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Recepção: 12 Janeiro 2017
Aprovação: 18 Julho 2017
DOI: https://doi.org/10.5380/rinc.v4i2.50156
Resumo: Guardiã do respeito à constituição, a jurisdição constitucional nas suas decisões forçosamente incursiona no campo da política. Diante disso, este artigo visa examinar os limites e possibilidades da atuação dos tribunais e cortes no controle dos atos do Legislativo e do Executivo e no estabelecimento de diretrizes para a sociedade. O texto, à medida do possível, nos remete à nossa realidade.
Palavras-chaves: Constituição, jurisdição constitucional, política, controle de constitucionalidade, judicialização da política.
Abstract: Guardian of the Constitution, the constitutional jurisdiction in its decisions necessarily enters in the political environment. In view of this, this article aims to examine the limits and possibilities of the role of the constitutional courts in controlling the acts of the Legislative and Executive powers and in establishing guidelines for society. The text, as far as possible, refers us to our reality.
Keywords: Constitution, constitutional jurisdiction, politics, judicial review, judicialization of politics.
1. CONSTITUCIONALISMO E PODER
Implacável por natureza, o correr do tempo produziu muitos acontecimentos que repercutiram no cotidiano da humanidade. Um deles, ao qual se costumou designar por constitucionalismo, teve a sua representação com os movimentos sociais, políticos e, igualmente, jurídicos, surgidos entre os instantes finais dos séculos XVII e XVIII, voltadas à institucionalização de princípios aptos para condicionar e limitar o exercício do poder político em favor da garantia de uma esfera de posições jurídicas em favor dos cidadãos. Consistiu, por assim dizer, numa expressão de um princípio fundamental para o fenômeno político, qual seja o da legitimação do poder.
O seu surgimento serviu de contraponto para o fortalecimento e consolidação do poder monárquico que, respaldado no conceito de soberania, alterara sensivelmente a relação entre o direito e a política, reduzindo aquele a um instrumento para fins de dominação política.
Daí porque o descontentamento com a disposição política da monarquia sobre o direito, as revoluções liberais se direcionaram para defesa da liberdade e da igualdade dos seus membros como pressuposto para o funcionamento da sociedade.
Se, no plano europeu, com a insurgência dos franceses, o primeiro e grande passo consistiu na sacralização da lei como mecanismo apontado como infalível para equilibrar a relação entre o poder e os súditos, no exemplo norte-americano a limitação da política, a qual deveria ser alcançada pelo método jurídico, reclamava a positivação de um direito superior ao estabelecido pelas legislaturas (High Law). Este passou a ser conhecido como constituição, à qual competiria estatuir os princípios e valores destinados a servir de diretriz à organização do Estado e da sociedade.1
Sendo assim, se os segmentos estatais, vale dizer, o Legislativo e o Executivo, ainda continuariam a conservar parcela da competência para formular as regras jurídicas, tal não mais poderia ser comparada à dos monarcas, pois, a partir de então, passariam a se encontrar limitados por um diploma sobranceiro e fundamental.
Se não foi possível durante o século XIX, a derrocada dos regimes totalitários, inicialmente os tidos de direita, com o término da Segunda Guerra Mundial, e, posteriormente, os dos países comunistas, cuja base se guiara por uma deformação do positivismo legalista, fez com que restasse sedimentada também em solo europeu a concepção da força normativa da constituição.
Com isso, mais precisamente a contar da segunda metade da centúria passada, vem à ribalta o constitucionalismo democrático que, assentado na valorização da constituição não somente como um documento, mas e acima de tudo por possuir um conteúdo de limitação de poder e de garantia de direitos, custodiando o seu êxito na defesa dos seus valores e fins pela jurisdição constitucional.
A lição de Hamilton2, que vem se impondo continuadamente desde os primórdios da experiência constitucional norte-americana, irradiou as novas constituições promulgadas aqui e alhures, notadamente ao depois de períodos de hiato constitucional, as quais passaram a confiar a guarda e a eficácia dos seus preceitos a um tribunal supremo, sem a exclusão dos demais juízos e tribunais, ou a um tribunal específico, integrante ou não da organização do Poder Judiciário, denominado tribunal ou corte constitucional.
O controle da política passa a ser compartilhado, por assim dizer, por organismos não integrantes diretamente do núcleo estatal ao qual compete adotar as decisões políticas normais, cuja investidura não advém pela escolha popular3.
A assertiva implica a necessidade de se refletir em que medida se encontra a jurisdição constitucional legitimada para assim atuar, pena de avocar para si a condição de legislador substituto, ou, até mesmo, a condição de constituinte.
Primeiramente, é preciso que se delineie como tal ocorre.
2. A IMANÊNCIA DA FUNÇÃO POLÍTICA
Não se desconhece que o Estado de Direito pressupõe, com respeito à divisão funcional do poder, que uma das formas de se instrumentalizar a liberdade dos indivíduos é a consistente na lei, cuja elaboração segue procedimento disciplinado pela constituição. A sua elaboração é da alçada do Parlamento, cujos membros são eleitos pelo sufrágio universal, nela podendo se constatar a interferência, numa maior ou inferior medida, do Executivo, conforme o sistema de governo seja parlamentarista ou presidencial.
Ao se pronunciar sobre a legitimidade ou não de uma lei, a jurisdição constitucional interfere sobre decisão de competência de um dos poderes políticos. E, como se não bastasse, labora, na maioria das vezes, em caráter geral e vinculativo, transcendendo, portanto, dos limites de uma controvérsia entre sujeitos determinados, bem como independentemente da existência desta4.
Isto porque julgar, num prisma de caráter objetivo e neutro, acerca da compatibilidade de uma lei frente à constituição, demarcando os limites que esta põe à atuação do legislador, ou bem assim quando censura a omissão deste em concretizar comandos sobranceiros que consagram direitos fundamentais, é uma amostra irrecusável de que o tribunal constitucional ou equivalente incursiona no âmbito da política.
Outras atribuições que se mostram comuns à jurisdição constitucional também evidenciam o colorido político de sua atividade5, dentre as quais são destacáveis a solução de conflitos federativos6, de conflitos de atribuições entre os poderes políticos7, a defesa de direitos fundamentais, a de julgamento político8, a legitimidade dos partidos políticos9 e as disputas eleitorais10.
Aspecto diverso, mas que muito realça a influência da atividade da jurisdição constitucional perante os órgãos estatais e a sociedade, diz respeito ao objeto da interpretação que realiza. Ao invés do que sucede com os tribunais e juízos ordinários, os tribunais constitucionais ou a suprema corte voltam a sua atuação à busca do significado das normas constantes da Lei Maior e que, por sua natureza, não se prestam (ou não devem se prestar) a disciplinas individualizadas e de forte detalhamento. Manifestam-se, antes, como dotadas de uma estrutura fortemente abstrata e aberta, o que se impõe justamente para que possam albergar condições para uma vigência de longuíssimo tempo e, assim, servir de parâmetro às constantes mudanças na sociedade11.
Por isso, reportando à Lei Fundamental de Bonn, mas com pertinência a outros ordenamentos magnos, enfatiza Otto Bachof que o espaço deixado para o intérprete para a formulação de uma decisão autônoma se afigura particularmente grande, não podendo ser diferente, à medida que conceitos como igualdade, dignidade da pessoa humana, livre desenvolvimento da personalidade, Estado de Direito, Estado social, bem comum, são permissivos de interpretações não unívocas. Isso - segundo o autor - torna inevitável um recurso para avaliações políticas12.
Não menos interesse desperta saber qual política faz a jurisdição constitucional quando labora para desvendar o sentido com que deve ser compreendida a constituição.
Essa particularidade incomodou Zagrebelsky13, para quem a acusação mais contundente, infamante e capaz de deslegitimar um tribunal ou corte constitucional, consiste na circunstância do desempenho de suas tarefas neutras de garantia do interesse de todos haver se desenvolvido politicamente, o que, no entender do autor, afigura-se mais grave do que ter-se equivocado na tomada de uma decisão.
Cônscio disso, o autor14, partindo da consideração de que a interpretação não se resume a um desenvolvimento lógico de proposições, privado de discricionariedade, chama atenção para uma distinção, antes esboçada, entre os dois pactos que regem as nossas sociedades políticas. De um lado, eis o pactum societatis, o qual corresponde à política como atividade dirigida à facilitação da convivência, à união ou à amizade. Noutro, há o pactum subiectionis, correspondendo à ideia da política como competição entre as partes, mais precisamente para que uma delas tenha de alcançar o governo como objeto disputado.
Sendo assim, diz que o relacionamento do tribunal constitucional com a política não desconhece essa duplicidade de significados, de maneira que aquele se encontra em conexão e, ao mesmo tempo, fora de conexão, com o fenômeno político. Eis, para uma melhor, clareza, o remate: “O Tribunal Constitucional está dentro da política, sendo inclusive um dos seus fatores decisivos, se por política se entende a atividade dirigida à convivência. O Tribunal é apolítico se por política se entende a competição entre as partes para a assunção e a gestão do poder”15.
Antes, Gerhard Leibholz16 já havia exposto distinção semelhante. Por esta, forçoso se apartar as controvérsias políticas puras dos litígios jurídicos. É que as primeiras não podem ser solucionadas pela mera aplicação de uma norma jurídica, uma vez que se cuida de uma pugna, uma luta, não pela concretização do direito estabelecido, mas, diversamente, sobre qual deve ser o conteúdo do direito, o que evidencia constituírem questões ligadas à sua criação.
Daí, então, é possível sustentar que, por atuar politicamente, a jurisdição constitucional visa ao bem estar geral, a ser concretizado mediante a incidência das diretrizes que a constituição delineou para a movimentação da atividade estatal e para o direcionamento do agir dos particulares.
E assim o é porque - e desde o princípio - o direito constitucional, em sua essência, diferencia-se dos demais ramos jurídicos, como o direito civil, o comercial, o penal, o processual, o tributário, o do trabalho, pela singularidade de que o fenômeno político é um dos seus elementos intrínsecos, ainda quando traceje os princípios desses segmentos.
As decisões dos tribunais ou cortes constitucionais, quase sempre, mostram-se encouraçadas com um relevo maior quando comparadas com as dos outros tribunais e juízos, quando da resolução de casos concretos, possuindo, ao revés, a pretensão de configurar e balizar a atuação dos órgãos públicos e dos particulares de uma maneira geral, de modo a lhe ser inarredável o conteúdo político.
Interessante, ainda nesse particular, confronto exposto por Zagrebelsky17, ao mencionar a forma como atuam politicamente o Parlamento e a Corte Constitucional. O primeiro, ao legislar, que é a sua função típica, procura atender às exigências políticas e sociais emergentes, enquanto que as emergências não se comportam na ação do segundo, cujas deliberações se projetam a um prazo mais longo. Assim, quando uma questão é enfocada pela legislatura é com o objetivo de se reformular a lei já existente, pressupondo-se que deva ser substituída. Já para o Tribunal Constitucional se opera o inverso, pois quando um questionamento se volta à sua consideração é para que seja confirmada a continuidade dos valores positivados pela Lei Maior.
Isso significa dizer que na política jurisdicional se tem a consideração do elevado valor do precedente, o que, sem dúvida, não longe de afastar o imperativo de que a jurisprudência deve ser encarada como algo em plena vida, porém a sua dinâmica haverá de ser gradual e se manifestar mediante interpretações dos precedentes, distinções e ajustes progressivos.
3. ALGUMAS CAUTELAS
O fato de, na expansão de modelos democráticos, paulatinamente verificada com início na segunda metade da centúria que passou, nos quais há a influência do Estado constitucional, não se está livre de que os órgãos de jurisdição constitucional possam se converter em instâncias de poder que, a pretexto de controlar, eliminem os atores democráticos. Como é próprio dos arquétipos, cujo êxito é tributável mais à experiência do que à sua formulação como teoria, não se pode excluir, de antemão, que o Tribunal Constitucional ou Suprema Corte incida em abuso, deixando de ser um servidor para assumir a qualidade de senhor da constituição.
Abstraindo-se o enfoque da legitimidade da jurisdição constitucional, o qual porventura granjeou mais argumentos a favor18, mas, nem por isso, deixando de registrar críticas de relevo19, é preciso que à atividade daquela não escapem precauções. A própria afirmação do controle judicial de constitucionalidade nos Estados Unidos não escapou da necessidade de se impor uma autocontenção (self restraint)20.
Uma delas - e quiçá, a mais corrente - é a da interpretação conforme. Há uma presunção de que o Legislativo observa a constituição e, portanto, as inconstitucionalidades somente devem ser declaradas quando assim as são induvidosamente. Se há a possibilidade de várias leituras de um texto legal e se, ao menos numa delas, é possível se constatar um vínculo harmônico com a Lei Fundamental, inadmissível a declaração de incompatibilidade vertical.
Nesse ponto, alça relevo a circunstância de que a aferição de constitucionalidade não pode ser realizada unicamente mediante o simples confronto entre o texto da Lei Maior e o elaborado pelo legislador. É de intensa valia que o intérprete não desconheça a realidade para a qual o legislador quis dispor.
A práxis americana nos fornece uma amostra dessa importância21
Atualmente, uma prova eficiente de que a jurisdição constitucional não pode desprezar, nos seus julgamentos, o conhecimento da realidade política e social, está na Lei Orgânica do Tribunal Constitucional alemão, de 12 de março de 1951, com as modificações de 22 de julho de 1998, a qual, na sua Segunda Parte (Procedimento judicial constitucional), Primeira Seção (Prescrições procedimentais gerais), estabelece, nos seus §§ 25, 25a., 26, 28 e 29, a possibilidade de ampla instrução probatória, na qual consta a ouvida de testemunhas e expertos em determinados assuntos, além da juntada de documentos, o que parece ter influenciado nessas plagas a elaboração das Leis 9.868/99 (art. 9º, §§2º e 3º) e 9.882/99 (art. 6º, §§1º e 2º).
A partir da interpretação conforme, visto como técnica e princípio interpretativo, possível, justamente pela engenhosa criação das cortes constitucionais, desaguar na figura da sentença aditiva que, visando sanar ofensa à igualdade, nas situações onde o legislador dispôs menos do que deveria, conjura o reconhecimento da inconstitucionalidade.
Necessário, igualmente, que o tribunal ou corte constitucional, quando da aferição da constitucionalidade de uma lei ou ato normativo, seja deferente quanto às opções do legislador. A liberdade de conformação deste se insere no conteúdo essencial da divisão de poderes, postulado pelo qual se orientam as constituições dos Estados democráticos, dentre os quais o brasileiro (art. 2º, CF).
Portanto, compete ao legislador - e somente a este - realizar o juízo de prognósticos para embasar a proposição das normas legais, bem como quanto às possíveis consequências de suas deliberações. Se dessa maneira não for, ter-se-á, sem dúvida, a indevida substituição do legislador pelo juiz numa atuação que é da natureza do primeiro.
No entanto, não desconsiderar que, nas constituições recentemente promulgadas, o cariz analítico de suas disposições vem fazendo constar nestas, com assiduidade, balizas (guidelines) orientadoras da futura integração legislativa, reduzindo, assim, o espaço de liberdade do Parlamento, permitindo uma fiscalização pelo órgão judicial. Tal se afigura comum quanto ao reconhecimento dos direitos econômicos, sociais e culturais, ou de segunda dimensão. Entre nós, os exemplos são vários, conforme se pode vislumbrar no particular da saúde (arts. 196 e 198), previdência social (art. 201), assistência social (arts. 203 e 204), educação (arts. 206 a 208) e cultura (arts. 215 e 216).
Uma preocupação condiz com relação aos efeitos mediante os quais os órgãos da jurisdição constitucional pronunciam a invalidade dos textos legislativos. A nulidade, com eficácia retroativa, se atualmente não é adotada com rigorismo no âmbito do direito privado, com maior razão a sua aplicação inflexível no plano do juízo de constitucionalidade não se mostra aceitável.
Isso levou os tribunais, por razões de segurança jurídica, ou de boa-fé, a protrair no tempo os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, os quais se operarão em momento posterior, a ser fixado pelo julgado. A confiança na presunção de legitimidade dos atos estatais, bem como as consequências que poderiam advir de uma suspensão abrupta da execução de uma lei, assim impõe.
O direito pátrio, que, tal qual aos norte-americanos, inicialmente adotou essa prática pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, hoje a tem como positivada pelas Leis 9.868/99 (art. 27) e 9.882/99 (art. 11).
Igualmente, para evitar que se instale vácuo na disciplina de um tema, capaz de produzir, só por só, consequências não favoráveis à sociedade, as cortes constitucionais concluíram por assinar um prazo ao legislador, a fim de que este venha a sanar a incompatibilidade vertical. Somente quando e se não houver o saneamento do vício de inconstitucionalidade, esta passará a produzir efeitos22.
Importante assinar que, nessas situações, nas quais não se pode descartar a existência de certa deferência ao Legislativo, o atuar da corte ou tribunal constitucional se revela pelo sufrágio de solução não meramente política, mas jurídica com efeitos políticos23.
Bastante controvertida é a discussão sobre a postura ativista das cortes constitucionais. A experiência tem mostrado que o juiz não se restringe ao parâmetro de Montesquieu, de nada expressar além do que a “boca” pela qual ecoa a letra da lei. Ao contrário, é um partícipe, embora numa menor medida que o legislador, na criação do direito.
O problema, na realidade, é mais de medida e limites de interpretação. O juiz constitucional não formula novas regras, apenas aperfeiçoa as já existentes, aplicando-as com critérios de justiça e racionalidade. Quando se trata de princípios constitucionais, aquele delimita o seu conteúdo - que muitas vezes não consta da legislação - e daí extrai padrões de condutas a serem seguidos, mas que já se encontravam no ordenamento jurídico. Da coerência e harmonia dos princípios e valores destes retira, descobrindo-os pelo labor interpretativo, novos princípios que estão implícitos, como sucedeu entre nós com a exigência de razoabilidade dos atos estatais.
O que se revela inadmissível é a fixação, na prática, de novas regras, não cogitadas pelo constituinte e que, portanto, relevaria invasão do poder derivado de reforma. Ao juiz constitucional na sua missão interpretativa é defeso adicionar à constituição novas regras24.
Isso não quer afastar - até porque não ultrapassa os confins da interpretação - a faculdade da justiça constitucional de, em projetando o texto magno sobre a realidade política então existente, ajustar o seu sentido à evolução da configuração política, social e econômica.
Com isso, resulta sobremaneira fortalecido o texto constituinte, possibilitando-lhe usufruir a longevidade a que lhe é peculiar, de modo a lhe manter constantemente atualizado.
A prática vivenciada pelos Estados Unidos porventura é a de mais adequada evocação nesse particular. Com efeito, é bastante notar a evolução jurisprudencial relacionada com o exercício da função legislativa que culminou, não obstante preceituar o Artigo I do texto de 1787 pertencerem todos os poderes legislativos exclusivamente ao Congresso25, com a compreensão, a partir de uma ótica da divisão de poderes sob um pragmatismo funcionalista, que o Executivo poderia atuar nessa matéria mediante delegação do Legislativo, desde que se mantivesse nos limites desta e não transbordasse da razoabilidade26. A mesma energia transformadora sucedeu quanto ao paulatino reconhecimento da possibilidade do Estado em criar restrições à atividade econômica, o que foi se solidificando com o aresto Nebia v. New York (1934), bem como quanto ao princípio da igualdade racial27 e do voto28.
A realidade brasileira, quanto a esse aspecto, demanda um maior cuidado. E tal ocorre pela técnica legislativa empregada pelo constituinte originário e ratificada, com maior intensidade, pelo reformador.
A opção na moldura da Constituição de 1988 foi por um documento de amplíssima extensão, o qual viesse a enfocar, com forte apego no detalhe, o disciplinamento de inúmeros assuntos. Tem-se, assim, a formulação de um grande conjunto de artigos, muitos dos quais de uma notável e desnecessária amplitude.
A existência de muitas normas constitucionais que regulam temas que seriam do cotidiano do legislador, em face de sua pertinência mais ao reino do circunstancial, suprime uma parcela relevante da liberdade de conformação do legislador, pois, uma vez inseridas na Constituição, submetem este a um controle por parte da jurisdição constitucional que se afigura desnecessário e que conspira contra uma maior flexibilidade de nosso sistema jurídico.
Isso sem considerar que o extenso número de disposições fez com que as questões constitucionais - que podem muitas vezes envolver a aplicação de normas inseridas em disposições transitórias - fossem multiplicadas, sobrecarregando o Supremo Tribunal Federal, a tornar inócuo até mesmo o papel da repercussão geral. As estatísticas falam por si e justificam a lentidão que não deveriam pairar sobre o contencioso constitucional.
Por sua vez, o tratamento de assuntos, ainda que com relevância constitucional, por normas regidas fora de um elevado padrão de abstração dificulta o desenvolvimento de um maior papel criativo pelo juiz constitucional, no sentido de atualizar os comandos da Lei Fundamental. A margem de atuação daquele resta, portanto, bastante limitada29.
Calha recordar advertência de Hesse30, para quem a mutação constitucional se torna inadmissível quando consagra uma interpretação em aberta contradição com o texto sobranceiro.
Penso que mais dois aspectos merecem um enfoque, ainda que à vol d’oiseau. Um deles diz com o controle das omissões do legislador em desenvolver os comandos da Lei Maior e que, no caso brasileiro, ostenta algumas singularidades.
De logo, observe-se que, revelando a responsabilidade do legislador em integrar os comandos da Constituição de 1988, esta foi expressa em prever dois mecanismos jurídicos para tanto, quais sejam o mandado de injunção31 e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão.
Considerando-se a excepcionalidade da intervenção jurisdicional nesse campo, essas previsões constitucionais revelam, sem dúvida, uma densa responsabilidade do legislador para concretizar os comandos da constituição. Igualmente, descortinam o desejo do constituinte em ver os dispositivos que elaborara aplicados, o que, em muitos casos, exige a intermediação legislativa.
Aí se tem no particular uma faceta característica do ativismo à brasileira. A despeito de competir ao Congresso Nacional integrar os comandos constitucionais, inclusive e principalmente em discutir e votar os temas mais polêmicos, aquele vem se esquivando de tratar de muitos assuntos de relevo, os quais a Constituição de 1988, expressamente, destinou para o desenvolvimento pela lei.
Alguns exemplos, como a disciplina da greve e da aposentadoria especial no serviço público, encontram-se há enorme espaço de tempo no aguardo da boa vontade do legislador. Por isso, não se afigura criticável a sua disciplina, em caráter precário, pelo Supremo Tribunal Federal, porquanto a atuação deste decorreu unicamente do não cumprimento pelo Congresso Nacional de sua missão, razão pela qual, provocado diante de controvérsias fáticas, aquele não poderia se abster de decidir. Se não há em muitas matérias uma legislação mais aperfeiçoada, substituída por uma deficiente atuação judicial, é justamente porque o Legislativo abdicou de legislar32.
O outro ponto a ser avivado é o inerente à atuação acerca da concretização dos direitos sociais. Embora conservador possa aparentar, a aplicação dos direitos sociais deverá ser guiada pelos limites do texto constitucional. Assim, quando este estatuir - como o faz com a grande maioria dos direitos do trabalhador (art. 7º, I a XXXIV, CF)33 - uma disciplina densa, completa, que o torne indiferente à intervenção do legislador, irrecusável a sua aplicabilidade direta e, de conseguinte, a sua exigibilidade em juízo.
Diversamente, quando a norma que o consagra for assinalada pela abstração - tal qual ocorre com o direito à moradia (art. 6º, CF) - a sua satisfação pelo Estado, cujas forças do seu erário nem sempre é hercúlea, há de ocorrer de maneira coletiva mediante a formulação de políticas públicas, cujos atores estão no Legislativo e no Executivo34.
Isso não quer dizer que tais direitos, condicionados inicialmente à ação legislativa, sejam desprovidos de eficácia. Absolutamente. Albergam um núcleo essencial que lhes permite uma reação contra os atos estatais que contra aquele atentem. Por exemplo, se o direito à moradia, longe de implicar o dever do Estado em fornecer a cada família a propriedade de uma vivenda, palácio ou castelo, não autoriza, por exemplo, que aquele, ainda que com fundamento no interesse público, desaproprie um imóvel residencial, sem que, para tanto, a imissão na posse seja precedida do depósito de um valor que permita ao expropriado, que somente possua um bem destinado à moradia, a possibilidade de adquirir nas mesmas condições, razão pela qual o Decreto-lei 1.075/71 reclama interpretação que não vá de encontro a tal direito.
Da mesma forma, tais direitos conferem ao cidadão a pretensão a obter uma decisão que, diante de mais uma possibilidade viável, venha a satisfazer o conteúdo do direito fundamental, em face de seu status de primazia.
O que se deve demarcar, pena de mais uma intromissão judicial indevida na atividade dos demais segmentos estatais, é que a jurisdição constitucional há de atentar para que, a despeito de todas as normas constitucionais serem eficazes, a eficácia que lhes é inerente não se afigura igual e sempre com as mesmas possibilidades.
Por esse e outros aspectos, já mencionados, assoma relevante a motivação das decisões sobre questões de constitucionalidade, pois, somente assim, é possível se fixar uma fronteira ente a arbitrariedade e o julgamento35.
4. PALAVRAS FINAIS
Em face da exposição desenvolvida, é possível a síntese de algumas conclusões, a saber:
o constitucionalismo democrático, cuja consolidação veio reforçada a partir da segunda metade da centúria passada, realça a normatividade da constituição, a qual, vinculando a atuação dos órgãos públicos e dos particulares, confiou a defesa de seus princípios e regras à função jurisdicional;
por constituir o objeto da competência da jurisdição constitucional interpretar a Lei Fundamental, cujos preceitos, diversamente dos integrantes da legislação dos demais ramos jurídicos, são dotados de uma maior generalidade e abstração, traz implícito o fenômeno político aos conflitos jurídicos que resolve, de maneira a permitir uma maior discrição do tribunal ou corte constitucional para a sua solução;
abstraída a discussão sobre a legitimidade ou não da jurisdição constitucional, não se afigura prescindível a fixação de cautelas para o desempenho de sua atividade, dentre as quais a interpretação conforme, o conhecimento da realidade, o respeito à liberdade de conformação do legislador, a aplicação do princípio da confiança, a interpretação evolutiva e a observância, quando do suprimento das omissões, dos limites da atividade que seria típica do legislador.
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Notas
Autor notes