RESENHA
ROZNAI Yaniv. Unconstitutional constitutional amendments: the limits of amendment power. 2017. Oxford. Oxford University Press. 368 ppp.. 9780198768791 |
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Recepção: 28 Junho 2018
Aprovação: 24 Agosto 2018
A expressão “emendas constitucionais inconstitucionais” é uma dificuldade ontológica do constitucionalismo, que se digladia continuamente com a ideia de mudança, de um lado, e os limites dessa mudança, de outro. Há, nesse conflito, muito de uma disputa normativa sobre o significado do constitucionalismo, dos princípios liberais que normalmente o informam e da expectativa de governo limitado pelo direito que está na base do conceito de “rule of law”. Yaniv Roznai, professor na Radzyner Law School to Interdisciplinary Center Herzliya em Israel e certamente um dos maiores expoentes sobre o tema, recentemente lançou o livro Unconstitutional Constitutional Amendments: The Limits of Amendment Powers (Oxford University Press, 2017), fortemente aclamado pela crítica como o mais completo estudo em Direito Constitucional Comparado sobre o conceito de “emendas constitucionais inconstitucionais” já publicado. Seu livro é, de fato, o resultado de uma pesquisa de fôlego (ele examina nada menos que 742 constituições nacionais desde 1789 até 2015, além dos diversos desenvolvimentos jurisprudenciais sobre a temática no mundo). Porém, não apenas isso: sua pesquisa é brilhantemente desenhada para justificar a existência de “emendas constitucionais inconstitucionais” a partir de uma premissa normativa que ele próprio intitula “estruturalismo fundacional”. A tese naturalmente traz suas inevitáveis controvérsias e polêmicas - qual tese do Direito Constitucional não as traz? -, mas Yaniv Roznai vai no âmago da teoria constitucional e, especialmente, do conflito entre poder constituinte originário e derivado para, a partir dali, construir seu argumento. É um passeio bem realizado na história de diferentes constitucionalismos e na história de várias teorias sobre o poder constituinte.
Seu livro inicia-se, na primeira parte, com o claro objetivo de contextualizar o leitor sobre os principais desenvolvimentos daquilo que ele intitula “Comparative Constitutional Unamendability”, isto é, uma análise comparada de como os constitucionalismos no mundo têm, de forma crescente, adotado a tese de que certas emendas constitucionais podem ser consideradas inconstitucionais. O primeiro capítulo destina-se a demonstrar que, ao longo dos anos, constituições ao redor do mundo passaram a, explicitamente, estabelecer limites ao poder constituinte secundário, o que, em língua portuguesa, normalmente chamamos de “cláusulas pétreas”. Segundo Roznai, “não apenas as ‘cláusulas pétreas’ (unamendable provisions) cresceram em número, elas cresceram também em extensão, complexidade e detalhamento”.1 Porém, se há um crescimento da adoção de cláusulas pétreas nos diversos constitucionalismos mundiais, há também uma ampliação da adoção de teorias que buscam defender a constituição mesmo sem a previsão, no texto constitucional, de cláusulas pétreas. É aqui que aparece o grande nó da discussão: será que podemos limitar o poder constituinte secundário - termo que ele prefere ao tão utilizado “poder constituinte derivado”2 - a partir de um critério normativo implícito ou, ao menos, não exatamente configurável de acordo com o que chamamos de cláusulas pétreas em diferentes desenhos constitucionais? O segundo capítulo de seu livro destina-se a exatamente demonstrar os desenvolvimentos globais em torno da construção dessa tese, com especial destaque à expansão da “basic structure doctrine” indiana e, também, da “doutrina da substituição constitucional”, que ganhou corpo no constitucionalismo colombiano. Para tornar ainda mais completo seu panorama sobre os mecanismos de defesa constitucional contra “emendas constitucionais inconstitucionais”, Yaniv Roznai também dedica todo seu terceiro capítulo ao debate sobre critérios supraconstitucionais, como referências ao direito natural e ao direito internacional, que também têm sido usados para esse fim, embora ele próprio reconheça que, ao final, a referência ao direito nacional domine: “… é por meio dessas limitações, explícitas ou implícitas, que as normas internacionais e supranacionais podem gerar limitações aplicáveis aos poderes de emenda constitucional”.3
A tese que Roznai desenvolve vai ficar mais claramente delineada a partir da segunda parte de seu livro - e é também o momento em que sua análise ganha um corpo mais teórico, desenvolvendo um rico estudo sobre as diferentes concepções e compreensões sobre o poder constituinte. É nesta parte de seu livro, a começar pelo quarto capítulo, que ele explora a divisão entre “poder constituinte” e “poder constituído”, passeando desde os clássicos Qu’est-ce que le tiers état, de Abbé Sieyès, Verfassungslehere, de Carl Schmitt, até construções mais contemporâneas, como Giorgio Agamben, Antonio Negri e Andreas Kalyvas. Sua tese vai se desenhando, primeiro, pela afirmação que o “poder de emenda é sui generis”4, que “não é tido como outra forma de poder constituído nem, tampouco, equiparado ao poder constituinte”.5 Posteriormente, afirma que o poder de emenda é delegado e que isso implica, explícita ou implicitamente, ser um poder limitado formal e materialmente.6 Portanto, os princípios básicos da constituição “são exclusivamente não-emendáveis (unamendable) no sentido de que eles não podem ser alterados por meio de um exercício do poder constituinte secundário”.7 A tese da delegação impõe, dessa forma, uma limitação intrínseca ao poder de emenda, na medida em que apresenta apenas “poder fiduciário, portanto, tem de ser ipso facto intrinsecamente limitado por natureza”8 e somente pode atingir os princípios básicos por meio da “reemergência do poder constituinte primário”.9
A sua tese, todavia, precisa ser provada como operacional e, para tanto, ele dedica o quinto capítulo de seu livro a demonstrar como o poder de emenda é limitado e que existe também uma hierarquia entre poder constituinte primário, cláusulas pétreas e poder constituinte secundário - nessa ordem.10 Há também uma hierarquia de valores no âmbito do texto constitucional interpretado como uma unidade.11 O capítulo é recheado de interessantes exemplos históricos, que tratam de situações como emendas constitucionais que se auto-definem cláusulas pétreas12; emendas a cláusulas pétreas já existentes; o chamado “procedimento de dupla emenda”, que busca alterar, primeiramente, as cláusulas pétreas e, na sequência, efetuar a alteração da matéria antes coberta de proteção. A tese de Roznai é que cláusulas pétreas, mesmo que não haja uma previsão expressa indicando que são elas próprias não-emendáveis, “devem ser implicitamente reconhecidas como não-emendáveis”.13 Também é neste capítulo que Roznai aprofunda sua tese de “estruturalismo fundacional”, cuja ideia básica está em que “o poder de emenda constitucional não pode ser usado para destruir a constituição”,14 ou, mais especificamente, “os princípios básicos da constituição”.15 Neste tópico, aparece um dos elementos mais controversos de seu pensamento, que está na definição de quais são os “princípios político-filosóficos básicos”16que formam sua “identidade constitucional”17 e lhe confere pleno sentido. Para Roznai, alterar a constituição, afetando seus princípios básicos, é, na verdade, o colapso de toda a constituição e tem o mesmo significado de uma substituição constitucional.18 É também - e aqui aparece o terceiro elemento de seu “estruturalismo fundacional” - um direto ataque à pressuposição de que o governo age de boa fé.19
Naturalmente, o “estruturalismo fundacional” é sustentado pela tese de que, por via da delegação, o poder constituinte secundário somente poderia alterar os “princípios básicos” da constituição na medida em que houvesse uma ruptura com a ordem constitucional em vigor. Porém, Roznai avança na análise de que, na relação entre ambos os poderes constituintes - primário e secundário -, há um espectro do poder de emenda constitucional. Segundo ele, “quanto mais semelhantes são as características do poder constituinte secundário daquelas do poder constituinte primário democrático, seja inclusivo, participativo ou deliberativo, menos ele é atingido por limitações e vice-versa”.20 Este é o objeto de seu sexto capítulo, em que ele avança a tese de que, em situações em que o povo exerce seu poder diretamente na mudança constitucional - e, portanto, mais próximo do exercício do poder constituinte primário - menos limitado ele se encontra. Não haveria aqui, portanto, uma relação binária, mas uma gradação dos limites na medida em que o poder constituinte secundário mais se aproxima ou se afasta daquilo que se entende por poder constituinte primário ou “poder de emenda popular”.21 Alguns sistemas constitucionais adotam mecanismos cada vez mais rígidos quanto mais estrutural vem a ser a mudança constitucional - e isso, de certa forma, expõe, na prática, um pouco da tese avançada por Roznai. Estabelecer uma gradação para o poder de emenda, desse modo, além de ser interessante como desenho constitucional, representa não somente uma maior proteção aos princípios básicos da constituição como também acarreta maior legitimidade ao próprio poder de alterá-la.22 Por outro lado, estabelecer o critério de mudança constitucional mais estrutural em uma maior conexão com o povo pode ser também visto como uma estratégia de agentes políticos para se fortalecer no poder ou para diminuir direitos de minorias, embora Roznai deixe muito claro que “não há resposta clara” se “mecanismos de direta democracia são um risco para os direitos das minorias”, especialmente em comparação com outros mecanismos.23 Uma conclusão, todavia, parece ser central aqui: processos constitucionais com mais participação popular e inclusão tendem a gerar mais proteção aos direitos fundamentais, além de promover mais legitimidade e confiança.24
A terceira e última parte de seu livro é dedicada ao papel do judiciário no controle de emendas constitucionais, um fenômeno que já é prática em várias jurisdições.25 Roznai inicia o sétimo capítulo indicando as principais argumentos teóricos que justificam essa forma de controle, como o princípio da delegação; o princípio da separação vertical de poderes entre poder constituinte primário e secundário;26 o papel do judiciário de defesa da constituição;27 a supremacia constitucional;28 e a defesa da democracia contra falhas do próprio processo político, especialmente em democracias frágeis.29 Roznai também rebate as críticas a esta forma de controle, como o que ele denomina de “enigma da subordinação”, que traria uma impossibilidade lógica da Corte, constituída pela constituição, controlar as emendas à constituição;30 a “mão morta” do passado, que defende ter as presentes e futuras gerações o direito de mudar também os princípios básicos da Constituição, caso assim o desejem;31 e, mais diretamente, ofensa ao exercício ao autogoverno democrático, um direito o povo possui de, de forma direta ou indireta por meio de seus representantes, mudar o texto constitucional.32 A tese do livro consegue rebater cada um desses argumentos e, tal como se desenha desde o início, há um elemento normativo que faz exigir uma concepção de democracia que carrega também algo substantivo e, não, meramente formal, mesmo que isso “exacerbe a dificuldade contramajoritária”.33 Essa premissa normativa está espelhada na tese de que o controle jurisdicional de emendas constitucionais é uma defesa da “vontade supratemporal do povo”, expressa nos princípios básicos da constituição, contra eventuais “vontades temporais do povo”.34 Visivelmente, toda a defesa desse papel do judiciário lhe confere poderes que potencialmente desequilibram a relação com os demais poderes - e Roznai faz uma contemporização dessa controvérsia, defendendo, por isso, o argumento que esse poder deve ser exercido de modo bastante contido e de acordo com certas diretrizes, que ele examina em seu capítulo final.35
A tese de Roznai é por ele defendida como a “máxima expressão da democracia”, na medida em que é uma garantia do poder constituinte primário do povo.36 O capítulo oitavo acompanha esta premissa para apontar que, por ser algo excepcional, o poder de controle pela corte sobre emendas constitucionais deve ser feito segundo certos parâmetros. Primeiramente, se há explícita definição pelo poder constituinte primário de que a Corte Constitucional deve apenas fazer o exame formal de emendas, esta limitação deve ser obedecida: “a teoria da delegação necessita que esta explícita limitação, imposta pelo poder constituinte primário sob certos órgãos constituídos, seja levada a sério”.37 Por outro lado, se há cláusulas pétreas previstas na Constituição, é dedutível e desejável que a Corte Constitucional faça o controle de emendas caso violem cláusula pétrea, embora haja importantes exemplos no mundo de países com essa característica, tais como Noruega e França, cujas Cortes Constitucionais têm declinado dessa competência.38 Quando não há cláusula pétrea, a tese das “normas constitucionais inconstitucionais” gera, como visto, polêmicas, mas também tem sido adotada de forma crescente.39 Um dos grandes focos de polêmica encontra-se, primeiramente, na identificação dos princípios não-emendáveis e, na sequência, no “desenvolvimento de uma teoria dos princípios não-emendáveis”,40 que, naturalmente, varia em contextos diversos. Por isso, segundo Roznai, “uma teoria dos princípios não-emendáveis é, portanto, necessária para limitar a incerteza em relação à extensão do poder de emenda”,41 mesmo que essa tarefa se torne altamente complexa tanto na vagueza de certas cláusulas pétreas e mais ainda no caso de inexistência delas. Sua tese do “estruturalismo fundacional” serviria, assim, como uma premissa interpretativa de proteção a esses princípios42 e o uso de referências - por exemplo, o preâmbulo43 - poderia auxiliar nessa tarefa. Por fim, a interpretação das emendas pelas Cortes Constitucionais deve ser sempre feita de modo a lhe dar um sentido conforme a Constituição (lembrando aqui a teoria da “interpretação conforme a Constituição”) e sua anulação somente deve ocorrer em última hipótese,44 levando em consideração também o processo de emenda: quanto mais democrático e complexo o procedimento de emenda, menor deve ser a intensidade de intervenção do judiciário.45 Afinal, para Roznai, “a invalidação de emendas constitucionais deve ser um remédio de última ordem”.46
A pesquisa de Roznai surpreende pela abrangência e pela acuidade na análise dos dados, com exemplos que corroboram, de forma muito bem localizada, suas teses. Aliás, a esse respeito, vale registrar aqui a fala da professora Kim Lane Scheppele, da Universidade de Princeton, em um painel para discutir o livro de Roznai durante a ICON-S Conference 2017 em Copenhagen, sobre o quão impressionada ela ficou com o resultado da pesquisa. Disse ela que, em conversas anteriores com o próprio autor, havia alertado da dificuldade de escrever uma tese com a dimensão empírica desse porte e, ao mesmo tempo, contextualizar devidamente as conclusões, o que ele acabou conseguindo fazer com maestria. Seu livro, por outro lado, levanta várias questões, especialmente porque parte de uma premissa normativa que é polêmica por excelência. Embora ele explicite serem questões em aberto, é visível que sua tese esbarra nos próprios limites do normativo - que, naturalmente, ele próprio reconhece. Do mesmo modo, defender o papel das Cortes Constitucionais para esse fim, embora pareça lógica, é também um tema que levanta importantes controvérsias. Afinal, tanto a manipulação dessa premissa normativa pode facilmente ocorrer como uma estratégia de agentes públicos,47 como também é sempre importante perguntar se, na realidade, é mesmo o povo que tem exercido o poder constituinte primário. A história mostra que as barganhas políticas distantes de uma maior participação popular ainda predominam em vários movimentos de mudança constitucional estrutural. Essa dimensão menos normativa e mais estratégica, que poderia ter sido um pouco mais trabalhada no livro, todavia, não afasta nenhum pouco o brilho do livro de Roznai, pois, desde o início, ele deixa muito claro que seu argumento se baseia mais na distinção entre poder constituinte primário e secundário - logo, é normativo por excelência - e menos em questões de desenho constitucional. É certamente um marco do Direito Constitucional Comparado, fruto de uma pesquisa realmente impressionante e não é sem motivo que, recentemente, recebeu o ICON-S Book Prize de melhor livro publicado na área do Direito Constitucional em 2017. É uma leitura mais do que indispensável.
Notas
Autor notes
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