Resumo: Este artigo busca examinar as políticas públicas como concretização dos direitos sociais no âmbito do hodierno Estado Social, corporificado por um extenso catálogo de direitos sociais e, a partir da consagração jurídico-constitucional de tais direitos, eles constituem fundamento das políticas públicas de desenvolvimento ao interessar, aqui, a visão que enquadra os direitos sociais como marco de ação das políticas públicas. Assim, é por meio das políticas públicas que o Estado concretiza os direitos fundamentais, sobretudo os direitos sociais. Ademais, as políticas públicas, nos Estados Constitucionais, se coadunam com o ativismo judicial, já que o Poder Judiciário ao exercer o controle das políticas públicas não substitui as funções dos Poderes Legislativo e Executivo, mas implica, por sua vez, não deixar que a pessoa humana fique desprovida do exercício de um direito fundamental, reconhecido na Constituição ou na lei, porque o Poder Público foi inerte ou omisso. O artigo analisará, ainda, sobre a discricionariedade administrativa na tomada de decisão do agente público no contexto das políticas públicas de direitos sociais. A pesquisa bibliográfica foi, assim, direcionada para a consulta mais pormenorizada de amplo material disponível ao concentrar todas as sinergias para a sistematização de elementos teóricos e jurídicos com o fim erigir argumentos ou soluções que enquadrem os direitos sociais como objeto usual das políticas públicas estatais.
Palavras-chave: Estado SocialEstado Social,Políticas públicasPolíticas públicas,Direitos sociaisDireitos sociais,DiscricionariedadeDiscricionariedade,Controle judicialControle judicial.
Abstract: This article seeks to examine public policies as the realization of social rights within the current Social State, embodied by an extensive catalog of social rights and, from the juridical and constitutional consecration of these rights, they constitute the foundation of public development policies to the to interest, here, the vision that frames social rights as a framework for action of public policies. Thus, it is through public policies that the State concretizes fundamental rights, especially social rights. In addition, public policies in constitutional states are in line with judicial activism, since the judiciary in exercising control of public policies does not replace the functions of the legislative and executive branches, but implies, in turn, human being is deprived of the exercise of a fundamental right, recognized in the Constitution or in the law, because the Public Power was inert or omission. The article will also analyze the administrative discretion in the decision making of the public agent in the context of the public policies of social rights. The bibliographical research was thus directed to the more detailed consultation of ample material available by concentrating all the synergies for the systematization of theoretical and juridical elements with the purpose of erecting arguments or solutions that frame social rights as usual object of the state public policies.
Keywords: Social State, Public policy, Social rights, Discretionary, Judicial control.
Artigos
As políticas públicas como concretização dos direitos sociais
Public policies as realization of social rights
Recepção: 31 Maio 2018
Aprovação: 16 Dezembro 2019
1. Introdução; 2. Do estado Social ao papel essencial das políticas públicas como resposta a problemas sociais; 3. Os direitos sociais como marco das políticas públicas de desenvolvimento; 4. Diversos âmbitos e alcances da intervenção jurisdicional sobre as políticas públicas de direitos sociais; 5. Discricionariedade administrativa na formulação de políticas públicas de direitos sociais; 6. Conclusão; 7. Referências.
As políticas públicas (public policies), embora tenham já sido muito estudadas no âmbito da Ciência Política, da Sociologia, Economia Política, da ciência da Administração e até da Filosofia moral, têm sido correntemente esquecidas do ponto de vista jurídico pela doutrina brasileira.
Os novos problemas que as políticas públicas apresentam continuam a residir na natureza dirigente da Constituição por orientar a ação governamental do estado ao propor que se adote um programa de conformação da sociedade, no sentido de estabelecer uma direção política permanente. Ademais, os atuais problemas atinentes à temática políticas públicas abarcam, ainda, a discricionariedade legislativa, a liberdade de conformação do legislador, bem como a discricionariedade administrativa. A ação político-estatal explica-se pela definição do interesse público primário e da consecução do interesse público secundário, ambos tipicamente compreendidos na atividade estatal, legislativa e administrativa.
A relação entre os direitos sociais e as políticas públicas que procedem à sua realização prática é de extrema importância, pois reside nas políticas públicas a efetiva valorização estatal dos designados direitos sociais não poucas vezes depreciados. Ao levar em conta essa perspectiva, os direitos fundamentais definem-se e aplicam-se como uma espécie de marco ou programa que guia ou orienta as políticas públicas dos Estados ao contribuir para as instituições democráticas.
Expostas as ideias preambulares acima, o objetivo deste artigo busca identificar o papel fundamental das políticas públicas no âmbito do Estado Social de Direito para, em seguida, a partir da concepção de direitos sociais como autênticos direitos fundamentais, identificar qual a vinculação do Estado referente à consecução de políticas públicas de direitos sociais e, ao final, apontar que ligada à eficácia jurídica dos direitos sociais poderá configurar a suposta possibilidade de controle jurisdicional das políticas públicas.
Este estudo move-se, dentro do Direito Constitucional, entre a matéria dos direitos fundamentais, sobretudo dos direitos sociais. A análise das políticas públicas, claramente heterogênea, para além do Direito Constitucional, também chama à colação o Direito Administrativo1 de quem é parente próximo e, ainda, outras ciências sociais não normativas como, por exemplo, a Ciência Política.2
A complexidade do tema proposto perpassa em grande medida da sua heterogeneidade temática ao impedir optar, pura e simplesmente, por um método específico. Poderíamos dizer que nos aproximamos, de certa forma, de uma perspectiva estruturalista, como panorama operante não só mediante análise dos dados textuais constitucionais, legais, doutrinais referentes ao problema a resolver, mas tendo também atenção aos processos de decisão regulados pelas normas atinentes ao problema e à realidade social que para ele remete. Também não exclui o chamado realismo jurídico ao postular a possibilidade de tirar dos princípios imutáveis de justiça as regras de conduta jurídica.
Impende esclarecer que foram privilegiadas, quanto às fontes consultadas, no quadro do objeto de estudo escolhido e delimitado, as obras consideradas como mais importantes, atentando-se com o maior desvelo possível para a atualidade das obras ante as limitações próprias da natureza desta investigação específica. A pesquisa bibliográfica foi, assim, direcionada para a consulta mais pormenorizada de amplo material nos idiomas espanhol, inglês e português (abarcando obras brasileiras e portuguesas). Concentraram-se todas as sinergias numa exaustiva sistematização dos elementos teóricos, jurídicos e metodológicos a fim de erigir um pujante texto límpido, concatenado com vários argumentos e, na ciência de sua incompletude e limitação, submetê-lo ao debate e à crítica.
O estudo referente às políticas públicas está intrinsecamente relacionado à existência de um Estado Social3 desde a Constituição de Weimar de 1919,4 de modo que é imprescindível elucidar o conceito de política pública ao torná-lo operacional para o escopo principal deste artigo que consiste em perceber as políticas públicas como concretização dos direitos sociais e, por consequência, se há possibilidade de controle jurisdicional sobre a rubrica de política pública ao visar a efetivar direitos reconhecidos na Constituição, notadamente os direitos sociais, ante a ausência ou insuficiência ou, ainda, a não concretização de política pública na respectiva matéria.5
Pode-se, sem pretensão de precisão, afirmar que os objetivos mais importantes do Estado Social passam pela ajuda contra a necessidade e a pobreza, pela garantia de uma renda mínima que venha assegurar a dignidade da pessoa humana, pelo aumento da igualdade para a superação da dependência, pela segurança contra as vicissitudes da vida (risco social) e pela criação e ampliação de prosperidade. Esquematicamente, impende destacar que, em geral, os objetivos do Estado Social passam a almejar: (a) a segurança econômica e social; (b) a redução das diversas desigualdades; e (c) a redução da pobreza.6 Aqui se vê facilmente a função própria que os direitos sociais assumem ao ser possível resumir a sua caracterização em quatro aspectos: (1º) a sua orientação em função do princípio da igualdade material; (2º) o seu vínculo com a satisfação de necessidades individuais; (3º) a intensificação do elemento público que atribui ao Estado a responsabilidade em matéria social; e (4º) a sua virtualidade como elementos que operam diante dos mecanismos do mercado.7
Nas palavras de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, políticas públicas traduzem “[...] um complexo de processos juspolíticos, destinado à efetivação dos direitos fundamentais”.8 Em alusão à lição de Maria Paula Dallari Bucci, políticas públicas constituem “[...] programas de ação governamental visando a coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados”.9 Ainda, segundo a autora, políticas públicas “são metas coletivas conscientes e, como tais, um problema de direito público, em sentido lato”.10 Assim, por exemplo, erradicar o analfabetismo no Brasil seria uma política pública ao envolver um plano de múltiplas atividades, vários atores11 públicos e privados, alocação de recursos, aferição contínua de resultados.12
O reconhecimento jurídico-constitucional de direitos fundamentais, ainda que não seja absoluto,13 impõe subjetivamente ao Estado obrigações14negativas, tais como a proibição de restrições de direitos desarrazoáveis ou discriminatórias.15 Por outro lado, os direitos sociais impõem também ações positivas como, por exemplo, criar instituições dirigidas à ajuda de grupos sociais que se encontrem em situações de desigualdade estrutural, atribuir prestações básicas para suprir necessidades de subsistência, de educação, saúde, moradia e, além disso, impõem o dever positivo de legislar a fim de impedir situações extremas de abuso de partes mais poderosas nas relações contratuais entre particulares, bem como é exigido do Poder Público a observância de regras básicas de procedimento, relacionadas ao modo de organizar serviços e à gestão administrativa dos programas. Logo, a margem de discricionariedade legislativa e administrativa está limitada quando o Estado pretende desenhar (formular) e implementar políticas públicas de concretização do conteúdo de um direito social.16
De certa forma, a satisfação de alguns direitos fundamentais sociais como o direito a uma moradia condigna, à educação, à saúde, ao transporte constitui uma “[...] condição material básica para levar uma vida digna, para desenvolver livremente a personalidade e para participar nos assuntos públicos”.17
É daqui que provém a necessidade de intervenção estatal na vida econômica e social ao estabelecer uma estreita relação entre os direitos sociais e o Estado Social, porquanto “[...] é o Estado que tem capacidade e legitimação para tomar as medidas políticas, econômicas e jurídicas necessárias para favorecer a realização e desenvolvimento dos direitos sociais”.18 O Estado Social aparece, assim, perante o Estado de Direito ao estabelecer este suas bases essencialmente na autonomia privada, “[...] adotando como princípio fundamental a realização da justiça social, entendida como correção dos efeitos negativos externos da atividade econômica na situação dos indivíduos”.19
Não se discute que a obrigação do indivíduo de se “autogovernar” se situa em primeiro plano, também não se hesita afirmar que, subsidiariamente e caso o indivíduo não seja capaz de obter sozinho os meios que lhe permitam a sua subsistência, é necessária (e, dentro do possível, obrigatória) a ajuda estatal.
Os direitos sociais têm como objetivo último proporcionar os meios necessários aos desfavorecidos para que estes possam, verdadeiramente, participar e desenvolver as suas faculdades na sociedade, o que justifica o Estado Social.20 Infelizmente, a privação da riqueza é um dos maiores obstáculos a que as pessoas possam satisfazer por si próprias as suas necessidades e usufruir dos seus direitos ao implicar, pois, a imprescindível (re)distribuição da riqueza que, em última análise, só poderá ser efetuada pelo Estado.21
É esta a razão que, perante políticas estatais de redistribuição da riqueza ao encalçar a justiça social e a igualdade material inerentes ao bem-estar - que em sede de Estado Social são verdadeiros “fins essenciais do Estado”22-, a igualdade deixa de ser o ponto de partida do Direito para converter-se em meta ou aspiração da ordem jurídica.23 Desse modo, o Estado Social se sustenta na justiça distributiva ao distribuir bens de conteúdo material, sendo designado pelos alemães como Estado que se responsabiliza pela procura existencial, isto é, o indivíduo desenvolve sua existência dentro de um âmbito constituído por um leque de situações, de bens e serviços materiais e imateriais, cujas possibilidades de existência o indivíduo não pode assegurar por si mesmo.(24)
Em síntese, o Estado assume um dever duplo no âmbito de todos os direitos fundamentais ao se traduzir na realização de políticas públicas de direitos sociais que serão materializadas tanto por atuações normativas como a aprovação de leis, como por atuações fáticas, ligadas normalmente à execução dessas leis. Por um lado, o Estado encontra-se jurídico-constitucionalmente comprometido com um dever de proteção dos direitos fundamentais e, por outro lado, com um dever de promoção desses mesmos direitos.25 É a consecução estatal destes dois deveres que corporiza normativamente as políticas públicas de direitos sociais.
A Constituição delimita, desta forma, ela própria o modo de concretização do Estado Social mediante definição de tarefas ou incumbências ao impor constitucionalmente deveres ao Estado e, deixando neste campo, a atividade pública finalística ou teleologicamente orientada para a realização de um fim: os direitos sociais.26 Cabe ao texto constitucional proceder à articulação entre um conjunto de princípios políticos para os quais as instituições estatais devem efetivar, entre os quais se encontram quase sempre direitos fundamentais e os respectivos deveres estatais. E, nesse sentido, os direitos fundamentais (como os sociais), qual agenda pública conformadora, servem para canalizar ou orientar as instituições públicas.27
A ação estatal, com as políticas públicas, deixa de ser programada para meramente cumprir e executar normas. O Estado ganha uma função comunitária flexível, identificável pelos fins que tem realizar e que, para além disso, não podem ser definidos em toda a sua dimensão, porquanto os processos de evolução da vida, pela sua complexidade, não se deixam abranger por prognósticos em si incompletos.
Apesar desta íntima e nítida relação entre direitos fundamentais e políticas públicas, e do expresso mandato constitucional, o mundo das políticas públicas sociais sempre esteve relutante em assumir as derivações do debate constitucional sobre o reconhecimento da exigibilidade dos direitos sociais. Os versados em políticas sociais costumavam reputar que os direitos têm pouco a dizer sobre políticas públicas e que a ambiguidade e indeterminação das normas que os consagram não permitiriam que se fixassem como marcos ou guias orientadoras na formulação das políticas. Para além disso, a visão dos direitos fundamentais, principalmente dos direitos sociais, como orientadores ou critérios de fiscalização poderia “[...] atar as políticas a esquemas rígidos, próprios do mundo jurídico, que não permitiriam responder às variáveis conjunturas e obstavam à consecução eficaz da ação pública”.28
Em suma, embora apareçam hoje como aliados óbvios, os direitos sociais e as políticas públicas permaneceram distantes por muito tempo. Com efeito, apenas recentemente as políticas têm constituído um verdadeiro instrumento para a proteção, garantia e promoção dos direitos fundamentais em geral e dos direitos sociais em particular.29 O futuro dos direitos sociais e o futuro de milhões de pessoas excluídas e condenadas a viver na pobreza depende de um uso coerente e inteligente de diversas estratégias, tanto políticas como sociais, jurídicas e econômicas para a realização efetiva dos direitos fundamentais em contextos desvantajosos pela ausência do desenho institucional adequado por falta de vontade política e pela carência de um trabalho intelectual constante e imaginativo para resolver os problemas sociais que afligem o fraturado e complexo mundo atual.30
Em nosso entender os direitos fundamentais ao abranger os direitos sociais, a partir da sua consagração jurídico-constitucional, apresentam-se não apenas como limites, mas também como fundamento das políticas públicas de desenvolvimento31 e interessa-nos a visão que enquadra os direitos sociais como marco de ação das políticas públicas.32 Além disso, as políticas públicas constituem a base de um conjunto de atividades a ser realizadas pela Administração Pública, para que os fins consagrados no texto constitucional sejam cumpridos, sobretudo no que se refere aos direitos fundamentais que dependem de ações para sua promoção.33
Essa corrente de interpretação das políticas públicas a partir dos direitos fundamentais, em especial dos direitos sociais, foi desenvolvida por organismos internacionais de cooperação para o desenvolvimento e realização dos direitos humanos.34 Buscamos, pois, alçar a ideia dos direitos sociais como importantes marcos, fundamentos para as políticas públicas de direitos sociais.
Em primeiro lugar, cumpre consignar que a utilização de direitos como marco das políticas de desenvolvimento não é propriamente um tema consensual no âmbito dos formuladores de políticas públicas e dos organismos multilaterais de cooperação para o desenvolvimento e de direitos humanos.35 O que acontece é que, às vezes, a adoção de direitos fundamentais como parâmetro de formulação, implementação e avaliação de políticas públicas é interpretada por setores do Poder Executivo como uma restrição da margem de discricionariedade que lhes caberia no manejo das políticas e, inclusive, como uma forma de ampliar as obrigações do Estado.36
Parece óbvio que as políticas públicas em geral e as sociais em particular, não obstante o limite de conformação política dos poderes públicos, não podem deixar de ter em atenção os deveres estatais de respeito, proteção e promoção dos direitos fundamentais; aliás, na nossa opinião, esses deveres acarretam um papel fundamentação na formulação das políticas públicas. À luz dos direitos fundamentais sociais, não pode uma política pública ser juridicamente legitima se restringir injustificadamente algum direito fundamental ou criar barreiras que possam limitar a sua plena realização.37
Como exemplo, imaginemos que a formulação de uma política pública na área de educação com vistas na ampliação da cobertura do sistema de ensino - um objetivo jurídico-constitucionalmente válido38 -, vem restringir o princípio da gratuidade da educação básica 39-40 ao estabelecer o pagamento de mensalidade para este nível de ensino. Esta política pública ao violar diretamente um parâmetro jurídico-constitucional concreto é obviamente inconstitucional e deve ser sujeita ao escrutínio da justiça constitucional. Ora, é extremamente importante para aqueles que formulam as políticas públicas tenham sempre em atenção os direitos fundamentais como marcos da sua atuação, seja como elemento orientador ou conformador.
Em segundo lugar, é importante valer-se do princípio da interdependência, segundo o qual a adoção dos direitos como marco das políticas sociais implica, de forma especial, que as entidades estatais sob o encargo da formulação e implementação das políticas prefiram medidas que tenham em atenção a inter-relação existente entre os direitos fundamentais. A incorporação dos princípios da integração e da interdependência nas políticas públicas é um primeiro passo para superar as intervenções setoriais que, a partir de um sujeito fragmentado, não garantem que as múltiplas ações estatais convirjam no sentido dos direitos. De outra forma, reconhecer a interdependência dos direitos fundamentais permite que as políticas públicas sejam construídas com o objetivo de satisfazer um ou vários direitos ou, ao contrário, erigir barreiras mais fortes para o controle de políticas que desvalorizem a linguagem dos direitos.41
Cumpre consignar que a natureza constitucional dos direitos sociais esparge a sua força contribuindo decisivamente para a forma como as políticas públicas são implementadas ao aparecer estas como o mais importante dos instrumentos de operacionalização dos deveres positivos de direitos fundamentais. De onde se extrai que é por meio das políticas públicas que o Estado concretiza os direitos fundamentais e, assim, protege, garante e promove o acesso individual aos bens jusfundamentais.
O Estado Constitucional,42 designação sintética do Estado Democrático e Social de Direito que se reconhece consagrado pela Constituição brasileira de 1988 (sem dúvida, com suas peculiaridades), afigura-se nitidamente comprometido com os direitos fundamentais e com a mudança social,43 conforme se observa na simples leitura do artigo 3º ao traçar os objetivos da República Federativa do Brasil, busca erigir os direitos sociais não como interesses ou aspirações éticas.44
Isso posto, o ato de relacionar direitos fundamentais com políticas públicas e, em especial, com políticas públicas de direitos sociais abre a porta à possibilidade de um maior controle ou intervenção judicial na ação governamental, sem violação da separação dos poderes, aumentando a transparência ao suscitar que mais cidadãos e organizações sociais possam recorrer ao Poder Judiciário sempre que o Poder Público não venha implementar políticas públicas constitucionalmente devidas ou realizar outras frontalmente contrárias ao texto constitucional.45
Alguma doutrina procura simplesmente rejeitar a possibilidade de controle jurisdicional das políticas públicas ao apontar, por exemplo, a falta de legitimidade do Poder Judiciário para o controle ao substituir a discricionariedade administrativa e a discricionariedade do legislador pela discricionariedade do juiz, a ausência de idoneidade técnica do Poder Judiciário em matéria de destinação dos recursos orçamentários, a ocorrência de insegurança jurídica na atuação ilegítima do Poder Judiciário nas políticas públicas e a infringência ao princípio da separação dos poderes com a invasão do Poder Judiciário na esfera de atribuições dos outros poderes (Legislativo e Executivo).46
Entretanto, cumpre sustentar a possibilidade de o Poder Judiciário fiscalizar a constitucionalidade e a legalidade de políticas públicas de direitos sociais (educação, moradia, saúde, transporte, previdência social etc.) ao exercer um papel de elemento catalisador ao considerar que o controle será mais ou menos intenso em função das características concretas de cada caso. O Poder Judiciário aparece, portanto, como um verdadeiro ator silencioso na conformação de políticas públicas ao acabar por obrigar as diversas entidades como a própria Administração Pública, o legislador, os grupos de interesse e os movimentos sociais que representam os desfavorecidos queixosos, a interagir entre elas.47
Assim, o controle jurisdicional de políticas públicas de direitos sociais é possível e admissível ao existir a probabilidade de tal controle “[...] assumir matizes e alcances muito diversos que abrem um espectro enorme para determinar graus de ativismo judicial”.48 O aspecto fundamental de qualquer estudo sobre a judicialização de políticas públicas deve observar como incidem certos marcos institucionais que definem sobre que matéria decide, o que ordena e como decide o Poder Judiciário nestes aspectos.49
Em alusão ao magistério de Víctor Abramovich, pode-se ordenar os tipos de matérias ou assuntos sobre os quais o Poder Judiciário pode ser chamado a decidir no âmbito das políticas públicas de direitos sociais em cinco grupos de decisões jurisdicionais: (a) as que invalidam políticas públicas por contrariarem parâmetros jurídicos; (b) as que impõem a implementação de políticas definidas pelas instâncias políticas e não são executadas pela Administração; (c) as que obrigam a formular e executar políticas públicas como, por exemplo, a obrigação de empreender reformas estruturais de determinados sistemas de proteção e promoção de direitos sociais, a partir da aplicação direta das normas constitucionais; (d) as que reconfiguram aspectos parciais das políticas públicas de direitos sociais em curso como, por exemplo, obrigar a ampliar o alcance das prestações e serviços a pressupostos não contemplados e beneficiários excluídos; e (e) aquelas que impõem a reformulação dos procedimentos para a elaboração e implementação das políticas, os espaços de participação ou os níveis de informação pública disponível sobre elas.50
Conforme foi expendido, um modelo de Constituição com direitos fundamentais sociais e um amplo sistema de garantias amplia o poder dos juízes perante o Poder Legislativo e Executivo, mas ao mesmo tempo, demanda, como forma de assegurar o funcionamento do sistema político, que os juízes sejam imparciais, que tenham capacidade de resistir a pressões e que, ademais, tomem a Constituição a sério ao ponderar, efetivamente, os diversos bens jurídico-constitucionais que a mesma consagra.
O campo das políticas públicas é, historicamente, o ambiente da discricionariedade administrativa.51 Tal fato encontra justificativa em duas razões: a primeira, porque esse caráter provedor do Estado se mostra mais intensa na efetivação de políticas sociais; a segunda, porque as normas fundamentadoras dessas políticas encontram abrigo na Constituição brasileira de 1988 e são marcadas pelo caráter diretivo52 da realização dos direitos fundamentais, nomeadamente os direitos sociais. Assim, ao mesmo tempo em que as políticas públicas possuem fundamento em normas constitucionais de valor semântico consideravelmente aberto ao atribuir maior discricionariedade53 ao administrador, exigem deste uma atuação direta para consecução dos direitos sociais que visa a tutelar.
A natureza diretiva das normas constitucionais, - porquanto veiculam princípios e diretrizes a serem seguidos na elaboração de um programa a ser desenvolvido -,54 cujas finalidades vêm estatuídas na forma de conceitos de valor, são irredutíveis a uma objetividade completa. Nessas situações, além de toda a interpretação possível, remanescerá sempre ao administrador alguma discricionariedade em sua escolha diante do caso concreto. Se por um lado o peso semântico aberto dos princípios e dos direitos fundamentais é indispensável para alcançar o comportamento ótimo exigido do administrador na aplicação da norma; por outro lado, a margem de liberdade acaba por propiciar arbitrariedades pelo agente estatal caso este realize uma escolha que não se coadune com os princípios estabelecidos na Constituição, de modo que sua conduta não estará, pois, pautada, pela discricionariedade e, sim, pela arbitrariedade. Assim, sempre que a conduta da Administração ultrapassar os limites da discricionariedade - limites estes que vão além da finalidade legal ao englobar os princípios fundamentais e o dever da boa administração - o Poder Judiciário, uma vez provocado, estará autorizado a intervir.55
Cumpre mencionar que a possibilidade de controle judicial não significa, a priori, judicialização invasiva ou a falta de deferência à esfera administrativa. O mérito administrativo (assim entendido como os aspectos de oportunidade e conveniência diante do interesse público a atingir) poderá ser suscetível de controle judicial, contudo essa afirmação precisa ser aceita em seus devidos termos, pois o que o Poder Judiciário pode fazer é verificar se, ao decidir discricionariamente, a Administração Pública não exorbitou (ultrapassou) os limites da discricionariedade. Em outras palavras, o juiz realiza o controle para averiguar se realmente tratava de mérito, porquanto ao interpretar primeiramente a norma (com a aplicação, por exemplo, dos princípios da proporcionalidade, razoabilidade, moralidade) diante do caso concreto a ele submetido, poderá concluir se a norma outorgou ou não diferentes opções à Administração Pública válidas perante a ordem jurídica e, por conseguinte, deliberar pela não interferência na discricionariedade administrativa (o mérito existe nos atos discricionários).56 É evidente que tanto os atos arbitrários do ente público quanto a omissão antijurídica serão sempre suscetíveis de serem controlados e corrigidos pelo Poder Judiciário.57
Consoante lição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, com o passar dos tempos, inúmeras teorias foram sendo elaboradas para justificar a extensão do controle judicial sobre aspectos antes considerados como abrangidos pelo conceito de mérito. A teoria do desvio de poder permitiu o exame da finalidade do ato, inclusive sob o aspecto do atendimento do interesse público; a teoria dos motivos determinantes permitiu o exame dos fatos ou motivos que levaram à prática do ato; a teoria dos conceitos jurídicos indeterminados e a sua aceitação como conceitos jurídicos permitiu que o Judiciário passasse a examiná-los e a entrar em aspectos que também eram considerados de mérito; a chamada constitucionalização dos princípios da Administração também veio limitar a discricionariedade administrativa e possibilitar a ampliação do controle judicial sobre os atos discricionários.58
As políticas públicas ao serem suscetíveis de uma multiplicidade de arbitrariedades praticadas por agentes públicos no exercício da sua função, não pode ser outro o ponto de vista de que o Poder Judiciário tem o dever de coibir os abusos neste contexto, com o fim de que seja alcançada a realização dos direitos sociais.
Todavia, ao versar sobre política pública implica necessariamente discorrer o fato de que as ações estatais capazes de realizar os direitos fundamentais (incluídos aqui os direitos sociais) pressupõem decisões acerca do dispêndio de recursos públicos.59
As políticas públicas são, pois, indispensáveis para a garantia e a promoção de direitos fundamentais, contudo toda e qualquer ação estatal envolve gasto de dinheiro público e os recursos públicos são limitados. Essas são evidências fáticas e não teses jurídicas. A rigor, a simples existência dos poderes estatais - o Executivo, o Legislativo e o Judiciário - implica dispêndio permanente de recursos públicos, ao menos com a manutenção das instalações físicas e remuneração dos titulares e dos servidores públicos, além de outros custos.60
Posto isso, deverá ser objeto de controle judicial a adequação da política pública às diretrizes orçamentárias e aos princípios magnos de estatura constitucional; além disso, há intervenção do Poder Judiciário sobre a destinação das verbas vinculadas à saúde e à educação, bem como o exame das prioridades. Isso porque, por um lado, muito embora não se discuta que é o administrador público quem melhor conhece a realidade administrativa e financeira do ente público; por outro lado, é necessário evitar que, na prática, a discricionariedade não se transforme em indulgência ao propiciar que o agente estatal venha desenvolver políticas públicas a seu talante (arbítrio).
Logo, à medida que a discricionariedade do agente venha buscar a escolha das prioridades orçamentárias, essa não pode ser imune ao controle judicial sob o manto de juízos de “oportunidade e conveniência” ínsitos ao comportamento da Administração Pública. Afinal, é a peça orçamentária que permite a existência e o manejo dos recursos necessários à efetivação máxima das políticas públicas. Daí por que toda e qualquer discussão de omissão ou inércia administrativa na implementação de políticas públicas recai sobre o orçamento, sobretudo à luz da cláusula da “reserva do possível”,61 tão invocado pela Administração Pública para afastar o controle do Poder Judiciário da conduta administrativa omissiva ou inerte. É preciso, pois, repelir as atitudes irresponsáveis, as omissões arbitrárias que venha ameaçar a própria efetividade das determinações do sistema constitucional.
A viabilização do controle jurisdicional de políticas públicas de direitos sociais e dogmaticamente legítimo depende da definição de parâmetros de controle aplicáveis que, consoante elucida Ana Paula de Barcellos, deve compreender: (a) fixação de metas e prioridades; (b) quantidade de recursos a serem investidos; (c) obtenção das metas inicialmente fixadas; e (d) eficiência mínima na aplicação dos recursos.62
Os poderes públicos encontram-se vinculados jurídico-constitucionalmente a perseguir atuações positivas que visem a proteger, garantir e promover todos os direitos fundamentais. É a força da Constituição na sua vertente objetiva que a isso obriga e é preciso, pois, levar o texto constitucional a sério.63
A otimização dos direitos sociais deveria, pois, numa situação perfeita, ser total, ao ficar os poderes públicos obrigados a prover tudo aquilo que fosse necessário para que todos tivessem as mesmas oportunidades para o acesso individual aos bens jusfundamentais, o que quer que isso significasse. No entanto, a realidade está muito longe desta situação utópica, haja vista que nos encontramos numa situação de escassez moderada; mas mesmo inexistindo recursos suficientes para tudo fornecer, normalmente os Estados possuem recursos suficientes para melhor ou pior, alguma coisa prover.64
Não se pode negar, pois, que para a implementação das políticas públicas de direitos sociais há um custo que “[...] assume especial relevância no âmbito de sua eficácia e efetivação, significando, pelo menos, para grande parte da doutrina, que a efetiva realização das prestações reclamadas não é possível, sem que se aloque algum recurso, dependendo, em última análise, da conjuntura econômica”.65
A alegação feita pela administração pública da falta de recursos financeiros a fim de concretizar os serviços necessários induz à conduta absenteísta e limitadora do Estado que, por sua vez, reforça a teoria da reserva do possível,66 isto é, o Estado somente executará políticas públicas de direitos sociais se tiver recursos suficientes para sua realização.67 A reserva do possível é uma condição de realidade que determina a submissão dos direitos fundamentais aos recursos existentes.68
Contudo, não nos parece ser defensável que o impacto suscitado aos direitos sociais pela reserva do possível venha afetar intrinsecamente o conteúdo destes direitos ao escapar, dessa forma, do controle jurisdicional sobre os efeitos da reserva do possível quando afinal, ainda que numa menor medida, tal justificação possa e deva ser controlada pelo juiz.69
A ideia de estabilidade e de inação (inércia), carga ideológica flagrantemente extraída da teoria da reserva do possível, é característico do Estado Liberal. Não se coaduna, nesta perspectiva, com os ideais de programação e de intervenção estatal, ínsitos ao Estado Social. Se constata a insuficiência de recursos para a consecução dos fins do Estado Social não deve paralisar sua atuação, mas inicia a programação, no tempo, dos elementos de arrecadação e otimiza os gastos futuros mediante a aplicação do princípio da proporcionalidade na distribuição dos recursos.70
Entende-se, pois, na trilha do que pontifica Vidal Serrano Nunes Júnior, que a teoria da reserva do possível, visto ter sido importada da Alemanha, só teria aplicação na ordem jurídica brasileira, nas hipóteses em que os direitos sociais estivessem alicerçados em comandos similares aos da Alemanha (onde a Constituição não hospedou expressamente aqueles direitos), porquanto a Constituição brasileira promoveu a fundamentalização formal dos direitos sociais. Ademais, a dignidade humana ao constituir um princípio ou valor absoluto por se assentar na premissa de que o ser humano é um fim e não meio, abarca aquele mínimo irremissível inerente a qualquer direito fundamental, inclusive os direitos sociais. Ademais, consubstancia a exigência de prestações do Estado que afiancem os pressupostos materiais mínimos para a preservação da vida e a inclusão na sociedade. Logo, não seria possível relativizar a noção de dignidade com base em previsões orçamentárias.71
Os direitos fundamentais (incluídos os direitos sociais), a partir da sua consagração jurídico-constitucional, apresentam-se como fundamento das políticas públicas de desenvolvimento e interessa-se pela visão que enquadra os direitos sociais como marco de ação das políticas públicas. Assim sendo, a natureza constitucional dos direitos sociais esparge a sua força ao contribuir decisivamente para a forma como as políticas públicas são implementadas, que são o mais importante dos instrumentos de operacionalização dos deveres positivos de direitos fundamentais, ou seja, é por meio das políticas públicas que o Estado concretiza os direitos fundamentais e, desse modo, protege, garante e promove o acesso individual aos bens jusfundamentais.
O Estado assume um duplo dever no âmbito dos direitos sociais que se traduz na consecução de políticas públicas de direitos sociais que serão corporizadas tanto por atuações normativas, como a aprovação de leis como por atuações fáticas, ligadas normalmente à execução dessas leis. Por um lado, o Estado está jurídico-constitucionalmente vinculado a um dever de proteção dos direitos fundamentais e, por outro, a um dever de promoção, realização desses mesmos direitos. A consecução estatal desses deveres corporiza normativamente as políticas públicas de direitos sociais.
Para além de incorporar os direitos fundamentais como marco conceitual explícito de políticas públicas sociais e de reconhecer que estes impõem certos limites à ação estatal, as políticas com enfoque de direitos enfrentam a magna tarefa de reconhecer e defrontar a pobreza, a vulnerabilidade e a exclusão social, fenômenos contrários aos direitos fundamentais e, em concreto, procurar tudo fazer para superar situações de inércia estatal para que, pelo menos, se cumpra o dever constitucional de garantir a todas as pessoas um nível de vida adequado. Tais situações de penúria social são inadmissíveis num Estado Social de Direito.
Que as políticas públicas, nos Estados Constitucionais em desenvolvimento, agem como instrumentos de consagração da cidadania, com a garantia jurídica dos direitos fundamentais sociais e que a permissão do ativismo judicial, já que o Poder Judiciário poderá exercer o controle das políticas públicas, não significa uma mera substituição das funções dos Poderes Legislativo e Executivo, mas, sobretudo, implica não deixar a pessoa humana desprovida do exercício de um direito fundamental, reconhecido na Constituição ou na lei, porque o Poder Público foi inerte.
Compete ao Poder Judiciário velar pela integridade dos direitos fundamentais, repelir condutas governamentais abusivas, conferir prevalência à dignidade da pessoa humana, fazer cumprir as normas que protegem os grupos mais vulneráveis e neutralizar todo e qualquer ensaio de opressão estatal. A prática da jurisdição, para a efetivação da Constituição, não é interferência indevida do Judiciário na esfera dos demais poderes da República. Não é censurável o protagonismo judiciário quando, diante da inércia e da omissão estatais, a sociedade exige posicionamento jurisprudencial criativo e positivo, para que se faça prevalecer a primazia da Constituição.
É preciso pensar a discricionariedade pautada nos fins constitucionais ao vincular a atuação do administrador em favor ou defesa dos direitos fundamentais e ao dever da boa administração. Nessa esteira, não há mais espaço para compreender a discricionariedade como um pretexto para decisões ineficientes, sejam as que não atendam ao interesse público implícito na finalidade legal, sejam as que o atendam de maneira deficiente.
A reserva do possível não deve ser concebida como um obstáculo instransponível para a efetivação dos direitos fundamentais. Deve ser conceituada como postulado capaz de otimizar a eficácia e efetividade desses direitos, a fim de que o Estado promova, da melhor maneira e de modo progressivo, a máxima realização dos direitos fundamentais.