Resumo: O artigo parte das classificações mais frequentes sobre a hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico para diante delas sugerir o reconhecimento do status hierárquico supraconstitucional relativo das convenções internacionais daquela natureza. A proposta afasta-se das posições santificadoras da soberania constitucional como único horizonte viável no plano jurídico contemporâneo. Reposiciona, assim, o discurso da força normativa da Constituição e demonstra a emergência de um paradigma jurídico universalista em que a própria Constituição Federal de 1988 assentou a relativização de suas normas em favor de instrumentos jurídicos internacionais. A partir de uma perspectiva dogmática, aliada ao princípio pro persona do Direito Internacional dos Direitos Humanos, a pesquisa busca acima de tudo contribuir para a rediscussão do posicionamento atual do Supremo Tribunal Federal acerca da hierarquia supralegal dos tratados, bem como iniciar um diálogo com as teorias normativas heterárquicas em busca da formulação de critérios práticos para resolução de conflitos pelos julgadores.
Palavras-chave: supraconstitucionalidadesupraconstitucionalidade,controle de convencionalidadecontrole de convencionalidade,tratado internacional de direitos humanostratado internacional de direitos humanos,hierarquia dos tratados internacionaishierarquia dos tratados internacionais,soberaniasoberania.
Abstract: The article starts from the most frequent classifications on the hierarchy of the international human rights treaties in the juridical order, therefor to suggest the recognition of the relative and supraconstitutional hierarchical status of the international conventions of human rights. The proposal departs from the sanctifying positions of constitutional sovereignty as the only viable horizon in the contemporary juridical plane. It thus replaces the discourse of the normative force of the Constitution and demonstrates the emergence of a universalist legal paradigm in which the Brazilian Federal Constitution of 1988 itself was based on the relativization of its norms in favor of international legal instruments. From a dogmatic perspective, and form the principle pro persona of International Human Rights Law, the research seeks above all to contribute to the re-discussion of the current position of the Brazilian Federal Supreme Court on the supralegal hierarchy of the treaties, as well as to initiate a dialogue with the heterarchical normative theories in search of the formulation of practical criteria for conflict resolution by the judges.
Keywords: supraconstitutionality, conventionality control, international human rights treaty, hierarchy of international treaties, sovereignty.
Artigos
Hierarquia supraconstitucional relativa dos tratados internacionais de direitos humanos
Relative and supraconstitutional hierarchy of international human rights treaties
Recepção: 24 Maio 2019
Aprovação: 16 Dezembro 2019
1. Introdução; 2. Estado Constitucional e Convencional de Direito: o paradigma jurídico universalista; 3. Direito Internacional dos Direitos Humanos e força normativa dos tratados incorporados no Direito brasileiro; 4. Hierarquia supraconstitucional dos tratados de direitos humanos admitida pela Constituição brasileira; 4.1. Hierarquia legal dos tratados internacionais de direitos humanos; 4.2. Hierarquia supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos: posição atual do Supremo Tribunal Federal; 4.3. Hierarquia constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos; 4.4. Hierarquia Supraconstitucional dos tratados internacionais de direitos humanos; 5. Relativização do critério hierárquico de ordenação das normas: hierarquia supraconstitucional a priori dos tratados internacionais de direitos humanos; 6. Conclusão; 7. Referências.
O presente estudo busca demonstrar as diferentes correntes sobre a hierarquia que os tratados internacionais de direitos humanos possuem na ordem jurídica a partir da interpretação das normas constitucionais sobre a matéria. E a partir disso, sugerir quais os caminhos que melhor se adaptam ao paradigma convencional do Direito global vivenciado no século XXI.
O objetivo central é problematizar os critérios utilizados pelo Supremo Tribunal Federal ao assentar a mera supralegalidade das Convenções internacionais incorporadas na ordem jurídica brasileira com base na supremacia irrestrita da Constituição. Apesar dos rompantes nacionalistas mais recentes no cenário brasileiro (e mundial), não é mais sustentável a defesa de uma soberania irrestrita na esfera das relações internacionais e das relações jurídicas globais. A existência de múltiplas ordens normativas, várias delas reconhecidas expressamente pelo Direito interno, precisa encarar como realidade imutável a sobreposição de princípios, regras e decisões. A formulação de um paradigma centralizador do humano e da natureza1 nessa rede ou cadeia de normas fortalece o privilégio do Direito Internacional dos Direitos Humanos no cenário mundial.
Assim, com a consciência da cada vez mais veloz ruptura de critérios hierárquicos rígidos na relação entre as normas jurídicas vigentes no tempo e espaço mundial, após demonstrar as diversas correntes em oposição, propõe-se a adoção da hierarquia supraconstitucional a priori de todos os tratados de direitos humanos incorporados, o que tem fundamento no próprio sistema constitucional brasileiro.
O pressuposto da presente pesquisa é o de que vigora no Brasil o paradigma jurídico universalista,2 cujo centro de irradiação são os direitos humanos. Desta forma, o pressuposto deste estudo é o reconhecimento de que o Brasil adota um modelo de Estado Constitucional e Convencional de Direito.3 O Século XXI tem como marca a quebra do paradigma do Direito estadualista. Vive-se hoje o paradigma pós-estadualista ou pluralista, em que a produção normativa estatal exclusiva dá lugar à múltiplas fontes fabricantes de regras.4 Neste paradigma a soberania está inquestionavelmente relativizada. O discurso da soberania atualmente é “frágil”.5 Entre as diversas razões para tanto, aponta-se aqui a globalização e as próprias Constituições que reconhecem o papel de destaque dos tratados e tribunais internacionais na superação da lógica estadocêntrica.6 A estadualidade enfrenta crise. Sem que a importância do Estado seja reduzida a zero, ocorre um processo de ressignificação da soberania, distribuição consensual de competências a órgãos internacionais, supranacionais ou transnacionais e expansão da relevância de Cortes judiciais internacionais. A distinção absoluta entre ordens jurídicas interna e externa enfrenta “diluição”, e cada vez mais os Poderes estatais se veem obrigados a normas procedimentais e materiais de origem internacional.7
Entre as consequências do reconhecimento de um Direito que já não é mais exclusivamente produto do Parlamento8 está o fato de que a “globalização (sobretudo dos negócios, mas não apenas essa) apontaria forçosamente para uma ordem jurídica supranacional, tendencialmente global”.9 Nessa ordem, o respeito à normativa internacional é o preço de participar da sociedade de Nações num mundo de isolamento impossível ou, no mínimo, insustentável.10
A estrutura normativa desse modelo de Estado de Direito Internacionalista11 ou Convencional contempla, além da Constituição e leis inferiores, também os tratados internacionais. Eles são parte essencial da regulamentação da ordem jurídica mundial, para a qual soluções locais não são suficientes para o enfrentamento de problemas globais.12 Por isso não é de nada estranho que a lei interna conviva com as convenções produzidas no âmbito internacional, tal como instituições de natureza internacional convivem com as estruturas de organização estatal internas. 13
Entre as espécies de tratados internacionais14 está aquela que protege direitos humanos. A tendência mundial é a formação de um constitucionalismo que transita de “documentos legislados nacionalmente para pactos construídos negocialmente em escala internacional sob o formato de tratados, como é o caso dos tratados internacionais de direitos humanos”.15 A importância desses tratados aloca-se na relevância da proteção do ser humano, finalidade precípua do Direito.16 A finalidade de existência do Estado é propiciar o bem comum entre os seres humanos e garantir-lhes a vida digna, objetivo que põe em xeque o estadocentrismo.17
Ganha destaque, por isso, o ramo do Direito Internacional dos Direitos Humanos, no qual são relevantes os tratados e decisões de Cortes internacionais de direitos humanos.18 Todos os atos do Poder Público devem estar de acordo com a lei e a Constituição, mas também conforme a tratados internacionais de direitos humanos vigentes.19 Na realidade, a superação da exclusividade da legalidade estrita como parâmetro único de aferição da validade dos comportamentos estatais tem lugar após a Segunda Guerra Mundial, momento em que ficou claro “que a proteção dos direitos humanos não pode ser tida como parte do domínio reservado de um Estado, pois as falhas na proteção local tinham possibilitado o terror nazista”.20
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 inaugura a concepção contemporânea de direitos humanos. A segunda metade do século XX consolidou a passagem do Direito Internacional Público Clássico para o Direito Internacional dos Direitos Humanos. Há nessa passagem a substituição do paradigma da soberania estatal absoluta pelo paradigma humanista no Direito Internacional. A quebra da soberania absoluta foi reconhecida tanto no plano interno quanto no plano externo. Não estava mais autorizado ao Estado regular como bem entendesse a relação que tinha com seus cidadãos, nem mesmo dispor da força militar para atingir seus objetivos na arena internacional.21
Radica nesse período o nascedouro do Direito Internacional dos Direitos Humanos, ramo responsável pelo estudo e sistematização desses direitos caracterizados por serem “uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos com o catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais”.22
A autonomia do Direito Internacional dos Direitos Humanos se sedimentou a partir de então com os Pactos dos Direitos Civis e Políticos e dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, e posteriormente com as Conferências Mundiais de Direitos Humanos de Teerã (1968) e Viena (1993).23 A disciplina se destaca pela importância que concede à vítima de violações a direitos humanos. Mas, diferentemente do que o senso comum midiático faz parecer, os direitos humanos não estão voltados à proteção unilateral dos acusados em processos penais, embora estes sejam também categorizados como vítima quando algum de seus direitos convencionais forem violados.24 Os direitos humanos são aqueles essenciais à dignidade da pessoa humana25, do quais ninguém pode abrir mão enquanto detentores da qualidade que os torna humanos. Todos se beneficiam dos direitos humanos, sem os quais a existência digna estaria ameaçada por falta de limites à atuação estatal e por inexistência de deveres positivos dirigidos à igualdade material e ao desenvolvimento.
Antônio Augusto Cançado Trindade posiciona a fonte material do Direito Internacional dos Direitos Humanos na consciência jurídica universal, defensora da primazia protetiva do ser humano frente ao ente estatal abstrato. A disciplina conta com normas internacionais oriundas do sistema global e dos sistemas regionais de proteção, as quais inclusive preveem mecanismos de controle.26A nota distintiva desse ramo do Direito Internacional é o destaque que reconhece à posição do ser humano em suas relações em face do Estado. O Direito Internacional dos Direitos Humanos preocupa-se com os direitos da pessoa humana, o que o difere do Direito Internacional Público centrado na regulação das relações estatais.27
Os tratados internacionais de direitos humanos devem ser estudados, lidos, interpretados e aplicados segundo a lógica exposta do Direito Internacional dos Direitos Humanos, cujos pilares são a centralidade da pessoa humana e a cooperação entre os povos em torno da paz.28 A Constituição brasileira de 1988 assim reconhece quando em seu art. 4º, II determina que a República Federativa do Brasil seja regida em suas relações internacionais pela “prevalência dos direitos humanos”.29O dispositivo é inovador na história brasileira. Ao positivá-lo, o Constituinte originário “está ao mesmo tempo reconhecendo a existência de limites e condicionamentos à noção de soberania estatal”.30
Diversas Constituições latino-americanas reconheceram a partir do final dos anos 80 a força normativa dos tratados de direitos humanos,31 o que era parte de uma corrente elogiável de expansão de direitos fundamentais e fortalecimento de instituições de garantia.32 Entre elas, as Constituições do Chile, Peru, Venezuela, Equador, Bolívia e Colômbia.33 No Brasil, a mesma Constituição que garante a primazia dos direitos humanos nas relações internacionais regulamenta a recepção dos tratados internacionais, resumida em quatro fases: (i) assinatura; (ii) aprovação congressual; (iii) ratificação; (iv) incorporação.34 Segundo a posição acolhida pelo Supremo Tribunal Federal, é o Decreto Presidencial que “inova a ordem jurídica brasileira, tornando válido o tratado no plano interno”.35 Desde o julgamento do Agravo Regimental em Carta Rogatória n. 8.279-4-Argentina, o Plenário da Corte definiu a necessidade de promulgação pelo Presidente da República seguida de publicação do decreto executivo em diário oficial para dar início à vigência dos tratados no plano interno.36 A publicação em diário torna o tratado conhecido, diferentemente da mera ratificação, cujo momento em acontece não é de fácil conhecimento. É dizer, a publicação torna o tratado conhecido em todo o território nacional, enquanto a ratificação pode passar desapercebida. Embora existam críticas e divergências entre os próprios Ministros a respeito do momento exato da incorporação37, a posição majoritária no Brasil é a que considera a publicação do texto do tratado em diário oficial na forma de decreto executivo o momento em que os tratados internacionais de qualquer espécie, inclusive os de direitos humanos, ganham força normativa vinculante em face de todos os Poderes de Estado e dos particulares.38 Os efeitos internos do tratado dependerão, em todo caso e independentemente da publicação do decreto presidencial, do início da vigência do pacto no plano internacional.39
Uma vez em vigor no plano internacional, a partir da publicação do texto do tratado em diário oficial, momento em que se garante ampla publicidade à norma de origem internacional, é que se pode falar em vigência e em incidência do art. 5º, §1º da Constituição, garantia da autoaplicabilidade. Há quem sustente a existência de parâmetros para a autoaplicabilidade, condicionado sua incidência imediata apenas quando: (a) dele “deriva diretamente um direito ou uma pretensão a favor do indivíduo que comparece a um juiz solicitando sua aplicação, do que resulta extremamente importante a forma de redação da norma em questão”; ou (b) “a regra seja suficientemente específica para ser aplicada judicialmente, sem que sua execução esteja subordinada a um ato legislativo ou administrativo subsequente”.40
Esta, no entanto, não é a diretriz condizente com o regime jurídico dos direitos fundamentais41 definido na Constituição brasileira. A autoaplicabilidade do tratado está, sim, delineada no art. 5º, §1º da Constituição, e significa a desnecessidade de intermediação legislativa para o fim de garantir o exercício dos direitos humanos consagrados nos pactos internacionais, o que exige condutas omissivas e comissivas por parte da Administração Pública, do Legislativo e do Judiciário. Os tratados de direitos humanos, antes celebrados de modo a impor obrigações aos Estados perante os cidadãos ou estrangeiros, reconhecem por força da norma constitucional direitos diretamente exigíveis pelo indivíduo.42 O reconhecimento progressivo da personalidade jurídica da pessoa pelo Direito Internacional logo permitiu à doutrina defender a aplicabilidade imediata dos tratados e a invocação dos direitos neles consagrados pelos indivíduos.43
A aplicabilidade direta das normas dos tratados, apesar de um desafio constante, é o mecanismo privilegiado de efetivação dos direitos humanos previstos nas convenções internacionais.44 Os tratados internacionais de direitos humanos em vigor no ordenamento jurídico brasileiro são self-executing na linguagem internacionalista. A expressão significa que qualquer tipo de norma de direitos humanos “consagra um direito individual, passível de pronta aplicação ou execução pelos tribunais ou juízes nacionais”, pois “não há, como a rigor nunca houve, qualquer impossibilidade lógica ou jurídica de que indivíduos, seres humanos, sejam beneficiários diretos de instrumentos internacionais”.45 Entre esses direitos imediatamente aplicáveis estão inclusive aqueles classificados como direitos econômicos, sociais e culturais46, notadamente pela característica da indivisibilidade.47
A Constituição de 1988 impulsionou a ratificação de diversos tratados de direitos humanos por meio da regra que dá primazia aos direitos humanos nas relações internacionais, e na forma da sistemática acima explicada, esses tratados são aplicáveis imediatamente independentemente de mediação legal.48 Em outras palavras, o tratado não deixa de ser norma internacional quando incorporado. A promulgação pelo Presidente da República apenas declara o fim do processo de inserção do tratado, que passa a garantir direitos subjetivos a partir da publicação do ato executivo no diário oficial com o tratado anexo.49 Quer dizer, a publicação do decreto executivo é prática nacional que faz iniciar a vigência do tratado, porém o decreto não é efetivamente “positivador da norma pactícia internacional”. Como a Constituição em diversos dispositivos invoca a existência na ordem jurídica interna de tratados (e não de decretos com texto idêntico), o que vige e serve de parâmetro de controle é o tratado em si, e portanto é ele a norma aplicável.50
Por essas razões de ordem técnica, os tratados de direitos humanos vigoram com força normativa no ordenamento jurídico brasileiro ao lado de qualquer outra norma produzida pelo Poder Legislativo. Uma vez em vigor, o “tratado é norma jurídica e será encampado como tal no âmbito do direito interno do Estado pactuante. Produz efeitos, como norma jurídica, com a mesma força que também produzem as normas jurídicas domésticas (...)”.51
Mas além dessas razões, outra de forte índole internacional confirma a vocação expansiva das normas vigentes no Direito brasileiro. No ano de 2009 foi promulgada e publicada em diário oficial a Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, uma das mais importantes normas sobre o tema e que regula os principais aspectos de vigência, interpretação e aplicação de tratados internacionais no mundo todo.52 A Convenção foi internalizada no Direito brasileiro pelo Decreto Executivo n. 7.030 de 14/12/2009 e agora há no ordenamento interno o reconhecimento expresso de princípios universais do costume internacional, tais como o livre-consentimento, a boa-fé e o pacta sunt servanda.53
A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados é fonte direta de Direito Internacional.54 Com mais força ainda, desde que o Brasil internalizou a Convenção de Viena em 2009, passou a reconhecer o princípio do pacta sunt servanda, segundo o qual se obriga a cumprir de boa-fé os tratados incorporados, vedada a utilização de razões de Direito interno para escusar-se da aplicação dos tratados aos quais aderiu (art. 27).55 É assente historicamente na doutrina internacional que o que torna obrigatório um tratado é o princípio do pacta sunt servanda consagrado ao longo dos séculos.56 Assim como nos contratos,57 o Estado que se obriga a um acordo deve cumpri-lo para fazer valer o Direito.58
Embora antes da recepção da Convenção de Viena em 2009 o Brasil já se vinculasse ao princípio, atualmente é totalmente seguro dizer que o país, a partir da publicação do Decreto Executivo n. 7.030 de 14/12/2009, detém regramento específico no sistema positivo que “orienta como se deve dar a relação entre direito interno e direito internacional pelas próximas gerações”.59 O Brasil finalmente se adequou à tendência mundial de valorização do Direito Internacional,60 e a integração da Convenção de Viena em 2009 assegurou o caminho à internacionalização do sistema jurídico e reconhecimento de uma ordem jurídica una.61 O país aceitou expressamente a norma de que não pode invocar razões de Direito interno para descumprir uma obrigação internacional.62
A definição da hierarquia dos tratados de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro centraliza as discussões doutrinárias e jurisprudenciais há tempos. Realmente, não passa despercebida a importância de definir em que patamar hierárquico se encontram as normas de direitos humanos previstas em tratados internacionais recepcionados pelo Direito brasileiro. Definir em que degrau da pirâmide normativa estão alocadas ditas normas importa para a aplicação do Direito objetivo e eleição da norma prevalente em situações concretas, inclusive naquelas em que há conflito insanável entre normas. É dizer, encontrar o status hierárquico das normas será de suma importância para que a Administração Pública, o Poder Legislativo e o Judiciário no exercício de suas competências apliquem corretamente o Direito e não contribuam para incoerências, ilegalidades ou inconstitucionalidades em prejuízo dos destinatários das normas legais.
Na Teoria do Direito, a Constituição é a principal norma com potencial para admitir fontes jurídicas diversas, atribuindo a elas os modos de interpretação e hierarquia.63 A Constituição é o instrumento normativo acumulador dos consensos e estabilizador das tensões sociais,64 e seria de todo precipitado dispensar sua importância ou relativizar seu poder de gerar segurança social e servir de parâmetro orientador de validade e recepção das normas jurídicas.65
No Brasil, a Constituição não define categoricamente a hierarquia dos tratados internacionais. Há, contudo, dispositivos constitucionais que permitem inferir por meio de interpretação sistemática qual é o patamar hierárquico dos instrumentos internacionais. São eles: o art. 4º, I; art.5º, §§1º, 2º e 3º; art. 102, III, “b”; art.105, III, “a”.66 No entanto, a leitura dessas normas constitucionais abarca uma plêiade de interpretações que confere aos tratados internacionais tantas hierarquias no ordenamento jurídico brasileiro quanto autores dispostos a descrevê-las.
Ao levar dez anos desde a promulgação da Constituição para reconhecer sua submissão à jurisdição da Corte IDH, o Brasil demorou a considerar problemática a interpretação do art. 5º, §2º, norma de abertura constitucional aos tratados de direitos humanos. A temática, a rigor, só começou a ser discutida depois de um aprofundamento da influência de decisões internacionais, após a inserção de um grande número de tratados de direitos humanos na década de 90, e principalmente quando o Supremo Tribunal Federal foi provocado a decidir sobre a possibilidade da prisão civil por dívidas.67
Se a Constituição é omissa ou dúbia no que tange à hierarquia dos tratados, tanto mais importante é o papel da jurisprudência nesse campo, a qual não pode ignorar a doutrina de maior relevo na atualidade.68 Na linha do sobredito, existem inúmeras interpretações possíveis a respeito da hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos, e apesar de algumas se encontrarem em descompasso com o atual nível protetivo do Direito Internacional dos Direitos Humanos, todas são dignas de nota e respeito.
A seguir serão explicadas as principais correntes sobre a hierarquia dos tratados de direitos humanos, não havendo espaço para uma revisão de todas as nuances hermenêuticas do tema, as quais se aprofundaram a partir da edição da Emenda Constitucional n. 45/2004 (EC n. 45/04). A emenda, entre tantas inovações, inseriu o §3º ao art. 5º da Constituição com o suposto intuito de resolver a controvérsia instaurada a partir de 1988 relativa ao patamar hierárquico dos tratados de direitos humanos no Brasil. Contudo, a norma não resolveu definitivamente a questão, deixando aspectos em aberto, conforme se demonstrará a seguir.
Fundamentalmente são quatro as correntes interpretativas do art. 5º, §§1º, 2º e 3º da Constituição sobre a posição ocupada pelos tratados de direitos humanos no Direito brasileiro. Segundo cada qual, os tratados terão hierarquia: (4.1) legal, equiparada à posição das leis ordinárias; (4.2) supralegal, isto é, acima das leis e abaixo da Constituição; (4.3) constitucional, no mesmo patamar que as normas da Lei Fundamental; (4.4) supraconstitucional, com prevalência sobre qualquer norma interna, inclusive aquelas radicadas na Constituição.
Cada corrente explicada assume variações importantes, principalmente no ponto em que aceitam (ou não) a aplicação do critério de resolução de antinomia da prevalência da norma mais favorável ao ser humano. O que importa para os fins deste estudo, porém, é a demonstração dos principais argumentos de cada corrente e suas deficiências, o que tem como finalidade a verificação do patamar hierárquico que os tratados de direitos humanos assumem em comparação com outras espécies de normas jurídicas e de que modo eles as afetam.
Na ordem proposta, em primeiro lugar aparece a corrente defensora do patamar hierárquico legal das normas definidoras de direitos humanos previstas em tratados internacionais. Essa posição, diga-se desde já, é absolutamente minoritária, embora tenha prevalecido no Supremo Tribunal Federal entre a década de 1970 até o ano de 2008, radicada no precedente do Recurso Extraordinário n. 80.004-SE.69
O principal argumento dessa corrente, hoje ultrapassada, é a afirmação de que a soberania estatal estaria em perigo acaso a recepção de tratados com hierarquia privilegiada fosse aceita mediante procedimento menos rigoroso do que o da aprovação de emendas constitucionais. Para essa corrente, o significado do art. 5º, §2º da Constituição seria limitado, e os tratados só serviriam para reforçar os direitos fundamentais previstos no próprio art. 5º ou assimilar princípios que com eles não conflitassem. Todo tratado contrário a um direito previsto na Constituição seria, portanto, inconstitucional, conclusão que levaria inclusive à possibilidade da previsão prisão civil do depositário infiel a despeito das vedações no do art. 11 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e do art. 7.7 do Pacto de São José da Costa Rica, ambos em vigor no Brasil.70
Entre os autores dessa corrente, alegadamente em defesa da supremacia da Constituição, Manoel Gonçalves Ferreira Filho advoga pela hierarquia legal de todos os tratados internacionais. Conquanto se curve à atual posição do Supremo Tribunal Federal, mais abaixo explicada, o autor afirma que, no seu entendimento doutrinário, “as normas do Pacto de São José da Costa Rica, a que adere o Brasil, não prevaleceriam sobre o direito constitucional positivo brasileiro. Teriam apenas a força de legislação ordinária”.71
Manoel Gonçalves Ferreira Filho defende que o art. 5º, §2º da Constituição serve somente para explicitar o caráter declarativo dos direitos previstos em tratados (direitos esses que estariam de qualquer forma previstos explícita ou implicitamente já na Constituição). O regime, em todo caso, seria diverso para os direitos convencionais, que seguiriam os preceitos aplicáveis à legislação ordinária, sendo permitido em relação a eles, portanto, até mesmo a declaração de inconstitucionalidade ou revogação por lei posterior. Apenas aqueles tratados aprovados pelo procedimento do art. 5º, §3º da Constituição (similar ao de aprovação de emendas constitucionais) é que possuiriam, segundo o mesmo autor, hierarquia constitucional e seguiriam, desta forma, o mesmo regime dos direitos fundamentais.72
Igualmente em nome da soberania estatal, Alexandre de Moraes acompanha a corrente minoritária defensora da hierarquia infraconstitucional dos tratados de direitos humanos. Também para ele, apenas os tratados incorporados na forma do art. 5º, §3º teriam hierarquia constitucional, resguardada a possibilidade de controle de sua constitucionalidade em virtude de serem equivalente a emendas.73
Essa corrente apoia-se ainda em outros dispositivos constitucionais regulamentadores dos recursos cabíveis no Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça para discussão sobre constitucionalidade de tratado (art. 102, III, “b”) e negativa de vigência de tratado (art. 105, III, “a”). A Constituição, ao prever a possibilidade de recurso ao Supremo Tribunal Federal contra decisão que declarou a inconstitucionalidade de tratado, bem como a possibilidade de recurso dirigido ao Superior Tribunal de Justiça contra decisão que contrariou ou negou vigência de tratado (tal como permite nos casos de negativa de vigência ou contrariedade à lei federal), estaria - segundo esses autores - admitindo implicitamente a hierarquia legal de todos os tratados. A norma do art.102, III, “b” da Constituição reconheceria a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de tratados, o que, se acontecesse, deveria levar à denúncia do tratado segundo as regras de Direito Internacional.74 O mesmo no caso em que uma lei posterior contraria e revoga as normas de um tratado (ou paralisa seus efeitos). Nesses casos, até que se completasse o processo de denúncia, o Brasil estaria sujeito a responsabilização internacional por descumprimento do tratado. Caberia como solução, por exemplo, o Judiciário modular os efeitos da declaração de inconstitucionalidade de modo a preservar o país de sofrer responsabilização internacional.
Essa corrente, no entanto, deixa de considerar que no tocante aos tratados internacionais de direitos humanos o entendimento deve ser outro. O argumento que se funda na interpretação do art. 102, III, “b” e do art. 105, III, “a” da Constituição, apesar de lógico, desconsidera o sentido da cláusula de abertura do art. 5º, §2º e a norma que estabelece a prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais, inserida no art. 4º, II da Constituição. A leitura sistemática da Constituição retira a força da tese da hierarquia legal, sustentada apenas por quem ignora os avanços do Direito Internacional dos Direitos Humanos e o processo de relativização de soberania por que passam todos os ordenamentos jurídicos do mundo. Por isso, atualmente poucos sustentam o patamar hierárquico legal dos tratados de direitos humanos.
Em função da jurisprudência sumulada do Supremo Tribunal Federal, os tratados internacionais de direitos humanos ostentam hoje, no mínimo, uma posição mais vantajosa do que a lei produzida pelo Congresso brasileiro. Segundo a posição atual do Supremo Tribunal Federal, uma lei só será válida no ordenamento brasileiro quando passar pelo teste de dupla compatibilidade vertical com a Constituição e com as normas de Direito Internacional de Direitos Humanos.75
Esse posicionamento consolidado na Súmula Vinculante n. 25, proibitiva da prisão civil por dívidas76, originou-se no julgamento do Recurso Extraordinário n. 466.343-SP pelo Supremo Tribunal Federal, após longo percurso de afirmação do Direito Internacional dos Direitos Humanos no Brasil. No julgamento ocorrido em 03/12/2008 - mesma data em que foram julgados o Recurso Extraordinário n. 349.703/RS e os Habeas Corpus n. 92.566-SP e n. 87.585-TO - o Judiciário brasileiro reconheceu a impossibilidade de manutenção do entendimento retrógrado e fechado que pretendia a hierarquia legal dos tratados de direitos humanos incorporados.
A controvérsia resumia-se à interpretação do art. 5º, LXVII e dos §§ 1º, 2º e 3º da Constituição à luz do art. 7.7 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. A primeira é norma constitucional autorizadora da prisão civil do depositário infiel. O art. 5º e §§2º e 3º, como se viu, são normas de abertura do sistema à ordem jurídica internacional e de recepção de tratados de direitos humanos. Por fim, a norma do art. 7.7. do Pacto de São José da Costa Rica é garantia de que ninguém terá a liberdade restringida por dívidas, salvo uma exceção: “Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar”.
Por maioria,77 superando a jurisprudência estabelecida na década de 1970, o Supremo Tribunal Federal adotou o entendimento proposto pelo Min. Gilmar Mendes, atribuindo hierarquia supralegal aos tratados de direitos humanos. Os votos são díspares, e alguns dos Ministros nem mesmo entenderam necessário invocar o art. 5º, §§1º a 3º da Constituição para resolver o impasse trazido à Corte. Entretanto, a relevância do julgado está nos argumentos acatados pela maioria dos julgadores e que serviram à construção do entendimento em vigência sobre a hierarquia dos tratados.
O posicionamento prevalente no Supremo Tribunal Federal baseia-se, entre outros fundamentos, na EC n. 45/2004. Diante do art. 5º, §3º adicionado pelo Poder Reformador por meio da referida emenda em 2004, modificou-se a jurisprudência da Suprema Corte a partir de 2008, ano em que o Tribunal passou a adotar expressamente a teoria do duplo estatuto dos tratados de direitos humanos. Os tratados incorporados pelo procedimento do art. 5º, §3º, segundo o Supremo Tribunal Federal, têm status constitucional, enquanto os tratados de direitos humanos incorporados na forma tradicional ou antes da referida emenda têm hierarquia supralegal.78 Teoricamente, dúvidas sobre a hierarquia dos tratados teriam se dissipado e todos os tratados de direitos humanos anteriormente incorporados só poderiam ostentar status equivalente ao de emendas constitucionais caso passassem pelo rigoroso rito previsto no art. 5º, §3º da Constituição,79 não obstante outras interpretações tenham sido propostas.80
A mesma EC n. 45/2004 reconheceu a importância distintiva dos direitos humanos por meio de outras normas que se incorporaram à Constituição.81 Portanto, tornara-se anacrônica desde a emenda a tese da hierarquia legal desses tratados, outro motivo pelo cabia ao Supremo Tribunal Federal mudar seu posicionamento, e ao menos adotar a tese da supralegalidade.82 Apenas os tratados internacionais comuns teriam mantido a hierarquia legal.83
A solução técnica adotada na ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário n. 466.343-SP foi, ao invés de declarar revogado o preceito constitucional autorizador da prisão civil do depositário infiel, declarar a “eficácia paralisante” das disposições infraconstitucionais regentes da matéria (art. 1.287 do Código Civil de 1916, art. 652 do Código Civil de 2002 e art. 1º do Decreto-lei n. 911/1969). Desde a consolidação daquele posicionamento, a Suprema Corte entende que o art. 5º, LXVII da Lei Fundamental não pode ser aplicado porque se encontra “sem base legal”84 para permitir a sua aplicabilidade, diante da força normativa dos tratados de direitos humanos vigentes no Brasil que bloqueiam os efeitos das normas legais que regulamentam o dispositivo constitucional. Assim evitou-se colocar a Constituição abaixo do tratado.
A decisão majoritária do Supremo Tribunal Federal (que, aliás, não levou em consideração o art. 27 da Convenção de Viena, incorporada no ano seguinte no Brasil) merece ser criticada por ignorar a cláusula de abertura material do catálogo de direitos fundamentais, prevista no art. 5º, §2º da Constituição em sua redação originária.85 Principalmente, a tese da supralegalidade dos tratados não incorporados pelo procedimento do art. 5º, §3º da Constituição peca por atribuir regimes jurídicos diferentes a normas internacionais de mesma categoria e com o mesmo objetivo de proteção da pessoa humana.86 A tese da hierarquia supralegal também é problemática porque na realidade não existe efeito paralisante para o critério hierárquico de resolução de antinomias. Segundo esse critério, ou a regra é compatível ou incompatível com a de maior hierarquia, e nesse último caso deve ser declarada inválida. Dentro da compreensão exarada, salvo se a cláusula constitucional é aberta a ponto de requerer uma regulamentação detalhada, por coerência o tratado deveria ser constitucional ou inconstitucional, sem admitir uma terceira via.87 Não é essa a posição do Supremo Tribunal Federal, que encontrou um mecanismo inventivo de interpretação constitucional à luz de um tratado internacional (a eficácia paralisante).88
Há quem proponha soluções interessantes para as incoerências geradas pela decisão do Supremo Tribunal Federal, como por exemplo a que admite em nível constitucional apenas a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e o Tratado de Roma do Tribunal Penal Internacional.89 Essas posições, entretanto, são isoladas em comparação com o entendimento jurisprudencial orientado pela Súmula Vinculante n. 25. Isto é, hoje os tribunais brasileiros, por força da sistemática de vinculação existente, entendem que os tratados de direitos humanos se situam em patamar hierárquico supralegal, salvo se incorporados na forma do art. 5º, §3º da Constituição, como foi por exemplo a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo (Decreto n. 6.949/2009).90
Em função especialmente da apertada votação registrada nos precedentes que firmaram a tese da supralegalidade, ao contrário do que se pode supor, as discussões estão longe de se esgotar, o que torna o tema relevante e atual.91 A crescente invocação das normas de Direito Internacional de Direitos Humanos no cotidiano forense e a prevalência do entendimento doutrinário sobre a hierarquia constitucional dos tratados de direitos humanos incorporados ou não na forma do art. 5º, §3º da Constituição indica mudanças de rumo no futuro próximo.92
A corrente defensora da hierarquia constitucional dos tratados é a que conta com maior adesão doutrinária. Ela parte da leitura do art. 5º, §2º da Constituição, norma originária e, portanto, anterior às alterações da EC n. 45/2004. Para essa terceira corrente, todos os tratados de direitos humanos incorporados no Direito brasileiro teriam hierarquia constitucional por força do §2º do art. 5º, que ao estabelecer que os direitos fundamentais constitucionais “não excluem” direitos previstos nas normas internacionais “está a autorizar que esses direitos e garantias internacionais constantes dos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil ‘se incluem’ no nosso ordenamento jurídico interno, passando a ser considerados como se escritos na Constituição estivessem”.93
A norma de abertura do art. 5º, §2º da Constituição incorpora os tratados internacionais de direitos humanos no texto da Lei Fundamental, transformando os direitos previstos nas convenções em normas materialmente constitucionais.94 Em favor dessa posição, estão argumentos como: (i) a abertura à ordem internacional como fator legitimador do Direito interno; (ii) a natureza constitucional material dos direitos fundamentais; (iii) o princípio da máxima efetividade da Constituição, cuja orientação é conferir às normas constitucionais a interpretação que melhor contribua para sua efetividade; (iv) a natureza especial dos tratados de direitos humanos, os quais objetivam a proteção da pessoa humana prioritariamente às razões de Estado; e (v) a interpretação teleológica e sistemática da Constituição, que tem na dignidade da pessoa humano seu eixo de sustentação.95
Antônio Augusto Cançado Trindade, que no cargo de Consultor Jurídico do Itamaraty sugeriu a redação do art. 5º, §2º da Constituição em sua versão original, é árduo defensor da hierarquia diferenciada dos tratados de direitos humanos em relação aos demais tratados. Em respeito ao art. 5º, §§1º e 2º, os tratados de direitos humanos, segundo o autor, passam a “integrar o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados direta e imediatamente exigíveis no plano do ordenamento jurídico interno”.96
A dificuldade, no entanto, está em interpretar a hierarquia constitucional dos tratados em face da norma do art. 5º, §3º da Constituição, de consagração do rito mais rígido para recepção de tratados equivalentes a emendas constitucionais. Diante da emergência dessa norma, há até mesmo quem considere um retrocesso a inserção do §3º no art. 5º.97 Outros defendem pura e simplesmente a inconstitucionalidade da EC n. 45/2004, como Alexandre Coutinho Pagliarini, para quem o §3º inserido seria inconstitucional “por violação explícita ao preexistente art. 60, §4º, que, em português claro, prescreve que não deve ser objeto de deliberação proposta de emenda tendente a abolir (ou a diminuir o grau de abrangência) dos Direitos Fundamentais”.98
Entretanto, não é preciso recorrer aos extremos a ponto de sustentar a inconstitucionalidade da EC n. 45/2004 neste ponto, porque uma interpretação conforme a Constituição autoriza a preservação da norma segundo uma leitura constitucionalmente adequada.99 A inclusão do §3º no art. 5º não é inconstitucional, pois não afetou o núcleo essencial da norma do §2º do mesmo artigo. Existem interpretações que tornam possível a compatibilização dos dispositivos e essa é a diretriz a ser seguida. Além disso, é difícil sustentar a inconstitucionalidade de emenda contra uma das interpretações sobre o status dos tratados de direitos humanos (ainda que a majoritária), de sorte que a tese da inconstitucionalidade da EC n. 45/2004 não passa por uma análise mais cuidadosa.100
É preciso, portanto, interpretar o art. 5º, §3º sistematicamente na Constituição, principalmente em conjunto com o §2º, para compreender seu sentido. Uma posição possível é aquela que defende, de um lado, a constitucionalidade material dos tratados recepcionados anteriormente à EC n. 45/2004 (ou que, posteriormente a ela, foram aprovados por maioria simples no Congresso), e, de outro lado, a constitucionalidade material e formal dos tratados equivalentes a emendas constitucionais aprovados com quórum de 3/5 em dois turnos em cada casa do Congresso Nacional.
A norma do art. 5º, §3º não descaracterizaria a natureza materialmente constitucional dos tratados. Assim, a regra deveria ser lida em conjunto com o §2º do mesmo artigo, e “está tão somente a reforçar tal natureza, ao adicionar um lastro formalmente constitucional aos tratados ratificados, propiciando a ‘constitucionalização formal’ dos tratados de direitos humanos no âmbito jurídico interno”.101 A lógica interpretativa das normas constitucionais e normas internacionais de direitos humanos, o art. 5º, §2º da Constituição e a teoria da recepção adotada no Brasil102 reforçariam o argumento de que o §3º adicionado ao art. 5º é meramente uma regra que atribui o status de norma constitucional formal aos tratados incorporados posteriormente à mencionada emenda.103 As consequências de recepcionar um tratado com status equivalente ao de emendas seriam: (i) reformar a Constituição quando a norma prevista no tratado for mais benéfica; (ii) impossibilitar a denúncia do tratado agora protegido como cláusula pétrea.104
Valerio Mazzuoli e André de Carvalho Ramos discordam da segunda consequência. Para o primeiro, a impossibilidade de renúncia do tratado de direitos humanos existiria tanto para os tratados incorporados na forma do §2º do art. 5º quanto na forma do §3º. O fato de serem materialmente constitucionais já impediria a denúncia dos tratados de direitos humanos incorporados, porque teriam se tornado cláusula pétrea. A diferença nos regimes, segundo Mazzuoli, estaria na consequência interna atribuída à denúncia pelo Presidente: no caso dos tratados materialmente constitucionais, o Presidente não estaria sujeito a crime de responsabilidade, porque o tratado não integrou formalmente a Constituição, não incidindo o art. 85, caput e inciso III da Constituição. Ao contrário, o Presidente cometeria crime de responsabilidade caso denunciasse o tratado de direitos humanos que fosse material e formalmente constitucional, já que neste caso tentou abolir cláusula pétrea constante do bloco de constitucionalidade.105 Por isso, para esse autor, a interpretação sistemática do art. 5º, §§2º e 3º admite a incorporação de tratados materialmente constitucionais e tratados material e formalmente constitucionais, e neste último caso as consequências da recepção equivalente a emenda constitucional seriam: (i) reforma do texto da Constituição; (ii) ocorrência de crime de responsabilidade do Presidente da República em caso de denúncia do tratado (art. 85 da Constituição); 106 (iii) inserção das regras do tratado no conjunto de normas parâmetro para elaboração do controle concentrado de convencionalidade (art. 103 da Constituição).107
Já para André de Carvalho Ramos, a denúncia de tratados de direitos humanos no Brasil seria vedada em decorrência da proibição do retrocesso.108 Pela tese, controversa, não poderia o país retroceder a níveis superados de proteção incipiente de direitos humanos denunciando tratados. Assim, a denúncia estaria proibida e normas de tratados de direitos humanos estariam irrevogavelmente incorporadas no ordenamento jurídico, o que não deixa de ser contraditório com os próprios dispositivos de tratados de direitos humanos que regulamentam o processo de denúncia.109
Seja como for, a dita “equivalência” dos tratados mencionada no art. 5º, §3º diz respeito à integração dos tratados de direitos humanos ao bloco de constitucionalidade.110 Eis aí a maior consequência da formalização dos tratados de direitos humanos: a incorporação da norma ao bloco de constitucionalidade “faz com que a origem internacional pública da nova ordem suprema seja sempre e de plano reconhecível”.111 O tratado, ainda que não modifique o texto da Constituição, adere ao bloco e transmuta as normas materialmente constitucionais.112
Haveria, portanto, diferença entre os tratados equivalentes a normas constitucionais integrados no ordenamento segundo o rito do §3º do art. 5º (norma do constituinte derivado) e os tratados com status constitucional recepcionados pelo art. 5º, §2º (uma norma do constituinte originário). Uma vez que a norma do art. 5º, §2º da Constituição é produto do constituinte originário, tratados recepcionados de acordo com ela e que conflitassem com as normas da Constituição deveriam ser interpretados de modo a compatibilizar as normas. Afinal, foi uma opção do constituinte abrir o catálogo para normas de direitos humanos.113
Por sua vez, se alguma norma recepcionada de acordo com o rito do art. 5º, §3º conflita com os direitos fundamentais previstos na Constituição, ela seria materialmente inconstitucional,114 porque a norma é produto do Constituinte derivado e não pode afrontar cláusulas pétreas.115
De outro lado, a interpretação sistemática a favor da hierarquia constitucional dos tratados de direitos humanos coloca-se contra o argumento de que existem outras normas constitucionais que implicitamente indicam a hierarquia legal dos tratados de direitos humanos. A previsão de cabimento de recurso extraordinário contra decisão que julgar inconstitucional tratado não impede tampouco o reconhecimento da constitucionalidade material de tratados. O mesmo em relação aos recursos especiais cabíveis, como já explicado. O art. 102 e art. 105 da Constituição não podem ser lidos isoladamente, descuidando da previsão do art. 5º, §2º e olvidando da diferença entre tratados comuns e tratados de direitos humanos.116 Os recursos extraordinário e especial, portanto, só caberiam em face de decisões sobre tratados comuns.
Do exposto, observa-se que, em relação à tese da hierarquia constitucional dos tratados de direitos humanos, a defesa da constitucionalidade material de todos os tratados radica na norma do art. 5º, §2º, enquanto o art. 5º, §3º viria somente reforçar o regime jurídico ao contribuir para a constitucionalidade também formal das normas. Além do mais, a maior legitimidade democrática desses tratados quando passam pelo rito de aprovação de emendas é fator de relevância tanto no plano interno quando internacional.117 Assim, para a terceira corrente apresentada, os tratados incorporados na forma do art. 5º, §3º gozariam do mesmo regime protetivo dos tratados de direitos humanos: um regime mais reforçado.
Em termos de valorização do Direito Internacional dos Direitos Humanos, a terceira corrente só não é mais prestigiada do que aquela que defende a supraconstitucionalidade dos tratados de direitos humanos. A corrente da supraconstitucionalidade, embora seja majoritária na jurisprudência das Cortes internacionais, conta com poucos adeptos na doutrina brasileira. Jaime Orlando Santofimio Gamboa lembra que nos casos Última Tentação de Cristo vs. Chile;118 Hilare, Constantine, Benjamin e outros vs. Trinidad e Tobago;119 Caesar vs. Trinidade e Tobago;120 Boyce e outros vs. Barbados121 e Dacosta Cadogan vs. Barbados122 ficou claro que a questão da hierarquia dos tratados fica de lado quando a Corte IDH decide a convencionalidade de uma norma. Pouco importa se a norma é constitucional, pois, para a Corte, se ela desrespeita algum preceito da Convenção ela é anticonvencional e deve ser afastada, o que atribui ao tratado status supraconstitucional.123 É a relevância das normas de direitos humanos que satisfaria a condição necessária para posicioná-las no topo da hierarquia legal.
As críticas a essa quarta corrente são uma constante. A mais contundente afirma que colocar os tratados de direitos humanos acima da Constituição encontraria óbice no princípio da supremacia constitucional.124 A própria Constituição brasileira afastaria esse entendimento ao albergar preceitos sobre o controle de constitucionalidade dos tratados (art. 102, III, “b”) e sobre o processo legislativo de sua incorporação (art. 49, I e 84, IV).125 Note-se que neste ponto o argumento é o mesmo dos defensores da hierarquia legal dos tratados. Mas além disso, para os críticos nem mesmo a afirmação da natureza especial e da relevância dos direitos humanos no contexto atual serviria de argumento. Segundo Gilmar Mendes, a vagueza dos dispositivos dos tratados e a possibilidade de atribuir a diversos deles natureza de tratado de direitos humanos colocaria em risco a posição da Constituição no topo da pirâmide normativa,126 já que os direitos nela previstos seriam superiores aos direitos originários do plano internacional.
A crítica não resiste a uma análise mais atenta. Em oposição ao argumento de Gilmar Mendes de que na expressão “direitos humanos” poderia caber qualquer conteúdo, fator incompatível com a dignidade de direitos fundamentais de hierarquia constitucional, Ingo Sarlet lembra que é suficiente a utilização de critérios hermenêuticos de apreensão dos significados.127 Nesse ponto não é preciso se alongar.
Em contraposição à defesa do princípio da supremacia constitucional, a questão está posicionada na relativização da soberania, tema já traçado, e da imprescindibilidade de outorgar às normas de proteção do ser humano a maior efetividade possível. Nesse sentido é que para Celso Duvivier de Albuquerque Mello, em atenção à jurisprudência internacional e ao princípio pro persona, as normas de tratados internacionais de direitos humanos incorporadas no Brasil seriam dotadas de hierarquia supraconstitucional.128
Apesar da utilidade prática da teoria constitucional, o paradigma pós-estadualista na realidade põe em dúvida alguns dos postulados aos quais o jurista assenta seu ponto de partida. O Direito estatal sofre de rupturas identificadas na prática. Essas tensões estão cada vez mais elastecidas e não parece indicado resistir à tendência humanista.129 A defesa da supraconstitucionalidade não se baseia só na natureza privilegiada da norma de Direito Internacional dos Direitos Humanos, conquanto essa seja a principal defesa do argumento. Ela se baseia também na voluntariedade. Isto é, no princípio segundo o qual a adesão a um tratado derroga qualquer disposição de Direito interno.130
O art. 27 da Convenção de Viena (incorporada no Direito brasileiro, como se viu acima) nada mais faz do que reconhecer o princípio da primazia do Direito Internacional, usualmente posto em patamar privilegiado pela doutrina internacionalista.131 A jurisprudência internacional e a Convenção de Viena de 1969 nos artigos 26 e 27 excluem a possibilidade de o Estado invocar razões de Direito interno para escusar-se de obrigações internacionais, o que leva ao entendimento da hierarquia supraconstitucional de qualquer tratado. André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros investigaram ainda os documentos dos trabalhos preparatórios da Convenção de Viena132 para consignar que a norma do art. 27 foi proposta pela delegação do Paquistão “com a intenção declarada de impedir que os Estados invocassem a respectiva Constituição a fim de se subtraírem ao cumprimento dos tratados por eles livremente concluídos”.133
Mas mesmo que seja verdade que a tese esbarra nos dispositivos expressos na Constituição que assumem, a partir de uma leitura enviesada, a hierarquia infraconstitucional de tratados, também é verdade que a Constituição - ao menos a brasileira - em normas como aquela do art. 4º, II dá primazia aos direitos humanos e tem no art. 5º, §2º sua cláusula de abertura.
O Direito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito nacional estão integrados em virtude das próprias normas consagradas na Constituição brasileira. Para além da polêmica entre dualistas e monistas, o fato é que a jurisprudência internacional aceita a primazia da norma internacional,134 e reconhecer que o Direito é um só é a direção coerente com os tempos de integração econômica e social.135
Para Agustín Gordillo, as normas supranacionais instituidoras de garantias mínimas aos cidadãos do mundo devem se sobrepor às regulamentações internas, não importa qual for a hierarquia da norma. Segundo o autor, esse é o preço a pagar pela convivência pacífica e ordeira no mundo atual.136 Ademais, há um fundamento lógico na atribuição de supraconstitucionalidade às normas de direitos humanos previstas em tratados: “Não tem sentido decidir pela submissão a uma ordem jurídica supranacional, e a um tribunal com competência formal para aplicá-la e sancionar ao descumpridor, para logo pretender a suposta supremacia da ordem local sobre a ordem internacional”.137 A supraconstitucionalidade de uma norma poderia ainda ser fundamentada em objetivos relevantes do Estado Constitucional e Humanista de Direito, com as seguintes características: (i) orientação de suas ações fundada na ética da alteridade; (ii) reconhecimento da diversidade cultural existente no mundo; (iii) desnecessidade de aceite dos Estados para obrigarem-se às regras universais; (iv) consagração de uma “justiça planetária”; (v) quebra o conceito de soberania estatal; (vi) contribuição para o avanço civilizatório da humanidade.138
É preciso cautela no entendimento de que o reconhecimento da hierarquia supraconstitucional dos tratados de direitos humanos levaria ao fim do princípio da supremacia da Constituição. Não se nega que pode enfraquecer o princípio, mas não o anula, uma vez que desde o início do constitucionalismo o objetivo do movimento coincide com a finalidade do Direito Internacional dos Direitos Humanos, qual seja, “resguardar a pessoa humana em sua convivência política”.139 E mesmo que o reconhecimento da hierarquia supraconstitucional dos tratados internacionais de direitos humanos dependa do reconhecimento desta condição pelo ordenamento interno,140 normas previstas em tratados de direitos humanos classificadas como jus cogens têm sempre hierarquia supraconstitucional,141 o que nunca foi necessariamente um problema para a soberania estatal.
Aliás, é curioso notar que o Supremo Tribunal Federal, ao passo que se posicionou por maioria pela supralegalidade dos tratados de direitos humanos, ao editar a Súmula Vinculante n. 25 terminou por esvaziar o conteúdo de uma norma constitucional que permite ao menos uma modalidade de prisão por dívidas. Na prática, a par da construção da tese da “eficácia paralisante” dos tratados, pode se dizer que houve um reconhecimento (ainda que não manifesto) do status supraconstitucional da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, na medida em que houve um bloqueio indireto da norma constitucional por aplicação de tratado.142 Ou seja, na prática jurisprudencial brasileira já se estabeleceu - ainda que de forma incipiente, enviesada e não expressa, é verdade - a prevalência da norma internacional sobre a norma constitucional, ainda que pela via interpretativa. Esse fato é exemplificativo da tendência doutrinária e jurisprudencial cada vez mais frequente de admissão da existência de normas superiores àquelas previstas na Constituição.
Aos poucos, o paradigma do princípio da supremacia absoluta da Constituição cede à normas de Direito Internacional de Direitos Humanos, jus cogens ou não. Diante disso, e por isso mesmo é que se adere à doutrina da supraconstitucionalidade das normas previstas em tratados internacionais de direitos humanos incorporadas no Direito brasileiro, embora a proposta aqui seja de defesa da supraconstitucionalidade a priori ou relativa.
Supraconstitucionalidade relativa porque a solução hierarquizante para solução de conflitos não é absoluta. Ela cede ao critério pro persona e às interpretações jurisprudenciais internacionais e nacionais vinculantes aos Poderes de Estado.143 Afinal, quando se trata de definir questões que envolvem o Direito Internacional dos Direitos Humanos, no fim das contas é equivocado falar em prevalência do Direito interno sobre o Direito Internacional, ou vice-versa. Diante da percepção de uma solução menos benéfica ou pior para o ser humano em caso de prevalência da norma de maior hierarquia na solução do caso, caberá ao operador desconsiderar o grau hierárquico da norma e privilegiar a opção mais protetiva à pessoa.144 Resumidamente, o critério é o seguinte: para reconhecer direitos, procede-se na interpretação ou aplicação mais ampla da norma, e para limitar direitos na interpretação ou aplicação mais restrita da norma. Apelidou-se o instituto que regula essa técnica de princípio pro persona, pro homine, ou princípio da primazia da norma mais favorável.145 Designa-se princípio (e não regra) pro persona com base nos dois principais critérios de distinção de normas entre princípios e regras adotados pela doutrina brasileira, isto é, tanto com fulcro no critério da fundamentalidade, quanto com arrimo no critério do modo de aplicação.146 Neste trabalho, no entanto, o princípio pro persona é designado assim dado o seu grau de importância para o Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Diante do princípio pro persona, a relevância da hierarquia conferida às normas jurídicas diminui. Em outras palavras, o critério da hierarquia torna-se “flexível”. Até mesmo em conflitos entre tratados e a Constituição, em função do objetivo que anima o Direito Internacional dos Direitos Humanos, sempre prevalecerá a norma mais favorável ao sujeito de direito.147 Formalmente, o ordenamento ainda é uma pirâmide, mas materialmente as normas seguem a lógica da prevalência da norma mais protetiva. Por essa razão, a expressão técnica mais adequada para o fenômeno jurídico que ocorre nos casos de aparente conflito de normas não é “revogação”, pois o que acontece na verdade é simplesmente o afastamento das normas menos protetivas nos casos concretos, sem que elas sejam extirpadas do ordenamento.148 A solução aproxima-se daquilo que o Supremo Tribunal Federal já designou de eficácia paralisante das normas internacionais.
Para que o princípio não seja utilizado de modo a privilegiar argumentos opostos com a mesma força, há três critérios para sua aplicação: (i) Aplicação da norma mais protetiva: independentemente da hierarquia da norma, diante de disposições conflitantes o aplicador deve privilegiar o dispositivo mais favorável ao indivíduo ou vítima. O critério vale entre normas internacionais conflitantes ou entre uma norma internacional e outra nacional. Os problemas técnicos a enfrentar no âmbito desse critério surgem quando o intérprete precisa optar no conjunto pela norma mais favorável, ou quando precisa decidir se aplica artigos de cada norma em separado de modo a conjugar o melhor dos mundos para o destinatário; (ii) Conservação da norma mais protetiva: quando uma norma é revogada tácita ou expressamente por norma posterior, esse critério interpretativo indica que, não obstante o comando legal, prevalece a norma anterior caso seja mais favorável ao indivíduo ou à vítima. O brocardo lex posteriori derogat priori é afastado, como se os termos da questão fossem alterados e um problema de revogação fosse convertido em um problema hermenêutico; (iii) Interpretação protetiva: esse critério se aplica quando o intérprete está diante de uma única norma (e não duas ou mais), e existem vários sentidos possíveis a serem conferidos à lei ou ao tratado. Nesse caso, o critério hermenêutico da interpretação protetiva demanda a escolha do sentido que proteja melhor o indivíduo ou vítima, ressalvada a proibição de conferir interpretação contrária à finalidade da norma eleita pelo legislador ou prevista no tratado internacional.149
Se apenas parcela da norma for mais favorável, é lícito ao “intérprete, aplicar ambas as normas aparentemente antinômicas conjuntamente, cada qual naquilo que têm de melhor à proteção do direito da pessoa, sem que precise recorrer aos conhecidos (e, no âmbito dos direitos humanos, ultrapassados) métodos tradicionais de solução de antinomias (o hierárquico, o da especialidade e o cronológico)”.150 A consagração do princípio pro persona tem, portanto, como consequências: (a) a redução de potenciais conflitos normativos; (b) maior coordenação entre normas na dimensão vertical entre tratados e normas internas; (c) a maior coordenação entre normas na dimensão horizontal entre dois ou mais tratados.151
A expansão do Direito Internacional dos Direitos Humanos e da principiologia pro persona, bem como a necessidade premente de intensificação de proteção do ser humano e do meio ambiente do qual o ser humano faz parte já seriam motivos fortalecedores da tese da derrogação de normas constitucionais em caso de conflito insanável, situação que só se constata após a utilização de técnicas hermenêuticas e de compatibilização de normas. Mas, em atenção à natureza deste estudo, a principal razão para admissão da corrente da supraconstitucionalidade relativa é dogmática, calcada em uma interpretação das decisões tomadas pelo constituinte brasileiro e traduzida em disposições constitucionais.
Foi a própria Constituição brasileira que desde sua promulgação admitiu a supraconstitucionalidade dos tratados de direitos humanos devidamente incorporados. Em primeiro lugar, a hierarquia supraconstitucional dos tratados de direitos humanos encontra fundamento no art. 5º, §2º da Constituição. Se de acordo com a regra os direitos fundamentais expressos na Lei Fundamental não excluem outros direitos aplicáveis do Direito Internacional (outros direitos não listados nela e reconhecidos como fundamentais internacionalmente), isso quer dizer naquela cláusula de abertura a própria Constituição visou dar preferência ao regramento externo que ela não previu.152 Afirmar “não excluem” seria equivalente a dizer “dá preferência”.
Em segundo lugar, desde que sigam o procedimento de incorporação, seja mediante aprovação por maioria simples ou qualificada no Congresso Nacional, os tratados de direitos humanos em vigor prevalecem sobre qualquer norma em virtude do comando do art. 4º, II da Constituição. É dizer, a República Federativa do Brasil tem como princípio fundamental a prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais. Ao admiti-lo, todo tratado internacional de direitos humanos incorporado na forma prevista constitucionalmente adere ao ordenamento jurídico brasileiro em plano superior ao constitucional, desde que mais favorável ao ser humano.153 É este um princípio fundamental da República em consonância com a jurisprudência internacional de Direito Internacional dos Direitos Humanos e com a perspectiva humanista retomada após a Segunda Guerra Mundial, agora mais necessária do que nunca diante das novas tecnologias que interligam os continentes e pessoas, dos conflitos emergentes no globo, do terrorismo e do problema ambiental.
Em terceiro lugar, uma vez que o princípio pro persona integra o ordenamento como modo qualificado de solução de conflitos, o status supraconstitucional a priori das normas de tratados de direitos humanos obriga uma interpretação convencionalmente adequada do art. 102, III, “b” e art. 105, III, “a” da Constituição. A norma do art. 102, III, “b” da Constituição, segundo a qual cabe recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal quando decisão judicial de única ou última instância declarar inconstitucional tratado internacional, só vale para os tratados comuns. Isto é, se aplica somente a tratados internacionais que regulam outros aspectos da vida humana, como por exemplo tratados comerciais, territoriais, etc., os quais não são de direitos humanos e não têm hierarquia supraconstitucional, mas hierarquia supralegal (ou hierarquia legal, segundo a jurisprudência dominante no Supremo Tribunal Federal). Por sua vez, a norma do art. 105, III, “a” da Constituição, segundo a qual cabe recurso especial quando a decisão de única ou última instância contrariar ou negar vigência a tratado, desde que interpretada segundo critérios hermenêuticos de Direito Internacional de Direitos Humanos, indica o cabimento de dito recurso ao Superior Tribunal de Justiça quando qualquer tratado, seja ele comum ou de direitos humanos, for contrariado por decisão de tribunal ou este negar-lhe vigência. Portanto, a solução da supraconstitucionalidade não contrasta com a Constituição.
A primazia da norma mais favorável como fundamento para hierarquia supraconstitucional dos tratados não está isenta de críticas.154 Especialmente, pode ser encarada como problemática para aqueles que defendem soluções não hierárquicas para solução de problemas envolvendo Direito Internacional dos Direitos Humanos. Não se nega que os tempos atuais são de sincretismo constitucional, realidade em que normas nacionais e internacionais são complementares.155 Nesse sentido, os autores transconstitucionalistas156 discorrem aprofundadamente sobre os perigos de definir hierarquias rígidas das normas.
Com apoio na teoria transconstitucional de Marcelo Neves,157 Marcelo Torelly indica o modo de relacionamento não hierárquico (heterárquico) das ordens jurídicas no contexto da governança transversal dos direitos fundamentais. O processo considera “a especial relevância que os problemas constitucionais têm no sistema jurídico, mas sem determinar uma prevalência a priori do direito constitucional doméstico sobre o direito internacional dos direitos humanos ou vice-versa”.158 A negativa de uma solução hierarquizante leva à retroalimentação das decisões pelas Cortes nacionais e internacionais,159 o que representa um processo de construção e reconstrução da jurisprudência sobre direitos humanos.160
No entanto, soluções heterárquicas do transconstitucionalismo e aquelas típicas dos diálogos jurisdicionais não são incompatíveis com o estabelecimento de critérios especiais de resolução de conflitos. Notadamente porque em face de um problema constitucional, imerso na diversidade das normas jurídicas, o aplicador do Direito obriga-se a, primeiramente, definir a priori qual a norma de maior hierarquia que prevalecerá e iluminará a interpretação das normas inferiores. O critério pro persona convive com essa proposta, relativizando-a e compreendendo até mesmo a utilidade da proposta heterárquica, possibilitando que o diálogo entre as Cortes aconteça sob o fundo comum da proteção máxima do ser humano.
O que se quer dizer é que mais importante do que definir a hierarquia dos tratados de direitos humanos, possivelmente seja estabelecer os métodos para um diálogo frutífero e efetivo em um contexto de pluralismo que depende inclusive de mecanismos de respeito às decisões de Cortes internacionais.161 Do mesmo modo, independentemente da técnica jurídica empregada (e aqui defende-se a utilidade e plena aplicabilidade do princípio pro persona), o importante é a aceitação do novo paradigma de cooperação entre Estados vivido, no qual os textos normativos se abrem às experiências externas e se legitimam na medida de seu comprometimento com as causas mundiais comuns.162
Se o que une a humanidade é a condição idêntica dos indivíduos que a compõem, as normas protetivas dessa mesma condição devem se aplicar a todos os seres humanos indistintamente de modo a superar em hierarquia as normas estatais de países diferentes, sejam elas legais ou constitucionais. A relativização da soberania é o preço a ser pago para participar da comunidade global de nações, orientadas à proteção do ser humano e do meio ambiente com caráter prioritário. De outro lado, razões dogmáticas também respaldam a hierarquia supraconstitucional de normas de tratados de direitos humanos internalizados na ordem jurídica brasileira. Primeiramente, o preâmbulo da Constituição de 1988 consagra o reconhecimento da ordem jurídica interna e internacional como lócus primordial de solução pacífica das controvérsias às quais estão sujeitas todas as sociedades. Em segundo lugar, a interpretação sistemática de normas específicas previstas na Constituição segundo critérios hermenêuticos que favorecem a pessoa humana e lhes dão a maior eficácia possível (especialmente o princípio pro persona) levam ao mesmo entendimento. O art. 4º, II da Constituição prevê que o Brasil se rege em suas relações internacionais pela prevalência dos direitos humanos, norma que denota a opção constituinte de privilegiar os direitos humanos no cenário internacional durante a assinatura e adesão a tratados. Por sua vez, o art. 5º prevê para esses mesmos direitos um regime jurídico diferenciado. O art. 5º, §1º prevê a aplicabilidade imediata deles, confirmando a jurisprudência dominante nas Cortes internacionais acerca do caráter auto-executável (self-executing) dos tratados de direitos humanos, técnica condizente com a busca de efetividade da proteção da pessoa humana. O art. 5º, §2º prevê que direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Na medida em que esta regra de abertura afirma que direitos previstos no plano interno não excluem direitos do plano externo, ela visa a privilegiar aqueles direitos de origem internacional classificados como direitos humanos que a Constituição não previu, mas que têm caráter cronológico e lógico antecedente à própria edição da Constituição. Esta é a interpretação mais benéfica ao ser humano e mais compatível com o art. 4º, II da Constituição.
A corrente supraconstitucional relativa de hierarquia de tratados de direitos humanos aqui defendida assume como válido e eficaz o art. 5º, § 3º da Constituição. Ao aprovar o ingresso de algum tratado segundo um procedimento mais rigoroso e torná-lo equivalente a emenda constitucional, o Congresso brasileiro estaria integrando o tratado no bloco de constitucionalidade e permitindo o controle abstrato de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal. O art. 5º, §3º seria, portanto, regra de Direito Processual Constitucional tendente a ampliar as normas que servem de parâmetro para controle abstrato de constitucionalidade em ações típicas definidas na Constituição, o que de resto não impediria o controle de convencionalidade concreto pelo próprio Supremo Tribunal Federal e pelos demais juízes e tribunais. Além disso, ao incorporar-se com status de emenda constitucional o tratado estaria definitivamente protegido como cláusula pétrea, sendo vedada a partir de então sua denúncia. Ressalva-se que neste trabalho defende-se a possibilidade de denúncia de tratados de direitos humanos, desde que obedecido o procedimento definido pelas respectivas convenções. A norma inserida pela Emenda Constitucional n. 45/2004, ao fim e ao cabo, estende o espectro de ações cabíveis para a defesa dos direitos humanos e aumenta o grau de proteção da pessoa humana.
Não bastassem esses argumentos, a hierarquia supraconstitucional dos tratados é a posição consolidada na jurisprudência internacional. Para as Cortes internacionais, a norma internacional de direitos humanos está acima das Constituições nacionais. A hierarquia definida nos ordenamentos internos para normas não convencionais é tomada como mero fato pelas Cortes internacionais, que buscam verificar em seus julgados a compatibilidade de qualquer norma interna com normas de tratados de direitos humanos integradas. A Corte Interamericana de Direitos Humanos confirmou esse entendimento, entre outros, no Casos Última Tentação de Cristo vs. Chile, de 2001. A posição da jurisprudência internacional tem como principal fundamento o princípio da boa-fé e o princípio costumeiro do pacta sunt servada, cuja natureza é de jus cogens. Norma positiva albergou esses princípios na Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, vigente no Brasil desde a publicação do Decreto n. 7.030/2009. A Convenção de Viena prevê no art. 26 que “Todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa fé” e no art. 27 que “Uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado”. A regra do art. 27 foi projetada para evitar que os Estados deixassem de cumprir as obrigações internacionais assumidas legitimamente e contempla na expressão “direito interno” inclusive as normas previstas nas Constituições. Não haveria sentido o Estado assumir uma obrigação internacional e a competência jurisdicional de Cortes de direitos humanos para posteriormente negar-lhes obrigatoriedade e vinculação a pretexto de preservar um esquema teórico ultrapassado de soberania nacional. Tamanha contradição não é admitida como interpretação válida perante o Direito Internacional Público e muito menos perante o Direito Internacional dos Direitos Humanos.
A supraconstitucionalidade das normas previstas em tratados internacionais de direitos humanos incorporadas no Direito brasileiro e das normas definidas costumeiramente como jus cogens, cumpre salientar, é relativa. Perante o Direito Internacional dos Direitos Humanos, a solução hierarquizante para a solução de conflitos normativos não é absoluta. Diga-se o mesmo sobre os critérios temporal e de especialidade. Os critérios usuais de solução de antinomia cedem ao critério pro persona e às interpretações jurisprudenciais internacionais e nacionais vinculantes aos Poderes de Estado. Restringindo-se ao status, desde que uma norma de hierarquia inferior seja mais benéfica ou menos prejudicial ao interesse do ser humano sujeito à sua incidência ou irradiação, ela deverá prevalecer perante normas que sejam de hierarquia superior. O critério hierárquico é flexível na pirâmide de normas: se a priori um tratado está no ápice do sistema, isso não impede que em algumas hipóteses um tratado de direitos humanos ceda em face da Constituição ou mesmo de normas legais ou atos administrativos, desde que sua norma não seja a mais favorável ou menos prejudicial. Mas o princípio pro persona ou pro homine, previsto em diversos tratados internacionais, entre eles no art. 29 do Pacto de São José da Costa Rica, não serve apenas para solução de conflitos insanáveis entre normas. Ele além disso serve de guia hermenêutico. Orienta o intérprete a proceder na interpretação ou aplicação da norma mais ampla para reconhecer direitos, e a proceder na interpretação e aplicação mais restrita para limitá-los. E mesmo que haja dificuldades práticas na aplicação do princípio pro persona, por exemplo em definir qual seria a melhor norma ou a menos pior, isso não impede que por meio dos métodos usuais de interpretação jurídica e argumentação chegue-se a soluções ótimas ou tendentes ao ótimo. O princípio pro persona, aliás, é plenamente compatível com a técnica da ponderação, cujo maior mérito é conciliar princípios a uma primeira vista antagônicos no caso concreto. Em suma, o princípio pro persona tem a virtude de acrescentar um elemento menos abstrato de resolução no processo de decisão, qual seja, o privilégio da defesa da pessoa humana mesmo quando estejam sendo sopesados direitos com conteúdos inicialmente inconciliáveis.
O reconhecimento da supraconstitucionalidade não minora o papel institucional da Constituição nem sua força normativa. A Lei Fundamental ainda é o documento constituinte da sociedade política e jurídica do Estado brasileiro, que preserva sua soberania no esquema de organização, distribuição e exercício de competências nela definidos. Os direitos fundamentais e seu regime jurídico peculiar continuam intactos, do mesmo modo que o conjunto cultural e normativo nacional plasmado no bloco de constitucionalidade de cada país. Assumir a hierarquia supraconstitucional relativa apenas termina com esquemas teóricos ultrapassados sobre o conceito de soberania nacional, uma opção encampada pelo próprio constituinte em 1988. Diferentemente do que se poderia pensar, outorgar prevalência aos tratados de direitos humanos ou situá-los em patamar hierárquico superior não ultraja a normatividade constitucional construída a duras penas desde 1988 e ainda em processo de edificação. Ao contrário, a supraconstitucionalidade dos tratados é compatível com os desígnios do constituinte originário que, como visto, determinou a prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais e a inclusão preferencial de direitos humanos no catálogo de direitos com regime jurídico diferenciado de aplicabilidade imediata. Foi o constituinte que, afinado com as tendências globalizantes e supranacionais do Direito Internacional dos Direitos Humanos, relativizou em matéria de direitos humanos a soberania estatal e optou por patamares protetivos mínimos da pessoa humana e do meio ambiente. Esses patamares são definidos em consenso pelas nações em compromissos internacionais e interpretados por Cortes internacionais com competência consultiva e contenciosa voluntariamente reconhecida pelo Estado brasileiro. No mais, prevalece o posicionamento interno naquilo em que a Constituição e a interpretação dos tribunais brasileiros forem mais benéficas para o ser humano. Nesse quesito, a teoria dos diálogos jurisdicionais serve de apoio para afastar teses que façam prevalecer a todo custo a posição de Cortes externas ou normas internacionais não condizentes com a finalidade protetiva do Direito Internacional dos Direitos Humanos.