nesse momento histórico-social.
Através das contínuas reflexões promovidas pelo Laboratório Otium - Grupo de Estudos Multidisciplinares sobre Ócio e Tempo Livre, do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza - Unifor, e em diálogo com grupos congêneres, partimos da premissa de que o homem contemporâneo encontra-se diante de um esgotamento por estar imerso em uma dinâmica social frenética que o rege, e que esse estilo hegemônico o distancia de si mesmo, daquilo que, de fato, é importante para um estilo mais saudável para enfrentar os desafios de nosso tempo. Nessa perspectiva, encontramos respaldo na obra recente de Byung-Chul Han, La sociedad del cansacio (2018), que de forma contundente revela apreensões sobre esse panorama.
Sabemos também que, não faz muito tempo, referir-se ao ócio apenas convocava a ideia hegemônica de ociosidade, difundida por domínios elaborados a partir de valores apregoados desde o pensamento industrial, regidos por uma ética que elaborou valores que ainda se refletem nos jargões, que sustentam, ainda, a lógica de exploração operária. Assim, expressões, como “ócio é a oficina do demônio” e “trabalhar é uma forma de adorar a Deus”, ainda alimentam valores que nos afastam de outros aspectos do ócio (Aquino & Martins, 2007; Martins, 2013, 2016, 2018).
No que se refere à compreensão atribuída ao ócio na Antiguidade, pelos gregos, até os dias atuais, sabe-se que muito se modificou. Anteriormente, o que estava vinculado a um valor nobre da vida, gerador de atitudes criativas e contemplativas, hoje ainda muito se associa, de acordo com a lógica do capital, à ideia de improdutividade, de “perda de tempo” (Aquino & Martins, 2007; Martins, 2013, 2016, 2018).
Observamos também que, dos anos 1980 até a atualidade, outras formas de compreender o trabalho, o tempo livre, o lazer e o ócio ofereceram-nos outras visões para entendermos a dinâmica social e subjetiva do ócio frente à retomada de novas apreensões, por exemplo: o que nos convoca a ideia do tão apregoado “ócio criativo”? Desde então, somos convocados a repensar as configurações do que há tão pouco tempo era um lugar nefasto. Passamos a ouvir sobre o ócio, reconhecendo-o como um valor potencializador da economia, do trabalho, do tempo livre, da vida em sociedade e do homem. De “oficina do demônio” a palavra passou a ser um âmbito para toda possibilidade de “inovação”. Afinal, para que os processos criativos se iniciem, faz-se necessário um âmbito de apropriação de si, do mundo, dos movimentos que põem em criação “o novo”, dos inventos, das filosofias, das descobertas. E é esse, hoje, o lugar do ócio.
Em relação ao homem contemporâneo, este vive no fluxo da aceleração, através do qual não se deve perder tempo com atividades não produtivas. Corroborando, assim, as diretrizes vigentes em nome da inclusão social e das promessas de satisfação que ela oferece na intensificação e na imediatez dos prazeres do corpo (Aquino & Martins, 2007; Beriain, 2008; Lipovetsky, 2004; Lopes, 2018; Martins, 2013, 2016, 2018).
Em Lipovetsky (2004) encontramos que a cultura do excesso e da urgência desencadeia pessoas mais angustiadas, frágeis, individualistas e consumistas. E, assim, mais isoladas da coletividade. O consumismo, portanto, é percebido como um dos fenômenos crescentes nesse estilo de vida, sendo fonte de prazer e sofrimento que centraliza nas sensações do corpo os objetivos da existência, acentuando o sofrimento psicossocial mediante patologias de diversas ordens.
Nesse contexto, regido pela lógica do consumo, o conceito hegemônico no qual se toma a palavra ócio, muitas vezes, encontra-se associado à “ausência de trabalho”, “diversão”, “libertinagem”, sendo expresso no discurso corrente como estando “contaminado negativamente pelo vício da ociosidade (...)” (Cuenca, 2004, p.26). Contudo, ainda segundo o mesmo autor em torno das contribuições que delineia, o ócio, paradoxalmente, representa uma forma de ser, com especificidades subjetivas da experiência vivida, e pode ser explicado a partir de três bases de sustentação: a motivação intrínseca, a liberdade percebida e o desprendimento de atividades regidas pela obrigação, ou seja, realizadas com fim em si mesmas (Cuenca, 2004, 2016, 2018; Maciel, Saraiva & Martins, 2018; Martins, 2013, 2016, 2018).
Em Bauman (2001) encontramos que a sociedade que ingressou no século XXI resguarda algumas características marcantes, como a compulsiva vontade de mudança, o desengajamento, a indiferença, o distanciamento, a modernização obsessiva, a singularidade do individualismo como padronização e a busca de vivências intensas. O autor sintetizou esse modo de vida na expressão “modernidade líquida”.
Observando o pensamento resultante dos estudos atuais sobre ócio, percebe-se que cada novo estudo tenta imprimir novas formas para classificá-lo, com o intuito de facilitar o aprendizado de forma sistematizada, encontrando em torno do termo complexidades históricas e conceituais.
Assim, explicitado o contexto no qual lançamos a ideia deste dossiê, apresentamos, a seguir, os textos selecionados. Neles lançamos o convite para observarmos aplicações e compreensões sobre o ócio em abordagens diversas e pensadas de forma a amparar ideias; incentivando, cada vez mais, a promoção do diálogo que vem nos alimentando e tem transformado em deleite as novas elaborações, as apropriações, os caminhos entre termos, construindo pontes com outros conceitos próximos e, muitas vezes, com outros, ditos antagônicos. A ideia é continuarmos sempre a ampliar o foco, pois, de todo o vivido até aqui, a única certeza é a de que o olhar da experiência advinda dos diálogos nos convida a ajustar conceitos para a efetiva compreensão das práticas contemporâneas em seus diversos contextos.