Artigos
Recepção: 14 Abril 2014
Aprovação: 30 Abril 2014
DOI: https://doi.org/10.5380/rinc.v1i1.40251
Resumo: O presente artigo objetiva traçar aquilo que, nos dias atuais, pode ser tido como conceito de constituição, partindo-se de uma retrospectiva até chegar no que vem, atualmente, sendo denominado Estado constitucional, onde aquela incorpora densidade valorativa tal que a autoriza a se qualificar como a ordem jurídica fundamental da coletividade.
Palavras-chaves: Constitucionalismo, constituição, estado constitucional.
Abstract: This article intends to delineate what, nowadays, can be known as a concept of constitution, starting from a retrospective until it reaches what is currently been called constitutional State, where the constitution incorporates evaluative density, such that authorizes it to qualify itself as the fundamental law of society.
Keywords: Constitutionalism, constitution, constitutional state.
1. À BUSCA DE UM CONCEITO
Um dos desafios mais instigantes e, ao mesmo tempo, penosos, da ciência jurídica - e que é reflexo dos mistérios que envolvem a verdade científica - é a procura da definição de seus institutos. Essa circunstância se faz presente, com intensidade, quando a tarefa é a de buscar uma compreensão do que seja constituição.
A problemática se põe seja pela pluralidade semântica que o vocábulo “constituição” faz evocar, ou, ainda, pela existência, no plano do tecnicismo jurídico, de inúmeras definições que, na sua maioria, portam, não obstante as suas diferenças, elementos comuns.
Essa preocupação não passou despercebida por García-Pelayo1, ao afirmar que o conceito de constituição é um daqueles a oferecer uma maior pluralidade de formulações, o que acontece por dois motivos. Inicialmente, aponta o autor a circunstância dos conceitos jurídico-políticos, em sua maioria, serem conceitos polêmicos, por referirem-se à substância da existência política de um povo. Noutro passo, há uma razão de ordem objetiva, consistente no fato de a constituição formar um liame entre diversas esferas da vida humana, nas quais se inter-relacionam setores da realidade política, jurídica, sociológica, entre outros.
A dificuldade em se conceituar o que venha a ser a constituição fez com que a doutrina se lançasse a sistematizar as mais diversas definições. Talvez seja possível atribuir-se um pioneirismo a Carl Schmitt2, cujo relevo de sua lição é demonstrado pela sua atualidade inconteste.
Delineia aquele uma significação absoluta e outra relativa de constituição. A primeira delas, no entender do autor, permite abrigar quatro sentidos, a saber: a) a maneira concreta de ser de qualquer unidade política (um Estado particular e concreto); b) a forma especial de domínio que afeta cada Estado, ou seja, a constituição é identificada com a forma de governo; c) o princípio do futuro dinâmico da unidade política, isto é, o fenômeno da contínua renovação da unidade política; d) a regulação legal fundamental, ou seja, o sistema de normas últimas e supremas (Constituição como norma das normas), concepção que parece ter alcançado uma maior aceitação doutrinária.
Noutro pórtico, é cogitado o sentido relativo ou formal, consistente numa lei fundamental determinada. Desprende-se, assim, de todo e qualquer critério objetivo e de conteúdo. Afiguram-se indiferentes quais os temas disciplinados pelo seu texto3.
Volvendo-se a García-Pelayo4, é encontradiço o desenvolvimento de três concepções distintas. Uma delas é a concepção racional normativa, a visualizar a constituição como um sistema de normas que disciplina de forma total e exaustiva as funções fundamentais do Estado, regulando os seus órgãos, o âmbito de suas competências e as relações entre eles. É dele característico a consideração da constituição unicamente como a constituição expressa juridicamente e de forma escrita, operando como garantia de racionalidade frente à irracionalidade dos costumes. Aproxima-se do conceito formal de constituição.
Em seguida, traz o autor o conceito histórico tradicional, a preconizar que a constituição de um povo não se qualifica como um produto da razão, mas sim uma estrutura que resulta duma lenta transformação histórica. Daí que aquela não é a resultante de um ato único e total, mas, diversa e assiduamente, de atos parciais que são o reflexo de situações concretas, bem assim de usos e costumes de lenta formação. Por isso, afigura-se cristalino que a constituição não necessita revestir-se da forma escrita integralmente, não se podendo obscurecer o costume, o qual deve ostentar a mesma qualidade que lhe corresponde na teoria do Direito elaborada sob as bases historicistas5.
Numa terceira ordem, traz o autor o conceito sociológico, o qual, apartando-se das concepções racional e histórica, louva-se nas seguintes constatações: a) a constituição é preferencialmente uma forma de ser e não de dever ser; b) a constituição não é produto do passado, mas imanência de situações e estruturas sociais do presente; c) a constituição não se apoia numa norma transcendente, revelando que a sociedade tem a sua própria “legalidade”, refratária à pura normatividade e impossível de ser domada por esta; d) o que deverá possuir relevo é a vigência e não a validade ou a legitimidade.
Singulariza o conceito sociológico a compreensão de que a estrutura política real de um povo não é definida pelas regras normativas, sendo, ao invés, expressão de uma infraestrutura social. Dessa maneira, se as normas escritas se pretendam vigentes, terão de se amoldar à sistematização da realidade social que lhes subjaz6.
Presentes essas diversas concepções, passaremos a enumerar algumas tentativas de definição.
Assim, enfocando o seu componente revolucionário, resultante do movimento constitucionalista, o qual teve como finalidade o rompimento com o passado do absolutismo monárquico, tem-se Jorge de Miranda7, que, às voltas com a questão em escrito anterior à Constituição da República Portuguesa de 1976, aponta a constituição como um diploma normativo que vai além do seu traço de dotar um povo duma organização, a revelar a saliência do seu papel de garantia em favor dos cidadãos, pois, somente assim, ter-se-á como possível a limitação do poder8.
Esse modo de ver, de feição restritiva, justamente porque inicial, inspira-se no constitucionalismo liberal, que gravitou em torno do art. 16º da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 26 de agosto de 1789, ao enunciar: “Toda sociedade, na qual não se assegure a garantia dos direitos nem se determine a separação de poderes, não tem Constituição”.
Permeia-se, assim, a fusão do elemento formal, consistente na presença de documento escrito, com um campo de disciplina material bastante reduzido, balizado pelo regramento da atuação dos diversos segmentos estatais e a enunciação dum elenco não extenso de direitos fundamentais, notadamente de natureza civil e política9.
Outro conceito, exposto numa maior amplitude, é o formulado por Carlos S. Fayt10, ao visualizar, inicialmente, a constituição como a lei primeira, suprema e fundamental da organização política. É primeira porque a constituição inaugura a ordem jurídica duma determinada comunidade, sendo o fundamento de validade das demais normas jurídicas. Disso emana a sua supremacia, a impedir a subsistência dos atos, normativos ou não, que colidam com os seus mandamentos.
Segundo o autor, a constituição, na sua composição, apresenta três elementos essenciais, a saber: a) os direitos individuais e sociais e suas defesas diretas e indiretas; b) um governo e sua organização; c) os fins e os meios do governo instituído.
Vai-se aqui além duma organização do poder político, bem como da consagração de direitos que têm por fim a contenção daquele. Notabiliza-se, inicialmente, pelo reconhecimento dum universo maior de direitos dos cidadãos, com reflexo nos campos econômico e social. De outro lado, o seu realce emerge pela indicação de objetivos a serem atingidos pelos governos.
Outras definições merecem destaque, as quais são formuladas mediante a combinação de mais de uma perspectiva conceitual. Uma delas é a de Dalmo de Abreu Dallari, para quem a constituição configura “a declaração da vontade política de um povo, feita de modo solene por meio de uma lei que é superior a todas as outras e que, visando a proteção e promoção da dignidade humana, estabelece os direitos e as responsabilidades fundamentais dos indivíduos, dos grupos sociais, do povo e do governo”11.
A definição é bem apreendida a partir da decomposição de seus elementos. O primeiro deles diz respeito à vontade política de um povo, não de um ou alguns indivíduos, ou mesmo duma parte menor ou maior daquele. Cuida-se aqui de expressar o poder de autodeterminação de uma sociedade em sua íntegra.
O modo solene que deve permear a declaração de vontade tendente a estabelecer uma constituição significa que a vontade política do povo há de ser obtida de acordo com formalidades previamente estabelecidas. Com isso, permite-se que o povo, na qualidade de titular do poder constituinte, possa acompanhar o processo de sua elaboração, o que, igualmente, é capaz de fornecer, no futuro, ao seu intérprete elementos para dirimir possíveis dúvidas.
Outra elementar é que a constituição se distingue das demais leis pela sua posição de supremacia, não podendo os seus comandos ser desrespeitados por nenhum ato ou comportamento tendente a produzir efeitos jurídicos, seja ele uma lei, um tratado, uma decisão judicial, ou mesmo um negócio jurídico.
A sua finalidade mais relevante - frisa o autor - está na proteção e promoção da dignidade humana, a qual, na qualidade de valor supremo, permite que sejam assegurados as liberdades e os direitos civis, bem como reduzidas as desigualdades sociais e econômicas.
Complementando, compete à constituição estabelecer os direitos e responsabilidades dos indivíduos, grupos sociais e do governo. Aqui o autor se reporta - e com mais intensidade aos grupos sociais _ não somente à delimitação dos direitos fundamentais, mas também dos deveres dos destinatários ali referidos.
Opinião que, a esse respeito, não pode ser olvidada é a de Hesse12. Após enfatizar que toda e qualquer união que se pretenda duradoura não prescinde de um ordenamento formado e aplicado conforme a vontade de seus membros, e que se caracteriza pela denominação de constituição, o autor indica que esta tem o seu sentido e significado revelado a partir de suas tarefas fundamentais. São elas: a) integração, consistente na formação e a manutenção da unidade política, conciliando as diversas vontades em face da adoção duma sociedade pluralista; b) organização, com normatização da arquitetura do Estado para o cumprimento de suas tarefas; c) direção jurídica, função que deverá ser cumprida não unicamente com relação ao Estado, abrangendo a disciplina jurídica da comunidade, assumindo papel relevante os direitos fundamentais, os quais deverão ser dotados de força vinculante para o ordenamento inteiro, propiciando, assim, a garantia da existência de um sistema jurídico moralmente legítimo.
Ditas tarefas - adverte o autor - são suscetíveis de variação no tempo, o que emana das características que envolvem a essência do interesse público.
Num remate, sugere Hesse que se deva visualizar a constituição como sendo “o plano estrutural básico, orientado por determinados princípios dotados de sentido, para a forma de uma comunidade”13.
Noutro escrito14, o autor, pretendendo descortinar a mesma essência, optou por definição mais sintética, vislumbrando a constituição como a ordem jurídica da comunidade.
De fato, a constituição, na qualidade de lei básica, não mais se limita à regência dos vínculos entre o Estado e os cidadãos, tendo a regulação legal fundamental paulatinamente se espraiado para fixar as diretrizes das relações da vida coletiva de forma unitária e integral. Tanto é assim que a Constituição de Weimar de 1919, em sua Parte Segunda, continha Título II relacionado à vida social, no qual se encontravam preceitos relativos à família (arts. 119 a 122). Mais recente, a Lei Fundamental de Bonn de 1949 também se refere à família (art. 6º) e à religião, aproveitando-se da subsistência de dispositivos da anterior (arts. 137 a 141), e, recentemente, da tutela do meio ambiente (art. 20a). Isso sem contar que trata do livre desenvolvimento da personalidade mediante a consagração da dignidade da pessoa humana (art. 1º) como núcleo que representa o ponto de partida e, ao mesmo tempo, o respaldo dos direitos fundamentais15.
Mesmo diante da fragilidade com a qual se reveste a verdade científica, é possível, a partir duma combinação das definições mencionadas, sugerir-se o seguinte: trata-se a constituição da lei primeira, fundamental. Mas não é só. Visa à disciplina da vida não somente do Estado, mas da comunidade, o que haverá de realizar mediante as tarefas de integração, de organização e de direção jurídica. Com isso, compete-lhe estatuir os direitos dos indivíduos e grupos sociais seja no campo civil e político como, igualmente, no econômico, social e cultural, definindo àqueles também as suas responsabilidades, bem como a determinação das competências e estrutura dos órgãos estatais e correspondente responsabilização.
É preciso não olvidar o fato de que qualquer tentativa de definição do que se deva inferir por constituição não se afigura imutável. Está, sem sombra de dúvidas, sujeita a variações e adaptações de conformidade com os fatores político-culturais predominantes numa determinada sociedade. Assim é que o conceito de constituições oscila diante do tempo e do espaço. Em face do tempo, porque o núcleo das tarefas do diploma constitucional não é estático16. Diante das condições espaciais, tendo em vista que não se pode configurar uma mesma noção para textos que vigorem em países com traços políticos, sociais e culturais, inteiramente diversificados.
2. A CONSTITUIÇÃO NO CORRER DO TEMPO
O passar do tempo, mais precisamente aquele coincidente com a luta contra o absolutismo monárquico, irrompida em meados do século XVII, com prolongamento no seguinte, trouxe o reconhecimento de que a melhor forma de contenção do poder seria o estabelecimento de regras num documento ao qual se convencionou denominar constituição17.
Todavia, a natureza humana, desde os seus primórdios, sempre revelou que o homem, uma vez exercendo a titularidade do poder, é incapaz de limitar a si próprio, evitando o cometimento de abusos.
Daí ser possível afirmar que, malgrado a inexistência de constituição escrita, a Antiguidade, como nas demais fases da história dos povos, contou com uma forma de expressar uma ordem política.
Karl Loewenstein18 vislumbrou nos hebreus o pioneirismo na prática do constitucionalismo, manifestado sob forma teocrática, e que possuía como elemento decisivo a singularidade dos detentores do poder - leigos ou sacerdotes -, que, ao invés de ostentarem um poder ilimitado e arbitrário, estavam limitados pela Lei do Senhor, a qual se impunha, de forma igual, a governantes e governados. Aquela, portanto, era a sua constituição material.
Quanto à Idade Antiga, observa Fioravanti19 que o auge do regime político constitucional se verificou com a experiência democrática das cidades gregas, com destaque para Atenas, a qual, revelando uma aversão ao poder concentrado e arbitrário, caracterizava-se pela existência: a) de uma primazia absoluta de todos os cidadãos atenienses para a tomada das decisões de relevância coletiva; b) do direito de palavra e de proposição dentro da assembleia atribuído a todo cidadão; c) da nomeação dos cargos públicos e das magistraturas, incluindo-se os tribunais, mediante sorteio; d) da igualdade dentre os cidadãos para a assunção dos cargos, incluindo-se os mais elevados; e) da alternância anual dos governantes, os quais não poderiam ser reeleitos; f) da obrigação dos governantes à prestação de contas publicamente.
Esse conjunto de características, que para Aristóteles era a forma de união nominada de politeia, revelava, assim, um significado que, num paralelo com a atualidade, talvez pudesse, de forma correta, ser traduzido como constituição.
O modelo não se esgotou nos dois ênios da democracia helênica. Prosseguiu durante a república romana, em cuja organização se fizeram presentes mecanismos de divisão e limitação do poder político20, assomando, durante a crise da guerra civil, a figura de Cícero, ao formular a ideia de res publica, a qual não poderia ter por base uma origem unilateral e violenta, mas sim o consenso, a reclamar um empenho coletivo, forte, duradouro e não episódico.
Diante disso, remata Fioravanti21 que, ao contrário do que é possível supor ao primeiro súbito de olhos, os antigos deixaram como legado uma grande noção, consistente em afirmar que uma comunidade política, mesmo à ausência de normas escritas, possui uma forma ordenada e duradoura, capaz de se concretizar como uma constituição, desde que: a) não esteja dominada por um princípio político que goze de preferência absoluta; b) as partes que a compõem tenham a capacidade de disciplinar-se; c) sua vida real não constitua o mero desenvolvimento das aspirações dos vencedores.
Ao contrário do que se pode supor, o medievo contou com uma experiência constitucional, principalmente a partir do século XI. Para Fioravanti22, duas eram as características gerais da constituição medieval. A primeira recaiu numa intrínseca limitação dos poderes públicos, a qual se manifestou não mediante normas gerais e escritas, mas, ao contrário, por uma contenção de fato. Num segundo lugar, ainda estreitamente vinculada à intrínseca restrição dos poderes públicos, tinha-se uma concepção de liames substancialmente indisponíveis aos governantes em face duma determinada ordem jurídica, estruturada sob mil vínculos e convenções.
Observa o autor que, na Idade Média, a concepção de constituição deixa de pertencer ao campo político e moral, para o fim de ingressar no mundo jurídico, a partir da prática social. A constituição medieval consistiu, assim, num conjunto de leis radicadas na história da comunidade política, de costumes, de pactos entre os diversos componentes do reino, os quais, juntos, formavam a lei fundamental.
Essa visão é compartilhada, dentre outros, por Carlos Fayt23 quando diz que, no curso do século XIII, com a transformação do feudalismo militar em governo por estamentos, surge a constituição estamental do governo, informada por cartas ou pactos que representavam uma forma de contenção do poder dos príncipes.
Os dois documentos de maior repercussão consistiram na Magna Carta de 1215, imposta ao Rei João Sem Terra pelo baronato inglês, e nos foros de Aragão de 1283, cuja eficácia derivava da circunstância de se encontrarem acima da vontade régia, sendo obrigatórios para os funcionários do reino.
Nas proximidades do término da Idade Média, e primícias da Idade Moderna, constata-se a existência de leis fundamentais que, por dizerem respeito à disciplina do Estado, mais especificadamente do exercício do governo monárquico, distinguiam-se das leis circunstanciais. Alcançaram prestígio na França, onde foram invocadas para a solução de tensões entre o Rei e o Parlamento. O mesmo aconteceu na Inglaterra, tendo sua aplicação se voltado para justificar, sob Henrique VIII, o poder real absoluto, bem como para a direção de julgamentos políticos24.
Como sintetizou García-Pelayo25, as leis fundamentais, ou leis do reino, representavam um corpo jurídico específico tanto pelo seu conteúdo, o qual se referia com exclusividade ao exercício e à transmissão da prerrogativa real, quanto pela sua natureza formal, porquanto, diversamente das demais leis, ostentavam a qualidade de imutáveis, uma vez que se encontravam a salvo de supressão e revogação pela vontade do Rei.
Outro antecedente de relevo das constituições consistiu nos covenants, quais sejam pactos que os puritanos celebravam com esteio no poder que os ministros do culto ostentavam sobre os seus fiéis, em face dos quais cada membro da igreja se investia em direitos e deveres para com os seus seguidores. À medida que a emigração para as terras da América do Norte se concretizava, tais pactos transmudavam o seu perfil do campo religioso para o político, servindo, a partir dos princípios que adotavam, para sedimentar as pilastras das cartas que as colônias adotaram, tais como a liberdade de expressão e a liberdade religiosa, conforme se foi possível visualizar das Cartas de Connecticut de 1639 e de Rhode Island de 166326.
Com isso, verificou-se, pela aceitação tácita da Coroa, o estabelecimento duma forma de autogoverno nas colônias, estando presente um poder de legislar, sujeito a veto por parte do governador, bem como à possibilidade de sua invalidação pela Inglaterra, o que, na primeira metade do Século XVIII, decorria de recurso ao Parlamento londrino.
Se, por um lado, as leis fundamentais do reino, por seu conteúdo voltado a assegurar direitos e privilégios relacionados com a propriedade, bem assim regras que dispunham sobre a sucessão do trono e da organização e liberdade religiosa, ressentiam-se da garantia de direitos dos cidadãos frente ao poder político e, por isso, não poderiam ser consideradas como as primeiras constituições, com as cartas coloniais norte-americanas sucedia algo semelhante, pois, a despeito de enunciarem direitos individuais, estruturavam uma comunidade sediada num território desprovido de soberania, não se podendo desconhecer que, num plano superior, situava-se o direito inglês.
Esses são, numa síntese, os motivos pelos quais o pioneirismo de uma constituição, no significado dentro do qual atualmente é concebida, é atribuído ao Instrument of Government (1653) promulgado na Inglaterra sob Cromwell27, o qual pôs em ação a teoria constitucional, por consistir em documento a procurar o estabelecimento duma lei suprema, situada inclusive fora do alcance do Parlamento, a limitar os poderes deste e declarar, por via de restrições expressas, os direitos reservados à nação28. Visou, assim, à instituição de um governo de leis e não de homens.
Há, no entanto, quem vislumbre o início dessa experiência na Constituição da Virgínia de 29 de junho de 177629, exemplo seguido pelos novos Estados oriundos das ex-colônias norte-americanas, na Constituição dos Estados Unidos da América de 17 de setembro de 178730.
A consolidação no proscênio constitucionalista do modelo da constituição escrita, constante, na maioria das vezes, de documento único, operou-se quando ultimado o ciclo das revoluções liberais em 1789, assomando como consequência das Revoluções Americana e Francesa.
A promulgação das constituições escritas se mostrou como uma característica singular do constitucionalismo do século XVIII31, a implicar a disciplina, em moldes jurídicos, dos vínculos entre o Estado e cidadãos, com o propósito de delimitar o poder que, antes, apresentava-se arbitrário. Esta tendência à legalização - frisa Bartole32 - procura legar estabilidade e certeza com base no documento escrito, ao mesmo tempo no qual recupera neste o suporte, a sustentação ao papel que a constituição é chamada a desenvolver enquanto lei fundamental33.
Numa tentativa de classificação, Eliseo Aja34 se lançou a agrupar os tipos de constituição nos diversos períodos da história do constitucionalismo, tendo em vista as suas características predominantes35. Da empreitada resultou uma variedade de conceitos de constituição.
A primeira fase foi a das constituições liberais censitárias, das quais constituíram modelos a Constituição dos Estados Unidos de 1787 e a francesa de 03 de setembro de 1791, tendo influenciado a irrupção, na conjuntura dos movimentos liberais, de outras constituições, como foram as Constituições da Suécia (1809), Noruega (1814) e da Espanha (1812).
As principais características dessas constituições foram: a) supressão do poder absoluto do Rei com a sua substituição por uma divisão das funções estatais, da qual aquele participava juntamente com o Parlamento e os juízes36; b) sua constituição em alternativa pela qual se propiciava à burguesia a participação na direção política do Estado, com a limitação dos poderes régios, bem assim com o deslocamento do centro do poder da nobreza, adotando-se o sufrágio censitário, cuja titularidade se limitava a quem demonstrasse determinado nível de riquezas37; c) os direitos então proclamados se restrigiam àqueles de natureza civil, encontrando-se a gravitar em torno da liberdade e da propriedade38.
Uma segunda fase é a das constituições outorgadas ou pactuadas. Ao invés do que sucedia na América do Norte, em cujo território, paulatinamente, veio se consolidando a concepção da constituição como lei suprema, no continente europeu a derrocada napoleônica tem como efeito a reação monárquica contra as ideias liberais, retornando ao solo francês a dinastia dos Bourbons39.
Tem-se uma combinação na qual as monarquias passam a tolerar algumas limitações políticas oriundas das constituições liberais, mas com a contrapartida do reconhecimento da legitimação tradicional dos reis, da magnanimidade de cuja pessoa resultam concessões graciosas ao povo40. Verifica-se, na estruturação dos poderes, uma posição reforçada do monarca frente ao Parlamento, com desdobramentos num novo arranjo entre a nobreza e a burguesia, reduzindo o espaço de poder antes conquistado por esta com a instituição de uma câmara legislativa reservada aos integrantes da primeira.
O seu exemplar mais significativo foi a Carta Constitucional de 04 de junho de 1814, promulgada por Luís XVIII, na condição de Rei de França e de Navarra41. O seu texto, apesar de iniciar por um rol curto de direitos, no qual se mantinha alguns conquistados, tais como a menção à igualdade perante as funções públicas (arts. 1 e 3), a tributação conforme a riqueza (art. 2), a liberdade individual (art. 4) e religiosa (art. 5), ressaltou a preeminência da pessoa do rei, a qual, sagrada e inviolável, era titular do Poder Executivo (art. 13). Indo além, conferiu ao monarca a qualidade de chefe supremo do Estado, comandante das forças armadas da terra e do mar, cabendo-lhe declarar guerra e fazer a paz, bem como celebrar tratados e alianças comerciais (art. 14).
Uma amostra disso ainda se evidenciava com a prerrogativa régia DA quase exclusiva da proposição das leis (art. 16), cujo texto final cabia-lhe sancionar e promulgar (art. 22), competindo, no entanto, a discussão e a votação das propostas à Câmara dos Deputados e à Câmara dos Pares (art. 17), sendo de notar que, contrariamente à primeira, que resultava de eleições, mesmo sob o voto censitário, a segunda, tida por essencial ao Poder Legislativo, era integralmente composta mediante nomeação régia (art. 27).
Esse modelo influenciou as constituições dos Países Baixos de 1815, a da Baviera de 1818, as portuguesas de 1822 e 1826, o Estatuto Real espanhol de 1834 e, no continente sul-americano, a nossa Constituição Imperial de 182442.
Prosseguindo, aponta o autor, como representativo de um terceiro período, demarcado entre a década de 1830 até a Primeira Guerra Mundial, um movimento inclinado à democracia e ao fortalecimento do Parlamento, a ser traduzido pelas aspirações ao sufrágio universal, ao reconhecimento de direitos políticos e sindicais, à supressão da casa legislativa aristocrática, ao questionamento das prerrogativas reais e ao aumento dos poderes parlamentares. Para tanto, foram indispensáveis movimentos políticos que tiveram o seu impulso por parte de setores operários, de artesãos e, principalmente, da burguesia.
O reflexo disso, no campo da organização jurídica estatal, consistiu em processos de reformas a textos constitucionais, como sucedeu na Suécia (reformas de 1866 e 1909) e na Noruega (reformas de 1884 e 1895), ou mediante soluções interpretativas, o que foi o caso da Grã-Bretanha e da Bélgica, cuja Constituição de 1831 facultava uma progressiva adaptação ao parlamentarismo. O mesmo aconteceu, em finais do século XIX, com a Itália, em face de interpretação evolutiva do Estatuto Albertino.
O fortalecimento da democracia parlamentar, sob o padrão republicano, foi tentado na França com a Constituição de 04 de novembro de 184843, mas, a partir de 1852, teve sua interrupção com o advento do Segundo Império, somente sendo revigorado com a promulgação das leis constitucionais de 1875.
A quarta fase, iniciada depois da Primeira Guerra Mundial, deu lugar a constituições que, sob a aparência formal, pareciam espelhar mais ainda o revigoramento da democracia. Assim, as constituições da Alemanha (1919), da Áustria (1920), da Grécia (1925) e da Espanha (1931).
Como corolários da conversão da maior parte das monarquias em repúblicas, notam-se a previsão de preceitos que versavam sobre a expansão do sufrágio universal masculino - e, em muitos países, a conquista do sufrágio feminino -, o fortalecimento do sistema parlamentar, institutos de democracia direta, como o referendo e a iniciativa popular, a criação de tribunais constitucionais (Áustria e Espanha), bem como de novos direitos fundamentais, além dos tradicionais do liberalismo (direitos sociais).
Todavia, clima político conturbado, tendo como epicentro a necessidade duma resposta à ascensão da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas como potência industrial, acompanhada do fortalecimento de partidos operários noutros países, bem como das tensões nacionalistas, ainda não solucionadas, decorrentes da reorganização territorial no continente europeu ao depois da Primeira Guerra Mundial, desembocou no surgimento na Europa e fora desta de regimes totalitários, assinalados pela titularidade de poderes muito amplos na pessoa do Presidente da República44.
Ingressou o constitucionalismo num período de forte crise, podendo ser denominado como omde seu ocaso, caracterizando-se por uma evidente dissociação entre a realidade e os textos constitucionais, os quais não passavam de fantasias jurídicas para manutenção dos grupos que se instalaram no poder.
Para que tal ocorresse, era decisiva a outorga ao chefe do governo de poderes muito amplos, os quais, mal exercitados, geravam o arbítrio, sendo suficiente, para tanto, relembrar a figura do legislador extraordinário, fundada no art. 48 da Constituição de Weimar de 191945, em cujo texto facultava-se ao Presidente do Reich suspender temporalmente sete direitos fundamentais46. Esses instrumentos, combinados com o clima político dominante, serviram de combustão para que eclodisse um positivismo deformado no qual a atividade legislativa, ao invés de persistir numa esfera de liberdade em favor dos cidadãos, transformou-se numa forma de opressão47.
Ultimando o ciclo, Eliseo Aja alude a uma quinta fase, iniciada a contar do término da Segunda Conflagração Mundial, e que perdura até os dias atuais. É assinalada com o reforço do princípio democrático não somente em face da soberania popular, mas, igualmente, pela projeção de novos direitos fundamentais no campo econômico-social.
Trata-se das constituições da democracia político-social, padrão que teve lugar inicialmente com as Constituições da França (1946 e 1958), da Itália (1947) e da Alemanha (1949) e que alcançou uma força expansiva em direção à quase totalidade dos sistemas jurídicos, principalmente a partir da derrocada de regimes ditatoriais no Sudoeste e Leste Europeu, na América do Sul, dentre outros.
Desses diplomas, responsáveis inclusive pelo redesenhar da concepção de constituição, cogitaremos, com maior vagar, no tópico que segue.
3. A CONSTITUIÇÃO DO ESTADO CONSTITUCIONAL
O atual período pelo qual vem atravessando o constitucionalismo é conhecido por designações que têm a sua preferência mediante manifestações ora em textos constitucionais, ora por manifestações da doutrina. Assim é que a Constituição italiana de 1947 diz que a Itália é uma república democrática (art. 1º), tal como a Constituição da Aústria de 1920 (art. 1º), após a sua reintegração em 1945, enquanto que, também pondo em relevo o componente inerente à democracia, a Lei Fundamental de Bonn de 1949 afirma que a República Federal da Alemanha é um Estado federal democrático e social (art. 20). Por sua vez, a Constituição da República Portuguesa de 1976 afirma que Portugal consiste em Estado de direito democrático (art. 2º), sendo seguida pela Constituição espanhola de 1978, ao reportar-se, logo no seu art. 1º, que a Espanha se constitui em Estado social e democrático de direito. A onda chegou até aqui, tendo a nossa vigente Lei Básica, após afirmação constante de seu Preâmbulo, explicitado que a República Federativa do Brasil se encontra moldada como Estado democrático de direito (art. 1º).
A doutrina, numa respeitável parcela, inclina-se pela denominação de Estado constitucional. É a opção seguida, verbi gratia, por Peter Härbele48, Antonio-Enrique Pérez Luño49, Manuel Garcia-Pelayo50, Miguel Carbonell51 e Josep Aguiló Regla52, Dieter Grimm53, Gustavo Ferreira Santos54, Gustavo Zagrebelsky55 e Benito Aláez Corral56.
A primeira indagação que sobrevém é a de saber se, para a configuração fática do Estado constitucional, será suficiente a sua regência por um conjunto de normas ditas superiores e que condicionam a elaboração das demais. A resposta é, evidentemente, negativa. Não é a mera existência de um diploma normativo crismado sob o título de constituição que satisfaz a caracterização desse modelo estatal. Este se encontra vinculado a um conceito material de constituição, cuja essência radica numa determinada ordem de valores57.
Não é à toa que Härbele58 enfatiza que dito arquétipo é integrado por elementos reais e ideais, estatais e sociais, quais sejam: a) a dignidade da pessoa humana como premissa derivada da cultura de todo um povo e de alguns direitos humanos universais; b) a soberania popular, compreendida como uma fórmula identificadora de uma colaboração que se renova cada vez de forma aberta e responsável; c) a Constituição como um pacto, no qual se formulam objetivos educacionais e valores de orientação possíveis e necessários; d) o princípio da divisão de poderes, tanto em sua acepção estatal mais estrita como em seu sentido plural e mais amplo; e) o Estado de direito e o Estado social de direito, encontrando-se nestes o princípio da cultura estatal aberta, bem como as garantias dos direitos fundamentais, a independência do Judiciário, elementos capazes de ensejar uma democracia constitucional louvada no pluralismo.
Observando a fórmula “Estado constitucional” como a capaz de exprimir as transformações vivenciadas recentemente pelos ordenamentos jurídicos democráticos, Antonio-Enrique Pérez Luño59 se propõe à síntese de suas características, a saber: a) o deslocamento da primazia da lei em direção ao primado da constituição; b) o deslocamento da reserva da lei para a reserva da constituição; c) o deslocamento do controle jurisdicional de legalidade para o controle jurisdicional de constitucionalidade.
Ultimando com os traços da atualidade vivenciada durante o ciclo evolutivo do Estado de direito, Manuel Garcia-Pelayo60 enuncia que o conceito e a prática daquele se delineia noutros termos, inicialmente devendo ser precisado de conformidade com o sistema constitucional concreto. Em segundo lugar, é uma resultante de processo que derivou da fracassada experiência com o positivismo legalista dos Estados totalitários, conectando-se agora com a ideia da Constituição como norma fundamental e da construção escalonada da ordem jurídica.
Disso se tem, de logo, a afirmação de que a constituição, na condição de norma fundamental, e positiva, apresenta-se como vinculante para a lei e para os outros atos dos poderes públicos disciplinados por aquela. A característica evidencia a essência do Estado constitucional diante do Estado legal de direito. Num segundo lugar, o autor sustém que a primazia da constituição torna-se, como ocorreria com qualquer outra, juridicamente imperfeita caso venha carecer duma garantia jurisdicional. Por essa razão, a jurisdição constitucional é a garantia institucional básica do Estado constitucional de direito.
Carbonell61 não dissente das opiniões anteriores. Após frisar que, a partir do século XX, quando os poderes encarregados de elaborar as novas constituições passam a integrar-se democraticamente, o povo pôde materializar a qualidade de ser soberano, deixa evidente que o Estado constitucional apenas concebe uma repartição efetiva do poder, ou seja, um sistema idôneo para assegurar os espaços de liberdade reais para os particulares, obrigando a tomada de contas pelos governantes, a renovação periódica destes, a previsão de juízes independentes, a competência básica de cada órgão, os modos de criação e de renovação do direito etc. Em suma, somente há Estado constitucional quando é possível cogitar-se do controle do poder.
Por aí é possível perceber-se, sem a necessidade de maiores rebuços, que a existência de uma constituição, seja escrita ou não, a disciplinar a vida de uma comunidade, não significa a presença de um Estado constitucional. É indispensável algo mais. A constituição, norma fundamental, há de consagrar, de forma intransigente, determinados valores que se conformem com a democracia, tais como a dignidade do ser humano e os direitos fundamentais, a soberania popular, a divisão de poderes, o compromisso com a igualdade, a justiça social etc.
Em face disso, Eusébio Fernández Garcia, ao reportar-se ao exame do patriotismo constitucional, não identifica este à singela adesão a um texto constitucional de um país, mas precisamente a um diploma que se volte à tutela dos valores constantes de uma constituição democrática. Assim o disse numa síntese mais do que feliz: “É, pois, um patriotismo seletivo, identificado com os direitos humanos e com o Estado de Direito de tradição democrática”62.
Não se pode, assim, dizer que existe, para os propósitos do Estado constitucional, uma constituição somente pela existência de um diploma promulgado com essa denominação. Um documento que, imposto pela força, não consagre os valores democráticos, mas, em seu lugar, a arbitrariedade em favor do grupo governante, não é uma constituição, mas sim, como aponta Dallari63, uma falsa constituição.
A vivência constitucional pátria experimentou o contato com as constituições de fantasia. Uma delas - e quiçá a de maior hipocrisia - foi a Constituição de 10 de novembro de 1937. Conforme destacamos em escrito específico64, tal carta, composta de cento e setenta e quatro artigos em sua parte permanente, com o acréscimo de outros treze em suas disposições transitórias, nada mais fez senão tornar o então Presidente da República, que a outorgou, o senhor absoluto do poder, inclusive superior ao da monarquia sob o poder moderador da Constituição de 24 de março de 1824. Empregando a técnica da permanência mediante o provisório, fechou a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, bem como as Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais, restando prorrogado o mandato do então Presidente, o qual somente viria a cessar quando realizado o plebiscito previsto no seu art. 187, o que não veio acontecer. Com isso, o Chefe do Poder Executivo se transformou no legislador exclusivo - inclusive no plano do poder constituinte derivado -, assumindo, na prática, a totalidade da Administração Pública com a nomeação de interventores nos Estados.
Outra situação foi a do regime político instaurado a partir do golpe de Estado de 31 de março de 1964. Não que a Constituição de 1946, bem como as promulgadas a seguir em 15 de março de 1967 e 17 de outubro de 196965, respectivamente, tivessem perfil acentuadamente antidemocrático, pois, muito embora o texto de tais diplomas, com algumas exceções, não consagrasse disposições que retratassem arbítrio, este se manifestava, em grande intensidade, mediante uma para-legalidade, retratada pelos atos institucionais, de feição nitidamente constituinte. O mais restritivo de direitos daqueles, pela sua vigência indeterminada no tempo, bem como pelo conteúdo de suas disposições, foi o Ato Institucional 5 de 13 de dezembro de 196866.
Além da conformação do conteúdo dos diplomas sobranceiros a determinada pauta de valores, uma observação, colhida de Josep Aguiló, não pode passar despercebida. O autor, demais de enfatizar como traços do Estado constitucional a presença duma constituição rígida, juntamente com a previsão de dispositivos que assegurem a limitação do poder e a garantia de direitos, acrescenta que tal diploma normativo há de ser praticado ou vivenciado. Em complemento, exige-se que a constituição formal deva ser respeitada e praticada como se contivesse o conjunto de normas fundamentais de um sistema político e jurídico. Melhor explicando, não se afigura suficiente possuir uma constituição, mas, diversamente, faz-se preciso que se viva em harmonia com a constituição 67.
A exposição do autor dá margem a que se reviva a polêmica instigada por Lassalle68 que, ao analisar a experiência constitucional prussiana da segunda metade do século XIX, atentou, inicialmente, para a circunstância de que os fatores reais de poder constituem a força ativa que informa todas as leis e instituições jurídicas, os quais formam a constituição real e efetiva de um Estado.
Analisando, especificadamente, a Constituição da Prússia de 06 de fevereiro de 1850, outorgada por Frederico Guilherme IV, aquele observou que, no seu art. 47, consta a menção de competir ao rei prover todos os postos no exército e na marinha, sendo complementado pelo art. 108 ao frisar que tais corporações não se encontram obrigadas a jurar pela guarda do texto constitucional. Uma vez se reconhecendo ao rei a condição de chefe supremo das forças de terra e mar, com a atribuição de prover todos os seus postos, implicando colocar os seus membros em posição de sujeição pessoal ao monarca, forçoso era de rematar que aquele reúne, por si só, tanto poder, o qual pode ser quantificado como superior em mais de dez vezes ao da nação inteira. Por isso, deixa claro que, nessas condições, enfeixava o rei a constituição efetiva da sociedade prussiana69.
Na tentativa de responder às indagações que o tema abordado lhe reservara, o autor esclareceu que uma constituição escrita é boa e duradoura quando corresponder à constituição real, radicada nos fatores reais de poder que regem no país. Do contrário, não passará duma folha de papel a sucumbir diante da realidade.
Daí se tem o que designa por pseudo-constitucionalismo, consistindo naquilo “em que o governo proclame o que não é; consiste em fazer passar por constitucional a um Estado que é, na realidade, um Estado absoluto; consiste no engano e na mentira”70.
A primazia dos fatores reais de poder sobre as prescrições constitucionais se verificou noutras várias situações posteriores, com forte inclinação a um constitucionalismo, inclusive como sucedeu durante a Alemanha nazista71, o que, posteriormente à Segunda Conflagração Mundial, fez com que fosse trazida à ribalta dos constitucionalistas a preocupação em distinguir entre as constituições formais que se cumprem ou não.
Tendo presente uma possibilidade de divórcio entre a constituição e a realidade vivenciada pelo corpo social, Karl Loewenstein72 se lançou à classificação dos textos constitucionais sob o critério ontológico, verificando não somente o conteúdo de seus preceitos, mas, diferentemente, a correspondência de suas normas com a realidade do processo de poder.
Assim, num primeiro grupo estão as constituições normativas, cujas normas dominam o processo político, ou, inversamente, este se adapta àquelas, qual um terno que senta bem no corpo.
Noutro passo, vêm as constituições nominais, as quais, embora válidas, possuem comandos que não se encontram ainda adaptados à realidade. Possuem, no entanto, caráter educativo, pois acalenta propósito futuro, consistente em, mais cedo ou mais tarde, convertem-se numa constituição normativa, determinando a dinâmica do processo de poder, ao invés de estarem a esta subjugada. O terno é guardado no armário durante algum tempo e será usado quando o corpo tenha crescido.
Finalmente, cogita das constituições semânticas, voltadas para a formalização da continuidade da presente situação de poder em benefício exclusivo dos seus detentores de fato. Desvirtuam a missão original duma constituição, de sorte que, no lugar de servirem para a limitação do poder, convertem-se no instrumento para estabilizar e eternizar um determinado grupo no domínio fático da comunidade. O terno não é o que aparenta ser, mas sim um disfarce. É a falsa constituição de que já falamos. Indícios desse tipo estão naqueles textos que, por exemplo, permitem ao Presidente da República permanecer no poder indefinidamente, preveem plebiscitos manipuláveis, conferem ilimitadamente poder normativo ao governante, estruturam sistema eleitoral apto a garantir a permanência no poder dum mesmo grupo, etc73.
Portanto, emerge como indispensável não somente a promulgação de um texto, mas que este alcance, de fato, uma vigência real. Esta é a peculiaridade que distingue a constituição normativa.
Vários são os fatores obstativos para que as normas constitucionais sejam observadas na realidade, o que, pontualmente, pode vir a se verificar até mesmo em países que, pela sua maturidade política, tenham uma constituição normativa.
É possível listar algumas dessas razões. Uma delas - e que reside na conveniência das orientações políticas - é constatável quando as normas constitucionais se mostrem em contradição contra os objetivos específicos de um programa de governo74, muitas vezes acarretando, no cotidiano, a submissão de alguns segmentos do corpo político a quem governa75.
Outra situação é a de que as divergências partidárias, no seio do Parlamento, podem impedir ou paralisar temporariamente a aplicação de institutos previstos na Lei Maior. Foi situação vivenciada pelo constitucionalismo italiano quanto à entrada em funcionamento da Corte Constitucional prevista pela Lei Maior de 22 de dezembro de 1947 (arts. 127, 134 a 137). As divergências partidárias protraíram a edição da legislação integrativa (Legge Costituzionale 01/1953 e Legge 87/1953), sem contar que, também por divergência entre partidos, a indicação dos membros a que cabia ao Parlamento fez com que a primeira sessão somente se realizasse em 23 de janeiro de 195676.
Há também as pressões sociais e econômicas, inclusive, quanto a estas, as emanadas do estrangeiro. É conhecida a insatisfação do capitalismo internacional a muitos pontos da nossa ordem econômica, tal como disciplinada pela redação originária da Lei Maior vigente. Visando reverter esse quadro, o governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, para o fim de implantação de sua política neoliberal, calcada, principalmente, em modelo de privatização, fez, inicialmente, que fossem promulgadas as Emendas Constitucionais 05 a 09, alterando preceitos que, no âmbito da ordem econômica, manifestavam-se protecionistas dos interesses nacionais. Pelo menos, aqui se procurou a mudança formal do texto, ao invés simplesmente de ignorá-lo.
Contribui ainda - não se pode negar - para o enfraquecimento da aplicação das normas constitucionais a falta de um sentimento, expresso por parte da população, no sentido de valorizá-las como sendo o diploma que deverá configurar a ação da comunidade e dos órgãos estatais. Essa indiferença, resulta ora da falta de uma cultura política da população, ora de outros fatores, como a não satisfação imediata das necessidades do homem da rua, ou ainda a falta de acessibilidade ao seu entendimento, pela ausência de conhecimento especializado para tanto.
O distanciamento entre o texto constitucional e a realidade é algo possível de ser observado em vários Estados. Mesmo naqueles países onde se tem a prática da constituição normativa tal distanciamento tem acontecido, embora em algumas situações pontuais e efêmeras.
Isso não afasta a tentativa de se pretender, paulatinamente, vivenciar uma harmonia entre constituição e realidade. Em pretendendo apresentar uma contraposição a Lassalle, Hesse77 esclarece que, embora ligada a determinados fatores temporais, a constituição, por força do seu colorido normativo, impõe tarefas que pretende sejam realizadas e que estão aptas para conformar a face política e social de uma comunidade.
Para tanto, papel decisivo ostenta a interpretação, a qual deverá guiar-se pela tentativa de ótima concretização da norma, não podendo, assim, restar encerrada na operação de mera subsunção às hipóteses concretas, mas, ao invés, deverá observar a norma em correlação com os fatos concretos da vida78.
Noutro passo, tem-se como necessária a formação de uma consciência constitucional, de maneira a evitar que o seu texto não fique sempre desprezado pela realidade histórica. Aqui obtém realce a tutela não somente de liberdades políticas, tais como a liberdade de expressão e a garantia de um sistema eleitoral igualitário, mas também aquela de conteúdo social, destacando-se a educação que, na forma explicitada pela Norma Básica de 1988 (art. 205), tem como um dos seus objetivos a habilitação para o exercício da cidadania.
Papel de importância para a formação duma consciência constitucional está a necessidade de organização da sociedade para, juntamente com os poderes públicos, reivindicar a concretização de direitos reputados vitais para o ser humano.
A par disso, segue-se que o próprio texto constitucional, pelo seu conteúdo, pode colaborar para a sua própria efetividade.
Uma das maneiras pelas quais isso sucede é a de evitar a compreensão de que a constituição seja dotada de poderes milagrosos. Desse modo, para que uma constituição se pretenda aplicada, indispensável evitar que contenha preceitos cuja realização seja de todo impossível, ou que contrarie frontal e abertamente a realidade vivenciada social e economicamente por uma comunidade. A desobediência a essa regra de bom senso tem levado, inelutavelmente, ao fenômeno da “constitucionalização de frustrações”.
É de ser relembrado aqui o §3º do art. 192 da Lei Maior atual que, em sua redação original, fixava limite máximo de juros no percentual ânuo de doze por cento, conduzindo para a rigidez constitucional o tratamento de matéria que, por sua necessidade de rápida adaptação às crises econômicas - que, muitas vezes, podem surgir inesperadamente -, requer a flexibilidade de seu manuseio pelas autoridades monetárias dos diversos Estados. O tema nem mesmo comportaria seu tratamento exaustivo e detalhado pelo legislador. Mais apropriado se afiguraria a remissão legislativa à competência regulamentar.
Portanto, agiu corretamente o Supremo Tribunal Federal79 que, mesmo diante de arquétipo semântico a permitir a sua auto-aplicabilidade, entendeu pela necessidade de lei complementar para tanto, aproveitando-se de menção no caput do dispositivo. Ponderou-se, no íntimo, que o reconhecimento da incidência imediata da referida norma poderia provocar desastrosos resultados no âmbito da política econômica nacional.
Igualmente, a constituição deve ser elaborada de sorte a permitir a sua adaptação à evolução dos tempos. Por isso, a redação de seus preceitos deve privilegiar a consagração genérica de princípios e valores. Há de se evitar o detalhamento exagerado dos seus preceitos, porque, nesta hipótese, não se permitirá que a atividade interpretativa atualize os comandos sobranceiros à realidade. Exigirá, ao contrário, a utilização assídua dos mecanismos de mudança formal.
Oportuno Zagrebelski quando diz ser uma característica não acidental das constituições a de consagrar princípios, as quais, por serem normas naturalmente abertas, permitem que sejam desenvolvidas para o futuro. Por isso, afirma: “Uma constituição que sobrevive com incessantes modificações se degrada ao nível de uma lei ordinária e a matéria constitucional se confunde com a luta política cotidiana”80.
Mais adiante, o autor lança o remate seguinte: “A lei da boa vida das constituições é o desenvolvimento na continuidade. O instrumento normal é a jurisprudência; a reforma é um instrumento excepcional”81.
4. A MATÉRIA CONSTITUCIONAL
Nos dias que correm se nota uma predileção pelas definições de constituição que se aproximam duma concepção material. Demais da preocupação com o conteúdo das normas constitucionais, desperta interesse também o estabelecimento dos assuntos dos quais se devem ocupar o diploma magno.
É possível, nesse particular, que se verifiquem divergências entre os vários ordenamentos. Ivo Dantas82 bem observa que, sob o prisma material, faz-se impossível estabelecer uma teoria da constituição, porquanto o seu conteúdo se apresenta variável de sociedade para sociedade, conforme os valores que cada uma põe em relevo.
Por razões de ordem histórica, a Lei Fundamental de Bonn de 1949 (arts. 18 e 21) consagra peculiar disciplina quanto à supressão dos direitos fundamentais, por enumerar os que são suscetíveis de eliminação e, mesmo assim, com a individualização dos destinatários da medida drástica, sem, no entanto, poupar a cautela de confiar tal competência ao tribunal constitucional.
De qualquer forma, a doutrina, sem propósito exaustivo, procura apontar alguns assuntos que, normalmente, são inseridos na província constitucional.
Ricardo Guastini83, após enfatizar que as normas materialmente constitucionais são as tidas por fundamentais do ordenamento jurídico visto em sua integralidade, expõe que as constituições se distinguem das outras leis justamente porque, em seu texto, inserem: a) normas que conferem direitos de liberdade aos cidadãos, disciplinando, assim, as relações destes com o poder político; b) normas dirigidas à atividade legislativa, bem como sobre a estrutura dos órgãos estatais.
Acrescenta ser comum às constituições contemporâneas a inclusão de uma multiplicidade de normas de princípios ou programáticas, as quais são de dois tipos. Umas delas são as que contêm valores e princípios que informam toda a ordem jurídica84, enquanto que outras recomendam ao legislador o desenvolvimento de programas de reforma econômica e social.
Hesse85, em atenção à sua concepção de constituição como a ordem jurídica fundamental não somente para o Estado, mas, com maior amplitude, para a comunidade, mostra que as normas daquelas podem se dirigir unicamente para a organização da vida não-estatal. Tais são as que regulam as bases da ordenação do matrimônio e da família.
Por sua vez, Dalmo de Abreu Dallari86 põe sobre a constituição o desafio de controle do poder econômico, a fim de que tenhamos a construção de uma ordem social na qual todos os seres humanos sejam livres e iguais. Justifica que tal se mostra imperioso, pois a ascensão da burguesia ao domínio do poder político, propiciada pela marcha dos movimentos liberais, permitiu que aquela, igualmente, impusesse sua superioridade no campo econômico, de sorte a ostentar parcela de poder superior à ostentada pelos reis e a nobreza.
Há também quem pense que a constituição não pode ir além do tratamento da limitação do poder, precisamente quanto ao poder político. É a opinião de Manoel Gonçalves Ferreira Filho87, para quem a introdução do econômico e social nos textos constitucionais, em acréscimo às regras de organização e limitação do poder, implica em regras programáticas que, revelando o idealismo da Lei Maior, vêm retratando situação de ineficácia, contribuindo para a desvalorização daquela88.
O certo é que, em muitos sistemas jurídicos, a atenção com o tratamento do econômico e social não é posta de lado, seja mediante a sua disciplina em preceitos explícitos de várias constituições, ou pela atividade interpretativa da jurisprudência89.
O fato é que as constituições, como ordem fundamental para a comunidade, não podem prescindir da evolução desta, trançando-lhe normas gerais sobre a disciplina dos pontos de preocupação acentuada que, com o passar do tempo, vão surgindo. É o aconteceu ao depois da Convenção de Estocolmo de 1973, que despertou a atenção para a tutela do meio ambiente, de modo que o assunto vem sendo disciplinado, seja com as constituições promulgadas há pouco, como é o caso daquelas de Portugal (art. 66º), Espanha (art. 45), Holanda (art. 21º), Chile (art. 19º, nº 8º), Colômbia (art. 58), Uruguai (art. 47), Hungria (art. 18), Bulgária (art. 15), Rússia (art. 42), Finlândia (art. 2º, nº 2º), ou pela reforma daquelas já existentes, tal como correu com a Lei Fundamental de Bonn (art. 20a) e da Argentina (art. 41), ambas por força de revisões sucedidas no ano de 1994. Mais recentemente, o mesmo sucedeu com a Constituição Francesa, em cujo preâmbulo é proclamada adesão aos direitos e deveres constantes da Carta do Meio Ambiente de 2004, integrando-a, assim, no chamado bloc de constitucionalité.
Outro aspecto que desperta atenção condiz com a maneira pela qual é exposta a disciplina da matéria tida como constitucional.
É sabido que o legislador encontra seu ponto de partida na constituição, uma vez caber a esta estabelecer os limites formais e materiais a serem respeitados pela legislação. Compete, assim, às normas constitucionais fixar não somente o modo de formação das leis, mas, igualmente, o conteúdo destas.
Sendo assim, é inegável que a constituição, dentre o seu campo de disciplina, haverá de estatuir regras gerais e diretrizes para serem observadas pelo legislador. Às normas constitucionais, magnas, ou sobranceiras, está reservado o lugar de tête de chapitre dos diversos segmentos jurídicos. De conseguinte, não devem, portanto, inserir-se em território que, por suas peculiaridades, é adequado à atividade dos poderes constituídos.
Daí porque Hesse90 alude ao caráter incompleto que deve permear a constituição, a qual não codifica, mas unicamente, de forma pontual e em termos gerais, dispõe aquilo que aparece como importante para uma determinada sociedade, tocando ao restante do ordenamento jurídico o detalhamento da disciplina de tais assuntos. Adianta que muitas questões, como é o caso da disciplina econômica, pode o constituinte deixar em aberto, para o fim de, a seu respeito, ensejar maior discussão, decisão e configuração pelos poderes constituídos.
À consideração de que o natural é que as normas inferiores desenvolvam os princípios estabelecidos numa norma de grau superior, Victor Nunes Leal91 aponta que quanto mais importante uma norma, maior deve ser o grau de generalidade de seu texto, de maneira que a constituição, por situar-se no cume da ordem jurídica, há de ser redigida mediante normas mais concisas, de tom acentuadamente mais genérico e em menor número. Por sua vez, as leis devem se apresentar, em seu teor, mais pormenorizadas que as regras constitucionais, mas, de qualquer modo, menos minuciosas do que os regulamentos.
Nesse particular, interessante a observação de Paulo Bonavides92, ao mostrar que, ao lado das constituições concisas, enunciadoras somente de princípios gerais ou regras básicas, remetendo os pormenores ao legislador, há, cada vez num maior número, as constituições ditas prolixas. São aquelas que se ocupam de minúcias de regulamentação, que melhor cabiam em lei, conteúdos que ingressam no Texto Básico pela vontade do constituinte, com o propósito de lhe serem conferidas as vantagens da rigidez constitucional, entre as quais está a imunidade perante a legislação.
Para o autor, um exemplo alienígena de prolixidade está na Constituição da Índia de 1950, que contém quatrocentos artigos, além de vários anexos.
Interessante advertir que parcela do segmento doutrinário, na qual se inclui Inocêncio Mártires Coelho93, reputa sinônimos os textos constitucionais analíticos e prolixos. Penso diversamente. A constituição analítica deve ser vista como aquela na qual a relação legal fundamental é mais extensa, abrangendo o tratamento de grande parte de matérias que ostentam relevo para a coletividade, além do binômio original do liberalismo clássico (divisão de poderes e direitos individuais). No entanto, atua pela senda do tracejar de diretrizes ou linhas gerais dos aspectos abordados, a serem desenvolvidos e concretizados pelo legislador. Contrariamente, a compreensão da constituição prolixa envolve, demais do tratamento de vários temas, o excessivo detalhamento da regulação destes.
A Constituição de 05 de outubro de 1988, seja em sua redação inicial, e cada vez mais intensamente com as modificações introduzidas nas suas sucessivas e assíduas (e, muitas vezes, canhestras) emendas, é, inegavelmente, um exemplo eloquente de uma constituição prolixa. Basta ver o regramento esmiuçado dos direitos trabalhistas no seu art. 7º, I a XXXIV, bem como a atenção dispensada à Administração Pública, incluindo o seu regime previdenciário (arts. 37 a 42). Foi-se - e muito - mais adiante do delineamento dos contornos genéricos dos assuntos versados.
Essa prática, longe de fortalecer o regramento dos assuntos minudenciados, conspira - e muito - para o enfraquecimento do prestígio do texto sobranceiro, tendo em vista que, limitando excessivamente a interpretação que dele realiza a jurisdição constitucional, faz com que perca a qualidade - essencial para toda e qualquer constituição - de acompanhar as mudanças históricas vivenciadas pela sociedade. Provoca, ao contrário, a necessidade de reprodução veloz da mudança formal de seu teor, o que é um fator enorme para o seu desgaste e desprestígio.
Nada mais evidente do que o sucedido em nossa Lei Maior, a qual, despeito da densidade substancial de sua parte dogmática, já sofreu, ao instante do perfazimento do seu primeiro lustro de vigência, oitenta e três modificações pelo poder constituinte derivado reformador.
5. ALGUMAS CONCLUSÕES
Ao cabo do que restou exposto, afigura-se possível sumariar alguns remates, a saber:
a despeito das dificuldades encontradiças na tarefa de investigação acerca do conceito de constituição, o qual está sujeito a mutações, para o fim de adaptar-se às transformações político-culturais da sociedade, tem-se, a partir do exame de múltiplas opiniões, que aquela é de ser visualizada como a lei primeira, suprema e fundamental, tendo por objeto não somente a disciplina da vida estatal, mas, igualmente, da comunidade em sua inteireza, mediante as tarefas de integração, organização e direção jurídica, com o estabelecimento dos direitos e responsabilidades dos indivíduos e grupos sociais nos campos civil, político, econômico, social e cultural;
com antecedentes na Antiguidade e na Idade Média, a convicção em torno da constituição - não somente a escrita, mas preferencialmente esta foi se consolidando como resultado das revoluções liberais, podendo-se apontar cinco fases marcantes de sua evolução, principiando pelas constituições liberais censitárias, passando-se pelas ditas outorgadas ou pactuadas, por aquelas tendentes ao fortalecimento da democracia parlamentar, e ao surgimento de novos direitos, até aportar, cessado o segundo conflito mundial, nas constituições da democracia político-social;
o ciclo de constituições atualmente vivenciado se insere nos quadrantes do Estado constitucional, cujas linhas, delimitadas pela doutrina, vão além do reclamo da existência de um documento formalmente rotulado de “constituição”, devendo, antes disso, ter em seu conteúdo a consagração de uma ordem de valores conforme a democracia e que, por isso, sublime a dignidade da pessoa humana, os direitos fundamentais, a soberania popular, a divisão de poderes, a justiça social, dentre outros; da mesma forma, requer-se, à guisa de complemento, algo mais que a sua vigência, qual seja o fato da constituição, de fato, vir a ser respeitada e praticada no cotidiano do sistema político e social;
abstraídas as diversidades entre os vários textos constitucionais e suas realidades, não se afigura admissível perder de vista que a constituição, na qualidade de ordem fundamental da coletividade, vai, em seu conteúdo, mais longe do que a mera disciplina dos direitos de liberdade e da organização estatal, de modo a, com o correr do tempo, modelar as balizas das relações jurídicas vivenciadas no campo econômico e social, devendo, para tanto, a redação de seus textos primar pela regulação concisa e geral dos aspectos enfocados, uma vez o detalhamento excessivo dos comandos magnos conspirar em detrimento da otimização da eficácia do correspondente diploma.
6. REFERÊNCIAS
AGUILÓ, Josep. Sobre a constitución del Estado constitucional. Cuadernos de Filosofía del Derecho. n. 24, 1989. Disponível em: <http//publicaciones.ua.es>. Acesso em: 15-01-2013.
ALVES, José Carlos Moreira. Assembleia Nacional Constituinte - Instalação. Revista de Informação Legislativa, ano 24, nº 93, jan./mar. de 1987.
AMARAL, Diogo Freitas do. Curso de direito administrativo. 2ª Reimpressão. Coimbra: Almedina, maio de 2003. Vol. II.
BARTOLE, Sergio. Costituzione (dottrine generali e diritto costituzionale. In: Digesto delle discipline pubblicistiche. Turim: UTET, 1995. Vol. IV.
BEVILAQUA, Clóvis. A Constituição e o Código Civil.www.planalto.gov.br. Acesso em: 14-04-2014.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 4ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1993.
___________ Constitucionalismo luso-brasileiro: influxos recíprocos. In: Perspectivas constitucionais nos vinte anos da Constituição de 1976. Coimbra: Coimbra Editora, 1996. Org.: MIRANDA, Jorge.
CORAL, Aláez Corral. Las decisiones básicas del Tribunal Constitucional Federal alemán em lãs encrucijadas del cambio de milênio. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2008. Coléccion: Textos y Documentos nº 18.
CARBONELL, Miguel. Elementos de derecho constitucional. 2ª reimpressão. México - Distrito Federal: Fontamara, 2009.
DANTAS, Ivo. Constituição e processo. 2ª ed. Curitiba: Juruá, 2007.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Constituição & constituinte. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
FAYT, Carlos S. Derecho político. 7ª ed. Buenos Aires: Depalma, 1988. Tomo II.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estado de Direito e Constituição. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
FIORAVANTI, Maurizio. Constitución de la Antigüedad a nuestros dias. Madri: Editorial Trotta, 2007.
GARCÍA-PELAYO, Manuel. Derecho constitucional comparado. Madri: Alianza Editorial, 1993.
___________ El “status” del Tribunal Constitucional. Revista Española de Derecho Constitucional, vol. 1, n. 1, jan./abr. de 1981.
GARCÍA, Eusebio Fernández. Valores constitucionales y derecho. Dykinson: Madri, 2009.
GRIMM, Dieter. Constitucionalismo e direitos fundamentais. Madri; Editorial Trotta, 2006. Tradução de Raúl Sanz Burgos e de José Luis Muñoz de Baena Simon.
___________ Constituição e política. Belo Horizonte; Del Rey, 2006. Tradução de Geraldo de Carvalho.
GUASTINI, Ricardo. Estudios de teoría constitucional. Cidade do México: Fontamara, 2007
HÄRBELE, Peter. Teoría de la constitución como ciencia da cultura. Madri: Tecnos, 2000. Tradução de Emilio Mikunda.
___________ Conversas acadêmicas com Peter Härbele. traduzido do espanhol por Carlos dos Santos Almeida. São Paulo; Saraiva, 2009. VALADÉS, Diogo (Org.).
HESSE, Konrad. Constitución y derecho constitucional. In: Manual de derecho constitucional. Madri: Marcial Pons, 1996. Tradução de Antonio López Pina.
HESSE, Konrad. Conceito e peculiaridade da constituição. Temas fundamentais do direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009. Tradução de versão em espanhol por Inocêncio Mártires Coelho.
HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1991. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes.
LASSALE, Ferdinand. Qué es una Constitución? Barcelona: Ariel, 2012. Tradução de Wenceslao Roces.
LANCHESTER, Fulco. Le costituzione tedesche da Francoforte a Bonn - introduzione e testi. Giuffrè Editore: Milão, 2002.
LEAL, Victor Nunes. Técnica legislativa. In:Problemas de direito público e outros problemas. Brasília: Ministério da Justiça, 1997. Vol. 1.
LINERA, Miguel Angel Presno; CAMPIONE, Roger. Las sentencias básicas del Tribunal Constitucional italiano - Estudio de una jursidicción de la libertad. Madri: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2010.
LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la constitución. Barcelona: Ariel, 1962. Tradução de Alfredo Gallego Anabitarte.
LUÑO, Antonio-Enrique Pérez. La universalidad de los derechos humanos y el Estado constitucional. Bogotá: Universidad Externado de Colômbia, 2002.
MERKL, Adolfo. Teoria general del derecho administrativo. Granada: Editorial Colmares, 2004.
MIRANDA, Jorge de. Contributo para uma teoria da inconstitucionalidade. Reimpressão. Coimbra: Coimbra Editora, 1996.
NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. O poente do constitucionalismo brasileiro: a Constituição de 1937. In: BRANDÃO, Cláudio; SALDANHA, Nelson; FREITAS, Ricardo (orgs.) História do direito e do pensamento jurídico em perspectiva. São Paulo: Atlas, 2012, p. 398-409.
PAIXÃO, Cristiano; BIGLIASI, Renato. História constitucional inglesa e norte-americana: do surgimento à estabilização da forma constitucional. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.
REGLA, Josep Aguiló. Sobre a constitución del Estado constitucional. Cuadernos de Filosofía del Derecho. n. 24, 1989. Disponível em: http//publicaciones.ua.es. Acesso em: 15-01-2013.
RUBIO, Valle Labrada. Introdución a la teoria de los derechos humanos. 1ª ed. Madri: Civitas, 1998.
SANTOS, Gustavo Ferreira. Neoconstitucionalismo, Poder Judiciário e direitos fundamentais. Curitiba: Juruá Editora, 2011.
SCHMITT, Carl. Teoría de la constitución. Madri: Alianza Editorial, 1982.
SCHMITT, Carl. Legalidade e legitimidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. Tradução de Tito Lívio Cruz Romão.
STERN, Klaus. Jurisdição constitucional y legislador. Madri: Dykinson, 2009. Tradução de Alberto Oehling de los Reyes.
VIZENTINI, Luiz. Segunda Guerra Mundial - Relações internacionais do século 20. 5ª ed. Porto Alegre: UFRGS Editora, 2006.
VOVELLE, Michel. A Revolução Francesa. São Paulo: Editora UNESP, 2012. Tradução de Mariana Echalar.
WOLFE, Chistopher. La transformacón de la interpretación constitucional. Madri: Civitas, 1991.
ZAGREBELSKY, Gustavo. Historia y constitución. 2ª ed. Madri: Editorial Trotta, 2011. Tradução e prólogo de Miguel Carbonell.
ZAGREBELKY, Gustavo. Jueces constitucionales. In: CARBONELL, Miguel (Coord.). Teoria del neoconstitucionalismo. Madri; Trotta, 2007.
Notas
Autor notes