Artigos
Princípios sobre o direito de acesso à informação oficial na América Latina*
Principles of the right to access offical information in Latin America
Princípios sobre o direito de acesso à informação oficial na América Latina*
Journal of the Brazilian Chemical Society, vol. 3, núm. 2, pp. 143-197, 2016
Sociedade Brasileira de Química
Recepção: 18 Abril 2016
Aprovação: 29 Abril 2016
Resumo: O presente texto tem como ponto de partida os 10 princípios sobre o direito de acesso à informação, declarados, em 2008, pelo Comitê Jurídico Interamericano (CJI) da Organização dos Estados Americanos (OEA), e a Lei Modelo Interamericana sobre Acesso à Informação Pública da OEA, de 2010, os quais sistematizam a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte I.D.H.). Trata-se de estudo comparado que - à luz da teoria dos direitos fundamentais - afere o nível da influência do Sistema Interamericano de Direitos Humanos em face da legislação e precedentes judiciais dos 18 Estados latino-americanos de origem ibérica sujeitos à Convenção Americana (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Equador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela). Em consequência, traz à evidência os pontos positivos e negativos das leis nacionais na América Latina acerca do acesso à informação.
Palavras-chave: acesso à informação, direitos fundamentais, Corte Interamericana de Direitos Humanos, princípios, América Latina.
Abstract: This article takes as its starting point the 10 principles of right to access information declared in 2008 by the Inter-American Juridical Committee (CJI) of the Organisation of American States (OAS), and the OAS’s Inter-American Model Law on Access to Public Information, published in 2010, which systematise the case law of the Inter-American Court of Human Rights. It is a comparative study, which - in light of the theory of fundamental rights - contrasts the level of influence of the Inter-American System of Human Rights in terms of the legislation and judicial precedents of the 18 Latin-American countries that are of Iberian origin and are subject to the American Convention (Argentina, Bolivia, Brazil, Chile, Colombia, Costa Rica, El Salvador, Ecuador, Guatemala, Honduras, Mexico, Nicaragua, Panama, Paraguay, Peru, Dominican Republic, Uruguay and Venezuela). Consequently, it points out the positive and negative aspects of the national laws governing information access in Latin America.
Keywords: access to information, fundamental rights, Inter-American Court of Human Rights, principles, Latin America.
1. INTRODUÇÃO
Em conexão com a evolução do tema em nível mundial,1 a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte I.D.H.), na decisão Claude Reyes e outros v. Chile de 2006, reconheceu a existência de um direito de acesso a informações oficiais - buscar e receber informações - com base no art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), que dispõe sobre a liberdade de pensamento e de expressão. 2 Com essa sentença, a Corte I.D.H. se tornou o primeiro tribunal internacional a reconhecer que o direito de acesso à informação púbica é um direito humano fundamental.3
Na sequência, um significante desenvolvimento ocorreu no cenário latino-americano, com a aprovação, em 2008, dos princípios sobre o direito de acesso à informação pelo Comitê Jurídico Interamericano (CJI) da Organização dos Estados Americanos (OEA), quais sejam:
1. Em princípio, toda informação é acessível. 2. O acesso a informação se estende a todos os órgãos públicos e entes privados com recursos públicos. 3. O direito de acesso a informação se dirige a toda informação. 4. Os órgãos públicos devem difundir informação sobre suas funções e atividades. 5. Devem ser implementadas regras claras, justas, não discriminatórias e simples referente a requerimentos de informação. 6. As exceções do direito de acesso à informação devem ser estabelecidas por lei. 7. O ônus de prova para justificar qualquer negativa de acesso à informação deve recair sobre o órgão público. 8. Todo indivíduo deve ter o direito de recorrer contra qualquer negativa ou obstrução de acesso à informação. 9. Toda pessoa que intencionalmente negue ou obstrua o acesso à informação, violando as regras que garantem esse direito, deve estar sujeita a sanção. 10. Devem ser adotadas medidas de promoção e implementação do direito de acesso à informação.4
Em 2010, a Lei Modelo Interamericana sobre Acesso à Informação Pública e a Guia para sua Implementação, aprovadas pela Assembleia Geral da OEA, incorporaram a orientação jurisprudencial da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Claude Reyes v. Chile (2006), assim como os referidos princípios sobre acesso à informação do Comitê Jurídico Interamericano (2008).5
Nesse contexto, o presente estudo comparado - à luz da teoria dos direitos fundamentais - tem como ponto de partida os 10 princípios declarados pelo Comitê Interamericano e visa a aferir o nível da sua influência em face da legislação e precedentes judiciais dos 18 Estados latino-americanos de origem Ibérica sujeitos à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Equador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai e, até 2013, Venezuela6). Em consequência, busca-se identificar os pontos positivos e negativos dos sistemas jurídicos nacionais na América Latina sobre o direito de acesso à informação.
A análise dos referidos princípios observará uma ordem lógica da dogmática dos direitos fundamentais:
1. Acesso à informação como um direito humano fundamental. 2. Destinatários do dever de atender ao direito à informação. 3. Âmbito de proteção do direito à informação. 4. Dever de proteção contra o perigo do acesso à informação a outros direitos fundamentais. 4.1. Limites do direito à informação. 4.1.1. Reserva de lei na dogmática dos direitos fundamentais. 4.1.2. Reserva de lei na América Latina. 4.1.3. As limitações do direito à informação para proteção dos interesses públicos e interesses privados. 4.1.4. Interesses comerciais e segredo industrial. 4.1.5. Relações internacionais. 4.2. Limites de limites do direito de acesso à informação. 4.2.1. Interesse público prevalente. 4.2.2. Ofensa grave a direitos humanos. 4.2.3. Divulgação parcial. 4.2.4. Temporalidade dos limites para proteção do interesse público. 4.2.5. Limites dos limites para proteção do direito à privacidade. 4.2.6. Informações inerentes a funções exercidas por funcionários públicos. 4.2.7. Fatos, análises de fatos, informações técnicas e estatísticas. 4.2.8. Política pública aprovada e exame ou auditoria concluídos. 5. Garantias de proteção do direito à informação. 5.1. Princípio da máxima divulgação. 5.2. Direito à informação como direito universal. 5.3. Direito de petição e direito a uma decisão fundamentada. 5.3.1. Requerimento administrativo. 5.3.2. Demonstração e comprovação dos pressupostos dos limites. 5.3.3. Efeitos da omissão administrativa. 5.4. Direito de recurso extrajudicial e judicial. 5.5. Autoridades independentes e imparciais: extrajudiciais e judiciais. 5.6. Divulgação proativa. 5.7. Medidas punitivas contra a obstrução do direito à informação. 5.8. Políticas públicas referentes ao acesso à informação.
2. ACESSO À INFORMAÇÃO COMO UM DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL
A informação é o oxigênio da democracia. Se as pessoas não sabem o que está acontecendo em sua sociedade, se as ações daqueles que as governam forem ocultadas, então eles não podem tomar uma parte significativa nos assuntos da sociedade. Mas a informação não é apenas uma necessidade para as pessoas - é uma parte essencial de um bom governo. Um mau governo precisa do segredo para sobreviver. Ele permite que a ineficiência, o desperdício e a corrupção prosperem. Como Amartya Sen, economista ganhador do prêmio Nobel, observou, não há fome em um país com governo democrático e uma imprensa relativamente livre. A informação permite que o cidadão possa escrutinar as ações do governo e é a base para um debate adequado e informado sobre tais ações.7 (tradução nossa)
O direito à informação é um direito de todos, cidadãos e não cidadãos; trata-se de um direito humano, originado na liberdade de pensamento e de expressão e que, portanto, precede ao Estado e não é apenas por ele outorgado; é um direito que se sujeita a limites somente mediante a lei.8
O Comitê Jurídico Interamericano da OEA prescreve que:
O acesso à informação é um direito humano fundamental que estabelece que todos podem acessar a informação detida por órgãos públicos, sujeito somente a exceções limitadas, de acordo com uma sociedade democrática e proporcionais ao interesse que as justifique. Os Estados devem assegurar o respeito ao direito de acesso à informação, adotando legislação apropriada e colocando em prática os meios necessários para a sua implementação.9
Na exposição de motivos da Lei Modelo Interamericana, está assinalado que “o acesso à informação é um direito humano fundamental e uma condição essencial para todas as sociedades democráticas”. Nesse sentido, é espelho da jurisprudência da Corte Interamericana, que segue reafirmando o direito de acesso à informação como parte integrante do direito à liberdade de pensamento e de expressão, “em razão das suas dimensões individual e social, a exemplo da Declaração Universal de Direitos Humanos e do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que estabelecem um direito positivo a buscar e receber informações”10, no que foi acompanhado apenas em parte pela Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, que restringe o direito à informação a pessoas residentes ou com sede na Europa11.
Quanto à dimensão individual do direito de acesso à informação,
os sistemas internacionais de direitos humanos têm destacado amplamente o fato de que o acesso à informação possui um caráter facilitador do exercício de outros direitos humanos, ou seja, o acesso à informação é, em muitos casos, imprescindível para que as pessoas possam efetivar outros direitos.12
Da dimensão social, extrai-se o papel do acesso à informação de assegurar o controle democrático dos atos emanados pelo poder público, o que implica universalidade de acesso e dispensa de justificativa para os requerimentos individuais.
O acesso à informação está consagrado como um direito fundamental autônomo nas Constituições da Bolívia13, Brasil14, Costa Rica15, Equador16, Guatemala17, México18, Nicarágua19, Panamá20, Paraguai21, Peru22, República Dominicana23 e Venezuela24.
Em alguns Estados latino-americanos, a despeito da omissão das Constituições, os legisladores têm se antecipado, definindo o direito à informação como um direito fundamental. É o que ocorre com a legislação da Colômbia25, El Salvador26, Guatemala27 e Uruguai28. Em Honduras, ainda que a lei não diga expressamente que o direito de acesso à informação pública é um direito fundamental, vemos que a ação judicial por sua violação é o amparo, ou seja, uma ação reservada para proteger os direitos constitucionais.29
Na verdade, de um modo geral, nos Estados cujas Constituições não se referem expressamente ao direito à informação (Chile, Colombia, El Salvador, Guatemala, Honduras, Uruguai e, principalmente, Argentina, que, até o momento, não editou uma lei geral de acesso à informação30), é comum verificarmos traços da transparência ou princípios que dependem de publicidade, e a jurisprudência de cortes constitucionais que asseguram a transparência como condição dos princípios básicos do Estado constitucional democrático. 31
A Corte Suprema de Justiça da Nação Argentina, em 2014, afirmou que a “obrigação de garantir o acesso à informação por mandamento constitucional está a cargo do Estado”32 e que a Constituição “estabelece o direito de acesso à informação pública como uma condição necessária para organizar uma república democrática”33, sendo indubitável que, a fim de que o direito à informação seja efetivamente garantido,“o Estado deve ditar urgentemente uma lei que, salvaguardando as normas internacionais sobre a matéria e o princípio da razoabilidade, regule de maneira exaustiva o modo como as autoridades públicas devem satisfazer esse direito”.34
Do mesmo modo, em 2007, o Tribunal Constitucional do Chile determinou que o direito à informação pública estivesse reconhecido em âmbito constitucional, “porque o direito de acessar as informações em poder dos órgãos do Estado faz parte da liberdade de expressão [...] prevista no art. 19.12 da Carta Fundamental”, e porque “o artigo 8 da Constituição Política [...] incluiu os princípios de probidade, publicidade e transparência na atuação dos órgãos do Estado”. 35
A Sala Constitucional da Corte Suprema de Justicia de Honduras também reconheceu o direito de acesso à informação pública como um direito fundamental, não com base na Constituição daquele país, mas em tratados internacionais. Isso se observa na sentença que, ao apontar as restrições sobre o direito de acesso à informação, regulamentadas na Ley de Transparencia y Acceso a la Información Pública, expressou:
[...] não foi seguido o procedimento de reserva com relação à lista das famílias que compõem a população economicamente mais vulnerável do país e que são sujeitos à ajuda governamental, de modo que a recusa do Oficial de Informação do Programa de Asignación Familiar (PRAF), para fornecer a informação ordenada pelo Instituto de Acceso a la Información, não tem suporte legal e, consequentemente viola os direitos fundamentais citados.
Conclui-se que:
Nós podemos dizer que a recusa [do Oficial de Informação do Programa de Asignación Familiar] na implementação da resolução emitida pelo Instituto de Acceso a la Información viola o direito do peticionário ter acesso a informações públicas e, consequentemente, viola o direito reivindicado que consta do artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e do artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de modo que o amparo [recurso] interposto pela requerente deve ser concedido.36
Essa mesma Sala Constitucional, inclusive, reconheceu que o exercício do direito de acesso à informação fortalece o Estado de Direito e o processo democrático.37
Por sua vez, precedentes judiciais no Uruguai vêm ressaltando que o direito à informação é um direito fundamental,
[...] é um direito básico, inerente à personalidade humana [...], sendo o direito de acesso à informação pública um corolário do mesmo. [...] O direito de acesso à informação pública é um dos direitos da terceira geração, dado que é um direito individual e também um direito coletivo de toda a sociedade, ligado à transparência da gestão pública e à necessidade de investigar, analisar e informar a opinião pública sobre o conteúdo dos documentos públicos [...].38
A Corte Constitucional da Colômbia estabeleceu que o direito à informação “é um direito que expressa a tendência natural do homem ao conhecimento. [...] O sujeito de direito é universal: toda pessoa - sem distinção - e o objeto de tal direito é a verdadeira e imparcial informação como o consagra o artigo 20 da CN”.39 Determina-se, ainda, que:
[...] “Um dever excepcional de informação se deduz dos princípios da solidariedade (Art. 1 da CN) e da eficácia dos princípios, direitos e deveres (Art. 2 da CN), nos casos em que a existência autônoma e livre de uma pessoa dependa do fornecimento da informação e sua omissão vulnere diretamente um direito fundamental, sem que sejam suficientes os remédios legais para impedi-lo. [...] O direito fundamental à informação vital que tem toda pessoa em circunstâncias excepcionais, como as descritas anteriormente, se fundamenta nos artigos 1, 2 e 49 da Constituição [... ]”. 40
A Corte Suprema da Costa Rica entende que:
[...] o direito à informação é considerado uma garantia jurídica indispensável para que os cidadãos possam exercer, em maior ou menor medida, sua participação nas tarefas públicas; e, por esse ponto de vista, trata-se de um direito público e subjetivo [...]. Esse direito à informação, ademais, tem um caráter preferencial ao considerar-se que ele garante um interesse constitucional: a formação e existência de uma opinião pública livre; garantia que se reveste de especial transcendência, uma vez que, por ser uma condição prévia e necessária para o exercício de outros direitos inerentes ao funcionamento de um sistema democrático, converte-se, por sua vez, em um dos pilares de uma sociedade livre e democrática.41
Na Venezuela, a Sala Constitucional do Tribunal Supremo de Justicia, em julgamento de 2010 (cujo conteúdo a Sala declarou vinculante), reconheceu que o art. 143 da Constituição consagrava expressamente o “novíssimo direito dos cidadãos de solicitar informação e de ser informado oportuna e verazmente sobre questões de interesse público”. Inicialmente, não havia tal reconhecimento por parte da jurisprudência constitucional, que apontava que, no âmbito de um procedimento administrativo,
O artigo 143 outorga aos cidadãos outro direito à informação, que deve ser cumprido pela Administração Pública, com o fim de que os administrados conheçam o estado das atuações em que estão diretamente interessados, bem como as resoluções adotadas.42.
Ainda que reconhecido como um direito autônomo, na citada sentença de 2010, deixou-se muito claro a vinculação desse direito com um princípio também de categoria constitucional, ao assinalar que o direito de acesso à informação pública está “legitimado em função do princípio de transparência na gestão pública, que é um dos valores expressamente estabelecidos no art. 141 da Constituição [...]”.43
A Corte Constitucional da Guatemala emitiu sentença sobre várias alegações de inconstitucionalidade contra a “Ley de Acceso a la Información Pública”. Conforme a decisão da Corte, em apego aos princípios internacionais, a Constituição da Guatemala reconhece que “todos os atos da Administração são públicos” e também que a população tem o direito “de acessar essa informação, como titular da soberania nacional”. Consequentemente, para seu exercício,
o cidadão não [tem] mais que manifestar sua vontade legítima de conhecer a organização, o funcionamento e os processos de tomada de decisões do aparato governamental destinado a buscar seu bem-estar e de seus pares; é assim que se entende configurado seu interesse sobre o assunto de que se trata, e não na acepção puramente processual do vocábulo. 44
Em El Salvador, “o direito de acesso à informação pública deriva interpretativamente da primeira parte do art. 6 da Constituição Nacional”.45 Por outro lado, a jurisprudência constitucional tem reconhecido reiteradamente a natureza de direito fundamental do direito de acesso à informação (pública e privada). A seguinte sentença faz um resumo dos termos de tal reconhecimento:
De acordo com a sentença de 5 dez. 2012, Inc. 13-2012 (caso Regramento da Ley de Acceso a la Información Pública), o direito de acesso à informação possui a condição indiscutível de direito fundamental, que se infere do direito à liberdade de expressão (art. 6 Cn.), e tem como pressuposto o direito de investigar ou buscar e receber informações de toda índole, pública ou privada, que tenham interesse público (sentença de 24-IX-2010, Inc. 91-2007, caso Liberdade de expressão); e no princípio democrático do Estado de Direito (art. 85 Cn.), que impõe aos poderes públicos o dever de garantir transparência e a publicidade na Administração, assim como a prestação de contas sobre o destino dos recursos e fundos públicos (sentença de 25-VIII-2010, Inc. 1-2010, caso Transferências entre partes da Administração Pública).46
A Corte Suprema de Justicia de El Salvador destacou a importância de reconhecer o direito à informação como um direito fundamental:
Naturalmente, o caráter de direito fundamental do acesso à informação propicia o fortalecimento de democracias transparentes e efetivas, facilita a prestação de contas e gera um debate público permanente, sólido e informado. Sob tal perspectiva, o acesso à informação permite aos cidadãos ter um papel ativo no governo, através da construção de opinião individual e coletiva com base em assuntos públicos, o que facilita uma participação política melhor orientada, deliberativa e responsável, de forma que possam questionar, indagar e considerar se o funcionário está propiciando um adequado cumprimento às funções públicas. Esse nível de controle cidadão obriga os órgãos estatais a conduzir suas atividades de maneira transparente, especialmente no que se relaciona com processos de seleção de funcionários - no presente caso, de funcionários judiciais.47
3. DESTINATÁRIOS DO DEVER DE ATENDER AO DIREITO À INFORMAÇÃO
O poder público é o destinatário dos direitos fundamentais, incluindo-se autoridades, legisladores e tribunais. Também estão vinculados aos direitos fundamentais pessoas e entes privados que, no âmbito do direito público, exercem funções públicas, e ainda pessoas e entes privados que, no âmbito do direito privado, atuam em prol da Administração48, na medida em que “o direito administrativo não permite uma fuga para o direito privado”49 e, consequentemente, “as autoridades não se isentam das vinculações do direito público quando colocam a sua atuação no plano do direito privado”.50
Conforme Otto Mayer, para caracterizar o direito administrativo, é indiferente que a Administração se valha da “economia privada” para perseguir o interesse público. Porém, ainda que se tratasse de uma atividade essencialmente privada, alheia ao direto administrativo, isto é, de uma atividade com fins de “interesses econômicos junto a interesses públicos”,51 persistiria para a Administração o dever de prestar informações, sempre que houver “fundos públicos” envolvidos, a exemplo do que ocorre hoje, no Brasil, com a Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobrás)52 e, na Venezuela, com a Petróleos de Venezuela, S.A..
Assinala o Comitê Interamericano que:
O direito de acesso à informação estende-se a todos os órgãos públicos em todos os níveis de governo, incluindo os que pertencem ao Poder Executivo, ao Legislativo e ao Judiciário, aos órgãos criados pela Constituição ou por outras leis, órgãos de propriedade ou controlados pelo governo, e organizações que operam com fundos públicos ou que exercem funções públicas. 53
De acordo com a Lei Modelo Interamericana, o dever de informação alcança:
Toda autoridade pública pertencente a todos os poderes do governo (Executivo, Legislativo e Judiciário) e em todos os níveis da estrutura governamental interna (central ou federal, regional, provincial ou municipal); aplica-se também aos órgãos, organismos ou entidades independentes ou autônomos de propriedade do governo ou por ele controlados, atuando por poderes outorgados pela Constituição ou por outras leis e se aplica também às organizações privadas que recebem fundos ou benefícios públicos substanciais (direta ou indiretamente), ou que desempenham funções e serviços públicos, mas somente com respeito aos fundos ou benefícios públicos recebidos ou às funções e serviços públicos desempenhados. Todos esses órgãos deverão ter sua informação disponível [...]”.54
Na mesma direção, a Constituição do México dispõe que:
Toda a informação na posse de qualquer autoridade, entidade, organismo ou agência dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, organismos autônomos, partidos políticos, fundos fiduciários e fundos públicos, bem como qualquer pessoa física, moral ou sindicato que receba e utilize recursos públicos ou realize atos de autoridade no âmbito federal, estadual e municipal, é pública [... ].55
De igual modo, com alcance geral e incluindo todas as esferas públicas, configuram-se as leis de acesso à informação do Brasil56, Chile57, Colômbia58, El Salvador59, Equador60, Guatemala61, Honduras62, México63, Nicarágua64, Paraguai65, Peru66, República Dominicana67 e Uruguai68. Na Argentina, a despeito da ausência de uma lei (parlamentar) sobre o acesso à informação, há regulamentos nas três esferas de poder - Legislativo, Executivo e Judiciário - impondo a divulgação de informações. 69
4. ÂMBITO DE PROTEÇÃO DO DIREITO À INFORMAÇÃO
O direito à informação é um direito fundamental cujo âmbito de proteção é marcado pela ordem jurídica, isto é, ele depende do conceito normativo do que se considera documento e informação oficial.70 Nesse contexto, o direito à informação se sujeita a uma conformação pelo legislador, de modo que a delimitação do seu âmbito de proteção é pautada em lei sem implicar necessariamente uma ingerência do Estado, apesar de não se tratar de um poder amplo ao legislador ao ponto de ele dispor do direito à informação ou esvaziar a natural compreensão acerca do acesso à informação.71
Segundo a exposição de motivos da Lei Modelo Interamericana, “o direito de acesso à informação se aplica em sentido amplo a toda informação em posse de órgãos públicos, incluindo toda informação controlada e arquivada em qualquer formato ou meio [..]”.
A legislação nacional latino-americana de todos os países pesquisados contém regra análoga, indicando, de forma ampla, as informações e documentos suscetíveis de divulgação: Brasil72, Chile73, Colombia74, El Salvador75, Equador76, Guatemala77, Honduras78, México79, Nicarágua80, Panamá81, Paraguai82, Peru83, República Dominicana84 e Uruguai85.
Para o Comitê Jurídico Interamericano, “o direito de acesso à informação se refere a toda informação significante, cuja definição deve ser ampla, incluindo toda aquela que é controlada e arquivada em qualquer formato ou meio” 86 (grifo nosso). Contudo, a compreensão sobre o que seria uma informação “pertinente”, “proporcional” ou “significante”, como requisito para o exercício do direito à informação, requer um juízo de valor que pode dar margem à insegurança.
Na Venezuela, o Tribunal Supremo de Justicia entende que é dever do interessado demonstrar que a informação solicitada guarda propósitos específicos e seja proporcional ao uso que se dará à mesma.87
No Chile, cabe negar o acesso a informações quando se trate de:
Requerimentos de caráter genérico, relativos a um elevado número de atos asministratrivos ou seus antecedentes ou cuja atenção requeira distrair indevidamente os funcionários do cumprimento regular de seus trabalhos habituais.88
Por sua vez, na República Dominicana, “não se considerarão atos ou expedientes aqueles rascunhos ou projetos que não constituem documentos definitivos e que, portanto, não formam parte de um procedimento administrativo”.89
Finalmente, no Uruguai,
a lei tampouco autoriza os interessados a exigir dos organismos que realizem avaliações ou análise das informações que eles têm, exceto aquelas que, por seus deveres institucionais, devam produzir. Não se entenderá produção de informação a coleta ou compilação de informação que esteja dispersa nas diversas áreas do órgão, com o fim de proporcionar a informação ao requerente.90
5. 5 DEVER DE PROTEÇÃO CONTRA O PERIGO DO ACESSO À INFORMAÇÃO A OUTROS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Com referência às funções dos direitos fundamentais, destaque-se o dever que os Estados têm de proteção contra perigos, especialmente por meio de ingerência a outros direitos fundamentais, e o dever de interpretar e aplicar as leis em conformidade com os direitos fundamentais.91 O exercício livre dos direitos fundamentais levaria a conflitos entre diferentes espécies e titulares de direitos. Por isso, é necessária a ingerência do Estado, fixando limites (em abstrato) e restrições (em concreto).
É nesse contexto que devem ser compreendidas as exceções ao direito de acesso à informação: ora a publicidade versus o sigilo vinculado diretamente a outro direito fundamental, o que a lei associa a “interesse privado” (direito à privacidade, interesses comerciais); ora a publicidade versus o sigilo relacionado indiretamente à proteção de outros direitos fundamentais, a cargo do Estado, o que a lei considera “interesse público” (segurança, saúde, relações exteriores).
5.1. Limites do direito à informação
5.1.1. Reserva de lei na dogmática dos direitos fundamentais
As limitações a direitos fundamentais dependem de uma lei que seja qualificada, oriunda de um processo legislativo, e proporcional.
Segundo Pieroth e Schlink, há direitos fundamentais que estão sujeitos a limitações com base em leis simples, sem justificativas, em que os legisladores têm ampla margem para apreciar o perigo a outros direitos fundamentais; há direitos fundamentais submetidos a limitações em leis que precisam estar justificadas (reserva de lei qualificada), em que a margem do legislador é mais reduzida; e há direitos fundamentais não sujeitos a limitações legais, casos em que não cabe ao legislador mais do que reforçar os limites do alcance dos âmbitos de proteção dos direitos fundamentais.92
Atualmente, não mais atende ao princípio da reserva da lei a delegação genérica a autoridades para procederem ingerências a direitos fundamentais a partir da edição de normas próprias (infralegais).93 As regras e decisões administrativas em que as ingerências forem baseadas devem manter uma relação direta com a lei que as autorizou.94
Com efeito, é dever do legislador dispor sobre a essencialidade da ingerência, isto é, deve estar na lei o conteúdo, o fim e a extensão da autorização para a ingerência. Se a lei for demasidamente vaga, na prática, a decisão sobre os pressupostos das ingerências nos direitos fundamentais fica a cargo das autoridades administrativas, o que, segundo o Tribunal Constitucional Federal alemão, pela teoria da essencialidade, seria vedado.95 A imprecisão, entretanto, é o que se vê em grande parte das leis acerca do direito à informação.96
A exigência de uma lei proporcional para ingerências a direitos fundamentais mantém proximidade com a ideia de direitos fundamentais sujeitos a limitações por leis qualificadas.97 A partir do princípio da proporcionalidade, deve-se perquirir se a lei de ingerência é idonea, necessária e proporcional no sentido estrito à proteção de outros direitos fundamentais. Tratando-se do acesso à informação, é preciso verificar se, de fato, o direito à privacidade (interesse privado) ou o direito à segurança (interesse público) serão savalguardados pela lei de ingerência ao direito à informação e se essa ingerência é a única medida possível e adequada.
A idoneidade do meio não significa que a lei tenha que alcançar o fim, mas que, ao menos, o facilite;98 necessidade implica não haver outra situação que o Estado possa criar para o mesmo fim; proporcionalidade no sentido estrito supõe ser a lei “bem ponderada”, equilibrada, razoável ou suportável.99
Essa ponderação, na proporcionalidade stricto sensu, conforme a jurisprudência predominante do Tribunal Constitucional Federal alemão, acaba sendo uma pesagem (autônoma em relação à literalidade do texto constitucional) entre interesses públicos e interesses privados no caso concreto. No entanto, o desprendimento do texto constitucional para ponderar interesses leva ao risco de prevalência de juízos de valor subjetivos e de difícil controle. Por tal motivo, a jurisprudência daquele Tribunal prefere controlar a proporcionalidade com base apenas na necessidade, sendo a proporcionalidade no sentido estrito invocada somente nos casos extremos em que a solução encontrada se mostrar absurda.100
Os direitos fundamentais não sujeitos à reserva de lei - porque assim deseja a Constituição - também podem entrar em colisão com outros direitos fundamentais, visto que, pela natureza das coisas, os perigos não desaparecem.101 Situação análoga é a dos direitos fundamentais sujeitos a limites por reserva de lei que não vem a ser editada ou que, apesar de editada, seja demasiadamente genérica ou vaga (sem atender à teoria da essencialidade).102
Na verdade, há casos em que não passa de aparência a observância ao princípio da reserva de lei: não há diferença entre uma omissão legislativa sobre os pressupostos da limitação à divulgação da informação e uma lei que se refira genericamente, por exemplo, à “segurança pública” como hipótese de exceção à divulgação.103 É inegável que tais regras dispõem sobre temas difíceis de serem tratados abstratamente pelo legislador,104 contudo, um detalhamento maior se impõe105, haja vista que o que se deseja com o princípio da reserva de lei, nesses casos, é realmente evitar, o quanto possível, uma infinita gama de intepretações em poder das autoridades públicas. 106
O fato é que as colisões ocorrem e precisam de soluções pelas autoridades e tribunais soluções tais que não se deem sob pressupostos menos exigentes do que nos casos em que o legislador está autorizado a “limitar” um direito fundamental. Com efeito, a técnica que melhor se ajusta à colisão de direitos fundamentais é a da interpretação sistemática, delimitando cuidadosamente o âmbito de proteção dos direitos fundamentais.107
5.1.2. Reserva de lei na América Latina
Para o Comitê Jurídico, “as exceções ao direito de acesso à informação devem ser claras, limitadas e estabelecidas por lei”.108
É a “reserva de lei” uma jurisprudência da Corte Interamericana, em que “as exceções ao direito à informação devem estar previamente fixadas por lei como garantia de que não decorram do arbítrio do poder público”109. Nesse contexto, uma norma qualquer, como um regulamento, não corresponderia à expressão “leis” contida no art. 30 da Convenção Americana110, que está assim disposto:
As restrições permitidas, de acordo com esta Convenção, ao gozo e exercício dos direitos e liberdades nela reconhecidos, não podem ser aplicadas senão de acordo com leis que forem promulgadas por motivo de interesse geral e com o propósito para o qual houveremsido estabelecidas.
Em El Salvador, a Corte Suprema não hesitou em apontar a natureza “de reserva legal” dos limites que podem ser impostos ao exercício do direito de acesso à informação, dado que, como todo direito fundamental, suas restrições somente podem ser estabelecidas mediante lei formal, observando que:
[...] uma restrição ao exercício desse direito, como tal, deve ser discutida e aprovada pelos representantes daqueles que serão afetados por ela, num processo que precisamente se caracterize por ser público e transparente. A necessidade de uma lei formal contribui para a segurança jurídica quanto ao exercício desse direito e para o respeito às faculdades do Estado para restringi-lo, de modo a proibir a criação arbitrária de obstáculos ao acesso à informação mediante decisões estatais distintas das leis emitidas pelo Legislativo. 111
Dos Comentários oficiais ao art. 41 da Lei Modelo Interamericana consta que o princípio da reserva da lei compreende “as definições realizadas por meio da legislação e também da jurisprudência, das quais resultaria uma definição das exceções”.112 A Constituição do Panamá impõe que haja um ato administrativo fundamentado em lei para excepcionar o acesso à informação,113 e a Constituição do Equador indica que “não existirá reserva de informação exceto nos casos expressamente estabelecidos na lei”.114 (grifo nosso).
Com igual orientação daqueles Comentários à Lei Modelo, segundo os quais “rejeita-se a expressão ordem pública por ser sumamente vaga e poder ocasionar absusos na sua aplicação”,115 a Corte Constitucional colombiana rechaça “as normas genéricas ou vagas, que podem terminar se tornando uma espécie de permissão geral às autoridades para manterem em segredo toda informação que discricionariamente considerarem adequada. Para que isso não ocorra, e tampouco inverta a regra geral da publicidade, a lei deve estabelecer, com clareza e precisão, o tipo de informação que pode ser objeto de sigilo, as condições nas quais tal sigilo pode se impor aos cidadãos, as autoridades com o poder de aplicá-lo e os sistemas de controle que operam sobre as ações que por tal razão permaneçam sigilosas ”.116 (grifo nosso).
A Corte Interamericana entende que a limitação por lei deve responder a um objetivo da Convenção (art. 13.2), o de que as ingerências devem ser necessárias para assegurar o “respeito aos direitos ou a reputação dos demais” ou “a proteção da segurança nacional, a ordem pública ou a saúde ou a moral públicas”.117 Dessa forma, na dicção da Corte,
as exceções devem ser necessárias em uma sociedade democrática, o que implica estarem orientadas à satisfação de um interesse público imperativo. Para atender a esse objetivo, deve-se escolher a opção que restrinja, em menor escala, o direito protegido, ou seja, a exceção deve ser proporcional ao interesse que a justifica e deve ser idôena para alcançar esse legítimo objetivo, interferindo, na menor medida possível, no exercício efetivo de um direito.118
A exceção ao direito à informação mediante proporcionalidade consta explicitamente de parte da legislação nacional latino-americana, como, por exemplo, a da Colômbia119, Guatemala120, México121, Nicarágua122 e República Dominicana123. No mesmo sentido, encaminham-se a jurisprudência do Tribunal Constitucional do Peru124, da Suprema Corte do México125, do Tribunal Supremo de Justicia da Venezuela126 e da Corte Suprema argentina, que, entretanto, vincula-se ao princípio da razoabilidade127.
5.1.3. As limitações do direito à informação para proteção dos interesses públicos e interesses privados
A Lei Modelo Intermericana estabelece exceções ao acesso a informações quando houver ofensa a interesses privados ou a interesses públicos.
No rol de interesses privados, enumera: (i) o direito à privacidade, incluindo privacidade relacionada à vida, saúde ou segurança; (ii) os interesses comerciais e econômicos legítimos; e (iii) as patentes, direitos autorais e segredos comerciais.128
No que tange a interesses públicos, após condicionar o limite ao acesso à informação a um risco claro, provável e específico de um dano significativo, o qual deverá ser definido de maneira mais detalhada mediante lei, enumera o seguinte rol:
(i) segurança pública; (ii) defesa nacional; (iii) futura provisão livre e franca de assessoramento das autoridades públicas e entre elas; (iv) elaboração ou desenvolvimento efetivo de políticas públicas; (v) relações internacionais e intergovernamentais; (vi) execução da lei, prevenção, investigação e indiciamento criminal; (vii) habilidade do Estado para gerenciar a economia; (viii) legítimos interesses financeiros da autoridade pública; (ix) exames e auditorias, bem como processos de exame e de auditoria;129 e (x) quando a permissão do acesso constituir uma violação às comunicações confidenciais, incluindo a informação legal que deve ser considerada privilegiada.130
Com lógica semelhante, entre interesses privados e interesses públicos, as leis nacionais prescrevem as exceções ao acesso à informação, tais como as do Brasil131, Chile132, Colômbia133, El Salvador134, Equador135, Guatemala136, Honduras137, México138, Nicarágua139, Panamá140, Peru141, República Dominicana142 e Uruguai143.
Entretanto, demasiadamente genérica e sucinta é a Lei do Paraguai, cujo art. 22, ao dispor sobre as exceções à informação, prescreve apenas que “a informação pública reservada é aquela que foi qualificada ou determinada como tal na forma expressa pela lei”.144
5.1.4. Interesses comerciais e segredo industrial
A respeito dos interesses comerciais como fundamento para excepcionar o acesso à informação, tratando-se de negócios financiados pelo poder público, decidiu o Supremo Tribunal Federal brasileiro que:
O segredo como ´álma do negócio´ consubstancia a máxima cotidiana inaplicável em casos análogos ao sub judice, tanto mais que quem contrata com o poder público não pode ter segredos, especialmente se a revelação for necessária para o controle da legitimidade do emprego dos recursos públicos. É que a contratação pública não pode ser feita em ´esconderijos envernizados por um arcabouço jurídico´ capaz de impedir o controle social quanto ao emprego das verbas públicas.145
É um exemplo em que o Tribunal, na ausência de lei, em vez de ponderar interesses em colisão, aplicando uma ingerência (limite de limite), reduziu o campo de incidência da proteção dos interesses comerciais, isto é, entendeu que não se afasta o acesso à informação quando os interesses comerciais envolvem o poder público. Ademais, pode-se dizer que o precedente em tela reconheceu que recursos públicos, mesmo no plano do direito privado, levam ao dever do Estado de prestar informações. No mesmo sentido, está a Lei de Honduras, que impõe a transparência a qualquer relação comercial e contratual que tenha relação com o Estado146.
A lei brasileira protege o sigilo da propriedade intelectual oriunda de atividade econômica do Estado ou de pessoa ou entidade privada que mantenha vínculo com o poder público,147 o que se distancia da ideia de que o Estado tem o dever de informação nas relações jurídicas de direito privado. Na República Dominicana, a proteção do segredo industrial e dos interesses comerciais envolvendo o poder público é preservada enquanto houver possibilidade de a divulgação causar danos econômicos.148
5.1.5. Relações internacionais
No caso de uma ONG que requereu ao Ministro do Poder Popular para Relações Exteriores informação acerca do trâmite que leva à ratificação do Protocolo Facultativo do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o Tribunal Supremo de Justiça da Venezuela decidiu, em 2012, que não havia obrigação de dar resposta porque, de acordo com a Constituição,
tanto a oportunidade em que deva ser promulgada a Lei que aprova um tratado ou convênio internacional, quanto a definitiva ratificação ou adesão destes dependem de competências discricionárias do Presidente da República, de acordo com os usos internacionais e a conveniência da República. 149
5.2. Limites de limites do direito de acesso à informação
As reservas de lei permitem que o legislador interfira nos direitos fundamentais. Ocorre que, na função de limitar os direitos fundamentais, o legislador também encontra limites: são os limites dos limites, e o mais significativo deles é o princípio da proporcionalidade. 150
Como os limites de limites são considerados parte integrante dos direitos fundamentais,151 é compreensível que, se o limite depende de lei, a exceção a esse limite também se sujeitará à lei prévia, o que, entretanto, na prática, nem sempre se sucede.
No Sistema Interamericano de Direitos Humanos, os limites dos limites do direito à informação se manifestam de dez formas distintas: quatro delas são genéricas a todas as exceções; as outras seis, específicas a determinados limites.
No grupo dos limites de limites aplicáveis a todas as exceções (genéricos): na primeira forma, não raro, é entregue a autoridades e juízes, por meio da técnica da ponderação para identificar o interesse que sofrerá maior dano, entre a divulgação e o sigilo, como expressão da proporcionalidade em sentido estrito: em geral, nos casos em que o dano sofrido pela restrição à divulgação (em prol do sigilo) for superior ao dano sofrido pelo sigilo (em favor da divugação)152. A segunda, nos casos de graves violações de direitos humanos153. A terceira, sujeitando o sigilo a um termo suspensivo, ou seja, a uma temporalidade definida em lei. 154 A última, que admite a divulgação parcial, quando possível destacar a publicidade da parte sigilosa. 155
Quanto aos limites dos limites específicos, a Lei Modelo Interamericana prevê quatro exceções à proteção do direito à privacidade, nos casos de consentimento prévio do interessado, de informação evidentemente pública, referentes à função de empregado público, e no caso em que tenham transcorrido 20 anos do falecimento do interessado; 156 e duas exceções à proteção do interesse público, sobre fatos, análises de fatos, informações técnicas e estatísticas, quando a política pública já tenha sido aprovada.157
5.2.1. Interesse público prevalente
Segundo a Suprema Corte canadense, “segue-se que, para exercer adequadamente esse critério, deve-se pesar as considerações a favor e contra a divulgação, incluindo o interesse público na divulgação”.158 É principalmente na busca pelo interesse público prevalente, pelo critério da proporcionalidade, que se orienta a discricionariedade administrativa nos limites de limites do acesso à informação.159
Consta da Lei Modelo Interamericana (art. 44) que “nenhuma autoridade pública pode negar-se a indicar se um documento está ou não em seu poder ou negar a divulgação de um documento, […] salvo se o dano causado ao interesse protegido for maior que o interesse público de obter acesso à informação”.160 (grifo nosso).
Em El Salvador, a lei impõe como condição ao sigilo a demonstração de que o dano que possa se produzir com a liberação da informação seja maior do que o interesse público em conhecer a informação em questão.161 Com igual redação, as leis da Guatemala162 e do México163. No Brasil, referindo-se ao limite do direito à privacidade, a lei fala em “proteção do interesse público geral e preponderante”.164
A exemplo da Lei Modelo Interamericana e das normas nacionais acima citadas, a proporcionalidade nos “limites de limites” do direito de acesso à informação manifesta-se como uma proporcionalidade stricto sensu e vem direcionada principalmente às autoridades públicas e, em última análise, a uma revisão judicial de ponderação em vista da ausência de uma lei que atenda à essencialidade dos interesses em colisão. A propósito, a determinação da importância e o grau de realização da finalidade da lei são fatores inerentes à técnica da ponderação, na proporcionalidade stricto sensu, e guardam relação com a probabilidade de ocorrência de lesão do bem jurídico que deve ser evitada.165
Nesse contexto, a situação se aproxima a de direitos fundamentais não sujeitos à reserva de lei ou a de direitos submetidos à reserva de uma lei que não é editada ou, quando editada, é vaga, isto é, a colisão (sigilo versus publicidade) deveria ser solucionada prioritariamente pela delimitação do âmbito de proteção de cada um dos interesses, a exemplo da jurisprudência alemã,166 e somente quando evidente o descompasso entre os prejuízos aplicar-se-ia a ponderação típica da proporcionalidade no sentido estrito. 167
5.2.2. Ofensa grave a direitos humanos
A ofensa grave a direitos humanos ou a direitos fundamentais, como limite de limites do direito à informação, é uma opção legislativa na busca pelo interesse público prevalente.
A Corte Interamericana tem afirmado a necessidade de afastar o sigilo sempre que houver grave ofensa a direitos humanos, o que se encontra externado no art. 45 da Lei Modelo Interamericana, in verbis: “As exceções […] não deverão ser aplicadas em casos de graves violações de direitos humanos ou de delitos contra a humanidade”.
Com efeito, segundo a Corte I.D.H.,
não se trata de negar que o Governo deve seguir sendo depositário dos segredos de Estado, mas de afirmar que, em matéria tão transcendente, sua atuação deve estar submetida aos controles dos outros poderes do Estado ou de um órgão que garanta o respeito ao princípio da divisão de poderes [...].”
Dessa forma, o que resulta incompatível com um Estado de Direito e com uma tutela judicial efetiva “não é que haja segredos, mas sim que tais segredos escapem da lei, isto é, que o poder tenha âmbitos em que não seja responsável por não estarem regulados juridicamente e, portanto, permanecerem à margem de todo sistema de controle”.168 Registra a Corte I.D.H. que:
É essencial que, para garantir o direito à informação, os poderes públicos atuem de boa-fé e realizem diligentemente as ações necessárias para assegurar a efetividade desse direito, especialmente quando se trata de conhecer a verdade do ocorrido, em casos de violações graves de direitos humanos, como os desaparecimentos forçados e a execução extrajudicial do presente caso.169 (grifo nosso).
A Suprema Corte de Justicia do México estabeleceu um limite ao “limite” da reserva (exceção) em averiguações prévias em processos penais. A exceção consiste na impossibilidade de alegar como causa de reserva a uma investigação: “Não se pode alegar o caráter reservado quando a averiguação prévia investigue fatos constitutivos de graves violações a direitos humanos ou delitos contra a humanidade”.170 O direito à informação é superior “frente aos interesses que pretendem limitá-lo, assim como sua operatividade por regra geral frente às limitações que excepcionalmente se estabeleçam na lei”.171
Nessa linha, a de que as graves violações a direitos humanos fundamentais e a delitos contra a humanidade afastam qualquer exceção ao acesso à informação, são exemplos a lei de El Salvador172 e a do México173. Deve ser registrado, porém, que variadas leis têm sido imprecisas sobre o assunto, na medida em que se referem genericamente a violações a direitos fundamentais ou a direitos humanos, e não apenas a “graves” violações, o que, na prática, traz insegurança na aplicação da regra, a exemplo da legislação do Brasil174, Colômbia175, Equador176, Guatemala177, Peru178, República Dominicana179 e Uruguai180.
5.2.3. Divulgação parcial
A divulgação parcial, como limite do limite ao acesso à informação, evita manter sob sigilo desnecessário parte das informações. Encontra-se prevista expressamente nas leis do Brasil181, Chile182, Colômbia183, El Salvador184, Guatemala185, México186 e Peru187, e na Lei Modelo Interamericana nos termos seguintes:
naquelas circunstâncias em que a totalidade da informação contida em um documento não esteja isenta de divulgação mediante as exceções poderá ser feita uma versão do documento que risque ou cubra somente as partes do documento sujeitas à exceção. A informação não isenta deverá ser entregue ao solicitante e tornada pública.188
5.2.4. Temporalidade dos limites para proteção do interesse público
A temporalidade prevista na referida Lei Modelo Intermaericana,189 intitulada “divulgação histórica”, é também baseada na proporcionalidade e encontra paralelo na Constituição do México, que dispõe que a informação pública “somente poderá ser reservada temporariamente por razões de interesse público e segurança nacional, nos termos que fixem as leis”.190 (grifo nosso).
No mesmo diapasão, estão as leis nacionais do Brasil191, Chile192, Colômbia193, El Salvador194, Guatemala195, Honduras196, México197, Nicarágua198, Panamá199, Peru200, República Dominicana201 e Uruguai202.
5.2.5. Limites dos limites para proteção do direito à privacidade
A Lei Modelo Interamericana afasta a proteção à privacidade se o interessado consente com a divulgação da informação.203 No mesmo sentido, estão as leis do México204, Colômbia205, Guatemala206 e República Dominicana207. No Brasil, o consentimento prévio do interessado está previsto em lei,208 que também presume tal consentimento quando a informação for necessária ao tratamento médico do próprio interessado.209
A exemplo do disposto naquela Lei Modelo, não é o caso de proteger a privacidade se “ficar claro que a informação foi entregue à autoridade pública como parte da informação que deve estar sujeita ao regime de publicidade”.210 Previsão semelhante encontra-se nas leis da Colômbia211 e do México212, país no qual ainda se admite a publicidade “por razões de segurança nacional e saúde pública ou quando, para proteger os direitos de terceiros, se exija sua publicação” 213, desde que comprovada pela autoridade214.
Também segundo a Lei Modelo Interamericana, o direito à privacidade é afastado “quando tenham transcorrido mais de [20] anos desde a morte do indivíduo em questão”,215 regra que, entretanto, não tem paralelo nas leis nacionais latino-americanas, exceto quanto ao disposto na lei brasileira, que admite a divulgação de informação pessoal após o lapso de [100] anos da data da produção do documento correspondente.216
5.2.6. Informações inerentes a funções exercidas por funcionários públicos
Conforme a Lei Modelo Interamericana, a privacidade não é invocável para manter sob sigilo informações sobre funcionários públicos que tenham relação com o exercício de suas funções públicas.217
A propósito, a divulgação proativa da remuneração de funcionários públicos, como preconizado pela Lei Modelo218 e nas leis de Honduras219, El Salvador220, Nicarágua221 e México 222, tem suscitado debates nos tribunais latino-americanos acerca do limite à proteção da privacidade como limite ao acesso à informação.
A Corte Suprema da Nação argentina decidiu que:
Não se pode admitir a negativa fundada na necessidade de resguardar a privacidade dos beneficiários já que essa mera referência, quando não se vincula com dados pessoais sensíveis cuja divulgação está vedada, desatende ao interesse público que constitui o aspecto fundamental da solicitação de informação efetuada que, vale reiterar, não parece dirigida a satisfazer a curiosidade a respeito da vida privada de quem os recebem, mas a controlar eficazmente o modo pelo qual os funcionários executam uma política social.223
Em consonância com a decisão da Corte argentina, o Supremo Tribunal brasileiro entendeu que:
as verbas indenizatórias para exercício da atividade parlamentar têm natureza pública, não havendo razões de segurança ou de intimidade que justifiquem genericamente seu caráter sigiloso.224 Entretanto, a possibilidade de negar a divulgação da remuneração de funcionários públicos na Internet, sob o fundamento de que deve ser preservada a privacidade e intimidade individual, está pendente de solução no Supremo Tribunal Federal.225
Contrariamente à limitação do acesso à informação acerca de funcionário, no Paraguai, a Corte Suprema de Justicia determinou que a folha de pagamento dos funcionários públicos com suas respectivas remunerações constitui informação pública, a qual qualquer cidadão pode acessar em razão de se tratar de um direito humano fundamental, e não se pode alegar o direito à intimidade para impossibilitar o acesso devido a tais dados patrimoniais em uma fonte pública de informação.226
O Comitê de Transparência da Suprema Corte de Justicia do México afirma que
são públicos os dados remuneratórios acerca dos funcionários públicos, ainda que haja risco de afetar a vida ou a segurança deles. O artigo 13 IV da Ley Federal de Transparencia y Acceso a la Información Pública Gubernamental estabelece que se deve classificar como informação confidencial aquela que esteja em expedientes administrativos cuja difusão possa pôr em risco a vida, a segurança ou a saúde de qualquer pessoa. Porém, tal disposição não é aplicável às remunerações ordinárias e extraordinárias dos servidores públicos [com fundamento no artigo 7º daquela mesma lei]. Todo rendimento dos servidores públicos pelo desempenho das atividades próprias de seus cargos é informação pública, porque são despesas realizadas por um órgão estatal e pagas com as contribuições dos governados.227 (tradução nossa)
Em vez disso, na Venezuela, sobre as remunerações dos funcionários públicos, é entendimento do Tribunal Supremo de Justicia que tal informação:
[...] Está assinalada de maneira global nas rubricas orçamentárias que são incluídas anualmente na Ley de Presupuesto, onde são indicados os montantes conferidos a cada ente ou órgão da Administração Pública para as remunerações de pessoal ou nos Planos de Cargos e Salários.
Nesse caso, “não se distingue a qual funcionário pertence a remuneração” porque essa “informação pertence ao âmbito íntimo de cada individuo”. E, no caso concreto, em que o requerente solicitou informação sobre o salário base e outras remunerações do pessoal da Contraloría General de la República, incluindo sua máxima hierarquia, rejeitou-se a petição porque, ao juízo do máximo tribunal, o solicitante não demonstrou “como a informação solicitada seria de utilidade para a participação cidadã em prol da transparência da gestão pública”, pelo que “não parece proporcional a magnitude da informação solicitada em prol da transparência da gestão fiscal, nem sequer as ações concretas para as quais se utilizaría a informação solicitada”.228
5.2.7. Fatos, análises de fatos, informações técnicas e estatísticas
Na Lei Modelo Intermaericana, no que diz respeito a “fatos, análises de fatos, informações técnicas e estatísticas”, afasta-se o segredo de “futura provisão livre e franca de assessoramento das autoridades públicas e entre elas”, “elaboração ou desenvolvimento efetivo de políticas públicas” e “exames e auditorias, bem como processos de exame e de auditoria”.229
Não há um limite equivalente ao interesse público, no direito brasileiro, apenas quanto à proteção da privacidade, sendo presumido o consentimento do interessado na divulgação de uma informação sua que seja necessária à “realização de estatísticas e pesquisas científicas de evidente interesse público ou geral, previstos em lei, sendo vedada a identificação da pessoa a que as informações se referirem”.230 O mesmo se passa em El Salvador231 e na Guatemala232.
Ao contrário, para proteção ao interesse público, no Brasil, são mantidas sob sigilo informações obtidas em pesquisas científicas sempre que necessário à “segurança da sociedade e do Estado”.233 Há uma resolução análoga na República Dominicana234.
5.2.8. Política pública aprovada e exame ou auditoria concluídos
Caso a política pública tenha sido aprovada e o exame ou aditoria concluídos, segundo a Lei Modelo Interamericana, não há necessidade de manter o sigilo do conteúdo dos respectivos procedimentos.235 No Chile, admite-se a divulgação dos procedimentos de normas editadas236, ocorrendo o mesmo na República Dominicana237, Peru238 e Nicarágua239.
6. GARANTIAS DE PROTEÇÃO DO DIREITO À INFORMAÇÃO
As garantias para proteção de um direito fundamental podem compreender:240 i) intepretação conforme a Constituição; ii) reconhecimento de direitos subjetivos (direitos de proteção: direito de petição; direito a um recurso jurisdicional justo - judicial e extrajudicial); iii) garantias institucionais (autoridades qualificadas, independentes e imparciais); iv) políticas públicas, incluindo-se deveres de atuação de ofício das autoridades e medidas punitivas contra aqueles que obstruem o exercício dos direitos fundamentais.
6.1. Princípio da máxima divulgação
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos observa que:
Para garantir o exercício pleno do direito de acesso à informação, a gestão estatal deve reger-se pelos princípios da máxima divulgação - em virtude do qual a transparência e o acesso à informação devem ser a regra geral, sujeita a limitadas exceções- e boa-fé. À luz desses princípios e do disposto no art. 13.2 da Convenção Americana, o direito de acesso à informação somente pode ser limitado cumprindo-se com os requisitos de excepcionalidade das restrições e sua consagração legal, dos objetivos legítimos, da necessidade e da proporcionalidade.241
Consta da exposição de motivos da Lei Modelo Interamericana que “o direito de acesso à informação se baseia no princípio da máxima divulgação da informação” e do seu art. 8 que “toda pessoa encarregada da interpretação desta Lei, ou de qualquer outra legislação ou instrumento normativo que possa afetar o direito à informação, deverá adotar a interpretação razoável que garanta a maior efetividade do direito à informação”.
Com efeito, para a Corte Interamericana, em uma sociedade democrática, é indispensável que o Estado se mova pelo princípio da máxima divulgação, que estabelece a presunção de que toda informação é acessível e sujeito a um sistema restrito de exceções.242
Portanto, ante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, o princípio da máxima divulgação compreende a presunção de que as informações são públicas e que o dever de interpretar normas deve estar em conformidade com essa presunção. A Lei Modelo dispõe, ainda, que a admissão de limitações ao direito à informação depende de sua proporcionalidade e do respeito à lei prévia.
Conforme a Constituição do México, “na interpretação deste direito (à informação) deverá prevalecer o principio da máxima publicidade”243. Também se referem expressamente ao princípio da máxima publicidade as leis de El Salvador244, Chile245, Colômbia246, Guatemala247 e as do próprio México248.
Na Costa Rica, a Sala Constitucional da Corte Suprema de Justiça, em 2005, utilizou o princípio da máxima divulgação para fundamentar suas decisões, indicando que:
No marco do Estado Social e Democrático de Direito, todas e cada uma das entidades e dos órgãos públicos que compõem a administração devem se sujeitar aos princípios constitucionais implícitos de transparência e publicidade, que devem ser a regra de toda a atuação ou função administrativa [...]249
Os tribunais da República Dominicana, em precedentes de 2007, salientaram a transcendência desse princípio, da seguinte forma:
É preciso esclarecer que os Estados democráticos devem ser regidos pelos princípios de publicidade e transparência em suas gestões públicas, para que assim as pessoas possam exercer seu controle democrático, que se reverte em uma legitimação das atuações daqueles que lidam com a coisa pública.250
6.2. Direito à informação como direito universal
O caráter universal do direito à informação está ressaltado na Lei Modelo Interamericana sobre Acesso à Informação,251 que prevê a possibilidade de um requerimento anônimo ou de um requerimento sem justificativa, em consoância com o entendimento da Corte Interamericana de que “o controle social que se busca com o acesso à informação sob controle do Estado é motivo suficiente para atender a um requerimento de informação, sem que se exija do requerente uma afetação direta ou um intresse específico”.252
O mesmo se passa com a Constituição do Peru, em que “todos têm o direito de solicitar sem expressar uma causa à informação necessária”,253 com a Constiuição do México, em que “toda pessoa, sem necessidade de demonstrar algum interesse ou justificar sua utilização”254, e com a legislação do Brasil255, Colômbia256, El Salvador257, Guatemala258, México259, Nicarágua260, Panamá261, Paraguai262, Peru263 e Uruguai264.
Acerca da universalidade do direito à informação, a Corte Constitucional da República da Colômbia estabeleceu sobre sua titularidade, alcance e conteúdo que:
É titular do direito de acessar a informação pública toda pessoa, sem exigir nenhuma qualificação ou interesse particular para que se entenda que tem direito a solicitar e receber tal informação em conformidade com as regras que estabelecem a Constituição e o projeto de lei. Essa disposição se ajusta aos parâmetros constitucionais do direito de petição, de informação e do livre acesso aos documentos públicos, aos princípios da função pública que consagram os artigos 20, 23, 74 e 209 da Carta. 265
A Corte Suprema de Justiça do Panamá decidiu que o Ministério de Desenvolvimento Agropecuário havia obstado o acesso à informação ao solicitar a demostração de interesse do peticionário:
não tendo caráter confidencial ou de acesso restrito, o peticionário se encontrava plenamente legitimado para solicitar [a informação], pelo que a exigência de legitimidade por parte da autoridade demandada não era necessária para o fornecimento das cópias. 266
Em sentido oposto, na Venezuela, pela interpretação que a Sala Constitucional deu ao alcance desse direito, não seria possível apresentar uma soliciação anônima nem injustificada, pois sua jurisprudência estabeleceu requisitos para o exercício daquele direito da seguinte maneira:
Com caráter vinculante, a partir da publicação desta decisão, na ausência de lei expressa e para salvaguardar os limites do exercício do direito fundamental à informação, faz-se necessário: i) que o solicitante da informação manifeste expressamente as razões ou os propósitos para os quais requer a informação; e ii) que a magnitude da informação que se solicita seja proporcional à utilização e uso que se pretenda dar à informação solicitada […].267
6.3. Direito de petição e direito a uma decisão fundamentada
6.3.1. Requerimento administrativo
O princípio em questão orienta que:
Devem ser implementadas regras claras, justas, não discriminatórias e simples a respeito do manejo de requerimentos de informação. Essas regras devem incluir prazos claros e razoáveis, a previsão de assistência para aquele que solicite a informação, o acesso gratuito ou de baixo custo e que, neste caso, não exceda as despesas da cópia ou envio da informação. As regras devem dispor que, quando negado o acesso, devem ser fornecidas, em tempo razoável, as razões específicas.268
Na dicção da Lei Modelo Interamericana, o acesso à informação é um direito individual em que o requerente deve ser livre de qualquer discriminação que possa basear-se na natureza da solicitação, e que o atendimento a ela deve ser gratuito ou ter um custo que não exceda o custo de reprodução dos documentos.269
Do art. 20 ao art. 40, a Lei Modelo detalha o procedimento ideal para a solicitação de informações em poder de autoridades administrativas, dos quais vale destacar os seguintes pontos:
A solicitação pode ser por qualquer meio (art. 20); solicitação sujeita a registro e recibo, com nome do funcionário responsável pelo acompanhamento (art. 21); solicitações sem custos (art. 22); atendimento às solicitações pela ordem cronológica de apresentação e sem discriminação (art. 23); da solicitação deve constar informações do interessado e do conteúdo da informação desejada (art. 24.1): apesar de não ser necessário que o interessado se identifique, a entrega das informações se fará pelo meio menos oneroso para a autoridade (art. 24.2); a autoridade de buscar uma intepretação razoável e, se necessário, procurar o interessado para tentar atendê-lo da melhor forma possível (art. 25); dever da autoridade de enviar a solicitação a outra autoridade que for a responsável (art. 26); terceiros interessados devem ser notificados da solicitação (art. 27); o interessado deverá pagar apenas o custo pela reprodução do documento ou informação (art. 28); as autoridades devem facilitar o acesso aos documentos originais (art. 29); deve ser publicado, no site, o nome do funcionário encarregado pelo cumprimento da lei de acesso à informação (art. 30); o funcionário responsável deve também ser ouvidor de reclamações contra o descumprimento da lei de acesso à informação (art. 31); a autoridade deve proceder à busca dos documentos tão logo receba a solicitação (art. 32); deve haver um sistema de manutenção de documentos (art. 33); promoção de esforços para encontrar documentos extraviados (art. 34); prazo máximo de 20 dias para responder a uma solicitação (art. 35); prorrogações do prazo para resposta somente em caráter excpecional (art. 36); existência de terceiros interessados não afasta o dever de atender ao parazo (art. 37); se o custo da solicitação for muito alto, deve a autoridade comunicar ao interessado, que poderá reduzir o alcance da solicitação (art. 38); não será atendida a informação na forma solicitada apenas se houver risco de danificar o documento, ofensa a direitos autoriais, ou sigilo de parte do documento (art. 39); dever de fundamentar a decisão denegatória do acesso à informação (art. 40).
Tais procedimentos podem ser encontrados, de modo similar, nas leis do Brasil270, Chile271, Colômbia272, El Salvador273, Equador274, Guatemala275, Honduras276, México277, Nicarágua278, Panamá279, Paraguai280, Peru281, República Dominicana282 e Uruguai283.
6.3.2. Demonstração e comprovação dos pressupostos dos limites
Segundo a Corte Interamericana, compete ao Estado afastar a presunção do dever de informação decorrente do princípio da máxima divulgação, e demonstrar e comprovar os pressupostos das exceções ao acesso à informação.284
No caso Gomes Lund e outros v. Brasil (Guerrilha do Araguaia), a Corte Interamericana decidiu que o Estado: “[…] deve fundamentar a negativa de prestar informação, demonstrando que adotou todas as medidas a seu alcance para comprovar que, efetivamente, a informação solicitada não existia […]”.285
O princípio elaborado pelo Comitê Jurídico de que o “ônus da prova para justificar qualquer negativa de acesso à informação deve recair sobre o órgão ao qual a informação foi solicitada”286 está regulamentado pela Lei Modelo Interamericana nos seguintes termos:
O ônus da prova deverá caber à autoridade pública a fim de demonstrar que a informação solicitada está sujeita a uma das exceções. Em particular, a autoridade deverá estabelecer: (i) que a exceção é legítima e estritamente necessária numa sociedade democrática com base nos padrões e jurisprudência do Sistema Interamericano; (ii) que a divulgação da informação poderia causar um dano substancial a um interesse protegido por esta Lei; (iii) que a probabilidade e o grau desse dano são superiores ao interesse público na divulgação da informação.287
Esse princípio está consagrado nas leis da Nicarágua288, Guatemala289, Colômbia290, México291, Panamá292 e Uruguai293, valendo destacar que a Corte Suprema de Justicia do Panamá assinalou que:
As instituições do Estado que neguem a outorga de uma informação por considerá-la de caráter confidencial ou de acesso restrito deverão fazê-lo através de resolução motivada, estabelecendo as razões em que fundamentam a negativa, assim como sustentá-las na Lei.294 (tradução nossa)
No mesmo sentido, o Tribunal Constitucional do Chile:
em geral, todos os documentos são públicos, exceto se estiver comprometido com o direito das pessoas, a segurança na Nação ou o devido funcionamento do serviço, porém não está ao arbítrio do funcionário público negar a informação. Se este a nega, deve fundamentar sua negativa em alguma destas causas e, se o requerente não concordar, deve ser previsto um procedimento simples e célere para que o juiz resolva. 295 (tradução nossa)
A Suprema Corte canadense segue o mesmo entendimento, o de que deve haver fundamentação e prova referentes às causas que levam à negativa do acesso à informação:
a decisão também forneceu um lembrete de que os julgadores não podem simplesmente exercer o seu poder discricionário de recusar a divulgação de informações sem fornecer razões a favor de suas decisões ou sem considerar partes de informações que podem ser divulgadas.296 (tradução nossa)
A propósito, na decisão conhecida como “os papéis do Pentágono”, a Suprema Corte dos EUA afirmou que, se o governo deseja impedir determinada publicação com base no interesse nacional, deve apresentar os motivos que sustentam sua intenção,297 e que o governo precisa atender às exigências de prova de que os documentos reservados podem trazer um perigo real para o interesse nacional298.
6.3.3. Efeitos da omissão administrativa
As leis do Chile299, El Salvador300, Equador301, Paraguai302 e República Dominicana303 equiparam os efeitos da omissão administrativa em responder ao pedido de informações a uma decisão denegatória. É essa a orientação, fundada no princípio da duração razoável do processo, que foi consagrada pelo Código Modelo de Processos Administrativos - Judicial e Extrajudicial - para Ibero-América.304
Diferentemente, a Corte Interamericana entende que, da referida omissão, extrai-se um efeito positivo,305 isto é, o reconhecimento do dever de prestar a informação.306 Também, nesse sentido, situam-se as leis da Guatemala307, Nicarágua308, Uruguai309, e a jurisprudência administrativa no México.310
No Uruguai, por exemplo, a autoridade judicial observa que um dos efeitos de não responder o requerimento de informação do particular é o surgimento da obrigação de entregar a informação solicitada ao tornar procedente o silêncio administrativo positivo: “diz a norma [art. 18 da Lei 18.381] que o interessado ‘poderá cessar’ ”, o que, em conjunto com o parágrafo mencionado (silêncio positivo), leva a concluir que a ausência de resolução expressa, diferente do consignado na Constituição da República em relação à petição administrativa comum, supõe que se acessa - não se denega - a petição. 311 A autoridade conclui que “o ordenamento jurídico faz prevalecer o direito à informação em face da morosidade da Administração em se pronunciar”. Isso em decorrência da aplicação de “uma espécie de regra de admissão similar à estabelecida na lei processual quando não houver efetiva contradição”. 312
Entretanto, essa perspectiva da Corte Interamericana, assim como a de algumas leis nacionais, em prol da divulgação (princípio da máxima divulgação), deve ser compatibilizada com os limites eventualmente impostos pelo interesse público na preservação do sigilo, de modo que o reconhecimento do dever de prestação da informação pela inércia das autoridades seja decorrência de uma presunção relativa - e não absoluta - da procedência dos argumentos do interessado.
6.4. Direito de recurso extrajudicial e judicial
Conforme o Comitê Jurídico,
todo indivíduo deve ter o direito de recorrer de qualquer negativa ou obstrução de acesso à informação perante uma instância administrativa. Também deve existir o direito de apelar das decisões desse órgão administrativo ante os tribunais judiciais.313
A Lei Modelo Interamericana prevê três meios distintos ao alcance do indivíduo para proteção do direito à informação: (i) apelação interna ou pedido de reconsideração em face da autoridade que negou o direito à informação, como medida prévia facultativa, aos demais meios de impugnação; (ii) apelação externa em face de outro órgão que não coincida com aquele que negou o direito à informação, como medida prévia e obrigatória à revisão judicial; (iii) revisão judicial.314
Da mesma forma, prescrevem as leis nacionais latino-americanas sobre acesso à informação; porém, de modo específico, apenas sobre as apelações interna e externa (na dicção da Lei Modelo Interamericana), isto é, sobre os processos administrativos (extrajudiciais) de controle interno e controle externo: Brasil315, Chile316, Colômbia317, El Salvador318, Equador319, Guatemala320, Honduras321, México322, Nicarágua323, Paraguai324, Peru325, República Dominicana326 e Uruguai327.
A “revisão judicial” das decisões administrativas é exercida predominantemente por tribunais de competência genérica na América Latina, onde apenas a Colômbia, Guatemala, República Dominicana, Uruguai e Venezuela detêm uma jurisdição especializada em direito administrativo. Com exceção do Brasil, que se vale de um Código de Processo Civil328, os demais países latino-americanos, no que concerne à legislação processual judicial, sujeitam-se a uma legislação processual específica de direito administrativo, aplicável subsidiariamente às revisões judiciais das decisões que negam o acesso à informação pública.
6.5. Autoridades independentes e imparciais: extrajudiciais e judiciais
Uma instituição de fundamental importância que a Lei Modelo Intermaericana consagrou - acompanhada somente por uma minoria dos Estados - foi a “Comissão de Informação” como um órgão extrajudicial autônomo e independente, destinado à promoção da efetivação do acesso à informação oficial, normativa e executiva, incluindo a função jurisdicional [extrajudicial] para decidir sobre impugnações contra denegações de pedidos de acesso à informação.329
De modo semelhante, prescreve a Constituição do México que:
Serão estabelecidos mecanismos de acesso à informação e procedimentos de revisão céleres que se submeterão a órgãos autônomos especializados e imparciais estabelecidos nesta Constituição.330
Tobel, já em 1999, nos seus “Princípios”, propunha a criação de um órgão administrativo independente para julgar os recursos contra a denegação dos pedidos de informação:
Em todos os casos, a lei deve prever um direito individual de recurso para um órgão administrativo independente para lidar com uma recusa por parte de um órgão público de divulgar informações. Este pode ser um órgão já existente, como um Ombudsman ou uma Comissão de Direitos Humanos ou outro especialmente criado para este propósito.331
Apesar de incipiente no cenário mundial, essa tem sido a tendência: a criação de órgãos extrajudiciais independentes sobre acesso à informação que, sem prejuízo dos recursos judiciais, são considerados peça chave no direito de acesso à informação.332
Ao lado do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, vale citar o Código Modelo sobre Acesso à Informação para a África, de 2013, elaborado pela Comissão Africana de Direitos Humanos e Pessoais, o qual prevê autoridades independentes para conduzir recursos sobre acesso à informação.333 Também são exemplos de órgãos extrajudiciais e independentes para o controle do acesso à informação: The Commissioner, na Sérvia;334The Commissioner for Access to Public Information, na Eslovênia;335 o Independent Information Commissioner, na Libéria;336The Central Information Commission, na Índia;337The Information Commissioner, na Antígua e Barbuda;338 a Commission for Protection of the Right to Free Access to Information of Public Character, na Macedônia;339 e a Authorized Agency, no Azerbaidjão340.
Na América Latina, existem quatro países que adotam órgãos de controle que se inclinam para uma independência efetiva assegurada por prerrogativas previstas em lei: o Chile, com o Conselho de Transparência341; El Salvador, com o Instituto de Acesso à Informação Pública342; Honduras, com o Instituto de Comissários343; e o México, com o Instituto e os Organismos Garantes344.
Essa tímida ressonância, no território latino-americano, dos órgãos de controle do acesso à informação dotados de prerrogativas para atuar com independência345 é esperada e decorre do fato de a cultura jurídica europeia-continental (independência como atributo exclusivo de uma jurisdição final) estar enraizada no direito administrativo latino-americano e ser incompatível com o sistema dos quasi-judicial administrative bodies ou administrative tribunals, conduzindo a um close judicial review, típicos de um direito administrativo vinculado ao common law. 346
A propósito, não se deve olvidar que países como Austrália e Canadá, vinculados ao common law, são os precursores do direito de acesso à informação, com experiência superior a 30 anos.347
Na Europa atual, vale citar a Directiva 2003/4/CE, que detém disposições que preveem um recurso extrajudicial perante uma autoridade independente e, adicionalmente, um recurso em face de um juiz ou de outra autoridade independente:
1. Os Estados-Membros devem garantir que qualquer requerente [...] tenha acesso a um processo pelo qual os atos ou omissões da autoridade pública em causa possam ser reconsiderados por essa ou outra autoridade pública ou revistos administrativamente por um organismo independente e imparcial estabelecido por lei. [...] 2. Além do recurso previsto no n. 1, os Estados-Membros devem garantir que o requerente tenha direito a um recurso [...], junto de um tribunal ou de outro organismo independente e imparcial estabelecido por lei, cujas decisões possam ser definitivas. [...].348 (grifo nosso).
6.6. Divulgação proativa
Na opinião do Comitê Jurídico Interamericano,
os órgãos públicos devem difundir informação sobre suas funções e atividades - incluindo sua política, oportunidades de consultas, atividades que afetam o público, orçamentos, subsídios, benefícios e contratos - de forma rotineira e proativa, mesmo na ausência de um pedido específico, e de maneira que assegure que a informação seja acessível e compreensível.349
Com extensão análoga, quanto ao dever de difusão proativa, dispõem a legislação do Brasil350, Chile351, Colômbia352, El Salvador353, Equador354, Guatemala355, Honduras356, México357, Nicarágua358, Panamá359, Paraguai360, Peru361, República Dominicana362 e Uruguai363.
Do Capítulo II da Lei Modelo Interamericana, entre os arts. 9 e 14, consta um detalhamento do procedimento e das informações que devem ser disseminadas de modo proativo pelas autoridades, incluindo a qualificação e remuneração dos altos funcionários,364 e as políticas públicas e a advertência de que “ninguém poderá sofrer prejuízo algum devido à aplicação de uma política pública que não tenha sido divulgada”.365
A respeito da divulgação de políticas públicas, encontra-se em discussão, no Supremo Tribunal Federal brasileiro, um recurso contra uma decisão judicial que negou o acesso a informações e documentos sobre uma gestão municipal, sob o argumento de que haveria ingerência indevida e ofensa à separação de poderes.366
Na doutrina de Sommermann, a transparência entre a Administração Pública e os indivíduos, na formação de planos e programas, objetiva compensar o déficit democrático de que padece o procedimento administrativo, em contraste com o procedimento legislativo, e equilibrar os problemas que o controle judicial experimenta nos casos de ampla discricionariedade administrativa, mesmo porque a transparência em si constitui uma forma de controle.367
6.7. Medidas punitivas contra a obstrução do direito à informação
O princípio segundo o qual “toda pessoa que intencionalmente negue ou obstrua o acesso à informação violando as regras que garantam esse direito deve estar sujeita a sanção”368 está consagrado na Lei Modelo Interamericana, que se refere a sanções administrativas e penais, considerando crime a adulteração ou destruição de documentos que tenham sido objetivo de pedido de informação, e ilício administrativo as seguintes condutas: (i) obstruir o acesso a qualquer documento de forma contrária ao disposto na Lei Modelo; (ii) impedir que uma autoridade pública cumpra suas obrigações de acordo com a Lei Modelo; (iii) interferir no trabalho da Comissão de Informação; (iv) não cumprir as disposições da Lei Modelo; (v) omitir a criação de um documento em descumprimento de políticas ou normas aplicáveis ou com a intenção de impedir o acesso à informação; e (vi) destruir documentos sem autorização.369
A propósito, a Constituição do México adverte que “a inobservância às disposições em matéria de acesso à informação pública será sancionada nos termos da lei”.370
Entre as leis que preveem sanções administrativas estão as do Brasil371, El Salvador372, Equador373, Guatemala374, México375, Nicarágua376, Paraguai377 e Uruguai378; entre as leis que preveem sanções penais, as da Colômbia379, Guatemala380, Honduras381, Panamá382, Peru383 e República Dominicana384. A lei geral do Panamá também prevê a responsabilidade civil do funcionário público que causar prejuízo aos interessados385.
Em outra perspectiva, Tobel sustenta que:
Os funcionários devem ser protegidos de sanções quando tiverem, razoavelmente e de boa-fé, divulgado informações de acordo com um requerimento de liberdade de informação, mesmo se, posteriormente, for verificado que a informação não estava sujeita à divulgação. Caso contrário, a cultura do segredo que envolve muitos órgãos do governo será mantida, vez que os funcionários podem ser excessivamente cautelosos sobre requerimentos de informação, para evitar qualquer risco pessoal.386
O autor também chega a elevar a princípio a noção de que “indivíduos que divulgam informação sobre atuações indevidas - denunciantes - devem ser protegidos”.387
6.8. Políticas públicas referentes ao acesso à informação
A definição das políticas públicas referentes à implementação do direito à informação está no âmbito de discricionariedade política do legislador e das autoridades que, entretanto, não têm autorização para esvaziar o conteúdo da proteção daquele direito fundamental.
Conforme o Comitê Jurídico Intermaericano,
devem ser adotadas medidas para promover, implementar e assegurar o direito de acesso à informação, incluindo a criação e manutenção de arquivos públicos de modo sério e profissional, a capacitação e treinamento de funcionários públicos, a implementação de programas para salientar a importância desse direito entre as pessoas, o melhoramento dos sistemas de administração e manejo de informação, e a divulgação das medidas tomadas pelos órgãos públicos para implementar o direito de acesso à informação, inclusive em relação ao processamento de requerimentos de informação.388
A Lei Modelo Interamericana prescreve que o legislador deve monitorar a aplicação da lei de acesso à informação, de modo a atualizá-la sempre que necessário, e também se refere ao Ministério da Educação quanto à criação de cursos sobre direito à informação nas escolas de ensino médio e fundamental, e a órgãos de execução, para capacitação dos funcionários públicos responsáveis pela aplicação da lei de acesso à informação.389
Em suma, é dever dos Estados ajustar as normas jurídicas às exigências do direito à informação, promover uma cultura de acesso à informação390, e adotar medidas para implementação adequada do acesso à informação.
No que diz respeito especificamente a medidas para implementação do direito de acesso à informação, segundo a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos,391
Em primeiro lugar, o Estado deve elaborar um plano que lhe permita satisfazer, de modo real e efetivo, o direito de acesso à informação em um período razoável de tempo. Essa obrigação implica o dever de destinar o orçamento necessário para satisfazer, de modo progressivo, às demandas que o direito de acesso à informação gerará.
Em segundo lugar, o Estado deve adotar normas, políticas e práticas que permitam conservar e administrar adequadamente a informação. Nesse sentido, a Declaração Conjunta de 2004 dos Relatores para a Liberdade de Expressão da ONU, da OEA e da OSCE explica que ás autoridades públicas devem ter a obrigação de cumprir padrões mínimos de gestão de arquivos, e que devem-se estabelecer sistemas para promover padrões mais elevados com o passar do tempo.392
Em terceiro lugar, o Estado deve adotar uma política sistemática de treinamento e capacitação de funcionários públicos destinados a satisfazer, em uma cada uma de suas facetas, o direito de acesso à informação pública, bem como á capacitação dos órgãos, autoridades e agentes públicos encarregados de atender as solicitações de acesso à informação sob o controle do Estado sobre a normativa que rege esse direito. Do mesmo modo, essa obrigação implica a capacitação de funcionários públicos em relação às leis e políticas sobre a criação e custódia de arquivos relativos às informações que o Estado tem a obrigação de resguardar, administrar e produzir ou coletar. Nesse sentido, a Corte Interamericana se referiu à obrigação do Estado de proceder à capacitação dos órgãos, autoridades e agentes públicos encarregados de atender as solicitações de acesso às informações sob o controle do Estado sobre a normativa que rege esse direito393.” (grifo nosso)
A propósito, conforme a Corte Intermanericana, é considerada uma atitude vulneratória do direito de acesso o despreparo dos funcionários públicos para lidar com o tema, em especial para incoporar os parâmetros convenciais a respeito do regime de exeções. Os Estados, portanto, devem promover, em tempo razoável, a capacitação dos órgãos, autoridades e agentes públicos.394
Deve-se ter em mente que:
Os países que implementaram, com mais sucesso, suas leis geralmente têm adotado uma abordagem abrangente, garantindo que todos no governo tenham, pelo menos, uma compreensão básica da lei e de sua necessidade. Diferentes níveis de pessoal recebem formação com base em suas necessidades, desde uma intensiva e abrangente abordagem a conhecimentos gerais. Como observado pelo Executivo Escocês, a implementação do FOI não deve vir como uma surpresa para os funcionários e gerentes de qualquer organização’.395
As leis do Brasil396, Colômbia397, El Salvador398, Equador399, Guatemala400, Honduras401, México402, Nicarágua403 e Panamá404 dispõem sobre o dever de promover e implementar o acesso à informação. Contudo, a despeito da Lei mexicana mencionar “profissionalismo” como o princípio que norteia os órgãos garantes405, nenhuma delas consagra expressamente uma formação jurídica superior para os funcionários públicos.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A associação do direito à informação a um direito humano fundamental, conforme declarado pelo Comitê Jurídico Interamericano da Organização dos Estados Americanos (OEA), em consonância com a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, encontra-se consolidada nos sistemas jurídicos latino-americanos de origem Ibérica e é chave essencial para os legisladores, autoridades e juízes nacionais implementarem os demais princípios preconizados pela OEA.
Portanto, naqueles países, quando a legislação e os precedentes judiciais se distanciarem pontualmente de alguma das orientações da Lei Modelo Interamericana sobre Acesso à Informação, o foco de discussão será do ponto de vista do direito constitucional nacional. No entanto, duas questões relacionadas ao dever do Estado de garantir proteção ao direito à informação merecem destaque, na medida em que seriam mais facilmente solucionadas na arena política do que no âmbito da jurisdição constitucional.
Primeiro, a falta de formação jurídica das autoridades decisórias na América Latina enfraquece sua capacidade cognitiva e credibilidade necessárias a uma atuação que pondera interesses sob a primazia dos direitos fundamentais e que, frequentemente, precisa contrariar ou suprir a ausência ou insuficiência de regulamentos ou leis sobre acesso à informação, em geral impregnadas de conceitos vagos.
A segunda questão trata das prerrogativas de independência das autoridades administrativas responsáveis pelos recursos contra as decisões que negam o acesso à informação. A proposta da Lei Modelo Interamericana, acompanhada somente por quatro países latino-americanos (Chile, El Salvador, Honduras e México), contém traços das quase-judicial authorities e do close judicial review típicos do direito administrativo vinculado ao common law, com difícil assimilação em uma América Latina de tradições jurídicas de civil law.
Dessa forma, para que o acesso à informação cumpra realmente o seu papel de controle democrático da atuação do poder público - de transcendental importância no atual contexto político-econômico dos Estados latino-americanos - não basta que a compatibilidade entre o direito nacional, os princípios da OEA e a jurisprudência da Corte I.D.H. se limite a declarações de direitos e deveres sobre o acesso à informação. É imperativo que as garantias institucionais do direito à informação sejam revisitadas, assegurando-se qualidade jurídica às funções administrativas primárias (decisão inicial) e certa dose de independência às funções secundárias (decisão em recurso), em especial as que dizem respeito à apreciação de conceitos vagos nas exceções ao direito fundamental de acesso à informação.
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Notas
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