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Descumprimento do art. 229 da Constituição Federal e responsabilidade civil: duas hipóteses de danos morais compensáveis
Breach of art. 229 of the Constitution and civil liability: two hypotheses of non-economic damages
Descumprimento do art. 229 da Constituição Federal e responsabilidade civil: duas hipóteses de danos morais compensáveis
Revista de Investigações Constitucionais, vol. 3, núm. 3, pp. 117-139, 2016
Universidade Federal do Paraná
Recepção: 18 Setembro 2016
Aprovação: 29 Setembro 2016
Resumo: Quando se trata das relações parentais, o direito de família não pode mais restar imune aos efeitos da responsabilidade civil. Com base no expresso teor do art. 229 da Constituição Federal e no princípio da solidariedade familiar, a responsabilidade dos genitores se sobrepõe à eventual liberdade de agir dos pais; calcada no livre planejamento familiar e no melhor interesse da criança e do adolescente, o exercício dos deveres da autoridade parental é comando imperativo, cujo descumprimento - gerador potencial de abandono moral e de alienação parental - deve ser compensado por meio de indenização por dano moral.
Palavras-chave: relações parentais, abandono moral (ou afetivo), alienação parental, dano moral, responsabilidade civil.
Abstract: In the field of parental relations, family law cannot remain immune to the effects of civil liability. Based on the expressed content of article 229 of the Federal Constitution and the principle of family solidarity, parental responsibility overlaps the possible freedom of action of parents; grounded in the free family planning and in the best interest of the child and adolescent, the exercise of the duties of parental authority is imperative command whose failure - if and when generator of “moral abandonment*** of the child or parental alienation syndrome - may be compensated by means of civil liability for non-economic losses.
Keywords: parental relations, child abandonment, parental alienation syndrome, pain and suffering damages, civil liability.
1. A RESPONSABILIDADE CIVIL NAS RELAÇÕES FAMILIARES: OS TERMOS DO PROBLEMA
Quando se alude à noção de família, tem-se em mente uma relação da qual ninguém desejaria abrir mão; trata-se de uma vivência, de um espaço afetivo que todos - idosos, adultos e crianças - aspiram possuir e manter.1 Do ponto de vista da historiografia política, ultrapassada a fase radical do socialismo utópico e a da revolta feminista, o fim da família dita burguesa só é propugnado por raras minorias.2 Não se fala mais em crise ou em morte da família3, expressões relativamente comuns até a década de 1980.
A ideia de família experimenta um momento de esplendor, por assim dizer, tendo-se tornado aspiração comum de vida, diante do desejo generalizado de integrar formas agregadas de relacionamento, baseadas no afeto recíproco, seja em busca de reconhecimento social, seja, mesmo, em prol de benefícios econômicos ou fiscais previstos em lei. Crise houve, mas não investiu contra a família em si; seu alvo, agora se sabe, era o modelo familiar único, absoluto e totalizante representado pelo casamento indissolúvel.
A relação familiar não é mais unitária. Admitem-se, juridicamente, configurações diferenciadas de família. A Constituição, em rol exemplificativo, reconheceu, no art. 226, além da família fundada no casamento, a união estável entre homem e mulher e a família monoparental.4 Estas são evidências de que no Brasil de hoje, diferentemente de outrora, privilegia-se a espontaneidade do afeto sobre estruturas formais, podendo-se entrever, também aqui, a opção do constituinte em favor da igualdade, da solidariedade, da integridade psicofísica e da liberdade também nas chamadas comunidades intermediárias.
Para além dessas hipóteses, em maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal considerou constitucionais as uniões entre pessoas do mesmo sexo.5 O relator, Min. Ayres Britto, votou no sentido de dar interpretação conforme à Constituição “para excluir qualquer significado do artigo 1.723 do Código Civil que impeça o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar”,6 no que foi seguido à unanimidade por seus pares. Argumentou que o artigo 3º, inciso IV, da CF “veda qualquer discriminação em virtude de sexo, raça, cor e que, nesse sentido, ninguém pode ser diminuído ou discriminado em função de sua preferência sexual”, pois “o sexo das pessoas, salvo disposição contrária, não se presta para desigualação jurídica”. Ressaltou, ainda, que o caput do art. 226 dá ênfase constitucional à instituição da família, no seu sentido coloquial de núcleo doméstico, “pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos”.7 E continuou: “Família como figura central ou continente, de que tudo o mais é conteúdo. Imperiosidade da interpretação não reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil. Avanço da Constituição Federal de 1988 no plano dos costumes. Caminhada na direção do pluralismo como categoria sócio-político-cultural. Competência do Supremo Tribunal Federal para manter, interpretativamente, o Texto Magno na posse do seu fundamental atributo da coerência, o que passa pela eliminação de preconceito quanto à orientação sexual das pessoas”. 8
Pietro Perlingieri observa que “o merecimento de tutela da família diz respeito, sobretudo, às relações afetivas que se traduzem em uma comunhão espiritual e de vida”.9 De fato, a família, como é entendida atualmente, baseia-se muito mais na força do afeto do que em puros liames biológicos. Assim, “dano moral” e “direito de família” são expressões que, em princípio, se excluiriam, e cuja combinação esboça quase um paradoxo: a própria lança contra o próprio escudo, na metáfora do velho provérbio chinês. Comum - ao menos a partir da década de 1960 - era somente a circunstância da ação de indenização por dano moral em relação à perda de um membro da família, de um ente querido, isto é, quando alguém causa danos a uma pessoa e a sua família se torna vítima desses danos.10 Outra hipótese bem diferente é a situação aqui abordada, em que tanto a vítima quanto o ofensor fazem parte da mesma família. A responsabilidade civil passou a entrar no seio familiar, reconhecendo danos a serem ressarcidos por maridos às esposas,11 por pais aos filhos, e, eventualmente, até por avós aos netos, e vice-versa, pessoas das quais se espera que se queiram bem e se relacionem com afeto.
2. FAMÍLIA E RESPONSABILIDADE CIVIL NO INÍCIO DO SÉCULO XXI
O modelo de família que se consolidou no Ocidente desde o início do século XX foi aquele concebido pela sociedade burguesa, fundado no casamento, vivido e propagado pela camada social que conduziu a passagem histórica da sociedade agrária à sociedade industrial. Nos últimos trinta anos, porém, e especialmente a partir da promulgação da Lei do Divórcio em 1977, a concepção de família mudou de forma substancial e em aspectos estruturais.12 Cabe ressaltar dois aspectos importantes para o tratamento do tema, quais sejam, a autonomia dos membros da família e a mudança de seu eixo central.
A passagem da família como instituição à família-instrumento,13 isto é, aquela que propicia um ambiente adequado ao desenvolvimento da personalidade de todos e de cada um de seus membros, suscitou, indiscutivelmente, uma individualização e, em consequência, uma maior autonomia dos seus membros.14 A autonomia reforça a instabilidade dos casamentos, e é por ela reforçada - instabilidade decorrente da maior possibilidade de liberdade de escolhas, especialmente no que se refere à estrutura familiar mais conveniente, e da consagração da igualdade de direitos entre os cônjuges.
A disseminação do divórcio,15 na realidade, provocou consequências determinantes para o sistema familiar como um todo, passando o casamento a representar a realização de projetos (meramente) individuais, e não, como antes, um assunto pertencente ao amplo universo dos parentescos de origem. A perda do caráter único da relação mudou a sua qualidade, a sua natureza e o seu significado, “tornando-o menos abrangente e forte nas suas implicações sociológicas”16.
A filiação assumiu, em lugar da conjugalidade, a centralidade institucional na família. A mudança de eixo possibilitou uma renovada coesão da instituição: centrada na filiação, continuaria a família a atribuir os lugares da parentalidade e da ordem genealógica e a garantir a sucessão de gerações. Do ponto de vista jurídico, esta centralidade encontra-se assentada em princípios constitucionais, no art. 227 da Constituição da República, e em princípios internacionais, como na Declaração dos direitos da criança da ONU, de 1989. O princípio do melhor interesse da criança toma tal proporção que Jean Carbonnier observava, há algumas décadas, que ele acabaria por tornar “supérfluos todos os institutos do direito de família”17.
Por seu turno, a responsabilidade civil também mudou. E o seu giro conceitual, como bem sintetizou entre nós Orlando Gomes, foi de 180 graus, passando da atenção exclusiva para com o ato ilícito para a preocupação com a vítima de dano injusto, ou injustificado18. Enquanto, no início do século XX, cabia à própria vítima suportar os prejuízos se não se encontrava um culpado, atualmente, com a objetivação da responsabilidade, com a cláusula geral de responsabilidade pelo risco e com as hipóteses de presunção de culpa, muito mais trivialmente o “ofensor não comprovadamente culpado” arcará com o prejuízo, sendo obrigado a ressarcir. Há um século, o princípio geral da matéria era sintetizado pela expressão “nenhuma responsabilidade sem culpa”; na atualidade, vigora o princípio segundo o qual “a vítima não pode ficar irressarcida”. A mudança foi, pois, também estrutural.
Todavia, as numerosas incertezas e heterogeneidades na matéria, tanto por parte da doutrina quanto da jurisprudência, fazem notar que o instituto da responsabilidade civil - ou o direito dos danos, como também é chamado - não foi ainda estabilizado19, e o seu cenário se torna cada vez mais intrincado. Nos últimos tempos, em movimento que se pode dizer generalizado no país, a responsabilidade civil tem sido considerada uma reação ao dano injusto, não mais dependente do ato ilícito, transformando-se aos poucos em verdadeira fonte de “proteção mínima de direitos fundamentais”20.
Além disso, considerando-se a responsabilidade civil uma reação contra o dano injustificado, ela deixa de ser, como foi no passado, uma forma de punir o “culpado”, e assume o papel principal de realizar a transferência das consequências danosas a um sujeito distinto do que as sofreu - se e quando existir uma razão jurídica que justifique este deslocamento. A este respeito, é preciso não esquecer que a responsabilidade civil tem constituído a disciplina civilista que mais rapidamente realiza a noção de justiça vigente na sociedade21. De fato, suas mudanças, relativamente céleres em virtude do mecanismo flexível de que é dotada, refletem, sempre, as escolhas ético-políticas que estão a se estruturar na sociedade em que incide22.
No atual ambiente, é facilmente compreensível a união dos dois termos antes aludidos: “dano moral” e “direito de família”. A tendência individualista, já referida, potencializa a autonomia privada nas relações conjugais, facilitando que se venha a reavaliar, como consequência dessa autonomia, se uma pessoa mantém ou não os seus compromissos de convivência - o que em muito aumenta, evidentemente, o número de separações, de divórcios, de famílias recompostas ou reconstituídas e de novos modelos familiares. Tal autonomia, porém, por outro lado, reduz os fatores que tradicionalmente serviram para inibir a imposição da responsabilidade civil entre familiares23.
3. O CONCEITO DE DANO MORAL COMO LESÃO À DIGNIDADE HUMANA24
O mecanismo de identificação do dano moral - reputado quase um procedimento de “dedução lógica” - funciona de maneira pouco clara no Brasil. Sobre o conceito de dano moral, a doutrina e a jurisprudência majoritárias ainda utilizam a noção de René Savatier, o qual, em 1939, afirmou que o “dano moral é todo sofrimento humano que não é causado por uma perda pecuniária”.25 Tal conceito negativo, todavia, não permite que se colha a noção específica, satisfazendo-se a maioria com uma ideia tão ampla a ponto de admitir que o dano moral seria praticamente tudo, isto é, justamente “todo sofrimento humano”. Daí a subsequente especificação do dano moral como gerador dos sentimentos de vergonha, constrangimento, tristeza e humilhação.
As dificuldades de conceituação não estão somente na doutrina, mas também na jurisprudência. Observe-se o conceito de dano moral no entendimento do Supremo Tribunal Federal. Em 1996, no julgamento do Recurso Extraordinário no 172.720, o STF entendeu que o dano moral se distingue da violação a direitos da personalidade, bem como dos efeitos não patrimoniais da lesão. Na hipótese, discutia-se a reparação de dano moral decorrente do extravio de bagagem em transporte aéreo, em que a 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro havia negado a indenização ao argumento de que a “simples sensação de desconforto ou aborrecimento, ocasionada pela perda ou extravio de bagagens, não constitui dano moral, suscetível de ser objeto de reparação civil”.
O STF deu provimento ao recurso para reconhecer a existência de dano moral reparável, que estaria configurado nos sentimentos de “desconforto, constrangimento, aborrecimento e humilhação”, causados pelo extravio de bagagem em viagem ao exterior.26 Na avaliação do Min. Marco Aurélio, “ninguém deveria colocar em dúvida as repercussões negativas do extravio de bagagem, porque são transtornos imensos, acarretando para o viajante os mais diversos sentimentos nefastos”.
Na ocasião, o Min. Francisco Rezek, em seu voto, esclarecendo o conceito de dano moral em conformidade com uma leitura constitucional, uma vez que seu ressarcimento se encontra garantido naquele texto, afirmou: “Penso que o que o constituinte brasileiro qualifica como dano moral é aquele dano que se pode depois neutralizar com uma indenização de índole civil, traduzida em dinheiro, embora a sua própria configuração não seja material. Não é como incendiar-se um objeto ou tomar-se um bem da pessoa. É causar a ela um mal evidente (...).27
“Mal evidente”, definiu o ministro. Foi desta forma teve início a atual (e perniciosa) personificação do dano moral pelo juiz. Basta tratar-se de um “mal evidente” para o espírito da pessoa do magistrado, pura e simplesmente. Daí surgiu a (in)determinação conceitual do dano moral no direito brasileiro, que se expressa pela máxima: “dor, tristeza, sofrimento e humilhação”. Mas a dor, o vexame, a tristeza, a humilhação, o sofrimento serão elementos suficientes para a configuração jurídica do dano moral? Que intensidade deve ter a dor? Quanto deve durar? Como podem a “dor” ou os “sentimentos” ser objetivamente verificados? A “dor e a tristeza” serão avaliadas pessoalmente pelo magistrado? Ora, o ressarcimento, ou a compensação, dos danos morais não pode mais operar, como vem acontecendo, no nível do senso comum.
Sua importância no mundo atual exige que se busque alcançar algum grau de tecnicidade, do ponto de vista da ciência do direito, contribuindo-se assim para construir uma categoria teórica que seja elaborada o suficiente para conter as numerosas especificidades do instituto. A ausência de rigor técnico e de objetividade na concepção da categoria tem gerado prejuízos ao adequado desenvolvimento do instituto da responsabilidade civil, além de perpetrar, quotidianamente, graves injustiças e incertezas aos jurisdicionados.
Tamanha se revela a indefinição em que se encontra o conceito de dano moral que seria mesmo possível nele incluir qualquer coisa, isto é, “todo sofrimento humano”, e, ao mesmo tempo, considerar que “pouco ou nada” seria suficiente para oferecer as estremas do conceito, sob o argumento de que não passam de meros aborrecimentos - comuns ou extraordinários - do dia-a-dia. Séria, porém, é a exigência de proteger eficazmente a pessoa humana e os seus direitos fundamentais, tornando-se necessário, por isso mesmo, que o ressarcimento do dano moral seja tratado com maior seriedade metodológica. O caminho do rigor teórico deve ser trilhado porque, de outra forma, os desvios conduzirão, como ocorre com alguma frequência, a resultados bem piores do que os males que se necessita remediar.
Dadas estas grandes controvérsias na matéria, procurou-se elaborar um conceito de dano moral que, redimensionando o conceito em vigor, tomasse distância, embora não a ignorasse completamente, da ideia de sofrimento íntimo da pessoa.28 Assim, em uma leitura civil-constitucional da responsabilidade civil, concluiu-se que o dano moral é a violação à integridade física e psíquica, à liberdade, à igualdade ou à solidariedade de uma pessoa humana29. Estes princípios, porém, podem entrar em colisão entre si. Neste caso, será preciso, através do exame dos interesses em conflito, ponderar tais princípios em relação ao seu fundamento, isto é, a própria dignidade humana. É o que ocorre com o dano nas relações parentais, no qual se cotejam o princípios da liberdade e o princípio da solidariedade familiar, com ampla vantagem para o segundo: com efeito, no direito de família brasileiro, a parentalidade distingue-se pela ampliação, cada vez maior, das intervenções jurídicas nas relações parentais, com vistas à proteção dos menores.
4. DANOS À INTEGRIDADE PSICOFÍSICA DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NAS HIPÓTESES DE ABANDONO MORAL
A relação entre pais e filhos menores encontra seu fundamento na responsabilidade e, por isso, na solidariedade familiar.30 A relação parental destaca-se pela vulnerabilidade dos filhos menores, bem como pela ampliação, cada vez maior, das intervenções jurídicas nas relações de filiação, com vistas à proteção dos menores. Diante da natureza sui generis do vínculo paterno-filial, seu reconhecimento pelo constituinte brasileiro contribui para uma tutela mais eficaz da criança e do adolescente nas relações de família. Na relação parental, o vínculo de solidariedade familiar é o mais forte que há, e por isso, sua violação, bem como a da integridade psicofísica das crianças e adolescentes, poderá dar azo ao dano moral quando tiver havido abandono moral por parte de genitor biológico e ausência de figura parental substituta.
A “defesa da ordem social a partir da criança”31 diz respeito a uma ideia de parentalidade substancialmente diversa daquela essencialmente burguesa do início do século XX, emoldurada pelo Código Civil de 1916, quando a autoridade parental tinha apenas duas funções: limitar a capacidade negocial do menor no mercado e educá-lo para a convivência em sociedade. Tais funções, como é fácil perceber, eram exercidas tendo-se em vista a lógica patrimonialista então em vigor, limitando-se os cuidados parentais, segundo a previsão legal, à atenção para com os bens dos próprios filhos e à vigilância com relação aos bens de terceiros.
A intervenção marcante do legislador, a partir da Constituição de 1988 e do consequente Estatuto da Criança e do Adolescente, entretanto, transformou este estado de coisas, com reflexos (ainda que muito insuficientes) no Código promulgado em 2002. O poder familiar passou a ser concebido como um poder-dever posto no interesse exclusivo do filho e com a finalidade de satisfazer suas necessidades existenciais, consideradas as mais importantes, conforme prevê a cláusula geral de tutela da dignidade humana (art. 1º, CF). Este também é, não por acaso, o teor do art. 227 da Constituição, ao determinar ser dever da família assegurar, com absoluta prioridade, às crianças e aos adolescentes os direitos à vida, saúde, alimentação, educação, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, respeito, liberdade e convivência familiar e comunitária.
O princípio, conhecido como “doutrina jurídica da proteção integral”, ramifica-se em inúmeros dispositivos legais, constantes das mais diversas leis e regulamentos, todos atribuindo às crianças e aos adolescentes preeminência não apenas na família, mas também no âmbito da sociedade e do Estado. Assim, a guarda dos filhos em caso de divórcio será fixada do modo que atender aos melhores interesses do filho menor - não obstante a preponderância, em tese, da guarda compartilhada -, independentemente de qualquer consideração à imputação de culpa na separação.
A proteção do melhor interesse da criança, sendo princípio, depende sempre da interpretação do juiz (do Estado, portanto), trazendo, pela primeira vez, para a esfera pública a problemática dessas relações. Como os filhos menores não estão em condições de se proteger por si sós, o legislador e o juiz tomam a si o encargo de tutelá-los em face de todos, inclusive dos próprios pais. Trata-se de completa inflexão em relação ao passado. Houve um tempo em que o direito dos pais sobre os filhos era de vida e de morte, passando pelo poder de escravizá-los32 e, até recentemente, de estabelecer sua profissão e, no caso de filha, a escolha de seu cônjuge, em decorrência do temor reverencial dos filhos então costumeiro.
Atualmente, porém, a situação é completamente diversa. A lei cada vez mais garante aos filhos proteção e liberdades, atribuindo aos pais sempre maiores responsabilidades.
Este termo, responsabilidade, é o que melhor define hoje a relação parental do ponto de vista legal. Trata-se, com efeito, de uma relação assimétrica, entre pessoas que estão em posições completamente diferentes, sendo uma delas dotada de particular vulnerabilidade. Além disso, a relação é tendencialmente permanente, sendo custoso e excepcional o seu término: de fato, a perda ou a suspensão do poder familiar só ocorre em casos de risco elevado ou de abuso (Código Civil, arts. 1.637 e 1.638). Assim, como a autoridade parental raramente cessa, a responsabilidade não pode, evidentemente, evanescer-se por simples ato de autonomia.
Em virtude da imprescindibilidade de tutela por parte dos pais e da dependência e vulnerabilidade dos filhos, a solidariedade familiar alcança aqui o seu grau de intensidade máxima. Em caso de abandono moral ou material, são lesados os direitos próprios do status de filho e de menor, cujo respeito, por parte dos genitores, é pressuposto para o sadio e equilibrado crescimento da criança, além de condição para a sua adequada inserção na sociedade. Ou seja, os prejuízos causados são de grande monta.
Novamente, buscando o equilíbrio dos interesses contrapostos, ter-se-ia do lado dos genitores o princípio da liberdade, e da parte dos filhos o princípio da solidariedade familiar. Levando-se em conta a peculiar condição de filho menor e a responsabilidade dos pais na sua criação, educação e seu sustento, seria incabível valorizar a liberdade dos primeiros em detrimento da solidariedade familiar e da própria integridade psíquica da prole. Do contrário, seria a desvalorização do planejamento familiar, que integra em seu conteúdo liberdade e responsabilidade: liberdade para decisão de ter ou não filhos; uma vez optando-se por tê-los, responsabilidade para criá-los de modo a preservar seu crescimento biopsíquico saudável. Assim, verificados, pois, os interesses contrapostos, a solidariedade familiar e a integridade psíquica são princípios que se superpõem, com a força que lhes dá a tutela constitucional, à autonomia dos genitores em relação a comportamento que ignore os interesses dos filhos. Nesta hipótese, a realização do princípio da dignidade humana dá-se a partir da integralização do princípio da solidariedade familiar, que contém, em si, como característica essencial e definidora, a assistência moral dos pais em relação aos filhos menores.
A Constituição e a lei obrigam os genitores a cuidar dos filhos menores. Na ausência deste cuidado, que causa prejuízos necessários à integridade de pessoas vulneráveis que podem comprometer sua “vida de relações”, a quem o legislador constitucional atribui expressamente “prioridade absoluta”, pode haver dano moral a ser reparado. Em outras palavras, para a configuração de dano moral à integridade psíquica do filho menor, é preciso que tenha havido o abandono moral por parte do pai ou da mãe, somado à ausência de uma figura substituta.
De fato, a importância da figura paterna, especialmente depois das conclusões da psicologia moderna, não precisa de mais comprovações. É notória a sua imprescindibilidade - assim como o é a da figura materna - para a adequada estruturação da personalidade da criança. Quanto aos pais, tertius non datur: ou se tem pais ou se tem ausência de pais (isto é, completa ausência de quem exerça tal função). Quando este último caso ocorrer, estará caracterizado um dano moral a ser ressarcido.
Se, porém, alguém assume o papel paternal ou maternal, desempenhando adequadamente suas funções, não haverá dano a ser indenizado, não obstante o comportamento moralmente condenável do genitor biológico. Não se admite caráter punitivo à indenização do dano moral.33 Não se trata, pois, de condenar um pai que abandonou seu filho (sendo este dano, em princípio, meramente hipotético), mas de ressarcir o (concreto) dano sofrido pelo filho quando, abandonado pelo genitor biológico, não pôde contar nem com seu pai biológico, nem com qualquer figura substituta. Configura-se, então, aí, o que se alude como uma “ausência” (isto é, ausência de uma figura paterna ou materna), a qual configura, sem dúvida, dano moral indenizável.
Uma das primeiras sentenças favoráveis ao ressarcimento do filho nestes casos foi emanada pela jurisprudência italiana em 200034 e a nossa jurisprudência também começou, há alguns anos, a decidir neste sentido.35 Cabe referir, ainda, o importante acórdão do Tribunal de Alçada de Minas Gerais, um verdadeiro divisor de águas na matéria, cuja ementa afirma: “(...) a dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável, com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana”.36
O Superior Tribunal de Justiça, todavia, num primeiro momento, examinando a questão, entendeu, por maioria, pelo não cabimento de indenização por dano moral. O julgamento foi da Quarta Turma e deu provimento ao REsp 757.411, interposto para modificar a decisão condenatória da mencionada 7ª Câmara Cível do Tribunal de Alçada de Minas Gerais. A Turma deu provimento ao recurso do pai, considerando que a lei apenas prevê, como punição para a hipótese, a perda do poder familiar. O Min. Relator Fernando Gonçalves observou que “a determinação da perda do poder familiar, a mais grave pena civil a ser imputada a um pai, já se encarrega da função punitiva e, principalmente, dissuasória, mostrando eficientemente aos indivíduos que o Direito e a sociedade não se compadecem com a conduta do abandono, com o que cai por terra a justificativa mais pungente dos que defendem a indenização por dano moral”. Com o relator, entendeu-se que, por maior que seja o sofrimento do filho, o direito de família tem princípios próprios, que não podem ser contaminados por outros, com significações de ordem material, patrimonial. A propósito, assim se manifestou o Min. Jorge Scartezzini: “O que se questiona aqui é a ausência de amor. Na verdade, a ação poderia também ser do pai, constrangido pela acusação de abandono (...). É uma busca de dinheiro indevida”.37
Nessa linha de argumentação, adotada pela maioria, considera-se que, como o ordenamento jurídico já teria previsto uma “sanção” para o caso de descumprimento dos deveres parentais - qual seja, a perda, pelo pai, do poder familiar sobre o filho --, não seria possível admitir qualquer outra - por exemplo, a da compensação do dano moral. Que espécie de sanção, todavia, pode a previsão de perda do poder familiar representar para o pai que abandonou moralmente seu filho? A consequência prevista na lei, na verdade, produz o efeito reverso (e extremamente perverso): funciona como um prêmio, indo ao encontro do desejo do genitor de se livrar das responsabilidades parentais, agora plenamente legitimado, em relação ao filho indesejado. Não há, pois, na prática, sanção alguma. Quanto à segunda argumentação, a de que “a ação poderia também ser do pai, constrangido pela acusação de abandono”, a falácia é de cristalina evidência: da relação de filiação não decorre, ontologicamente, a responsabilidade dos filhos pelos pais, o que já bastaria para afastar, imediatamente, a possibilidade de abandono destes por parte daqueles, 38 a não ser quando os pais se tornam idosos e os filhos maiores (art. 229, CF). Neste último caso, a mesma interpretação vigorará.
O Min. Barros Monteiro, único a votar pelo não conhecimento do recurso, restando vencido, destacou que a destituição do poder familiar não interfere na indenização, entendendo que, “ao lado de assistência econômica, o genitor tem o dever de assistir moral e afetivamente o filho”. Segundo o Ministro, em arguta interpretação, o pai somente estaria desobrigado da indenização se comprovasse a ocorrência de força maior para o abandono.
Mais recentemente, porém, os ventos tornaram-se mais favoráveis ao ressarcimento de danos aos filhos por abandono moral do genitor. Assim, por exemplo, o mesmo Superior Tribunal de Justiça, desta vez em acórdão de sua Terceira Turma, reconheceu que “inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no direito de família”.39 O valor indenizatório, mantido pelo STJ, foi de 200 mil reais. Em um terceiro caso, cujo voto condutor foi do Min. Salomão, o Tribunal recusou a indenização, considerando prescrita a pretensão. Tratava-se de um homem de mais de 50 anos que alegava ter sofrido abandono moral em sua infância.40
A situação, contudo, do ponto de vista jurisprudencial, ainda parece relativamente indefinida, embora a decisão da Min. Andrighi, pioneira na tradição do STJ, indique o melhor caminho para o tratamento que os tribunais devem conferir ao tema. Na doutrina, há também grandes controvérsias, com uma maioria silenciosa contrária à indenização em todo e qualquer caso, por suposto temor de mercantilização das relações paterno-filiais. De fato, o temor seria justificável diante de uma ótica que ainda associa o dano moral ora a uma suposta função punitiva ou exemplar, ora a prejuízos psicológicos causados à vítima, sempre de difícil aferição objetiva.
As hipóteses de ressarcimento de dano moral causadas por abandono moral (erroneamente chamado de afetivo) devem, por isso mesmo, repousar em águas mais calmas e claras, qual seja a identificação de violação concreta a qualquer um dos substratos que compõem a dignidade dos filhos, identificado objetivamente na violação do dever geral de cuidado, oriundo da autoridade parental, como previsto no art. 229 da Constituição Federal.
Ainda em sede de construção doutrinária, cabe esclarecer que parece ser necessário sustentar que o filho poderá somente pleitear o ressarcimento depois de completar a maioridade. Antes disso, seria necessário que fosse representado, via de regra, pela mãe (ou pelo pai, conforme o caso), o que poderia abrir grande margem para que a indenização por abandono moral do filho se transformasse em instrumento de vingança entre ex-cônjuges, e chegasse às raias da alienação parental. Além disso, e mais relevante, apenas depois de chegar a idade adulta poderá o filho realmente discernir se o afastamento do pai biológico lhe causou dano concreto e efetivo; em outras palavras, o abandono apenas pode ser reconhecido pelo filho, pessoalmente, em fase da vida na qual já pode prescindir da educação e da criação do pai. Esse entendimento em nada prejudica a vítima, vez que a prescrição não corre contra o incapaz e que a indenização em questão não tem natureza alimentar, podendo ser pleiteada em momento posterior.
5. DANOS À INTEGRIDADE PSICOFÍSICA NOS CASOS DE ALIENAÇÃO PARENTAL
A alienação parental corresponde, infelizmente, a uma prática cada vez mais comum nas dissoluções das relações conjugais. Em um ambiente de litigiosidade, é frequente que, diante do desejo de vingança de um dos ex-cônjuges pelo fim do casamento e pela reconstituição da vida afetiva do outro, os filhos sejam afastados do outro genitor e usados como instrumento para atingi-lo, principalmente por meio da manipulação da sua psique, fazendo-os crer que viveram situações falsas, com o escopo de dificultar o convívio parental. Enfim, trata-se de condutas que atuam na mente do filho para que esta seja programada a rejeitar o outro genitor.41
A prática da alienação parental é feita, geralmente, pelo genitor que está com o filho a maior parte do tempo e, por isso, a criança acaba tendo maior (e mais íntima) relação de dependência e fidelização com este. Esse ambiente pode ser terreno fértil para se construir a teia de manipulação que se enreda nos atos cotidianos, fortalecendo-se paulatinamente. Por isso, traduz-se em exercício abusivo ou disfuncional do poder familiar, tendo em vista que o ato ilícito se configura exatamente no excesso das condutas que traduzem criação e educação, com vistas à “fidelização” do filho ao genitor alienador e à implantação de falsas memórias, em prejuízo do direito fundamental à convivência familiar.42 O alienador age, portanto, excedendo os limites valorativos impostos pelo ordenamento, e ao prejudicar o exercício do poder familiar pelo alienado, gera “danos aos filhos, que crescem sem a referência biparental, mesmo tendo ambos os pais vivos e dispostos a cumprir os deveres oriundos do poder familiar”43.
Com vistas a coibir atos alienadores, foi editada a Lei n. 12.318/2010, que conceitua e caracteriza essa terrível prática, prevê medidas de proteção aos filhos alienados e sanções ao genitor alienador. Além disso, esclarece que os sujeitos (ativos) da relação jurídica instaurada pela alienação parental são os pais, avós, ou aqueles “tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância” pois a proximidade cotidiana é o fator que permite a “(re)programação mental” - outrora chamada de “lavagem cerebral” - dos filhos para que eles venham a repudiar o outro genitor, causando prejuízos ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este (art. 2º).44 Os sujeitos passivos, que sofrem a alienação, são os filhos e o genitor alienado.45
A referida lei traz, também, no art. 6º, um rol exemplificativo de medidas a serem adotadas pelo Poder Judiciário quando verificada a prática alienadora, cujo escopo é a tutela dos menores e a punição ao genitor alienador. Elas deverão ser aplicadas de acordo com a gravidade da alienação, garantindo uma reação proporcional. Para tanto, faz-se imprescindível a realização da perícia psicológica e biopsicossocial (art. 5º), a fim de se apurar a existência de alienação e o grau de comprometimento da integridade psíquica do menor. Essa perícia é de suma relevância no processo onde se apura a existência da alienação, na medida em que vai municiar o juiz para que ele, então, verifique qual a melhor forma de se reverter a situação, a fim de se concretizar o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente.
Dentre as reações possíveis contra a alienação parental, a lei prevê expressamente a responsabilidade civil, no art. 6º,46 sem prejuízo das demais sanções e medidas de proteção. Por isso, afirmamos (i) a possibilidade de indenização quando ocorre alienação parental e, concomitantemente, (ii) a aplicação dos outros instrumentos previstos no art. 6º da referida lei, dependendo da gravidade da alienação perpetrada.
Tal qual a hipótese de abandono moral, há violação direta ao princípio da solidariedade familiar, embora, aqui, seja causada pelo abuso no exercício do poder familiar, principalmente porque impede o outro genitor de exercer seu poder dever. O genitor alienador acaba por impedir que o filho exerça o direito fundamental à convivência familiar (art. 227 da Constituição da República), na medida em que, com a programação mental da criança, ela rejeita o genitor alienado, por acreditar em fatos que na realidade não existiram, mas que passam a habitar sua psique em virtude das falsas memórias que lhe foram implantadas. Por isso, são os filhos os que sofrem, de forma mais evidente, os danos advindos da alienação, pois acabam acreditando em situações inexistentes, o que pode gerar um abalo substancial na sua relação afetiva com o genitor alienado.
De um lado, temos o genitor alienador que, dolosamente ou não, por vingança ou por acreditar em suas “verdades”, pratica alienação parental; de outro lado, essas atitudes do alienador acabam por incutir no filho sentimentos geradores do afastamento do outro genitor. Além do sacrifício à ao direito à convivência familiar da criança com ambos os pais, sua integridade psíquica também fica seriamente abalada por passar a acreditar que foi abandonado, rejeitado ou até vítima de abuso sexual, hipótese mais grave de alienação parental.47 A integridade psíquica do menor também é gravemente abalada, como reconhece a própria lei, ao determinar que, uma vez existentes indícios da prática alienadora, “o juiz determinará, com urgência, ouvido o Ministério Público, as medidas provisórias necessárias, para preservação da integridade psicológica da criança ou do adolescente, inclusive para assegurar sua convivência com genitor ou viabilizar a efetiva reaproximação entre ambos, se for o caso” (art. 4º). Essa é uma tentativa de minimizar ou, ao menos, evitar que se agrave o dano sofrido pela criança.
Faz-se necessário, contudo, atentar também à condição do genitor alienado, que se vê afastado do seu filho sem uma justificativa razoável - muitas vezes, a real causa desse afastamento foi a iniciativa do divórcio, a constituição de nova família ou simplesmente um novo namoro. Quando se trata de um pai responsável, inicia-se verdadeiro calvário para se restabelecer um regime de convivência mínimo com o seu filho e, principalmente, reconquistar a confiança e o afeto do seu filho, por meio da desconstrução das falsas memórias implantadas. Infelizmente, nem sempre isso é possível e essa relação parental é perdida, afetando gravemente sua integridade psicofísica. Claro está, portanto, que o ato antijurídico aqui deriva de grave disfunção no exercício da autoridade parental, o qual gera enorme dano aos demais envolvidos.48
Evidentemente não há necessidade da prova do dano - bastando a prova da alienação -, já que, em situações como a presente, o dano é in re ipsa. Basta, portanto, para a devida compensação ao filho, a conduta alienante de um dos pais e as concretas consequências sofridas pelo filho. Todavia, por meio da perícia prevista pela Lei 12.318, será possível evidenciar os danos existentes, com vistas ao seu enfrentamento em tratamento psicoterápico: o § 1º do art. 5º prevê a realização de avaliação psicológica e biopsicossocial.49
Por fim, não se tem dúvidas de que os bons costumes da responsabilidade familiar repudiam os atos alienadores, pois, conquanto eles tenham por escopo atingir o outro genitor, são os filhos os que sofrem os maiores danos, situação inaceitável pelo ordenamento jurídico, violando frontalmente os direitos fundamentais da população infanto-juvenil, conforme previsão do art. 227 da Constituição Federal. Em virtude disso, será imprescindível articular instrumentos de prevenção e combate da alienação parental, a fim de preservar os “filhos do divórcio” desse destino.50
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
“As palavras com que envenenamos o coração de um filho, por mesquinharia ou por ignorância, ficam guardadas na memória e mais cedo ou mais tarde lhe queimam a alma”51. Assim, o escritor espanhol Carlos Ruiz Zafón resume a dor que os filhos sentem quando os pais não usam extrema delicadeza ao falarem um do outro à criança. Nesse tipo de ambiente, em que se desenvolve o desencantamento, acaba por fenecer o amor filial, tanto em face do genitor que falou demais, ou falou errado, ou excessivamente cedo, como daquele de quem se falou, se o que foi dito era verdadeiro. Restam a mágoa e a raiva de um filho que acaba, eventualmente, por perder ambos os pais.
Nos últimos anos, o legislador ordinário jurídico, com base na Constituição, passou, enfim, a enfrentar os problemas patológicos nas famílias. A primeira importante posição foi tomada com a promulgação da lei contra a violência doméstica. Outra atitude, no mesmo sentido, foi a regra da guarda compartilhada. Além disso, teve início a possibilidade da fixação de danos morais nas relações parentais, quando se verifica comportamento decisiva e francamente contrário ao crescimento saudável dos filho. O papel do Direito, de fato, passou a ser o de buscar minorar, a partir de sua atuação promocional, que os pais se tornem “tóxicos” aos filhos.52
Se, no caso do abandono afetivo, o dano moral pode ocorrer em razão do descumprimento dos deveres oriundos da autoridade parental, na hipótese da alienação parental a indenização fundamenta-se no exercício disfuncional do poder familiar, que acaba por impedir que o outro genitor exerça os deveres que lhe cabem como pai/mãe e, em última instância, termina por impedir o direito fundamental à convivência familiar. Tal direito visa proteger de forma muito mais contundente o filho, pois é no convívio com os pais que os valores familiares são transmitidos e que se constrói o afeto.
Em ambos os casos, todavia, a solidariedade familiar - isto é, a responsabilidade imaterial com os filhos que se exterioriza através da criação e da educação - é negligenciada: no caso do abandono moral, pelo próprio genitor omisso; na alienação parental, pelo alienador que, intencionalmente ou não - a apuração da vontade consciente de prejudicar, nessa sede, não é relevante - dificulta a convivência e programa o filho para quebrar o vínculo afetivo com o outro genitor.
Insista-se que não se trata aqui de valorar o afeto ou o amor, conceitos abstratos que correspondem a uma determinação subjetiva do humano - insubordinada e situada, portanto, fora do campo jurídico. Existem, porém, deveres jurídicos de conteúdo moral entre os membros da família, e é para eles que o julgador deve voltar sua atenção. No caso da relação parental, é a própria Constituição que, no art. 229, primeira parte, estabelece que “os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores”.
Em caso de descumprimento dos deveres previstos na Constituição poderá surgir o dever de indenizar, desde que não exista (ou tenha existido) figura parental substituta. Há, nesses casos, uma responsabilização dos pais específica do direito de família, ou, seria mais adequado dizer, responsabilidade civil decorrente de violações do dever de assistência moral, por força do vínculo de parentalidade, passível de ser objetivamente verificada em ações concretas. Quanto à alienação parental, trata-se de abuso no exercício do poder familiar, violando o constitucional poder-dever do outro genitor de cuidar e educar o filho.
O interesse da criança, na qualidade de pessoa em desenvolvimento, protegido com prioridade pela Constituição e pelas leis do País, deve ser interpretado como o aspecto fundamental das relações familiares em sua configuração hodierna. Na síntese de um autor norte-americano, nos ordenamentos jurídicos ocidentais contemporâneos “o casamento não é mais a questão importante; os filhos são”.53
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Notas
Autor notes