Resumo: O direito (e garantia) a um mínimo existencial para uma vida digna tem sido presença constante no debate acadêmico e jurisdicional pátrio, seja no plano dos Tribunais Superiores, seja nas instâncias ordinárias. Nessa perspectiva, destaca-se o papel do Supremo Tribunal Federal, que, ao longo dos últimos anos, especialmente desde os anos 2000, tem recorrido reiteradamente à noção de mínimo existencial em diversos contextos, especialmente no domínio dos direitos fundamentais sociais. Pretende-se, após uma breve digressão sobre a origem e conteúdo do mínimo existencial, analisar, à luz de alguns exemplos, o papel da jurisdição constitucional na sua intepretação e aplicação, explorando alguns julgados do STF sobre o tema, recorrendo também, ainda que em caráter ilustrativo, ao direito constitucional estrangeiro, com destaque para o alemão.
Palavras-chave: Mínimo existencialMínimo existencial,direitos sociaisdireitos sociais,controle judicialcontrole judicial,políticas públicaspolíticas públicas,Supremo Tribunal FederalSupremo Tribunal Federal.
Abstract: The right (and guarantee) to an existential minimum for a dignified life has been a constant presence in the Brazilian academic and judicial debate, either in the plan of the Superior Courts or in the ordinary courts. From this perspective, the role of the Supreme Court stands out, which, over the past few years, especially since the 2000s, has repeatedly used to the notion of existential minimum in different contexts, mainly in the field of fundamental social rights. The paper intends, after a brief digression on the origin and contents of the existential minimum, to examine, in the light of some examples, the role of constitutional jurisdiction in its interpretation and application, exploring some cases judged by the Supreme Court on the subject, based also, although for illustrative purposes, the foreign constitutional law, especially the German law.
Keywords: existential minimum, social rights, judicial review, public policy, Brazilian Supreme Court.
Artigos
Notas sobre o mínimo existencial e sua interpretação pelo STF no âmbito do controle judicial das políticas públicas com base nos direitos sociais*
Notes on the existential minimum and its interpretation by the Brazilian Supreme Court under the judicial control of public policies based on social rights
Recepção: 04 Maio 2016
Aprovação: 05 Julho 2016
O direito (e garantia) a um mínimo existencial para uma vida digna, seguindo aqui a terminologia habitualmente adotada também no caso brasileiro, tem sido presença constante no debate acadêmico e jurisdicional pátrio, seja no plano dos Tribunais Superiores, seja nas instâncias ordinárias, tanto da Justiça Federal comum e especializada, quanto na Justiça Estadual. Nessa perspectiva, destaca-se o papel do Supremo Tribunal Federal (doravante apenas STF), que, ao longo dos últimos anos, especialmente desde os anos 2000, tem recorrido reiteradamente à noção de mínimo existencial em diversos contextos, especialmente, contudo, no domínio dos direitos fundamentais sociais. Pretende-se, após uma breve digressão sobre a origem e conteúdo do mínimo existencial, analisar, à luz de alguns exemplos, o papel da jurisdição constitucional na sua intepretação e aplicação, explorando alguns julgados do STF sobre o tema, sem deixar de recorrer, ainda que em caráter ilustrativo, ao direito constitucional estrangeiro, designadamente, o da Alemanha.
Outrossim, é preciso sublinhar a relevância do mínimo existencial na esfera do controle das políticas públicas na base dos direitos sociais, implicando intervenção judicial na esfera das opções legislativas e no controle da discricionariedade administrativa. Esse será o enfoque dado ao presente estudo.
Numa primeira aproximação, é possível afirmar que a atual noção de um direito fundamental ao mínimo existencial, ou seja, de um direito a um conjunto de prestações estatais que assegure a cada um (a cada pessoa) uma vida condigna, arranca da idéia de que qualquer pessoa necessitada que não tenha condições de, por si só ou com o auxílio de sua família prover o seu sustento, tem direito ao auxílio por parte do Estado e da sociedade, de modo que o mínimo existencial, nessa perspectiva, guarda alguma relação (mas não se confunde integralmente) com a noção de caridade e do combate à pobreza, central para a doutrina social (ou questão social) que passou a se afirmar já ao longo do Século XIX1, muito embora a assistência aos desamparados tenha constado na agenda da Igreja e de algumas políticas oficiais já há bem mais tempo2. Convém recordar, ainda, que já na fase inaugural do constitucionalismo moderno, com destaque para a experiência francesa revolucionária, assumiu certa relevância a discussão em torno do reconhecimento de um direito à subsistência, chegando mesmo a se falar em “direitos do homem pobre”, na busca do rompimento com uma tradição marcada pela idéia de caridade, que ainda caracterizava os modos dominantes de intervenção social em matéria de pobreza, debate que acabou resultando na inserção, no texto da Constituição Francesa de 1793, de um direito dos necessitados aos socorros públicos, ainda que tal previsão tenha tido um caráter eminentemente simbólico3. De qualquer sorte, independentemente de como a noção de um direito à subsistência e/ou de um correspondente dever do Estado (já que nem sempre se reconheceu um direito subjetivo (exigível pela via judicial) do cidadão em face do Estado) evoluiu ao longo do tempo, tendo sido diversas as experiências em diferentes lugares, o fato é que cada vez mais se firmou o entendimento - inclusive em Estados constitucionais de forte coloração liberal - de que a pobreza e a exclusão social são assuntos de algum modo afetos ao Estado, ainda que por razões nem sempre compartilhadas por todos e em todos os lugares, visto que mesmo no plano da fundamentação filosófica, ou seja, da sua sinergia com alguma teoria de Justiça, são diversas as alternativas que se apresentam.4 Mesmo na esfera terminológica nem sempre se verifica coincidência, pois ao passo que alguns (como também prevalece no Brasil) preferem utilizar a expressão mínimo existencial, outros falam em mínimos sociais5, direitos constitucionais mínimos ou condições materiais mínimas de existência6-7 ou, ainda, em um mínimo de subsistência ou um mínimo vital (como já era o caso de Pontes de Miranda, em escrito pouco conhecido)8, embora nem sempre tais expressões sejam utilizadas como sinônimas, visto que podem estar associadas a conteúdos mais ou menos distintos, a despeito de alguns elementos em comum, como é o caso, em especial, o reconhecimento de um direito a prestações materiais por parte do Estado.
Sem prejuízo de sua previsão (ainda que com outro rótulo) no plano do direito internacional dos direitos humanos, como é o caso do artigo XXV da Declaração da ONU, de 1948, que atribui a todas as pessoas um direito a um nível de vida suficiente para assegurar a sua saúde, o seu bem-estar e o de sua família, a associação direta e explícita do assim chamado mínimo existencial com a dignidade da pessoa humana encontrou sua primeira afirmação textual, no plano constitucional, na Constituição da República de Weimar, Alemanha, em 1919, cujo artigo 151 dispunha que a vida econômica deve corresponder aos ditames da Justiça e tem como objetivo assegurar a todos uma existência com dignidade.
Como bem destaca o Professor Romeu Felipe Bacellar Filho, “A América Latina sempre enxergou os Estados de Bem Estar europeus com admiração e com uma indisfarçável vontade de ter o mesmo modelo em seus países. Tem sido o sonho dos latinoamericanos quando se discute qual o modelo ideal de Estado”9.
Assim, a noção de dignidade foi incorporada à tradição constitucional brasileira desde 1934, igualmente no âmbito da ordem econômica e/ou social, de tal sorte que o artigo 170 da CF dispõe que “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social...”. É preciso lembrar, contudo, que na condição de finalidade ou tarefa cometida ao Estado no âmbito dos princípios objetivos da ordem social e econômica, o mínimo existencial, ou seja, o dever de assegurar a todos uma vida com dignidade, não implicava necessariamente (aliás, como não implica ainda hoje a depender do caso), salvo na medida da legislação infraconstitucional (especialmente no campo da assistência social e da garantia de um salário mínimo, entre outras formas de manifestação), uma posição subjetiva imediatamente exigível pelo indivíduo. A elevação do mínimo existencial à condição de direito fundamental e sua articulação mais forte com a própria dignidade da pessoa humana e outros direitos fundamentais, teve sua primeira importante elaboração dogmática na Alemanha, onde, de resto, obteve também um relativamente precoce reconhecimento jurisprudencial, do qual se dará notícia na seqüência.
Com efeito, a despeito de não existirem, em regra, direitos sociais típicos, notadamente de cunho prestacional, expressamente positivados na Lei Fundamental da Alemanha (1949) - excepcionando-se a previsão da proteção da maternidade e dos filhos, bem como a imposição de uma atuação positiva do Estado no campo da compensação de desigualdades fáticas no que diz com a discriminação das mulheres e dos portadores de necessidades especiais (direitos e deveres que para muitos não são considerados propriamente direitos sociais) - a discussão em torno da garantia do mínimo indispensável para uma existência digna ocupou posição destacada não apenas nos trabalhos preparatórios no âmbito do processo constituinte, mas também após a entrada em vigor da Lei Fundamental de 1949, onde foi desenvolvida pela doutrina, mas também no âmbito da práxis legislativa, administrativa e jurisprudencial.
Na doutrina do Segundo Pós-Guerra, um dos primeiros a sustentar a possibilidade do reconhecimento de um direito subjetivo à garantia positiva dos recursos mínimos para uma existência digna foi o publicista Otto Bachof, que, já no início da década de 1950, considerou que o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. I, da Lei Fundamental da Alemanha, na seqüência referida como LF) não reclama apenas a garantia da liberdade, mas também um mínimo de segurança social, já que, sem os recursos materiais para uma existência digna, a própria dignidade da pessoa humana ficaria sacrificada. Por esta razão, o direito à vida e integridade corporal (art. 2º, inc. II, da LF) não pode ser concebido meramente como proibição de destruição da existência, isto é, como direito de defesa, impondo, ao revés, também uma postura ativa no sentido de garantir a vida.10 Cerca de um ano depois da paradigmática formulação de Bachof, o Tribunal Federal Administrativo da Alemanha (Bundesverwaltungsgericht), já no primeiro ano de sua existência, reconheceu um direito subjetivo do indivíduo carente a auxílio material por parte do Estado, argumentando, igualmente com base no postulado da dignidade da pessoa humana, direito geral de liberdade e direito à vida, que o indivíduo, na qualidade de pessoa autônoma e responsável, deve ser reconhecido como titular de direitos e obrigações, o que implica principalmente a manutenção de suas condições de existência.11 Ressalte-se que apenas alguns anos depois o legislador acabou regulamentando - em nível infraconstitucional - um direito a prestações no âmbito da assistência social (art. 4º, inc. I, da Lei Federal sobre Assistência Social [Bundessozialhilfegesetz]).
Por fim, transcorridas cerca de duas décadas da referida decisão do Tribunal Administrativo Federal, também o Tribunal Constitucional Federal acabou por consagrar o reconhecimento de um direito fundamental à garantia das condições mínimas para uma existência digna. Da argumentação desenvolvida nesta primeira decisão, extrai-se o seguinte trecho: “certamente a assistência aos necessitados integra as obrigações essenciais de um Estado Social. [...] Isto inclui, necessariamente, a assistência social aos concidadãos, que, em virtude de sua precária condição física e mental, encontram-se limitados na sua vida social, não apresentando condições de prover a sua própria subsistência. A comunidade estatal deve assegurar-lhes pelo menos as condições mínimas para uma existência digna e envidar os esforços necessários para integrar estas pessoas na comunidade, fomentando seu acompanhamento e apoio na família ou por terceiros, bem como criando as indispensáveis instituições assistenciais”.12
Em que pesem algumas modificações no que tange à fundamentação, bem quanto ao objeto da demanda, tal decisão veio a ser chancelada, em sua essência, em outros arestos da Corte Constitucional alemã, resultando no reconhecimento definitivo do status constitucional da garantia estatal do mínimo existencial.13 Além disso, a doutrina alemã entende que a garantia das condições mínimas para uma existência digna integra o conteúdo essencial do princípio do Estado Social de Direito, constituindo uma de suas principais tarefas e obrigações.14 Nessa perspectiva, o que se afirma é que o indivíduo deve poder levar uma vida que corresponda às exigências do princípio da dignidade da pessoa humana, razão pela qual o direito à assistência social - considerado, pelo menos na Alemanha e, de modo geral, nos países que integram a União Europeia, a principal manifestação da garantia do mínimo existencial - alcança o caráter de uma ajuda para a auto-ajuda (Hilfe zur Selbsthilfe), não tendo por objeto o estabelecimento da dignidade em si mesma, mas a sua proteção e promoção.15
De qualquer modo, tem-se como certo que da vinculação com a dignidade da pessoa humana resulta que a garantia efetiva de uma existência digna (vida com dignidade) abrange mais do que a garantia da mera sobrevivência física (que cobre o assim chamado mínimo vital e guarda relação direta com o direito à vida), situando-se, de resto, além do limite da pobreza absoluta. Sustenta-se, nesse sentido, que se uma vida sem alternativas não corresponde às exigências da dignidade humana, a vida humana não pode ser reduzida à mera existência.16 Tal linha de fundamentação, em termos gerais, tem sido privilegiada também no direito constitucional brasileiro, ressalvada especialmente alguma controvérsia em termos de uma fundamentação liberal ou social do mínimo existencial e em relação a problemas que envolvem a determinação do seu conteúdo, já que, não se há de olvidar, da fundamentação diversa do mínimo existencial podem resultar conseqüências jurídicas distintas, em que pese uma possível convergência no que diz com uma série de aspectos17.
Não se nega a dificuldade em se verificar qual o mínimo existencial dentro de cada ordenamento, mas é certo que “mesmo quando os valores pudessem oscilar significativamente, de acordo com o que cada um viesse a considerar como padrão mínimo de dignidade, o fato é que há um núcleo central em relação ao qual haverá consenso em qualquer circunstância”18.
Isso significa dizer que o objeto jurídico identificado pela expressão “mínimo existencial” é fluído e vago, com uma “zona de certeza positiva”, outra “negativa”, bem como uma “zona de penumbra”, como tão bem acentuou Genaro Carrió19.
Entretanto, como bem acentuou Celso Antônio Bandeira de Mello20, os conceitos vagos (tal como “mínimo existencial”) padecem de indeterminação nas previsões abstratas, mas, no caso concreto, assumem muito mais consistência.
É certo que nem sempre haverá possibilidade de determinar precisamente um único sentido ao conteúdo de um conceito veiculado em palavras21. Neste caso, estar-se-á diante daquilo que Genaro Carrió denominou de “zona de penumbra”.
De qualquer forma, como sempre é possível a construção de um conteúdo mínimo da significação do conceito, nos ateremos ao estudo da “zona de certeza positiva” e da “zona de certeza negativa” do “mínimo existencial”.
Ainda no contexto do debate jurídico-constitucional alemão, é possível constatar a existência (embora não uníssona na esfera doutrinária) de uma distinção importante no concernente ao conteúdo e alcance do próprio mínimo existencial, que tem sido desdobrado num assim designado mínimo fisiológico, que busca assegurar as necessidades de caráter existencial básico e que, de certo modo, representa o conteúdo essencial da garantia do mínimo existencial, e um assim designado mínimo existencial sociocultural, que, para além da proteção básica já referida, objetiva assegurar ao indivíduo um mínimo de inserção - em termos de tendencial igualdade - na vida social, política e cultural22. É nessa perspectiva que, no âmbito de sua justificação jurídico-constitucional - há quem diga que enquanto o conteúdo essencial do mínimo existencial encontra-se diretamente fundado no direito à vida e na dignidade da pessoa humana (abrangendo, por exemplo, prestações básicas em termos de alimentação, vestuário, abrigo, saúde ou os meios indispensáveis para a sua satisfação), o assim designado mínimo sociocultural encontra-se fundado no princípio do Estado Social e no princípio da igualdade no que diz com o seu conteúdo material23.
Romeu Felipe Bacellar Filho24, com acerto, explana que o Estado de Bem passou a prestar serviços diretamente à população, em especial nas áreas da saúde, educação, habitação e seguridade. Estas foram as ações através das quais o Estado de Bem Estar materializou-se e, a bem da verdade, resolveu boa parte dos problemas sociais nos países onde foi implantado de forma decidida. A doutrina costuma dizer que o Estado de Bem Estar se caracteriza por ser fortemente ativo com as classes passivas, e passivo com as classes ativas, numa alusão a pobres e ricos, nesta ordem.
Do exposto, em especial com base na síntese da experiência alemã, que, à evidência, em ternos de repercussão sobre o direito comparado, certamente é a mais relevante na perspectiva da dogmática jurídico-constitucional de um direito ao mínimo existencial, resultam já pelo menos duas constatações de relevo e que acabaram por influenciar significativamente os desenvolvimentos subseqüentes.
A primeira, diz com o próprio conteúdo do assim designado mínimo existencial, que, consoante já verificado a partir da experiência alemã, não pode ser confundido com o que se tem chamado de mínimo vital ou um mínimo de sobrevivência, de vez que este último diz com a garantia da vida humana, sem necessariamente abranger as condições para uma sobrevivência física em condições dignas, portanto, de uma vida com certa qualidade25. Não deixar alguém sucumbir por falta de alimentação, abrigo ou prestações básicas de saúde certamente é o primeiro passo em termos da garantia de um mínimo existencial, mas não é - e muitas vezes não o é sequer de longe - o suficiente. Tal interpretação do conteúdo do mínimo existencial (conjunto de garantias materiais para uma vida condigna) é a que tem prevalecido não apenas na Alemanha, mas também na doutrina brasileira, assim como na jurisprudência constitucional comparada, notadamente no plano europeu, como dá, conta, em caráter ilustrativo, a recente contribuição do Tribunal Constitucional de Portugal na matéria, ao reconhecer tanto um direito negativo quanto um direito positivo a um mínimo de sobrevivência condigna, como algo que o Estado não apenas não pode subtrair ao indivíduo, mas também como algo que o Estado deve positivamente assegurar, mediante prestações de natureza material26.
Em que pese certa convergência no que diz com uma fundamentação jurídico-constitucional a partir do direito à vida e do princípio da dignidade da pessoa humana, e tomando como exemplo o problema do conteúdo das prestações vinculadas ao mínimo existencial, verifica-se que a doutrina e a jurisprudência alemã partem - de um modo mais cauteloso - da premissa de que existem diversas maneiras de realizar esta obrigação, incumbindo ao legislador a função de dispor sobre a forma da prestação, seu montante, as condições para sua fruição, etc., podendo os tribunais decidir sobre este padrão existencial mínimo, nos casos de omissão ou desvio de finalidade por parte dos órgãos legiferantes.27 Relevante, todavia, é a constatação de que a liberdade de conformação do legislador encontra seu limite no momento em que o padrão mínimo para assegurar as condições materiais indispensáveis a uma existência digna não for respeitado, isto é, quando o legislador se mantiver aquém desta fronteira.28 Tal orientação, de resto, é que aparentemente tem prevalecido na doutrina e jurisprudência supranacional e nacional (constitucional) Europeia,29 e, de algum modo, parece ter sido assumida como substancialmente correta também por expressiva doutrina e jurisprudência sul-americana, como dão conta importantes contribuições oriundas da Argentina30 e da Colômbia31. Para o caso brasileiro, basta, por ora, lembrar o crescente número de publicações e de decisões jurisdicionais sobre o tema. No plano judicial, o destaque, dado o enfoque do presente texto, fica com o STF, que tem produzido muitas decisões aplicando a noção de um mínimo existencial a vários tipos de situações envolvendo diversos direitos fundamentais32.
Mesmo que não se possa adentrar em detalhes, firma-se posição no sentido de que o objeto e conteúdo do mínimo existencial, compreendido também como direito e garantia fundamental, haverá de guardar sintonia com uma compreensão constitucionalmente adequada do direito à vida e da dignidade da pessoa humana como princípio constitucional fundamental. Nesse sentido, remete-se à noção de que a dignidade da pessoa humana somente estará assegurada - em termos de condições básicas a serem garantidas pelo Estado e pela sociedade - onde a todos e a qualquer um estiver assegurada nem mais nem menos do que uma vida saudável33. De outra parte, até mesmo a diferença entre o conteúdo do direito à vida e da dignidade da pessoa humana, que, a despeito dos importantes pontos de contato, não se confundem34, poderá vir a ser negligenciada. Convém destacar, ainda nesta quadra, que a dignidade implica uma dimensão sociocultural e que é igualmente considerada como carente de respeito e promoção pelos órgãos estatais,35 razão pela qual, prestações básicas em matéria de direitos e deveres culturais (notadamente no caso da educação fundamental e destinada a assegurar uma efetiva possibilidade de integração social, econômica, cultural e política ao indivíduo), mas também o acesso a alguma forma de lazer, estariam sempre incluídas no mínimo existencial, o que também corresponde, em termos gerais, ao entendimento consolidado na esfera da doutrina brasileira sobre o tema, tal como já sinalizado.
Dito isso, o que importa, nesta quadra, é a percepção de que o direito a um mínimo existencial independe de expressa previsão no texto constitucional para poder ser reconhecido, visto que decorrente já da proteção da vida e da dignidade da pessoa humana. No caso do Brasil, onde também não houve uma previsão constitucional expressa consagrando um direito geral à garantia do mínimo existencial, os próprios direitos sociais específicos (como a assistência social, a saúde, a moradia, a previdência social, o salário mínimo dos trabalhadores, entre outros) acabaram por abarcar algumas das dimensões do mínimo existencial, muito embora não possam e não devam ser (os direitos sociais) reduzidos pura e simplesmente a concretizações e garantias do mínimo existencial, como, de resto, já anunciado. Mas é precisamente o caso de países como o Brasil (o mesmo se verifica em outros Estados Constitucionais que asseguram um conjunto de direitos fundamentais sociais no plano constitucional) que revelam o quanto a relação entre o mínimo existencial e os direitos fundamentais nem sempre é clara e o quanto tal relação apresenta aspectos carentes de maior reflexão, a começar pela própria necessidade de se recorrer à noção de mínimo existencial quando o leque de direitos sociais cobre todas as suas possíveis manifestações.
A exemplo do que ocorre com a dignidade da pessoa humana, que não pode ser pura e simplesmente manejada como categoria substitutiva dos direitos fundamentais em espécie, também o mínimo existencial, mesmo quando se cuida de uma ordem constitucional que consagra um conjunto de direitos sociais, não pode (ou, pelo menos, não deve) ser considerado como inteiramente fungível no que diz com sua relação com os direitos sociais, de modo a guardar uma parcial e sempre relativa autonomia, que lhe é assegurada precisamente pela sua conexão com a dignidade da pessoa humana. Qual o grau possível de autonomia (no sentido de um objeto e âmbito de proteção próprio) de um direito ao mínimo existencial na CF de 1988, que contempla todos os direitos sociais que usualmente são de algum modo relacionados ao mínimo existencial (há que considerar que nem todas as constituições que consagram direitos sociais o fazem com tanta amplitude como a nossa) é ponto que poderia merecer maior atenção, embora não seja aqui o momento próprio36.
De fato, o Estado reservou a si a titularidade dos serviços públicos de saúde, educação, previdência, assistência, dentre outros, justamente para satisfazer o leque de direitos e garantias individuais e sociais previstos na Constituição de 198837.
Tanto do ponto de vista teórico, quanto de uma perspectiva prática, a relação entre o mínimo existencial e os diversos direitos fundamentais sociais tem sido marcada por uma doutrina e jurisprudência que em boa medida dão suporte à tese de que o mínimo existencial - compreendido como todo o conjunto de prestações materiais indispensáveis para assegurar a cada pessoa uma vida condigna representa o núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais, núcleo este blindado contra toda e qualquer intervenção por parte do Estado e da sociedade38.
Tal entendimento, conquanto possa ter a (aparente) virtude de auxiliar na definição do conteúdo essencial dos direitos sociais, notadamente quanto ao recorte dos aspectos subtraídos a intervenções restritivas dos órgãos estatais e mesmo vinculativas dos particulares, não evita a perda de autonomia dos direitos fundamentais sociais, pois se o núcleo essencial dos direitos e o mínimo existencial se confundem em toda a sua extensão, então a própria fundamentalidade dos direitos sociais estaria reduzida ao seu conteúdo em mínimo existencial, o que, aliás, encontra adesão por parte de importante doutrina, que, inclusive, chega, em alguns casos, a adotar tal critério como fator de distinção entre os direitos fundamentais e os demais direitos sociais, que, naquilo que vão além do mínimo existencial39, não seriam sequer direitos fundamentais, posição esta que seguimos refutando, sem que, contudo, aqui se possa avançar na questão. Apenas para registrar o nosso ponto de vista, direitos fundamentais (o que se aplica também aos direitos sociais) são todos aqueles como tais consagrados na CF, dotados regime-jurídico especial e reforçado que lhes foi também atribuído pela ordem constitucional.
É nessa perspectiva que - para espancar qualquer dúvida a respeito - comungamos do entendimento de que todos os direitos fundamentais possuem um núcleo essencial, núcleo este que, por outro lado, não se confunde com seu conteúdo em dignidade da pessoa humana (ou, no caso dos direitos sociais, com o mínimo existencial), embora em maior ou menor medida, a depender do direito em causa, um conteúdo em dignidade humana e/ou uma conexão com o mínimo existencial se faça presente, do que não apenas podem, como devem, ser extraídas conseqüências para a proteção e promoção dos direitos fundamentais40.
No caso da CF, que consagrou os direitos sociais como direitos fundamentais e, de resto, contempla um leque amplo de direitos sociais (saúde, educação, moradia, alimentação, transporte, previdência, assistência social, trabalho, proteção da criança e do adolescente, do idoso, da maternidade), o caráter subsidiário da garantia do mínimo existencial (na condição de direito autônomo) é de ser sublinhado. Por outro lado, desde que não se incorra na tentação (já que os argumentos nesse sentido são sedutores) de chancelar a identificação total entre o núcleo essencial dos direitos sociais e o mínimo existencial, a noção de um mínimo existencial, tal como já demonstra também a evolução doutrinária e jurisprudencial brasileira, opera como relevante critério material (embora não exclusivo) para a interpretação do conteúdo dos direitos sociais, bem como para a decisão (que em muitos casos envolve um juízo de ponderação) a respeito do quanto em prestações sociais deve ser assegurado mesmo contra as opções do legislador e do administrador, mas também no âmbito da revisão de decisões judiciais nessa seara. Por outro lado, precisamente no âmbito de tal processo decisório (que envolve o controle das opções legislativas e administrativas) não se deve perder de vista a circunstância de que, quando for o caso, o que se poderia designar de um “conteúdo existencial” não é o mesmo em cada direito social (educação, moradia, assistência social, lazer etc.) não dispensando, portanto, a necessária contextualização em cada oportunidade que se pretender extrair alguma conseqüência jurídica concreta em termos de proteção negativa ou positiva dos direitos sociais e do seu conteúdo essencial, seja ele, ou não, diretamente vinculado a alguma exigência concreta da dignidade da pessoa humana.
Esta linha de entendimento, como se depreende de uma série de julgados, parece estar sendo privilegiada pelo STF, muito embora nem sempre este se tenha posicionado com clareza sobre a relação entre o núcleo essencial dos direitos sociais e o mínimo existencial, especialmente quanto ao fato de se tratar, ou não, de categorias fungíveis. De qualquer modo, impende sublinhar que no que diz com a orientação adotada pelo STF, os direitos sociais e o mínimo existencial exigem sejam consideradas as peculiaridades do caso de cada pessoa, visto que se cuida de direitos que assumem uma dimensão individual e coletiva, que não se excluem reciprocamente, cabendo ao poder público assegurar, pena de violação da proibição de proteção insuficiente, pelo menos as prestações sociais que dizem respeito ao mínimo existencial41.
Ainda sobre a relação entre o mínimo existencial e os direitos sociais, convém lembrar que mesmo tendo sido expressamente previstos no texto constitucional, os direitos sociais, a despeito de sua direta aplicabilidade na condição de normas de direitos fundamentais (no sentido de que os órgãos judiciais podem aplicar tais normas ainda que não tenham sido objeto de regulamentação legislativa), dependem em grande medida de uma concretização pelo legislador e pela administração pública, portanto, de uma teia complexa e dinâmica de atos legislativos, atos normativos do poder executivo, de políticas públicas, etc.
O problema maior relaciona-se, portanto, com a aplicabilidade dos aludidos direitos sociais, tal qual preconizada pela Constituição de 1988.
Nesse passo, interessante é a classificação42 proposta por Celso Antônio Bandeira de Mello43, em que se busca aclarar a força normativa dos preceitos constitucionais que tratam da justiça social, dividindo as normas constitucionais atinentes à Justiça Social em três grupos, cujo critério de classificação é a investidura, em prol dos administrados, de direitos mais ou menos amplos, descendentes direta e imediatamente do Texto Constitucional.
Assim, as normas constitucionais concernentes à Justiça Social são divididas em:
Normas concessivas de poderes jurídicos44 aos administrados, independentemente de prestação alheia (sem a necessidade do surgimento de uma relação jurídica individual e concreta), outorgando de imediato uma utilidade concreta, consistente em um desfrute positivo aliado à prerrogativa de exigir que se afaste a conduta de outrem que a embarace ou perturbe. Como exemplos, o “direito de ir e vir”, o “direito de propriedade”, o direito à vida etc.
Normas atributivas de direito a fruir, imediatamente, benefícios jurídicos concretos, cujo gozo se faz por meio de prestação positiva alheia, que, se negada, pode ser exigida judicialmente do Estado.
Um dos exemplos dado pelo professor é a norma preconizada no artigo 7º, IV, que dispõe ser direito do trabalhador o “salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim”.
Assim, para o jurista, o dispositivo é operativo por si, por estabelecer direito à fruição da utilidade deferida, sendo nula a disposição que fixar salário mínimo em montante inferior às necessidades de uma existência digna do trabalhador e de sua família.
Prossegue demonstrando que o caráter de fruição imediata desse direito enseja ao trabalhador a propositura de ação de responsabilidade patrimonial do Estado pela diferença de valor inconstitucionalmente deduzida. Ademais, os trabalhadores, mediante dissídio coletivo, poderão buscar o reconhecimento in concreto do valor salarial mínimo a que fazem jus, por força da regra constitucional45.
Normas constitucionais que, sem indicar os caminhos a serem seguidos pelo legislador ordinário, veiculam em seu conteúdo uma finalidade a ser cumprida obrigatoriamente pelo Poder Público. Essas normas conferem aos administrados, de imediato, direito de se oporem judicialmente aos atos do Poder Público que contrariem tais finalidades. Como exemplos, o professor cita o princípio da busca do pleno emprego e da função social da propriedade.
Com base nesta classificação, pode-se afirmar que os direitos sociais veiculam normas que conferem direitos aos administrados, mas dependem de prestação alheia.
Mais do que o próprio direito subjetivo em si a ser garantido, é importante que seja realizada uma tutela igualitária dos direitos sociais para toda a sociedade.
Com efeito, conforme ensina Daniel Wunder Hachem46, o diminuto grau de fruição dos direitos sociais no Brasil é um óbice ao aumento do índice de desenvolvimento humano, servindo-se como forma de manutenção das graves desigualdades existentes em nossa sociedade. A sua efetivação prioritariamente pelo Poder Judiciário, em ações individuais propostas pelas classes média e alta da população, não pode ser considerada uma solução satisfatória; ao contrário: ela contribui para a ampliação do abismo entre os mais ricos e os mais pobres, já que aqueles que possuem recursos financeiros e informações para alcançar a tutela judicial dos seus direitos individualmente acabam por afastar, para a seu proveito próprio, valores que seriam reservados ao atendimento dos mais necessitados. Logo, conclui o professor, que a ação judicial não é exclusiva, nem a principal, nem o meio mais apropriado para a promoção dos direitos fundamentais sociais, em que pese ser uma possível e indispensável via para tanto.
E o professor Daniel47 prossegue esclarecendo que é inservível garantir a concretização dos direitos fundamentais sociais somente a uma pequena parte da população que consegue acessar o Poder Judiciário, marginalizando todos os demais titulares das mesmas pretensões jurídico-subjetivas, que não alcançam a proteção dos seus direitos pela via jurisdicional. O que deve ser feito, ao mesmo tempo em que se visa à busca de instrumentos judiciais de tutela dos direitos sociais, é identificar, no ordenamento jurídico, mecanismos administrativos que ofereçam uma tutela não apenas eficaz de tais direitos, mas, especialmente, igualitária.
De toda a sorte, não há negar que, muitas vezes, o texto constitucional nada ou pouco diz sobre o conteúdo do direito, como se verifica no caso dos direitos à moradia, alimentação, transporte e lazer, pois no caso dos direitos à saúde, educação, previdência e assistência social, assim como no caso da proteção do trabalhador, a própria CF apresenta algumas diretrizes que vinculam positiva e negativamente os atores estatais. No âmbito de uma proibição de retrocesso, por exemplo, o que em geral está em causa não é a supressão do direito do texto constitucional, mas a redução ou supressão (de alguma maneira) de prestações sociais já disponibilizadas na esfera das políticas públicas, que, portanto, não podem ser artificialmente excluídas do processo de decisão judicial e das considerações sobre o quanto integram, ou não, o conteúdo essencial do direito. Não é à toa que Gomes Canotilho de há muito sustenta que o núcleo essencial legislativamente concretizado de um direito social constitucionalmente consagrado opera como verdadeiro direito de defesa contra a sua supressão ou restrição arbitrária e desproporcional, ainda mais quando inexistem outros meios para assegurar tal conteúdo essencial48.
No mesmo sentido, acentua Emerson Gabardo49 caber “ao Estado de bem-estar, como atividade que lhe é própria, responsabilizar-se pelo incremento civilizatório da sociedade, protegendo os indivíduos em face da possibilidade de retrocesso sociocultural, socioeconômico e socioambiental”.
Por derradeiro, situando-nos, ainda, na esfera da compreensão da fundamentação jurídico-constitucional e do conteúdo de um direito (garantia) ao mínimo existencial, importa sublinhar a impossibilidade de se estabelecer, de forma apriorística e acima de tudo de modo taxativo, um elenco dos elementos nucleares do mínimo existencial, no sentido de um rol fechado de posições subjetivas (direitos subjetivos) negativos e positivos correspondentes ao mínimo existencial, o que evidentemente não afasta a possibilidade de se inventariar todo um conjunto de conquistas já sedimentadas e que, em princípio e sem excluírem outras possibilidades, servem como uma espécie de roteiro a guiar o intérprete e de modo geral os órgãos vinculados à concretização dessa garantia do mínimo existencial,50 lembrando que no caso brasileiro os direitos sociais, ainda mais considerando a inserção dos direitos à moradia, à alimentação e ao transporte, em termos gerais cobrem os aspectos usualmente reconduzidos a um mínimo existencial, o que, mais uma vez, comprova que a noção de mínimo existencial exige um tratamento diferenciado de lugar para lugar, especialmente quando se trata de ordens constitucionais com ou sem direitos fundamentais sociais.
De fato, o mínimo existencial não é uma categoria universal, mas varia de lugar para lugar, inclusive dentro de um mesmo país, como, aliás, já assinalou Fernando Facury Scaff51.
À vista do exposto e buscando identificar algumas conexões entre os diversos segmentos da presente contribuição, notadamente para o efeito de enfatizar o vínculo entre direitos fundamentais, mínimo existencial e justiça constitucional, resulta evidente que o reconhecimento de um direito (garantia) ao mínimo existencial, seja numa perspectiva mais restrita (mais próxima ou equivalente a um mínimo vital ou mínimo fisiológico), seja na dimensão mais ampla, de um mínimo existencial que também cobre a inserção social e a participação na vida política e cultural (precisamente o entendimento aqui adotado e que corresponde à concepção consagrada na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha e ao que tudo indica na doutrina e jurisprudência brasileira), constitui ao mesmo tempo condição para a democracia (ainda mais na esfera de um Estado Social de Direito) e limite desta mesma democracia. Ao operar, especialmente no âmbito de atuação da assim chamada jurisdição constitucional, como limite ao legislador, implicando inclusive a possibilidade de declaração da inconstitucionalidade material de ato legislativo (como, de resto, de qualquer ato do poder público), a garantia do mínimo existencial se integra, no contexto do Estado Constitucional, ao conjunto do que já se designou de “trunfos” contra a maioria52, pois se trata de algo subtraído - em alguma medida - à livre disposição dos poderes constituídos, inclusive ao legislador democraticamente legitimado.
Por outro lado, também no que diz com o mínimo existencial, é perceptível que procedimentalismo e substantivismo não são necessariamente inconciliáveis53, muito antes pelo contrário, podem operar de modo a se reforçarem reciprocamente, assegurando assim uma espécie de concordância prática (Hesse) entre as exigências do princípio democrático e a garantia e promoção dos direitos fundamentais sociais, especialmente quando em causa as condições materiais mínimas para uma vida condigna.
Um exemplo digno de atenção, extraído da experiência dinâmica da jurisdição constitucional, é o da já referida e relativamente recente decisão do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha (09.02.2010), onde, a despeito de retomada a noção de que toda e qualquer pessoa é titular de um direito (subjetivo) às condições materiais mínimas para que possa fruir de uma vida com dignidade, merece ser sublinhada a manifestação do Tribunal no sentido de que ao legislador é deferida uma margem considerável de ação na definição da natureza das prestações estatais que servem ao mínimo existencial, mas também dos critérios para tal definição. Por outro lado, tal liberdade de conformação encontra seus limites precisamente na própria garantia do mínimo existencial, de tal sorte que nesta mesma decisão o Tribunal Constitucional veio a declarar a inconstitucionalidade parcial da legislação submetida ao seu crivo. Entre as diretrizes estabelecidas pelo Tribunal, está a de que para a definição do conteúdo das prestações exigíveis por parte do cidadão, o legislador está obrigado a avaliar de modo responsável e transparente, mediante um procedimento controlável e baseado em dados confiáveis e critérios de cálculo claros, a extensão concreta das prestações vinculadas ao mínimo existencial.
A deferência para com o legislador (e, portanto, para com o órgão legitimado pela via da representação popular), todavia não acaba por aí. Com efeito, reiterando decisões anteriores, o Tribunal - mediante exercício do assim chamado judicial self restraint54, acabou não pronunciando a nulidade dos dispositivos legais tidos por ofensivos ao mínimo existencial constitucionalmente garantido e exigido, mas assinou prazo ao legislador para que ele próprio, no âmbito do processo político e democrático, venha a providenciar nos ajustes necessários, corrigindo sua própria obra e adequando-a aos parâmetros constitucionais. É claro que também a tradição alemã, ainda que sejam poucos os casos concretos onde se utilizou do expediente do apelo ao legislador, igualmente demonstra a seriedade com a qual a decisão do Tribunal Constitucional é recebida pelos órgãos legislativos (sem prejuízo de fortes críticas), de tal sorte que em todos os casos o legislador - embora lançando mão da sua liberdade de conformação - correspondeu aos apelos e revisou suas opções anteriores, ou mesmo, nos casos de omissão, editou a regulamentação exigida pelo Tribunal Constitucional. Aliás, também aqui a trajetória inicial (acima descrita, inclusive com menção às decisões judiciais superiores) do reconhecimento da garantia do mínimo existencial já se manifestara fecunda, visto que foi precisamente a falta de previsão legislativa de uma prestação estatal destinada a assegurar uma vida condigna a quem não dispõe de recursos próprios, que motivou fosse acessada a jurisdição constitucional, designadamente para impulsionar o legislador a inserir tais prestações na codificação social alemã.
Tal linha de ação, mediante a qual a Corte Constitucional não fulmina (pelo menos num primeiro momento) de nulidade o regramento legislativo, não é desconhecida no Brasil e já foi utilizada em algumas ocasiões. Destaca-se, nesse contexto, especialmente pelo fato de se tratar de decisão que envolveu a noção de mínimo existencial (razão de sua referência e do paralelo com a decisão alemã), a recente decisão do STF sobre o benefício de assistência social e a forma de sua regulação pela LOAS (Lei Orgânica da Assistência Social). Sem que se vá adentrar o mérito propriamente dito da questão55, que já vem ocupando doutrina e jurisprudência há muito tempo (lembre-se que o STF havia declarado a constitucionalidade do dispositivo legal impugnado56), o que aqui se pretende sublinhar é que também nesse caso o STF, reconhecendo a inadequação constitucional dos critérios legais - por violação também e especialmente da garantia de um mínimo existencial - acabou não aplicando a sanção da nulidade. Com efeito - fazendo inclusive referência expressa ao julgado do Tribunal Constitucional Federal Alemão de 09.02.2010 (Hartz IV) - o STF, por maioria, reconheceu a existência de um processo gradual inconstitucionalização do § 3º do artigo 20 da Lei nº 8.742/93 (LOAS), desembocando, na decisão ora referida, na declaração de inconstitucionalidade do dispositivo legal, sem, contudo, pronunciar de imediato a sua nulidade, porém mantendo-o em vigor até 31.12.2014, de modo a permitir - num prazo razoável - ao Poder Legislativo (e também ao Poder Executivo, no âmbito de seu poder regulamentar e das respectivas políticas públicas de assistência social) a adoção das medidas necessárias ao ajuste da situação tida como contrária à Constituição Federal57.
A despeito da manutenção, em caráter substancial e como regra praticada pelo Tribunal alemão e pelo STF, das premissas acima colacionadas, merece referência, pela sua estreita vinculação com o tema e levando em conta a diversa postura adotada pela Corte, a mais recente decisão do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha envolvendo o mínimo existencial. Nesse caso, julgado em 18.07.12, o Tribunal, para além de reafirmar em termos gerais o que já foi objeto de referência logo acima, designadamente quanto ao conceito e conteúdo do mínimo existencial, também declarou a incompatibilidade com a Lei Fundamental (no caso, com o direito e garantia ao mínimo existencial e com a dignidade da pessoa humana), da legislação que, desde 1993, não atualizou o valor do benefício assistencial em espécie alcançado a estrangeiros que estão solicitando asilo na Alemanha, ordenando ao Legislador que, em caráter praticamente imediato, corrigisse tal estado de coisas. Mas o Tribunal - e aqui reside a novidade da decisão - foi além, elaborando regra de transição e determinando que, enquanto não efetivada a alteração legal, fosse pago, a título de prestação social, valor previsto e calculado de acordo com critérios legais já existentes no código de proteção social, aplicáveis à hipótese em caráter precário. Tal decisão, embora no caso alemão se trate de uma prestação social e no brasileiro do exercício de um direito de liberdade, guarda forte relação com a técnica decisória utilizada pelo STF quando da alteração de sua posição sobre o direito de greve dos servidores públicos, proferida em sede de Mandado de Injunção, ocasião na qual a Suprema Corte brasileira, à míngua de legislação específica, tal como previsto na CF, determinou fosse aplicada (sem prejuízo de ajustes promovidos caso a caso pelo Poder Judiciário, de modo a proteger interesses e direitos conflitantes) a legislação em vigor para a greve na esfera da iniciativa privada.
Se ambas as decisões (do Tribunal Constitucional Federal e do STF) podem ser enquadradas como representando um elevado grau de intervenção judicial na esfera de atuação do Poder Legislativo, reconduzidas, portanto, ao que se designa de uma “postura ativista”, o mesmo não ocorre - como já sumariamente demonstrado, nos outros dois casos, julgados pelas mesmas Cortes (Hartz IV e LOAS), os quais já demonstram a existência de um caminho alternativo menos “invasivo”, se é que é legítimo considerar as decisões referidas como efetivamente invasivas (em termos de relação entre os órgãos estatais), pois a Jurisdição Constitucional operou em face de um quadro - respeitadas as diferenças entre os casos e suas circunstâncias - de manifesta e longa omissão legislativa e à vista dos graves problemas dai decorrentes. Em todas as situações, ademais, os respectivos Tribunais não deixaram de frisar que a tarefa de estabelecer em caráter definitivo o valor da prestação (caso alemão) ou a regulação do exercício da greve dos servidores públicos (caso brasileiro) - e mesmo os ajustes dos critérios estabelecidos pela LOAS - é do Poder Legislativo, cabendo à Jurisdição Constitucional um papel eminentemente corretivo e indutivo.
O quanto tal caminho se revela produtivo para o caso brasileiro, seja no que diz com a definição do mínimo existencial (abarcando a definição de seu conteúdo e das respectivas conseqüências jurídicas) seja quanto ao modo de atuação da Jurisdição Constitucional nessa seara, ainda está longe de ser satisfatoriamente equacionado. A prática decisória dos tribunais brasileiros, especialmente, para o que nos interessa de perto neste texto, no âmbito do STF, revela que se trata de tema em fase de expansão qualitativa e quantitativa, mas que exige uma especial consideração do modelo constitucional brasileiro e do respectivo contexto social, econômico e político, além da construção de uma dogmática constitucionalmente adequada e que esteja em harmonia com os demais direitos fundamentais. Aliás, é precisamente nessa seara que os desafios são particularmente prementes, pois, consoante já referido, sem prejuízo de seu relevante papel para a compreensão e efetivação dos direitos fundamentais sociais, o mínimo existencial não deveria pura e simplesmente assumir lugar de tais direitos.
Por outro lado, um rápido olhar sobre o direito comparado - com destaque para os casos da Alemanha e de Portugal - revela que nem sempre (o que por si só não é necessariamente negativo ou mesmo positivo) os órgãos da jurisdição constitucional brasileira são sensíveis aos limites da própria noção de mínimo existencial na nossa própria ordem constitucional. Por um lado, quando se invocou (e há outros exemplos que poderiam ser citados) a noção de mínimo existencial com o intuito de fundamentar a tese da proibição de retrocesso aplicada à contribuição dos inativos de servidores públicos muito bem remunerados, ainda mais com arrimo em precedente do Tribunal Constitucional de Portugal que dizia respeito a benefícios de assistência social de valor baixo mesmo para o caso do Brasil58, é possível criticar um uso por vezes inflacionário e mesmo retórico da noção de mínimo existencial.
Igualmente não muito bem digerida e manejada entre nós, pelo menos em diversos casos, é a idéia de que o mínimo existencial encontra-se sempre subtraído à disposição dos poderes constituídos e que a definição de seu conteúdo em definitivo é tarefa cometida à Jurisdição Constitucional. Ainda que a situação no Brasil seja diferente, nunca é demais relembrar que tanto na Alemanha, quanto em Portugal (apenas para mencionar duas ordens constitucionais muito influentes para o caso brasileiro) a própria definição do conteúdo do mínimo existencial é deferida em regra e em primeiríssima linha ao legislador, que, além do mais, deve estabelecer critérios claros, universais e isonômicos, embora simultaneamente deva (como ficou bem assentado na relativamente recente decisão do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, acima referida) a legislação preservar as circunstâncias pessoas de cada indivíduo titular do direito, pois diferentes as necessidades de cada um. Salvo em casos excepcionais, também é verdade que os Tribunais Constitucionais da Alemanha e Portugal não substituíram as opções do legislador nessa seara pela sua própria. Se o caminho trilhado pela justiça constitucional brasileira, designadamente pelo STF, é mais ou menos correto do que o revela a experiência estrangeira aqui rapidamente apresentada, não está aqui em causa (até mesmo consideradas as diferentes realidades e diversas tradições jurídicas e políticas), mas sim, que a maior correção (ou não) do modo pelo qual se intervém nas decisões legislativas e administrativas com base na noção do mínimo existencial, deveria ser cada vez mais objeto de detida reflexão e aperfeiçoamento. De qualquer sorte, mais do que esgrimir uma bandeira a favor ou contra o “ativismo judicial”, é preciso, à vista do contexto brasileiro (na dimensão jurídica-constitucional, política, econômica e social) encontrar um caminho adequado e equilibrado de interação entre os órgãos estatais, visto que a busca da efetividade da ordem constitucional é tarefa cometida a todos.
Vê-se, portanto, que o legislador constituinte brasileiro delineou um nítido programa social destinado a ser desenvolvido pelo Estado, mediante atividade legislativa vinculada. Ao dever de legislar imposto ao Poder Público - e de legislar com estrita observância dos parâmetros constitucionais de índole jurídico social e de caráter econômico-financeiro -, corresponde o direito público subjetivo do trabalhador a uma legislação que lhe assegure, efetivamente, as necessidades vitais básicas individuais e familiares e que lhe garanta a revisão periódica do valor salarial mínimo, em ordem a preservar o poder aquisitivo desse piso remuneratório, em caráter permanente (...) Em suma: o valor mensal de R$112,00 - que corresponde a um valor salarial diário de R$3,73 é aviltante e é humilhante. Ele, na verdade, reflete importância evidentemente insuficiente para propiciar ao trabalhador e aos membros de sua família um padrão digno de vida.”(destaques nossos).
Ocorre que, apesar da irrepreensível argumentação do relator, este entendeu que a ação a ser proposta deveria ter sido ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2º, CF) e não a ação direta de inconstitucionalidade (art. 102, I, “a”, CF) e, desse modo, não poderia atender ao justo pleito da autora, pois esta pretendia não o reconhecimento de uma situação de omissão parcial do Poder Público, mas a própria declaração de inconstitucionalidade das regras questionadas e, se isto fosse deferido, a situação culminaria por agravar, ainda mais, a situação remuneratória dos trabalhadores, reduzindo-lhes o salário dos atuais R$112,00 para a anterior e inaceitável importância de apenas R$ 100,00.
Assim, quanto ao artigo 1º da Medida Provisória nº 1.415, de 29 de abril de 1996, o Tribunal, por maioria, não conheceu da ação direta, vencido o Senhor Ministro Marco Aurélio, que, como de hábito, adotava uma posição defensiva do cidadão e dos direitos sociais. Plenário, 03.11.2004.
Já em ação direta de inconstitucionalidade por omissão, desta vez proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde - CNTS, com fundamento em todo análogo à ação acima descrita, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente a demanda, mas não lhe concedeu qualquer aplicabilidade por entender que “a procedência da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, importando em reconhecimento judicial do estado de inércia do Poder Público, confere ao Supremo Tribunal Federal, unicamente, o poder de cientificar o legislador inadimplente, para que este adote as medidas necessárias à concretização do texto constitucional. - Não assiste ao Supremo Tribunal Federal, contudo, em face dos próprios limites fixados pela Carta Política em tema de inconstitucionalidade por omissão (CF, art. 103, § 2º), a prerrogativa de expedir provimentos normativos com o objetivo de suprir a inatividade do órgão legislativo inadimplente”. (Relator Ministro Celso de Mello, Tribunal Pleno, Julgamento 23.05.1996).
Ocorre que o Supremo Tribunal Federal aparentemente modificou o seu entendimento por ocasião do julgamento do Mandado de Injunção nº 708 (Relator Ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, Julgamento 25.10.2007), para admitir que, diante da inércia contundente do Poder Legislativo, a Corte Suprema poderia ditar qual a regra legal aplicável ao exercício de uma garantia constitucional que, até então, estava condicionada à prévia existência de lei.
Ainda que esse precedente (MI 708) seja aplicável apenas às partes envolvidas na referida ação, esse raciocínio pode ser estendido para a ação direta de inconstitucionalidade por omissão e assim, poder-se-ia pleitear que o Poder Judiciário, também em sede de ADIN por omissão, fixasse o valor do salário mínimo que efetivamente atendesse às necessidades vitais básicas do trabalhador e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social.