Artigos
Recepção: 15 Agosto 2016
Aprovação: 19 Julho 2017
DOI: https://doi.org/10.5380/rinc.v4i2.48093
Financiamento
Fonte: CNPq
Número do contrato: 306131/2014-5
Descrição completa: Artigo resultante do projeto de pesquisa financiado pelo CNPq com o número 306131/2014-5.
Resumo: A introdução da tentativa de um Tratado Constitucional Europeu no sistema do Direito coloca em xeque duas das mais enraizadas instituições jurídicas do Ocidente: as Constituições e os Tratados, já que ambas partem, desde o ponto de vista da doutrina tradicional, de pressupostos conceituais diferenciados. O paradoxo está ligado às condições de evolução e de planificação do sistema social global. Com isso, o presente artigo busca analisar o modo pelo qual os dois modelos de diplomas legais - amplamente utilizados na sociedade global - passaram a receber um sentido diverso em função da co-evolução citada. Para tanto, analisa os dois institutos a partir de um ângulo relacionado à possibilidade de planejamento e de controle da evolução de determinada sociedade, no caso específico a Comunidade Europeia, em que tanto o referendo quanto a aprovação parlamentar demonstraram-se ineficazes para a necessidade de se compreender o sentido de uma nova conformação jurídica. A metodologia utilizada está alicerçada repousa no funcionalismo estrutural de Niklas Luhmann na vertente autopoiética de sua teoria dos sistemas sociais autopoiéticos. Para essa linha, o referendo é, pois, um mecanismo de auto-referência do sistema jurídico. Os resultados vertidos nas urnas europeias mostram esse paradoxo, deixando exposta a dúvida sobre a necessidade de planejamento do espaço comunitário ou a evolução a partir das suas próprias características. Este último conceito é o que explica tal fracasso, diante da complexidade das estruturas de uma sociedade transfronteiriça por excelência como a europeia.
Palavras chave: Europa, tratado constitucional, paradoxo, referendo, planejamento.
Abstract: The introduction of a European Constitutional Treaty into the legal system calls into question two of the most deeply rooted juridical institutions of the West: the Constitutions and the Treaties, both of which depart, from the point of view of traditional doctrine, with different conceptual presuppositions. The paradox is linked to the conditions of evolution and planning of the global social system. Thus, the present article seeks to analyze the way in which the two models of legal diplomas - widely used in the global society - began to receive a different meaning due to the aforementioned co-evolution. To do so, it analyzes the two institutes from an angle related to the possibility of planning and controlling the evolution of a particular society, in the specific case the European Community, in which both the referendum and parliamentary approval proved its ineffectiveness for the need to understand the meaning of a new legal structure. The methodology used is based on the structural functionalism of Niklas Luhmann in the autopoietic aspect of his theory of autopoietic social systems. For this line, the referendum is, therefore, a mechanism of self-reference of the legal system. The results of the European suffrage show this paradox, leaving open the doubt about the need of planning the community space or the evolution from its own characteristics. This last concept is what explains this failure, given the complexity of the structures of a typical cross-border society such as the European one.
Palabras clave: Europe, constitutional treaty, paradox, referendum, planning.
1. INTRODUÇÃO
A introdução da tentativa de - na falta de um nome melhor - um Tratado Constitucional Europeu no sistema do Direito coloca em xeque duas das mais enraizadas instituições jurídicas do Ocidente: as Constituições e os Tratados. Diz-se isso porque ambas partem do ponto de vista da doutrina tradicional, de pressupostos conceituais diferenciados. A reunião semântica das duas expressões é, portanto, à primeira vista, um paradoxo.
Esse paradoxo está posto na medida em que uma pergunta paira no ar: como uma Constituição pode se intitular como Tratado ou, de outro lado, como um Tratado pode ser entendido como uma Constituição? A contradição, aparentemente insolúvel, está ligada às condições de evolução e de planificação do sistema social global, uma vez que o sistema social evolui, seus subsistemas agem da mesma forma. O Direito não foge à regra.
Nesse sentido, o presente artigo busca analisar o modo pelo qual os dois modelos de diplomas legais - amplamente utilizados na sociedade global - passaram a receber um sentido diverso em função da coevolução citada. Para tanto, analisa os dois institutos a partir de um ângulo relacionado à possibilidade de planejamento e de controle da evolução de determinada sociedade, no caso específico, a Comunidade Europeia.
Dessa forma, tanto o referendo quanto a aprovação parlamentar, demonstraram-se ineficazes para a necessidade de se compreender o sentido de uma nova conformação jurídica como é o caso da Comunidade Europeia. Trata-se de mecanismos existentes na cultura ocidental de Direito e que se propuseram a vestir o novo, dentro de uma roupagem prêt-a-porter.
Com base nessas premissas, resta um questionamento: esse híbrido possui uma funcionalidade no sistema jurídico? Da forma como está/foi apresentado representa uma evolução ou uma involução para o sistema do Direito e, portanto, para o sistema social? Começa-se a responder a questão pelo paradoxo.
2. O PARADOXO CONCEITUAL: CONSTITUIÇÃO-TRATADO OU TRATADO CONSTITUCIONAL.
Não é novidade alguma referir que, em um sentido comum, todos os povos tiveram, de uma forma ou de outra, Constituições1. A novidade do século XVIII, como bem alerta Lassalle2, é o surgimento das Constituições Escritas que, por seu turno, foram alavancadas pela denominada Teoria do Poder Constituinte.
Na concepção clássica desenvolvida por Sieyès3, surgida concomitante à Revolução Francesa, a Teoria do Poder Constituinte4 defende que a Nação existe antes de todas as coisas5. Especialmente no que interessa ao propósito aqui defendido, o Poder Constituinte Originário a ninguém se encontra subjugado. É uma potência. O Estado dele decorre. É sua fundação. Dito de outro modo: as Constituições são frutos do caráter inicial dessa modalidade do poder constituinte.
Outro conceito, ainda hoje utilizado nas Leis Fundamentais6, é o de povo, que, para o já citado abade francês, pode ser entendido como o conjunto de pessoas reunidas e submetidas e um poder (Constituinte), sendo a nação a encarnação dos interesses coletivos dos indivíduos. A soberania e o direito de permanência são, pois, dessa comunidade. Resta, todavia, o fato de que a ideia das Constituições Escritas modernas está ligada aos conceitos de nação, de povo e de soberania. Ocorre que o Tratado Constitucional Europeu, por sua natureza - como se verá adiante -, (re)questiona e (re)posiciona tais pressupostos. Dessa maneira, (re)coloca a interpretação da função das Constituições - e dos Tratados - em um novo nível de discussão. Paradoxal.
Ambas as pressuposições (Constituições Escritas e Tratados) fazem parte da estrutura operativa clássica do sistema do Direito. Evidentemente cada qual com sua lógica. Com isso, influenciam todas as operações posteriores7, tais como: decisões, jurisprudências, expectativas normativas8, entre outras. De fato, moldaram um sistema jurídico baseado na Constituição. Contudo, como já referido, em função da inserção de um novo elemento (o Tratado Constitucional), está-se diante de um paradoxo conceitual que deve ser resolvido.
Por outro lado, recorde-se que as relações internacionais se desenvolveram, desde a Paz de Westfalia celebrada em 1648, sob o principio da igualdade soberana dos Estados, com a existência de relações de coordenação entre as potências em uma communitas orbis9. O Direito das Gentes - marco regulador desse equilíbrio -, embora, durante séculos, tenha tido uma consistência nomeadamente costumeira, tem nos Tratados sua principal fonte jurídica10, entendendo a Convenção de Viena de 1969 que tratado é “um acordo internacional concluído por escrito entre Estados e regido pelo Direito Internacional, quer conste de um instrumento único, quer de dois ou mais instrumentos conexos qualquer que seja sua denominação específica”.11
Para melhor identificar a espécie normativa referida, cabe procurar suas características próprias, e para isso é essencial observar a qualidade dos seus sujeitos e a maneira pela qual esse acordo de vontades se conforma. Os Tratados são sempre celebrados entre Estados e/ou organizações internacionais e por escrito - eis uma primeira diferença com algumas Constituições. Há, todavia, diferenças mais importantes que fazem com que o paradoxo apresentado ganhe força.
A formação de um acordo de vontades bilateral ou multilateral por intermédio de um Tratado decorre de um iter complexo, que pode ser observado a partir de dois pontos de observação: desde o próprio Direito das Gentes, distinguindo quais os indivíduos que, diante da comunidade internacional, podem negociar em representação de um Estado ou Organização Internacional (competência negocial). E, desde o direito público interno de cada Estado soberano, definindo a legitimidade que confere a ordem constitucional para um tratado ser concluído, e, assim, obrigar ao Estado internacionalmente (treaty making power). Tanto em um como em outro, a capacidade para negociar e celebrar tratados encontra-se concentrada na figura do Poder Executivo. No caso de países com tradição democrática, a participação dos parlamentos estabelecida nas Constituições limita-se à aprovação (ou não) do negociado, não contando com capacidade de propor alterações no acordo. Observa-se então, que a condução das relações com outras potências soberanas e entidades análogas está concentrada em cabeça do Chefe de Estado ou de Governo, que deve mostrar-se ao mundo como uma voz unívoca dos interesses nacionais12.
Com base nisso, é possível pensar-se uma Constituição criada a partir de mecanismos de negociação que, sob os moldes do direito internacional tradicional, apoiaria sua legitimidade em potestades inerentes ao Poder Executivo? A resposta a essa pergunta não é simples, originando-se da experiência de um modelo de organização que constitui, desde seus primórdios, um verdadeiro desafio ao conceito de soberania estatal, trazendo à cena instituições com caráter supranacional, como modelo de superação das deficiências de um Estado regulador que não consegue intervir com a mesma eficácia numa economia globalizada.13
A ideia de uma reforma do sistema jurídico-institucional da União Europeia vem sendo discutida há algumas décadas. Havia necessidade de avançar no processo integracionista, mais no sentido de conformar uma união com maior conteúdo político, e não apenas um âmbito de cooperação entre Estados ou a ideia original de um mercado comum.14 Em segundo lugar, existia uma necessidade de simplificar o quadro normativo, de caráter extremamente complexo não apenas para o cidadão comum, mas para os atores políticos e operadores jurídicos.15 Ainda, era imperioso organizar o ingresso de novos membros ao bloco, notadamente dos países do centro e do leste europeu, cujas democracias davam os primeiros passos.
Embora o Tribunal de Justiça de Luxemburgo tenha já definido os tratados constitutivos como sendo atos fundantes da Comunidade e estatutos de caráter constitucional,16 o primeiro sinal concreto17 sobre a vontade do bloco de contar com uma constituição europeia deu-se em 2000 no Conselho Europeu em Nice, em que se propôs a abertura de um debate sobre quatro pontos entendidos fundamentais, relacionados ao futuro do bloco: uma delimitação mais precisa das competências entre a União Europeia e os Estados membros; o caráter da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia; a simplificação dos Tratados, para clarificá-los; e o papel que deveriam ter dos Parlamentos nacionais nas Comunidades Europeias.18 Essa tarefa foi assumida formalmente no Conselho de Laeken 2002, em que se formulou extensa “Declaração de Laeken sobre o Futuro da União Europeia”,19 que buscava a convocação de uma Convenção20 para discutir o quadro institucional, abrindo caminho para a elaboração de uma constituição escrita.
O resultado dessa Convenção foi a formulação de um borrador completo de um texto constitucional que, sendo submetido à Conferência Intergovernamental que lhe seguiu (2003-2004), derivou no Tratado Constitucional Europeu, formalmente designado como “Tratado que Estabelece uma Constituição para a Europa”, assinado em Roma, em 29 de outubro de 2004.21
Sobre os propósitos da Convenção, no que respeita às competências da União Europeia e dos Estados Membros, 22 o texto não apresentou grandes novidades para essa questão, pois, embora admitisse a personalidade jurídica da União Europeia, declarando-a sujeito de direito, não lhe atribuía competências próprias. Sobre o reparto das competências com os Estados, limitou-se a classificar competências já consagradas nos tratados constitutivos, e que a própria dinâmica institucional e a atividade pretoriana do Tribunal de Luxemburgo desenvolveram ao longo dos anos.23
O que constituía novidade - não necessariamente positiva - seria o relacionado ao processo legislativo e ao papel dos parlamentos nacionais, bem como certos aspectos institucionais. Clarificavam-se as espécies de normativas europeias, ao passo que se dava aos parlamentos nacionais um mecanismo de “alerta precoce”, pelo qual poderiam, via Tribunal de Justiça, advertir sobre possíveis incompatibilidades com o principio da subsidiariedade consagrado em Maastricht.24 Em nível institucional, promoviam-se reformas pouco felizes no que respeitava à composição da Comissão Europeia, criando categorias de comissários com e sem direito a voto.25
Por último, cabe mencionar a incorporação da Carta de Direitos Fundamentais ao texto da Constituição, sendo expressão do consenso europeu sobre valores fundamentais, consubstanciados num rol de preceitos abrangentes que integram a mesma posição ocupada por outros documentos básicos sobre direitos fundamentais.
Em um cristalino exemplo de que a inovação se consegue mediante repetição ou de que o futuro se baseia, no presente, pelas experiências do passado26, a tentativa foi o uso de um mecanismo tradicional tanto para as Constituições quanto para os Tratados: o referendo e a aprovação parlamentar. Contudo, sua planejada aplicação constitui-se em uma evolução ou um indesejado mais do mesmo? A resposta dos povos europeus foi, no mínimo, duvidosa a respeito de sua adoção. E o resultado foi uma rejeição nas urnas em dois atores fundamentais da construção da Europa comunitária.
O fracasso do projeto de Constituição representou um freio importante ao movimento inciado na década anterior, passando-se a um período de reflexão acerca do rumo que deveria ser tomado.27 Embora houvesse esforços para insistir na ratificação, no Conselho Europeu de 2006, deixou-se claro que o avanço se daria em um nível mais pragmático, tentando aproveitar o conteúdo dos tratados precedentes.28 Nesse sentido, a presidência alemã do Conselho Europeu iniciou o trabalho de substituição do “método constitucional” pelo tradicional método de reforma dos tratados,29 e convocou uma Conferência Intergovernamental a quem deu um mandato concreto: discutir o rascunho de um tratado de reforma (“Tratado Reformador”), que depois deviria no Tratado de Lisboa. Nele se abandona qualquer referência à Constituição.30 Como sustenta Cerdón, a partir de então, os Tratados farã referência à Constituição Europeia como “as novidades resultantes da Conferencia Intergovernamental de 2004”, voltando o vocábulo “Constituição” a ser um tabu como o tinha sido durante muito tempo atrás, até os anos noventa do século XX.31
Algum tempo depois, o Tratado de Lisboa seria oficialmente assinado pelos 27 Chefes de Estado e de Governo europeus em 13/12/2007 e entraria em vigor em 01/12/2009, após ter sido ratificado por todos os Estados-Membros, não sem alguns percalços. Ele reformou o Tratado da União Europeia, que conserva seu nome, e o Tratado da Comunidade Europeia, que passa a denominar-se “Tratado de Funcionamento da União Europeia”. Na essência, abandona-se o sentido político e simbólico da ideia Constituição, mas recolhe-se materialmente o grosso do conteúdo normativo do projeto iniciado em 2002.32
3. O REFERENDO E A APROVAÇÃO PARLAMENTAR COMO MECANISMOS (FRACASSADOS) DE SUPERAÇÃO DO PARADOXO CONCEITUAL.
De acordo com as questões conceituais, não se torna difícil afirmar que Tratado e Constituição estarem unidos tanto semântica quanto funcionalmente seja um paradoxo33. A questão, portanto, passa a ser como geri-lo. Verificar se é possível sua continuidade reprodutiva dentro do sistema jurídico ou de subsistência, na linha de Marcelo Neves e sua alopoiese34, provoca um indesejável bloqueio autopoiético.
De fato, Luhmann35 refere que os paradoxos, mesmo no Direito, são condições de operação do sistema. São inevitáveis. Por intermédio do exemplo dos doze camelos36, constata-se a existência de pontos cegos no Direito. Para atingi-los, é necessário que se atente para os dois lados, de tal forma que se perceba que ambos formam uma unidade distintiva, o que se perde na ideia de Tratado Constitucional ou de Constituição-Tratado.
O décimo-segundo camelo é necessário para a divisão correta do problema de herança apontado. Ao mesmo tempo, como se deflui de sua resolução, não era necessário, uma vez que a quantidade de animais restante permanece a mesma daquela do início do problema. Dito de outra forma: ao mesmo tempo em que não era necessária sua presença física, sua função é essencial.
Nesse sentido, tem-se que a Constituição existe justamente porque se diferencia do Tratado (e vice-versa), sendo este seu contraponto. Atuam, também, em clara rede comunicacional, pois a validade do Tratado depende de sua absorção pelo código constitucional (Constitucional/Inconstitucional). Esse mecanismo seletivo é adotado, por exemplo, no Brasil37.
No momento em que Constituição e Tratado, até mesmo em termos conceituais, têm a mesma função perante a sociedade, na qual se insere (Europa Comunitária), um dos polos de diferenciação funcional entre eles se perde. Com isso, ou a Constituição perde sentido ou o Tratado passa a desempenhar uma nova função. Porém, a assunção de uma função por dois elementos causa acréscimo de complexidade por anulação mútua, gerando aumento de incerteza e de indeterminação.
Por outro lado, no plano do desempenho simbólico38 tanto de uma Constituição quanto de um Tratado, cumpre referir que a diferenciação funcional, anulada pelo Tratado Constitucional Europeu, desempenha um papel essencial no sistema social: delimitar as especificidades de cada operação dentro do sistema jurídico. As decisões baseadas nos códigos de cada instituto perdem sua capacidade de antecipar problemas futuros por evidente ausência de redução de complexidade. Quando dois passam a ser um - e com a mesma função - acrescem-se possibilidades decisórias. Logo, há mais complexidade, algo facilmente notável pela estrutura do bloco europeu. Pense-se que na união das três Comunidades Europeias (Comunidade Econômica Europeia - CEE, Comunidade Europeia de Energia Atômica - EURATOM e a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço - CECA), baseadas em três tratados diferentes, ao que depois se somou o Tratado da União Europeia (Maastricht, 1992), com novos âmbitos de cooperação e reparto de competências. Isso fez com que o ordenamento da União Europeia se tornasse algo extremamente complexo, extenso e difícil de compreender.39
Na linha luhmanniana, o referendo é, pois, um mecanismo de autorreferência do sistema jurídico. Trata-se de uma operação interna que procura decidir a respeito de uma decisão anterior, tornando-a parte da reflexividade do sistema do Direito. Essa seletividade é necessária para que a estrutura operativa da autopoiese do sistema jurídico reste preservada perante as influências comunicacionais advindas do seu entorno.
Para a superação do paradoxo demonstrado, uma das saídas elaboradas pela União Europeia foi uma operação que já faz parte do Direito: o referendo. Resta saber, todavia, se ele alcançou seus objetivos (poucos países o utilizaram), já que mesmo diante de uma nova moldura estatal, a Europa buscou em velhos conceitos40 (soberania popular) a resposta para a consecução de uma nova realidade (autopoiese).
Enquanto a maioria dos países se limitou a dar andamento à aprovação parlamentar prevista nas suas constituições, um grupo de 9 (nove) países41 optaram por incluir a realização de referendos, embora não obrigados pelos textos constitucionais.42 Tal medida deixou em evidência uma transferência de responsabilidade43. E o resultado foi o reflexo de quão distante estava aquele projeto do cidadão comum: apatia, no caso da Espanha, e uma contundente rejeição, na França e nos Países Baixos. Os resultados obtidos nesses dois últimos tiveram a contundência suficiente para promover o abandono das consultas no restante dos países.
Em análise dos resultados do referendo na Espanha, embora se tenha informado uma “Victoria aplastante del ‘sí’”, computando-se 76,7% de votos em favor da Constituição, cabe resaltar que apenas 42,32% do eleitorado participou dele44. As enquetes solicitadas pela Comissão Europeia apresentam como a principal justificativa (30%) de abstenção a falta de informação recebida por parte dos cidadãos sobre o que representaria o projeto. Isso se soma aos que disseram não votar por falta de debates suficientes ou por que, a campanha foi iniciada tardiamente (10%). Tenha-se em conta que, desde a assinatura do Tratado de Roma à celebração do referendo, passaram-se apenas quatro meses.45
Na França, embora a convocação às urnas tenha obtido a mais alta participação (69,3%), em níveis comparáveis à votação para a ratificação do Tratado de Maastricht de 1992, o projeto não teve a mesma sorte. A Constituição teve uma rejeição de 54,68%. Diferentemente do caso holandês, os motivos que levaram os franceses a negar o apoio deveram-se mais a razões de caráter interno do que as propriamente relacionadas com o âmbito comunitário: as duas principais causas apontadas estão relacionadas a enxergar a Constituição como uma ameaça ao emprego na França (31%) e a uma frágil situação econômica (26%).46
No caso dos Países Baixos, o referendo celebrado em Primeiro de junho de 2005 resultou numa rejeição da Constituição Europeia com 61,6% dos votos. Apesar de que uma maioria entenda que houve pouca informação, o resultado deve observar-se além desse fator. Nas pesquisas, grande parte dos holandeses manifestou a sua preocupação com a perda de soberania do seu país que a Constituição representaria (24%), e ainda entendeu excessiva carga fiscal que pesa sobre os contribuintes para sustentar a Europa (13%). A renegociação do Tratado entendeu-se como necessária, em prol de uma melhor defesa dos interesses neerlandeses.47
No restante da Europa, o processo de ratificação continuou até o ano de 2006,48 embora se soubesse que a França e os Países Baixos não assumiriam o risco de tentar reverter a opinião do seu eleitorado. Assim, a Constituição Europeia “caiu ferida de morte”.
O resultado da consulta feita aos comunitários a respeito da adoção do Tratado Constitucional Europeu no espaço da União repousa em um espaço dúbio. Trata-se de evolução ou involução. É necessário que o espaço comunitário europeu seja planejado ou é melhor que evolua a partir de suas próprias características?
4. CONCLUINDO: PLANEJAMENTO OU EVOLUÇÃO? HÁ A NECESSIDADE DE UM TRATADO OU DE UMA CONSTITUIÇÃO PARA A EUROPA?
A concepção de planejamento de determinada sociedade constitui uma impossibilidade caso se parta de uma idéia relativamente comum e bastante propagada49 - o mundo atual se apresenta como transgressor no que tange às (modernas) noções de fronteira. Esse é o evidente caso da União Europeia. De fato, tais noções existem somente em termos simbólicos50 como uma lembrança de um passado que pretende se perpetuar no futuro. Ost51, a respeito, descreve esse saudosismo como a nostalgia da eternidade, ou seja, aquela saudade desavisada de manter-se perenemente ativa no futuro.
Nenhuma sociedade pode ser planejada52; logo, nenhum “Tratado Constitucional” terá essa propriedade. O primeiro obstáculo ao planejamento53 da sociedade está no plano da observação. Luhmann54 refere que a maioria das análises a respeito relata a existência de hierarquia. É o que se pretende com a tentativa de um instituto tal como esse ora analisado.
Contudo, hierarquia, em termos autopoiéticos, é apenas uma etapa da autorreferencialidade dos subsistemas. Ela é transitória. Não é etapa final e, muito menos, inatacável, pois, em caso contrário, estar-se-ia negando a diferenciação dos subsistemas que compõe a União Europeia. Por isso, é extremamente irreal imaginar a existência da hierarquia em uma sociedade com diferenciação funcional tão acentuada quanto a Europa.
De outro lado, no nível da descrição, o planejamento de uma sociedade é um ato pleno de indeterminação. Diz-se isso porque qualquer descrição de uma determinada sociedade deve ser feita a partir da idéia de que ela se insere como elemento de uma sociedade global. Por isso, coexiste com outras sociedades, sendo, ao mesmo tempo, uma e diferenciada. Influencia e é influenciada pelas demais. Nenhuma sociedade e nenhum Direito (Comunitário) podem ser descritos sem essa complexidade. Torna-se, portanto, uma tarefa hercúlea planejar uma sociedade no nível descritivo. Um Tratado Constitucional com tal objetivo, local em que se inserem, por exemplo, os direitos fundamentais, corre o risco de atuar no plano mítico e não no plano real.
Nesse caso, se os direitos fundamentais dos comunitários forem pensados dentro de concepções que não desvelam seu paradoxo originário, como efetivá-los em uma sociedade que se move e se comunica em um padrão transfronteiriço por excelência? Essa é a impossibilidade do dirigismo constitucional55do Tratado e de sua hipótese de planejamento social.
A hipótese defendida é a de que o complexo arcabouço de normativas do Direito Comunitário deve ser pensado a partir da noção de evolução. A complexidade deve ser analisada com pressupostos idem. Nesse sentido, para Luhmann56, a evolução pressupõe reprodução autorreferencial. Ela modifica as condições estruturais da reprodução por mecanismos de diferenciação por intermédio da variação, seleção e estabilização.
Com isso, significa que, ao contrário do planejamento, a evolução não possui uma meta. É possível conseguir um objetivo, mas não será seu objetivo fundamental. Os mecanismos seletivos próprios de cada sistema (códigos) procuram estabilizar, sob suas próprias condições, as influências externas, remetendo-as a uma variação que pode ou não ser induzida. O planejamento, portanto, influencia a evolução. Contudo, não e sua causa principal. Daí a razão do rechaço dos comunitários e da desnecessidade funcional de um Tratado Constitucional.
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Notas
Autor notes