Resumo: O trabalho visa à análise da possibilidade de se obter autorização para uso de medicamentos que possuem como princípio ativo substâncias proscritas no Brasil. Por meio de pesquisa em material bibliográfico interdisciplinar, legislação e julgados, esta análise abarca desde a evolução histórica do uso medicinal de substâncias proibidas até mesmo proposta concreta para que se possa utilizar tais medicamentos apesar da atual proibição com reprimenda criminal. Começa-se a revisitar tais proibições de substratos e reconhecer a possibilidade de utilização de novos medicamentos, como ocorreu com o canabidiol: a substância anteriormente de uso proibido, hoje já foi retirada deste rol, com a criação de procedimento administrativo para sua importação por intermédio de análise da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Assim, analisa-se a concessão destes medicamentos pela via administrativa, pelo enfoque legislativo e também judicial. No caso em questão, analisa-se igualmente a proposta de critérios formulada no julgamento da Repercussão Geral nº 500, para medicamentos sem registro da ANVISA. A concessão de autorização deve observar à comprovação da necessidade do tratamento e a constatação da eficácia do medicamento, objetivando a consolidação do direito fundamental à saúde e à vida sob uma perspectiva não tradicional, para pacientes que precisam dos medicamentos com princípios ativos proibidos no Brasil.
Palavras-chave: medicamentosmedicamentos,direito à saúdedireito à saúde,ANVISAANVISA,substâncias proibidassubstâncias proibidas,canabidiolcanabidiol.
Abstract: The study aims to analyze the possibility of obtaining authorization for use of drugs that have as active principle banned substances in Brazil. Through a methodology of research in interdisciplinary bibliographic material, legislation and judgments, this study covers from the historical evolution of medicinal use of forbidden substances to even a concrete proposal for use of those drugs, despite of the actual prohibition with criminal reprimand. We begin to revisit such prohibitions of substrates and recognize the possibility of using new drugs, as occurred with cannabidiol: this substance previously prohibited, has already been removed from that list, and it was also created an administrative procedure for its importation trough analysis by the National Sanitary Surveillance Agency (ANVISA). Thus, it’s necessary to analyze the concession of these drugs by administrative way, legislative and also judicial approach. It’s also necessary to analyze the criteria proposal made for judgement of the General Repercussion Thesis n. 500, for medicines without ANVISA’s registration. The granting of authorization must comply proof of need for treatment and the confirmation of drug effectiveness, aiming to consolidate the fundamental right to health and life from a non-traditional perspective, for patients who need these drugs with forbidden active principles in Brazil.
Keywords: medicines, right to health, ANVISA, forbidden substances, cannabidiol.
ARTICLES
Autorização para uso de medicamentos com princípios ativos proscritos no Brasil
Authorization for use of medicines with forbidden principles in Brazil
Recepção: 09 Setembro 2020
Aprovação: 29 Outubro 2020
A concessão de medicamentos pela via judicial é um fenômeno crescente no Brasil desde que consolidado o modelo de Estado social instituído pela Constituição de 1988. Por consequência, os desdobramentos do tema têm repercutido na doutrina e na jurisprudência. Conforme os últimos levantamentos realizados pela Organização Mundial da Saúde, em 2014 o Brasil teve um gasto total com saúde que representa apenas 8,3% do Produto Interno Bruto.1 Estes dados representam 6,8% do orçamento público do governo federal, um índice muito abaixo da média mundial, que é de 11,7% do orçamento.2 Em que pese, inicialmente, parecer uma grande quantidade de recursos, é certo que o colapso organizacional do sistema de saúde brasileiro gera cada vez mais imposições judiciais para o fornecimento de fármacos. Afinal, a quantia orçamentária prevista não atende a totalidade da demanda da população, principalmente quando se está perante medicamentos de alto custo.3
Os direitos humanos positivados na forma de direitos fundamentais foram construções históricas, fundados por embates entre movimentos da sociedade civil que pleiteavam melhores condições e, de outro lado, o poder dominante do Estado.4 Ao consagrar extenso rol de direitos fundamentais, a Constituição de 1988 fixou uma gama de princípios e direitos prestacionais, os quais firmam um Estado social de Direito em sentido material.5 Assim, a judicialização dos direitos sociais não passa a ser mera expectativa ou elemento estranho à justiça brasileira, tratando-se de fenômeno crescente, como forma de concretizar as demandas sociais. Gize-se que os serviços públicos estão vinculados ao preenchimento de direitos fundamentais e, 6 especificamente no tocante ao direito à saúde, ao tratar-se de direito social que exige uma prestação positiva por parte do Estado, ainda que não existente lei regulamentadora, poderá ser postulado judicialmente, mesmo que desborde do mínimo existencial, e sem que seja necessária impetração de mandado de injunção.7 Por um lado, a Constituição de 1988 criou um sistema único de saúde, interfederativo e que abrange todo o território nacional; por outro, ainda experimenta-se graves problemas de gestão deste sistema.8
Os dados do relatório “Justiça em números 2017” demonstraram que somente no ano de 2016 os pedidos de fornecimento de medicamentos pelo SUS alcançaram o montante de 312.147 processos, um aumento de 56% em relação ao ano anterior, que contabilizou 200.090 pedidos de fármacos.9 Tamanho é o impacto da concessão pela via judicial que, exclusivamente em 2015, os vinte medicamentos mais demandados fizeram com que a União despendesse R$ 959.785.237,40 para cobrir o fornecimento.10 Note-se que este dado somente revela os custos da União com as condenações judiciais. Ainda há de se considerar que Estados e Municípios também podem ser condenados judicialmente ao fornecimento de medicamentos.
Sob outro viés, revela-se ainda mais patente a desorganização de finanças dos entes federativos, tendo em vista que a priorização de determinados gastos - que não englobam direitos fundamentais, ou sequer o mínimo existencial - distanciam a Administração Pública do cumprimento espontâneo das demandas relativas ao direito fundamental à saúde. A título ilustrativo, cabe a consideração de que parte das condenações supramencionadas da União poderia muito bem ser coberta com um corte de gastos em outros setores não relevantes, tais como: o valor pago por aquele ente federativo em auxílio-moradia, que alcançou o montante de R$ 817 milhões em 2017;11 ou ainda os valores utilizados para pagamento dos gastos em cartões corporativos, os quais implicaram, por exemplo, gastos de R$ 2.414.816,71 em um único cartão vinculado à Presidência da República, no período de janeiro a março de 2019.12 Apesar de existir um conjunto significativo de comandos constitucionais para que seja realizado um adequado planejamento das escolhas públicas, o Brasil ainda carece de uma atuação sistemática e eficiente na matéria.13 Pior que isso, muitas vezes as escolhas públicas são tomadas com base em preocupações muito afastadas do modelo de Estado social, sendo determinadas por um sistema econômico voltado aos interesses das elites dominantes, das corporações, e dos detentores do capital supranacional. Para estes grupos, sempre serão as despesas com educação, saúde e previdência as vilãs do orçamento.14 Apesar do Brasil estar entre as dez maiores economias do mundo e possuir um produto interno bruto muito significativo, não consegue sair da lista global dos países mais desiguais. Olvida-se da proteção dos direitos fundamentais, aos quais a Constituição exige respeito por parte dos agentes públicos em geral, devendo ser igualmente respeitados no âmbito das relações privadas, entre particulares.15
De todo modo, voltando ao problema estrutural, na globalidade destas demandas, o Judiciário aprecia desde casos de medicamentos já fornecidos pelo SUS,16 até medicamentos de alto custo para portadores de doenças graves que não possuem condições financeiras, conforme reconhecida tese de repercussão geral do Supremo Tribunal Federal.17 Não distante desta situação, encontra-se na jurisprudência casos de concessão de medicamentos que não possuem registros na Agência Nacional de Vigilância Sanitária, pelo que o Supremo Tribunal Federal fixou parâmetros para determinar que seja possível, pela via judicial, haver determinação para que a Administração Pública os forneça. Estes patamares que estão contidos no voto do Ministro Luis Roberto Barroso, no Recurso Extraordinário nº 657.718/MG (Repercussão Geral n° 500), envolvem critérios de existência de solicitação de registro na ANVISA, assim como análise da eficácia do tratamento pleiteado, dentre outros.
Ainda dentro deste universo de medicamentos que não possuem registro, há alguns demandados que inclusive possuem princípio ativo proibido no país, como é o caso de medicamentos à base de opioides e até mesmo substratos provenientes de cogumelos alucinógenos. O rol de substâncias e medicamentos que estão sujeitos a um regime de controle especial no Brasil é regulamentado pela Portaria n° 344/1998 do Ministério da Saúde, na qual também constam as substâncias de uso proscrito (Lista F).
O manejo (lato sensu) destas substâncias contidas na lista F ensejam a aplicação das penas previstas no art. 33 da Lei nº 11.343/2006, com pena de reclusão de até 15 anos.18 Entretanto, tais proibições vêm sendo revistas diante da possibilidade do uso controlado para fins medicinais, como é o exemplo do canabidiol que foi retirado do rol de substâncias proscritas e apresenta utilidade em diversos distúrbios neuropsiquiátricos.19 Atualmente, levanta-se a discussão acerca da liberação total de outro princípio ativo da maconha, o tetraidrocanabinol (THC), eis que demonstrada a possibilidade de utilização para vários tratamentos, desde aliviar os sintomas da quimioterapia até mesmo glaucoma, convulsões e espasmos em pacientes portadores de esclerose múltipla. De forma ainda mais recente, a ANVISA aprovou a Resolução de Diretoria Colegiada nº 325, de 3 de dezembro de 2019, a qual atualizou a lista de substâncias proibidas da Lista F da Portaria nº 344/1998, permitindo a venda de medicamentos à base de Cannabis Sativa em território nacional.
Neste sentido, o presente estudo volta-se para a análise da possibilidade de concessão de autorização para uso de medicamentos que possuem princípios ativos ilícitos constantes na Lista F da Portaria n° 344/1998 do Ministério da Saúde, em favor da dignidade da pessoa humana e proteção do direito à saúde e à vida.
Primeiramente, ressalte-se que o objetivo da pesquisa em questão não visa a discutir a liberação ou exclusão de qualquer princípio ativo do rol de substâncias proscritas na Portaria nº 344/98, mas sim analisar a possibilidade jurídica de utilização destas fórmulas em tratamentos médicos controlados, mesmo com a proibição decorrente daquela Portaria e da Lei nº 11.343/2006. No entorno desta questão criaram-se tabus, mitos e preconceitos, haja vista que em regra os medicamentos controlados constituem ou possuem relação com alguma substância entorpecente.
Após o fim da segunda Guerra Mundial, iniciou-se na Europa e nos Estados Unidos a edição de leis restringindo o uso de estupefacientes, pelo que o século XX acabou por proibir e estigmatizar drogas e drogados, considerando-os perigosos elementos que desagregam a sociedade.20 Ao revés, a evolução histórica do desenvolvimento da produção de diversas substâncias consideradas “drogas” (proibidas no Brasil) muito tem a acrescentar para o tratamento ou amenização dos sintomas de doenças raras, em especial que atingem o sistema neurológico.21 Inclusive, há muito tempo já se desenvolve no campo das ciências biológicas pesquisas sobre o tema.
Sigmund Freud dedicou muitos de seus estudos aos efeitos fisiopatológicos do uso da cocaína, realizando diversos testes, essencialmente sobre o efeito anestésico que a droga possuía, levando em consideração a utilização dessa substância (de longa data) pelos povos que habitavam a região andina da América do Sul.22 Freud chegou a mencionar em seus escritos que a propriedade da cocaína no entorpecimento da pele e das mucosas com que entra em contato pode levar a outros usos desta substância principalmente para doenças das mucosas: “graças a essa propriedade anestésica, o uso da cocaína difundir-se-á em um próximo amanhã e outros usos que se originam do efeito anestésico da cocaína podem muito bem se desenvolver”.23 Karl Köller, oftalmologista contemporâneo de Freud passou a acompanhar o trabalho desenvolvido pelo psiquiatra sobre o uso de cocaína como anestésico realizando pesquisas paralelas e, mais tarde, comunicou a descoberta da anestesia tópica do olho humano com o uso de uma solução à base de cocaína, no Congresso Oftalmológico de Heidelberg.24 O estudo em questão foi o grande responsável pela descoberta da anestesia local, o que rendeu diversas homenagens e congratulações a Köller.25
Ressalte-se, neste sentido, as múltiplas funções que se pode extrair de uma mesma substância, inclusive possibilitando inúmeras descobertas no plano da ciência e do desenvolvimento para melhor atender o direito à saúde, não podendo se tratar do tema com resistência ou intolerância - ainda que seja realmente um tema sensível. De fato, vários princípios ativos possuem dois lados, podendo causar tanto um prejuízo à saúde quanto a sua promoção.
Atualmente, os opiáceos utilizados como fármacos contra a dor são de venda controlada no mercado, podendo-se citar como exemplo a codeína, a morfina, a hidrocodona, a oximorfona e o fentanil.26 O Ópio consta na Lista A1, nº 72, da Portaria 344/1998, sendo constatado como substância entorpecente, podendo ser vendido com controle. No entanto, os medicamentos na forma líquida ou em xarope pediátrico são proibidos.27
Em relação a outra droga, percebe-se larga e crescente discussão acerca do uso da Cannabis Sativa, seja para fins medicinais, seja para fins recreativos. Os primeiros registros do uso desta planta remontam ao ano de 2723 antes de Cristo, quando a Cannabis foi mencionada na Farmacopeia Chinesa. Posteriormente difundindo-se para índia, Oriente Médio e chegando à Europa do final do século XVIII e início do século XIX, a planta era utilizada por suas propriedades têxteis e medicinais.28 Outros dados demonstram registros que datam de 2737 a.c., época na qual o imperador chinês ShenNeng prescrevia chá de maconha para tratamento de gota, malária, reumatismo e até memória fraca.
No ano de 1839, o médico britânico William O’Shaughnessy conseguiu utilizar uma tintura canábica para fazer com que uma criança parasse de ter convulsões, surgindo portanto a propriedade anticonvulsivante da planta, o que fez o uso medicinal difundir na Europa.29 Já no início do século XX, a planta começou a ser vista de forma preconceituosa por uma elite social, subjugando o uso da Cannabis por conta das minorias sociais que a utilizavam na época, difundindo então a ideia de que a maconha era um mal a ser combatido.30
Em 1961 tem-se um marco de combate às drogas com o advento da Convenção Única sobre Entorpecentes da Organização das Nações Unidas, da qual o Brasil é signatário por meio da ratificação da Convenção pelo Decreto nº 54.216/1964. Esse documento tem por objetivo o combate ao abuso das drogas, por meio da cooperação internacional e “limitação da posse, do uso, da troca, da distribuição, da importação, da exportação, da manufatura e da produção de drogas exclusivas para uso médico e científico”,31 o que, por outro lado, fez com que o uso medicinal da maconha fosse suprimido.32
A Convenção em si não determina que os países signatários proíbam o cultivo de plantas como a Cannabis Sativa, Erythroxylum coca (folha de coca) ou ainda a Papaver somniferum (planta dormideira, uma espécie de papoula utilizada para produzir o ópio), mas estabelece uma série de medidas fiscalizatórias a serem tomadas pelos países que autorizam a produção destas plantas.33
Neste sentido, observa-se que a utilização da Cannabis teve desde o início a propositura de um uso para fins medicinais, inclusive com grande avanço desde a descoberta de seu efeito anticonvulsivo. O caráter medicinal dos princípios ativos contidos nessa planta é amplamente comprovado: o tetraidrocanabinol (THC) possui efeito anti-inflamatório, analgésico, sedativo, estimulante, redutor da pressão intraocular; enquanto o canabidiol é utilizado para combater convulsões e epilepsia.34
O desenvolvimento do uso terapêutico do canabidiol foi tão importante no âmbito científico biológico que em 14 de janeiro de 2015 a substância foi retirada do rol de substâncias proibidas pela ANVISA, colocando-o na lista de substâncias controladas,35 enquanto o Tetraidrocanabinol continua a constar na Lista F-2, nº 28, da Portaria nº 144/1998. Neste sentido, é relevante ressaltar que a referida Portaria regulamenta a possibilidade de pessoas jurídicas manipularem (latu sensu) tais substâncias em seus artigos 2º a 10, no entanto, exclui-se de tal possibilidade os medicamentos e substâncias proscritos por essa normativa,36que é o caso do THC.
Entretanto, em dezembro de 2019, com a aprovação da RDC nº 325, a ANVISA passou a permitir a venda de medicamentos que contém Canabidiol e Tetrahidrocannabinol, em concentração máxima de 30 miligramas de cada um dos princípios ativos, de forma controlada.37 A normativa que entra em vigor em 90 dias a contar da publicação demonstra, desde logo, um resgate do tema e avanços no âmbito da regulação de medicamentos. O fato em questão é um marco importante para a discussão sobre os fármacos com princípios ativos proibidos, tendo em vista que há possibilidade de revisão do uso de tais substâncias a fim de torná-las mais acessíveis pelo uso controlado medicamentoso, regulamentando as doses corretas sem a necessidade de liberar o uso da substância de forma geral, inclusive para fins recreativos.
Conforme mencionado, a Convenção de 1961 sobre entorpecentes não proibiu a produção destas plantas milenarmente conhecidas por seu uso medicinal, mas apenas delimitou a atuação estatal de modo que o país signatário dessa Convenção que optasse pela liberação da produção regulasse a matéria. A opção por inserir essas fórmulas no rol de proibições foi uma escolha legislativa do Estado brasileiro, não havendo proibição vinculante no âmbito internacional.
Ao contrário, a possibilidade de rever as vedações provenientes de uma política criminal repressiva é uma tendência mundial.38 A liberação, todavia, não deve ser feita de forma aleatória. Devem ser estabelecidos critérios expressos, claros e congruentes. Nos Estados Unidos da América, a empresa britânica GW Pharmaceuticals é a primeira a receber autorização para comercializar um tratamento derivado de cannabis para graves casos de epilepsia infantil, alcançando uma projeção de vendas no patamar de aproximados R$ 4,5 bilhões por ano.39
No Brasil, a proposta feita pelo Ministro Luis Roberto Barroso (conforme demonstrar-se-á adiante) e recentemente aprovada pelo Supremo Tribunal Federal para concessão de fármacos sem registro na ANVISA deve-se pautar, inclusive, na comprovação da eficácia do medicamento por meio de seu registro em outras renomadas agências reguladoras fora do Brasil.40 As pesquisas globais nesta seara estão avançando em proporções geométricas. No entanto, ao passo que o desenvolvimento global da pesquisa sobre estes princípios ativos proibidos parece consolidar-se cada vez mais a fim de alcançar novas alternativas para proteção da saúde, no Brasil desenvolve um cenário instável e antagônico. A recente Lei nº 13.840, publicada em 05 de junho de 2019, traz em seu texto além de programa para readaptação do usuário de drogas, novas políticas de combate ao uso de entorpecentes de modo a enrijecer a já existente, instituindo inclusive a modalidade de internação involuntária.41 Diretrizes como estas, já aprovadas pelo Congresso Nacional, novamente trazem as drogas como um problema social, não como possível alternativa aos tratamentos de saúde obsoletos para muitos pacientes. O retrocesso é evidente e caminha em sentido oposto aos avanços civilizatórios racionais inerentes ao desenvolvimento da ciência.
Por outro lado, apartando-se do Legislativo e Executivo nacionais contemporâneos, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária vem apresentado desenvolvimento maior sobre o tema, desde o aumento dos pedidos de importação do canabidiol até a recente consulta pública sobre e a possibilidade de liberação do plantio da Cannabis Sativa para uso medicinal.42 Desta forma, resta fortalecida a ideia de serem retomadas as pesquisas, bem como de redeliberação sobre as proibições provenientes da atual política criminal de drogas no Brasil. É altamente desejável, a partir de uma hermenêutica de concretização do Estado Social estabelecido na Constituição de 1988, ser construído um caminho mais acessível aos tratamentos alternativos com uso de substâncias proscritas. Neste cenário é que se insere a RDC 325, por meio da qual a ANVISA reconheceu a existência de finalidades medicamentosas de substância proibida, permitindo a venda de medicamentos a base de THC, afastando-se o plantio de maconha.43
Neste sentido, observa-se que o tema dos medicamentos com princípios ativos proibidos vem tomando grande repercussão no âmbito nacional. Em 2014, a Superinteressante lançou seu primeiro curta-metragem, denominado “Ilegal”, abordando a luta de pacientes pela legalização da maconha medicinal no Brasil.44 A inspiração para desenvolvimento do documentário foi a história de Katiele Bortoli Fischer, que buscava a importação de canabidiol para sua filha Anny (5 anos), que possui uma síndrome que desencadeia um tipo grave e sem cura de epilepsia, tendo diversas crises de convulsões (até 80 por semana). A dificuldade enfrentada pela família na burocracia para importação do fármaco volta-se ainda ao combate do preconceito e desinformação sobre o uso de remédios à base de Cannabis.
No documentário, demonstra-se a seriedade do acompanhamento médico que indica a inexistência de outro tratamento eficaz para casos como o de Anny e a dificuldade de obter um tratamento como este, haja vista que até então o médico que prescrevesse medicamento à base de maconha poderia perder seu registro no Conselho Federal de Medicina. Outro aspecto relevante do documentário envolve a busca pela liberação da substância pela via legislativa: as mães de pacientes que necessitavam utilizar tais fármacos foram até Brasília a fim de conquistar a liberação apenas para fins medicinais por meio de Lei, entretanto a inércia dos deputados, o preconceito, ou ainda diferenças de interesse obstaram a conquista por intermédio da Câmara de Deputados.45
A situação demonstrada no curta-metragem inspirou ainda o “Repense”,46 uma campanha para incentivar o debate e as reflexões sobre o uso medicinal da maconha no Brasil.47 Ainda conforme demonstrado no documentário, houve a mobilização de várias famílias que sofriam com casos parecidos com o de Anny em passeatas e manifestações sobre o uso medicinal da “droga”, abrangendo cada vez mais tratamentos não só à base de canabidiol, mas também do outro princípio ativo extraído da planta, o tetraidrocanabinol.48
Todo esse aparelhamento e estudo sobre o uso medicinal da Cannabis fez com que a ANVISA anunciasse no 4º Simpósio Internacional da Cannabis Medicinal a aprovação da reclassificação do canabidiol (CBD), retirando-o da lista de substâncias proscritas (F1) para a lista C1, que permite a prescrição médica com receita normal em duas vias.49 Diante deste cenário, em 2015 a substância foi efetivamente retirada do rol de substância proscritas, a fim de facilitar o uso do CBD para tratamentos.50 A ANVISA elaborou um procedimento administrativo para facilitação da solicitação de importação de canabinóides. O Procedimento foi criado pela Resolução de Diretoria Colegiada nº 17 de 6 de maio de 2015, consistindo nas seguintes etapas para importação de canabinóides: consulta médica e prescrição, cadastramento de pacientes na ANVISA, análise do pedido, autorização para importação, aquisição e importação do produto e, por último, fiscalização e liberação na importação pela ANVISA.51 No entanto, há de se ressaltar dois pontos em relação ao procedimento administrativo:52 o primeiro deles é de que a RDC não prevê prazo para finalização do processo, ou seja, o particular fica à mercê da apreciação do pedido Agência Reguladora, podendo se estender mais do que a saúde do paciente permite; ainda, a própria RDC prevê a possibilidade de concessão para autorização, por prazo máximo de 1 ano, ainda em caráter de excepcionalidade, conforme seu artigo 12.53
A discussão toda se volta para proteção do direito à saúde sob a óptica de substâncias primariamente dispensadas ou mal vistas, porém com grande potencial de amenização de sintomas, senão até a cura. Não parece razoável supor que tais substâncias devem ser extirpadas em todos os âmbitos, inclusive na medicina, simplesmente por estarem previstas na lista F da Portaria nº 344/1998. Ademais, no início de 2017, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária registrou o medicamento Mevatyl®, o primeiro do país à base de Cannabis Sativa (princípios ativos: tetraidrocanabinol e canabidiol), cujo propósito é tratar espasticidade de pacientes portadores de Esclerose Múltipla.54 Portanto, reconhecendo a necessidade do tratamento, este registro é um marco importante no tema das substâncias proscritas, haja vista que um dos princípios ativos deste medicamento (tetraidrocanabinol) ainda consta como substância de uso proscrito na Portaria nº 344/1998 do Ministério da Saúde.
O uso dos princípios ativos da planta para tratamentos médicos é cada vez mais crescente: pacientes com Epilepsia, Síndrome de Parkinson, Microcefalia e diversas outras doenças buscam diariamente para conseguir autorização e fazer uso da planta in natura ou de seus medicamentos derivados.55 Especificamente em relação à molécula que é proibida no Brasil (THC), há comprovação de sua eficácia como recurso terapêutico para a redução das náuseas, vômitos e dor para pacientes que estão se submetendo a sessões de quimioterapia para cura do câncer, especialmente aqueles que não respondem aos antieméticos normais.56 A inclusão da Cannabis medicinal para pacientes inscritos no programa de medicina paliativa demonstrou que há melhora nos sintomas decorrentes do tratamento oncológico tais como cansaço, sonolência, depressão, náusea, apetite e até ansiedade.57
Cite-se alguns remédios que possuem THC e eficácia comprovada fora do Brasil, bem como sua indicação: Marinol (Dronabinol, THC sintético), aprovado nos EUA para amenizar perda de apetite associada ao HIV e também para os sintomas reflexos da quimioterapia; CESAMET (Nabilona, canabinóide sintético semelhante ao THC), liberado nos EUA, Canadá, Reino Unido e México para combater os sintomas da quimioterapia, também para anorexia e perda de peso de pacientes com HIV e atua como analgésico para dores neuropáticas para pacientes com fibromialgia e esclerose múltipla; SATIVEX (THC e CBD provenientes do extrato de Cannabis Sativa), aprovado no Canadá, Reino Unido e Espanha, com a finalidade de tratamento de esclerose múltipla e glaucoma; BEDROCAN (THC e CBD), criado na Holanda - variando os percentuais dos princípios ativos pode ser utilizado para tratamento de convulsões e glaucoma.58
A utilização de um princípio ativo proibido como o tetraidrocanabinol pode impactar significativamente no tratamento de diversas doenças, razão pela qual tanto a Administração Pública quanto o Poder Judiciário devem observar tais terapias alternativas buscando proteger efetivamente o direito à saúde do cidadão. A possibilidade da Administração Pública conceder autorização para importação desses medicamentos consubstancia-se no fato de que já o fazia com o canabidiol antes desta substância ser liberada, bem como no fato de já ter registrado medicamento com princípio ativo proibido, conforme demonstrado. Posteriormente, a RDC 325 justamente autoriza a venda de medicamentos com CDB e THC de forma controlada, de modo a corroborar com tal tese e demonstrar a possibilidade de se ter uma regulamentação administrativa mais efetiva.
Em que pese a discussão voltar-se até o momento sobre os derivados da Cannabis, não se exclui a possibilidade de utilização de outras substâncias proscritas para fins medicinais, tais como: Etretinato (derivado da vitamina A) medicamento desenvolvido pela empresa Hoffman-La Roche e aprovado nos EUA desde 1986,59 para o tratamento de psoríase grave;60 fármacos com opioides, tais como Fentanil (Actiq e Sublimaze), indicados para tratamento de dor irruptiva de pacientes em terapia oncológica;61 ou até mesmo fármacos com base de psilocibina, molécula extraída de cogumelos alucinógenos que pode ser utilizada para tratamento de depressão aguda, conforme pesquisa desenvolvida pela Imperial College London.62
Assim, observa-se que há ampla possibilidade de utilização destas substâncias inseridas na lista F da Portaria nº 344/1998 do Ministério da Saúde para fins medicinais, pelo que não há de se restringir seu uso nestes casos, especialmente aos pacientes que necessitam urgentemente destas substâncias. Por outro lado, há de se observar determinados critérios que delimitem a concessão destas substâncias, haja vista que a proposta é o uso terapêutico e não recreativo.
O Ministério da Saúde publica periodicamente a atualização da Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME), os quais compõem uma lista de orientação para a assistência farmacêutica a ser seguida pelos entes da Federação. A título exemplificativo, da análise do RENAME de 2018, observa-se que nenhum os medicamentos anteriormente mencionados (Sativex, Marinol, Cesamet e Bedrocan) ou alguns de seus princípios ativos (THC e CBD, provenientes da Cannabis Sativa) constam naquela lista.63 Por esta razão, ressalte-se que aquele que postula o fornecimento de um fármaco com princípio ativo proscrito postula simultânea e consequentemente um medicamento não fornecido pelo SUS.
Assim sendo, diante de reiteradas demandas sobre medicamentos que não constam nas listas do SUS, o Superior Tribunal de Justiça decidiu pela afetação do Recurso Especial nº 1.657.156/RJ ao rito previsto no art. 1.036 do Código de Processo Civil, instaurando procedimento de Recursos Especiais Repetitivos (tema nº 106). O referido Tribunal optou também pela decisão em que pudesse fixar parâmetros jurisprudenciais a serem observados pelos magistrados quando do julgamento de demandas que pleiteiam medicamentos não abarcados no RENAME. Em 4 de maio de 2018 o Tribunal procedeu ao julgamento do tema sobre a obrigatoriedade do poder público de fornecer medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS, fixando a tese de que deve haver comprovação da imprescindibilidade do tratamento e ineficácia dos tratamentos fornecidos pelo SUS, demonstração de incapacidade financeira do cidadão, bem como existência de registro na ANVISA do medicamento pleiteado.64 É possível resumir em três os requisitos: 1. comprovação da necessidade do fármaco, 2. incapacidade financeira da parte e 3. registro do medicamento na ANVISA.
Até o julgamento da Repercussão Geral nº 500 pelo Supremo Tribunal Federal, a fixação de tais parâmetros trouxe dois posicionamentos divergentes na jurisprudência: primeiramente, alguns julgadores optaram pelo entendimento de que os fármacos sem registro na ANVISA não poderiam ser concedidos na via judicial, tendo em vista a exigência do registro constar dentre os requisitos previstos pelo Superior Tribunal de Justiça;65 outros, em contraposição, compreenderam pela possibilidade (em casos excepcionais) de o Poder Judiciário viabilizar o fornecimento de fármacos sem registro, eis que tal emento não é impeditivo para concretização do direito fundamental à saúde.66
Assim, tais requisitos não foram suficientes para abarcar as várias solicitações de fármacos em diferentes situações de judicialização, o que ressaltou ainda mais a imprescindibilidade da fixação de uma tese única para cada caso. Por exemplo: para medicamentos que não constam nas listas de fornecimento do SUS, tem-se a fixação de uma tese pelo Superior Tribunal de Justiça nos moldes de recursos repetitivos com o tema nº 106; também recentemente julgada, para os medicamentos de alto custo, o Supremo Tribunal Federal fixou a Repercussão Geral nº 6, com a fixação de outros critérios; já para medicamentos não registrados na ANVISA, tem-se a Repercussão Geral nº 500. Observa-se, portanto, que na própria jurisprudência há a subdivisão dos temas que envolvem a concessão de medicamentos pela via judicial, reconhecendo desde logo a existência de situações diferentes, levando em consideração as especificidades dos casos que levaram à judicialização.
Nesta seara, dentre os medicamentos solicitados demandados pela população, vários deles não possuem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária, pelo que a alternativa restante para sua concessão é a via judicial. Cite-se como exemplo o fármaco lomitapida, que não possui registro na Agência responsável e, portanto, não está incluído na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais - RENAME e não compõe nenhum Programa de Assistência Farmacêutica do Sistema Único de Saúde.67 Entretanto, na lista dos medicamentos sem registro mais pedidos judicialmente (2015), tal medicamento alcança o segundo lugar, com a despesa de mais de R$ 41 milhões a ser arcada pela União.68
Esclareça-se que a análise em questão é de extrema importância para os medicamentos que possuem princípio ativo proscrito no Brasil, haja vista que a Portaria nº 344/1998 prevê a possibilidade de concessão de autorização especial para pesquisa com as substâncias contidas na Lista F,69 mas proíbe a prescrição médica para tratamentos alopáticos ou homeopáticos.70
A crescente demanda pelos medicamentos sem registro na ANVISA fez com que o Supremo Tribunal Federal reconhecesse a importância do tema na Repercussão Geral de número 500 (Recurso Extraordinário n° 657.718), a fim de estabelecer parâmetros para o fornecimento judicial de tais medicamentos não registrados. Primeiramente, o recurso paradigma em questão foi julgado extinto sem a resolução do mérito,71 com fundamento no art. 485, IX do Código de Processo Civil,72 não impedindo o prosseguimento da análise, cuja Repercussão Geral fora anteriormente reconhecida. Através do julgamento do tema, inicialmente o Ministro Luís Roberto Barroso publicou em 2016 a sua proposta de voto, estabelecendo novos critérios para a concessão de medicamentos sem registro na ANVISA.73 O Ministro dividiu a análise da concessão dos medicamentos sem registro em dois cenários. O primeiro deles envolve os fármacos experimentais (sem eficácia comprovada), cujo fornecimento e importação pela via judicial não podem ser concedidos, conforme entendimento do Ministro. O segundo cenário abarca os medicamentos sem registro na ANVISA, mas com eficácia comprovada, os quais podem ser fornecidos judicialmente em caso de irrazoável mora da ANVISA em apreciar o pedido de registro do medicamento, por mais de 365 dias, devendo preencher os seguintes requisitos: 1. medicamento submetido a registro no Brasil, sem que tenha havido qualquer manifestação pela negativa de registro pela Anvisa; 2. ausência de substituto terapêutico registrado na agência em questão; 3. registro em renomadas agências reguladoras fora do Brasil. Apesar de não ter elencado na lista de requisitos, o Ministro Barroso ainda determinou que “Preenchidos tais requisitos, o Estado deverá viabilizar a importação do fármaco, mas somente deverá custeá-lo quando demonstrada a hipossuficiência do requerente. Nos demais casos, o próprio requerente deverá arcar com os custos envolvidos no processo”.74 Por último, indicou que as ações que pretendem o fornecimento de fármacos sem registro devem ser propostas em face da União, haja vista que o requisito essencial é a mora de registro por uma agência reguladora federal.
Dentre tais requisitos e apontamentos levantados pelo Ministro, num primeiro momento, merece especial atenção a necessidade da mora na apreciação do pedido de registro por mais de 365 dias pela agência responsável. Tal requisito é tão irrazoável que no próprio Leading case da repercussão geral ocorreu justamente o que se pretende evitar com a concessão judicial dos medicamentos: Alcirene Oliveira, a autora da ação que buscava medicamento sem registro na Anvisa, faleceu em dezembro de 2017 e, mesmo que não tenha sido exclusivamente em razão da doença que lhe acometia, o caso demonstra também a mora judicial em um processo que já estava em andamento há sete anos.75 A ideia de se fixar um prazo mínimo de 365 dias para que a Anvisa não tenha observado o pedido de registro não é favorável ao paciente e muito menos à tutela do direito à saúde e à vida, pois faticamente o que se conclui é que a análise feita pela Anvisa não é adequada e muito menos tempestiva, razão pela qual o procedimento de aguardar o registro não é compatível com as necessidades dos pacientes que precisam destes novos fármacos para tratamento.76 Por outro lado, o que o Supremo Tribunal Federal pretende é salvaguardar um patamar mínimo de segurança jurídica nas demandas desses fármacos.
Um ponto obscuro da proposta referida era sobre a possibilidade de concessão de tais medicamentos em sede de tutela antecipatória, o que por si só supriria a necessidade de se aguardar tal lapso temporal, podendo estabelecer de pronto um tratamento inicial com o fármaco requerido e, posteriormente, ser confirmada ou não a obrigação de prestação estatal no julgamento final do mérito.
A tese final aprovada pelo Supremo Tribunal Federal excluiu o requisito temporal de mora anteriormente proposto, suprimindo a imposição de espera pelo cidadão que pleiteia o medicamento. Portanto, após a deliberação dos Ministros, o Supremo Tribunal Federal fixou a seguinte tese sobre a concessão de fármacos sem registro na ANVISA: “Não se pode obrigar o Estado a fornecer medicamentos experimentais; a inexistência de registro na ANVISA impede o fornecimento pela via judicial, via de regra; é possível o fornecimento de tais medicamentos por meio de decisão judicial, desde que comprove-se a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil, a existência de registro do remédio em renomadas agências de regulação internacionais e a inexistência de substituto terapêutico com registro.” A tese condicionou, ainda, o ajuizamento das ações que visam o fornecimento de medicamento sem registro em face da União.77
Assim, em relação à aprovação da ANVISA, basta que haja solicitação de registro do medicamento, não havendo mais prazo de mora para pleitear o medicamento judicialmente. Persistiram, deste modo, a imprescindibilidade da existência de registro em renomadas agências reguladoras internacionais e a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil. Novamente, reafirmou-se a legitimidade passiva da União para tais casos.
Em relação a estes outros parâmetros fixados no julgamento da Repercussão Geral nº 500, destaca-se a comprovação da eficácia do medicamento por meio de seu registro em outras renomadas agências reguladoras fora do Brasil. Num primeiro momento, o relator do caso (Ministro Marco Aurélio) havia proferido seu voto pela impossibilidade de o Estado fornecer medicamentos sem registro. Em posterior oportunidade, aditou seu voto também concordando com o Ministro Barroso no sentido de que “medicamentos não registrados no Brasil, mas devidamente testados e certificados no exterior podem ser fornecidos pelo Poder Público”, limitando o fornecimento às pessoas em situação de vulnerabilidade financeira e à comprovação da indispensabilidade do fármaco.78
Em verdade, trata-se do ponto central do debate, haja vista que este critério deveria ser o elemento norteador para o provimento do pedido. Em que pese o art. 24 da Lei nº 6.360/76 possibilitar a prescrição e uso experimental de medicamentos,79 é certo que a exigência de expressa autorização do Ministério da Saúde torna essa hipótese de excepcional insurgência,80 também pelo fato de que o parágrafo único desse mesmo artigo prevê a isenção do registro por prazo máximo de três anos, portanto uma solução de curta duração e em casos extraordinários. Neste enfoque, é necessário dizer que os requisitos em questão - demonstração da eficácia e da necessidade do tratamento pleiteado -devem ser respeitados na concessão de medicamentos com princípios ativos proibidos no Brasil, garantindo a tutela efetiva do direito à saúde e eliminando riscos ao demandante.
Por outro lado, o que se conclui é que tais parâmetros fixados pelo Supremo Tribunal Federal ainda não estão aptos a atender a necessidade sociais das demandas por fármacos, sejam eles sem registro na ANVISA, mas com eficácia comprovada, sejam os que possuem princípio ativo proibido no Brasil que estão incluídos neste rol.81 Em que pese o critério de mora da ANVISA ter sido retirado da tese de Repercussão Geral, a solicitação de registro depende diretamente da empresa farmacêutica que fabrica o fármaco pleiteado, eis que a primeira etapa para o registro de medicamentos novos é a regularização sanitária da empresa.82 Segue-se ainda um grande encadeamento de atos que pode resultar no deferimento ou indeferimento do pedido e, portanto, é procedimento também moroso. Há clara necessidade de observância da razoabilidade para resposta à demanda formulada por pedido administrativo dos cidadãos, especialmente quando se trata de direitos fundamentais sociais, como é o caso do direito à saúde e à vida.83 Coloca-se, portanto, a imprescindibilidade do medicamento para o demandante de forma vinculada à vontade da iniciativa privada.84 O particular pode solicitar a importação de medicamento sujeito a controle especial para uso próprio com a finalidade de tratamento de saúde,85 o que não se confunde com o registro do medicamento na ANVISA. Outrossim, se há requisição de que o medicamento esteja registrado em outras agências reguladoras fora do Brasil - demonstrando que o medicamento é eficaz para o fim que pretende o demandante - a solicitação de registro na ANVISA em nada interfere na apreciação da imprescindibilidade e eficácia do medicamento, eis que é ato meramente formal para fins da ação judicial.
A solicitação de registro não demonstra a eficácia do tratamento, eis que não há garantia de que o registro será deferido pela ANVISA; ainda, não demonstra a necessidade do medicamento pelo demandante; não comprova a hipossuficiência da parte; outrossim não demonstra a existência de registro no exterior. Desse modo, por todos estes elementos, este requisito firmado pelo STF não se afigura como razoável, eis que pode inclusive colocar o direito fundamental à saúde e à vida em risco.
Diante de tais considerações, inicialmente, deve-se reconhecer que não é adequada a simples concessão imediata de autorização para o uso dos referidos medicamentos com substâncias proibidas, mas sim a defesa de um juízo de ponderação no caso concreto de modo que a tutela jurisdicional seja efetiva na garantia dos direitos fundamentais, em plena consonância com as determinações da lei. Ainda, é imperioso buscar no Direito administrativo os elementos aptos à satisfação dos direitos fundamentais sociais, eis que esta atividade é atribuída primariamente à Administração Pública (para que só posteriormente haja a atuação judicial),86ensejando também uma regulamentação administrativa eficaz.87
De modo geral, nas demandas judiciais por remédios observa-se que pouco se escreve, decide ou reflete sobre a real condição de quem está pleiteando o tratamento. Faz-se necessário perceber que estas pessoas terão de pedir, enfrentar a falta de conhecimento de operadores do Direito sobre o assunto, tanto sobre os mecanismos de funcionamento da assistência pública de saúde, quanto em relação à doença que lhe acomete.88 Este sistema busca criar uma padronização da própria jurisprudência, com a criação de requisitos e até um engessamento dos parâmetros para o provimento judicial. Destarte, parte-se novamente da necessidade de abertura para desenvolvimento da pesquisa em relação às substâncias proscritas no âmbito nacional, a fim de demonstrar a eficácia de múltiplos tratamentos à base de tais substâncias, bem como a possibilidade de desenvolvimento de uma melhor qualidade de vida e saúde de diversos pacientes com tais tratamentos vedados pelo Direito Penal.
É incontestável que os problemas sociais vividos no país guardam íntima relação com a medida da prestação dos serviços públicos, sendo necessário equilíbrio no repensar da gestão destes serviços à luz da realidade de carência social experimentada pela população.89 Neste sentido, há de se considerar que a dignidade da pessoa humana é o ponto de partida para a justificação dos fins do Estado democrático contemporâneo, possuindo a felicidade como determinante imprescindível da atuação estatal para atingir o desenvolvimento da personalidade do cidadão.90 Portanto, busca-se atingir o pleno desenvolvimento pessoal através de prestações estatais aptas a concretizar o desenvolvimento, primariamente observando-se as necessidades e anseios sociais.
Em termos de direitos fundamentais sociais, a Constituição da República de 1988 estabeleceu em seu artigo 6º um rol que abarca o direito à educação, trabalho, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados e a saúde. Mais adiante, o texto constitucional pormenoriza o título relativo à Ordem Social (artigos 193 a 232) trazendo mecanismos e meios de ação para que o Estado forneça aos indivíduos titulares destes direitos subjetivos públicos e interesses legítimos tais direitos.91
Relativamente ao direito à saúde, o artigo 196 da Constituição da República afirma que “é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” De pronto, observa-se a universalidade desse direito bem como a necessidade de uma prestação positiva estatal a fim de assegurá-lo.92 Já no artigo 200 da Constituição, direciona-se ao Sistema Único de Saúde uma série de competências funcionais,93 demonstrando a necessidade de uma prestação positiva estatal apta a concretizar o direito à saúde e proteger o direito à vida.94
A partir da interpretação sistemática dos enunciados constitucionais que tratam sobre o direito à saúde, vê-se o surgimento de um direito fundamental em sentido amplo que reúne várias prestações jurídicas jusfundamentais com diferentes funções,95 sejam elas: função de defesa, por meio da qual há liberdade de escolha de práticas diagnósticas, métodos terapêuticos e medicamentos que o titular do direito vai utilizar, vedando-se imposições estatais; função de prestação fática, pela qual deve-se fornecer serviços médicos ambulatoriais ao cidadão; função de organização, para criação de órgãos e pessoas jurídicas bem estruturados para atendimento da população; função de procedimento, pela qual o Estado deve elaborar normas administrativas para regulamentação da distribuição gratuita de medicamentos, assim como formular listas de medicamentos que integram o componente básico da assistência farmacêutica; e função de proteção, definindo-se uma política pública sanitária que fixe normas proibitivas acerca da comercialização de produtos e insumos potencialmente causadores de risco à saúde, também fiscalizando a observância de tais normas pelos particulares.96
A combinação destas funções expressas através das diversas prestações jurídicas jusfundamentais resulta em uma proteção do direito de escolha pelo indivíduo daquele tratamento que irá melhor atender às suas necessidades.97 Portanto, o texto constitucional possibilita a concretização do direito fundamental à saúde sob diversos aspectos, sempre levando em consideração as necessidades básicas extraídas da prestação jurídica pleiteada.
Em relação aos medicamentos que possuem princípios ativos ilícitos, destaque-se a importância da competência do SUS no que tange os incisos I e VII do art. 200: o controle e fiscalização de “procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos”, bem como “participar do controle e fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos”. Assim, direciona-se à Administração Pública - por meio do Sistema Único de Saúde - o dever de fiscalizar e controlar a produção de medicamentos e insumos de modo geral, haja vista que a satisfação dos direitos fundamentais sociais (como é a saúde) é atribuída primariamente à Administração Pública.98 O art. 196 da Constituição prevê expressamente que a saúde é um dever do Estado, em que pese os artigo 198, II e 199 prevejam a participação da comunidade e da iniciativa privada.99
Ainda sob outra perspectiva, há de se mencionar a inércia do Poder legislativo sobre o tema, que também não atua de modo a permitir ou regulamentar a possibilidade de utilização, importação ou produção destes remédios. É facilmente demonstrável a inação legislativa diante de uma divergência de posições dos parlamentares: enquanto alguns defendem a possibilidade de liberação exclusivamente do canabidiol, outros constatam que a via legislativa deveria buscar a liberação do uso de Cannabis tanto para fins medicinais quanto recreativos. De um modo ou de outro, a regulamentação para importação do CBD foi feita pela via administrativa, não por atuação do legislativo. Entretanto, observe-se o que dispõe o artigo 23, inciso II, da Constituição da República: é competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios cuidar da saúde.100 Por sua vez, o artigo 197 da Constituição remete ao legislativo a regulamentação das ações e serviços de saúde,101 implicando em uma responsabilidade também deste Poder sobre os medicamentos a que este trabalho se refere. Primariamente, portanto, cabe ao Estado promover medidas administrativas e legislativas que assegurem o acesso à saúde e, no tocante aos medicamentos com princípios ativos proibidos, a regra não é diferente.
Sobre a atuação legislativa sobre o direito à saúde, destaque-se alguns diplomas normativos: primeiramente, a Lei Federal nº 5.991/1973, que dispõe acerca do controle sanitário do comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos;102 por sua vez, a Lei nº 6.360/1976, que ordena a vigilância sanitária a que ficam sujeitos os medicamentos, as drogas, os insumos farmacêuticos e correlatos, cosméticos, saneantes, dentre outros produtos;103 já a Lei nº 8.080/90 dispõe sobre a organização e funcionamento dos serviços de proteção, promoção e recuperação da saúde.104 Diante deste cenário, demonstra-se que o Poder Legislativo - inclusive por força do texto constitucional - possui a incumbência de elaborar leis sobre o tema, pelo que poderia elaborar uma lei que disponha acercada possibilidade de produção, importação e utilização das substâncias proibidas para fins medicamentosos.
Recentemente, diante da discussão acerca da intenção de liberação do plantio de Cannabis para fins medicinais que a ANVISA pretende implementar, a Casa Civil do Palácio do Planalto emitiu nota à imprensa informando que é contrária à proposta da ANVISA, afirmando que a ideia é estimular apenas a importação da matéria prima proveniente da planta (o que, em verdade, a ANVISA já regulamentou e já autoriza, mediante procedimento administrativo).105 No entanto, este posicionamento somente atrasa o desenvolvimento de uma questão que é relevante para a saúde pública, vedando ainda a exploração econômica e científica que a pesquisa decorrente deste cenário poderia proporcionar.106 Trata-se de uma condução equivocada do assunto pelo Governo Federal, na contramão da história e de uma perspectiva racional relativa ao tema.
Em relação aos substratos proscritos, a Portaria 344/1998 exclui a possibilidade de pessoas jurídicas manipularem as substâncias proscritas em seu art. 4º, salvo com autorização da ANVISA para fins científicos,107 ou seja, barra-se a produção de tais substâncias para comercialização com finalidade terapêutica no Brasil, fazendo com que a única solução seja a busca por autorização para importação e uso dessas substâncias.
Outra possível solução a ser adotada pela Administração Pública (por intermédio do Ministério da Saúde e da ANVISA) seria regulamentar de forma diferenciada a importação das substâncias proscritas apenas para fins terapêuticos, excluindo-se a liberação da droga para uso recreativo, como vem fazendo no caso do Canabidiol. Assim, garante-se o desenvolvimento da pesquisa sobre tais substâncias no plano do desenvolvimento nacional, banindo o indesejado uso indiscriminado de entorpecentes. Retomando-se a discussão acerca do tetraidrocanabinol, observa-se que a mora e a burocracia da agência responsável tornam mais difícil o acesso ao tratamento mais bem indicado para vários quadros clínicos. Tanto é possível realizar tal alteração normativa a fim de concretizar o direito subjetivo do cidadão que o Ministério Público Federal ajuizou a Ação Civil Pública nº 0090670-16.2014.4.01.3400 contra a União e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária a fim de as rés procedessem a retirada do THC da lista F da Portaria nº 344/98, para incluí-lo na lista das substâncias psicotrópicas sujeitas à notificação de receita, outrossim para que realizassem um adendo à lista E da Portaria (plantas proscritas que podem gerar substâncias entorpecentes e/ou psicotrópicas) para autorizar o uso, posse, plantio, cultura, colheita, exploração, manipulação, fabricação, distribuição, comercialização, importação, exportação e prescrição, exclusivamente para fins médicos e científicos, das diferentes espécies e variedades de cannabis, bem como dos produtos derivados dessas plantas, dentre outros pedidos que envolvem a liberação da importação dos produtos provenientes da cannabis desde que com prescrição médica. Na Ação em trâmite na 16ª Vara Federal da Subseção Judiciária do Distrito Federal foi proferido despacho que concedeu liminarmente o pedido e também houve sentença de mérito favorável (datada de 15/06/2018) confirmando a medida liminar - portanto, julgando a ação parcialmente procedente para fins de: determinar a exclusão do THC da lista F, conforme pedido do Ministério Público; adequar a lista E da Portaria com o referido adendo, autorizando o uso de tais substâncias com prescrição médica; conceder a permissão para a prescrição médica e pesquisa científica dos produtos provenientes da Cannabis.108 Igualmente, poderia a ANVISA elaborar um regime diferenciado para pesquisa e importação de medicamentos com substâncias proscritas, como o fez com o canabidiol. Assim, não se permite a importação desenfreada de substâncias ilegais e garante-se o acesso aos medicamentos necessários ao tratamento mais bem indicado.
O Ministro Luis Roberto Barroso em seu primeiro voto na Repercussão Geral nº 500 reconheceu que “os avanços tecnológicos e o investimento em pesquisa permitiram o desenvolvimento de grande variedade de medicamentos, responsáveis por garantir maior bem-estar e saúde para as pessoas e por aumentar as perspectivas de cura de doenças”.109 Portanto, é incoerente reconhecer os avanços que os estudos e pesquisas farmacológicos trazem, sem autorizar que tais desenvolvimentos possam ser feitos no âmbito nacional, pelo que é necessária uma regulamentação mais eficaz por parte da Administração Pública. Por outro lado, observa-se uma verdadeira deficiência na prestação do direito à saúde pela Administração: as filas e a superlotação em hospitais públicos,110 os mais de trezentos mil pedidos de medicamentos pela via judicial,111 bem como a burocracia enfrentada por famílias para conseguir importação de medicamentos na ANVISA (conforme demonstrado no documentário “Ilegal”) são fenômenos aptos a comprovar a ofensa ao princípio constitucional da eficiência no que tange à garantia do direito fundamental à saúde.112 A saída para a busca de medicamentos acaba sendo a via judicial.
Importante ressaltar que “o direito ao acesso aos medicamentos é desrespeitado pelo Estado ante à insuficiência de políticas públicas proativas, preventivas e progressivas. Um desenvolvimento sustentável no que tange aos medicamentos diz respeito ao seu acesso e à fabricação”.113 Assim, não se vislumbra tão somente restringir o acesso à saúde à determinação judicial em desfavor do Estado para que este forneça o medicamento pleiteado, sendo imprescindível o reconhecimento de que a tutela jurisdicional efetiva em termos de direito à saúde englobe também a autorização para uso de medicamentos com substratos proibidos, ou ainda cultivo de plantas medicinais.114 Deste modo, a fim de sanar uma falha no fornecimento de medicamentos por parte da Administração Pública, concretiza-se tal direito pela via judicial que começa a estabelecer certos parâmetros, como no caso da Repercussão Geral nº 500 supramencionada.
Para o caso dos medicamentos com princípios ativos proibidos, há de se observar alguns fundamentos e requisitos aptos a salvaguardar o direito do titular, também como forma de não se propagar uma liberação generalizada de tais substâncias.
Primeiramente, considere-se que apesar de ser comum a referência à tutela do direito à saúde em termos gerais, cada um de seus conteúdos e prestações decorrentes desse direito pode exigir diferentes soluções jurídicas para que sejam normativamente adequadas.115 Assim, nem sempre o remédio fornecido pelo sistema único de saúde é o tratamento mais indicado ou até mesmo mais eficaz para o paciente, pelo que o uso de tratamentos alternativos provenientes de substâncias proscritas pode ser o que melhor apresenta resultados para tratamentos diversos, conforme exposto.116 Através da concessão de autorização para importação e uso de substâncias proibidas com fins medicamentosos, objetiva-se a proteção do direito à saúde e à vida do tutelado com fundamento no conteúdo jurídico do princípio da igualdade, pelo qual “qualquer elemento residente nas coisas, pessoas ou situações, pode ser escolhido pela lei como fator discriminatório, donde se segue que, de regra, não é no traço de diferenciação escolhido que se deve buscar algum desacato ao princípio isonômico.”117 Isto porque o tratamento diferenciado concedido a estes pacientes tem por fundamento uma desigualdade pré-existente em termos de saúde. Considerando-se que cada indivíduo apresenta situações próprias que demandam cuidados singulares, os quais o Direito tutela na medida de suas necessidades,118 parte-se da isonomia como princípio que norteia as garantias diferenciadas aos pacientes que carecem do uso dessas substâncias.
Destarte, a concessão da autorização em questão fundamenta-se primariamente na análise da necessidade do portador da doença, levando em consideração as peculiaridades do caso concreto que fundamentam o pedido formulado. Tal análise deve levar em consideração o princípio da proporcionalidade (em sentido estrito), pelo qual há uma comparação entre os meios utilizados e os fins almejados pelo demandante, havendo ponderação entre elementos conflitantes; ou seja, sopesa-se o nível de restrição de um direito fundamental com o fim que se pretende com tal medida.119
Nesta seara, não se pode questionar a plausibilidade da autorização judicial sob o espectro do mínimo existencial, sob pena de restringir demasiadamente e deteriorar a garantia do direito à saúde. Como se sabe, mínimo existencial e direitos sociais não se confundem: o mínimo existencial é “um minus em relação aos direitos sociais, os quais são providos de um conteúdo mais amplo, que engloba outros deveres - não só de prestação, mas também de abstenção - que ultrapassam a circunscrição do mínimo existencial.”120 Assim, a demanda por um fármaco que contém substância proibida não se encontra fora do direito fundamental, somente não compõe o mínimo existencial em matéria de direito à saúde, o que não obsta o reconhecimento do direito do demandante. Mas justamente por não integrar o mínimo existencial, a observância da necessidade do tratamento deve ser cautelosa, levando também em consideração outros tratamentos possíveis ou indicação clara de que o tratamento com a substância proscrita é o mais indicado para o quadro do cidadão.121
Se por um lado a comprovação da necessidade do fármaco é o ponto de partida para a concessão da autorização, as decisões judiciais ou administrativas devem observar a eficácia do tratamento como elemento limitador. Acertada a proposta de voto do Ministro Barroso neste posto, pois a intenção da demanda é assegurar o fornecimento de medicamento que propicie melhora ou cura da doença e seus sintomas, não podendo colocar a saúde do paciente em risco ainda maior.122 Afirma o Ministro que o fármaco pleiteado deve possuir registro em renomados órgãos ou agências de regulação no exterior - como a “Japanese Ministry of Health & Welfare”, do Japão, a “Food and Drug Administration” (FDA) dos Estados Unidos da América ou ainda a “European Agency for the Evaluation of Medical Products” (EMEA), da União Europeia - pois “a aprovação da droga (ainda não registrada no Brasil) em países que possuem sistemas de vigilância sanitária sérios e respeitados fora do país mitiga os riscos à saúde envolvidos no seu fornecimento a pacientes por determinação judicial”.123 Assim, a existência de registro em agências internacionais aproxima o posicionamento pelo qual o Poder Judiciário pode permitir o fornecimento do fármaco, pois por algum órgão sanitário competente a fórmula foi testada e aprovada, garantindo-se a eliminação de riscos por meio da eficácia do tratamento.124 Por não propiciarem a certeza do tratamento, as medicações experimentais são excluídas da concessão pela via judicial, ainda mais em relação às substâncias proscritas que dependem de dosagem correta e podem causar dependências químicas e efeitos indesejados.
Portanto, o controle judicial para conceder a autorização para importação e uso de fármacos que possuem substâncias proscritas devem observar essencialmente dois requisitos: o primeiro é a necessidade do tratamento através de indicação médica que exclua a possibilidade de utilização de outros fármacos ou que, apesar da existência de outros tratamentos indique aquele como sendo o mais eficaz para o paciente; o segundo é a comprovação da eficácia do tratamento pleiteado através de estudos científicos e registro em outras agências sanitárias internacionais, salvaguardando a tutela do direito à saúde em um patamar seguro de atuação judicial. Assim, a partir de uma interpretação que realmente analisa as características do caso concreto proporciona-se uma prestação estatal eficaz, por meio da qual há uma descriminalização da conduta (prevista no art. 33 da Lei nº 11.343/2006) por ato interpretativo do juiz,125 relativizando-se a proibição criminal em prol da proteção do direito fundamental à saúde.126
Assim como as decisões judiciais vêm compreendendo pela possibilidade de importar medicamentos sem registro na ANVISA,127 há de se propagar o desfazimento do preconceito em relação às substâncias proscritas, tutelando seu uso para proporcionar o melhor tratamento terapêutico possível. Sabe-se o quanto é difícil a posição entre uma postura mais deferente e uma mais ativa do Poder Judiciário. Neste caso ora estudado, entretanto, parecem existir motivos suficientes para a adoção da segunda alternativa, ainda que se tenha ciência dos riscos que ela carrega em si.
Com o objetivo de buscar o desenvolvimento de novos tratamentos, faz-se necessária uma releitura do sistema atual de combate às drogas. Não se pode ignorar o fato de que tais substâncias terminantemente proibidas pela Portaria nº 344/98 do Ministério da Saúde possuem outras utilizações que não a finalidade recreativa. Neste sentido, o atual sistema de combate às drogas demonstra-se em dissonância com a realidade sobre tais substâncias, pelo que há de se enfrentar o fato de que a intolerância propaga um atraso no desenvolvimento de novos tratamentos terapêuticos, muitas vezes obstando o acesso à saúde para os que dependem de tais medicamentos - este é um caminho oposto ao proposto pelo modelo de Estado social previsto na Constituição.
O histórico do desenvolvimento da ciência neste campo muito acrescenta à discussão: desde Freud e Köller, na descoberta da anestesia local à base de cocaína,128 até a utilização e registro de medicamentos com derivados de Cannabis, os novos tratamentos surgem como alternativa aos métodos tradicionais, sendo plenamente aptos à cura ou amenização de sintomas de várias doenças.129 Não se pode ignorar tais avanços significativos em prol de uma política criminal intolerante. Neste sentido, busca-se no ordenamento a análise da possibilidade de obter autorização para importação e uso de fármacos que possuem como princípio ativo substâncias proscritas da Lista F da Portaria 344/1998.
Num primeiro momento, observa-se a incumbência dada ao Poder Legislativo de criar leis que disponham sobre as ações e serviços de saúde, por força do art. 197 da Constituição da República. Entretanto, não há qualquer texto legal que verse sobre a possibilidade de utilização de medicamentos que contenham substâncias proibidas. Assim, tendo em vista que o texto constitucional direciona o dever de garantir o direito fundamental à saúde para a Administração Pública,130 vislumbra-se a possibilidade de elaborar uma regulamentação administrativa mais eficaz, que permita o desenvolvimento científico e a importação devidamente fiscalizada destes medicamentos.131 Assim, dar-se-ia um regime diferenciado em relação a estas substâncias, permitindo seu uso para fins medicinais (com prescrição e dosagem correta), sem liberá-las para todos os fins (inclusive recreativo).
A sentença judicial que promoveu a exclusão do tetraidrocanabinol da Lista F da Portaria 344/98 determinou também a inclusão de um adendo na lista E desta Portaria, para permitir o uso da Cannabis exclusivamente para fins medicinais.132 Em que pese a determinação judicial referir-se à lista E, vê-se que é possível estabelecer a autorização somente em relação aos tratamentos terapêuticos, assim consagrando a proteção da saúde.
No âmbito de regulação administrativa, há de se ressaltar que já é possível observar atuação mais incisiva da ANVISA na tentativa de trazer uma regulamentação eficiente para o uso de substâncias proibidas, o que, por outro lado, tem gerado embate direto com o posicionamento do Planalto, cujo teor revela resistência ao desenvolvimento do tema. Entretanto, o assunto avança no âmbito administrativo, ressaltando-se a aprovação da Resolução de Diretoria Colegiada nº 325 da ANVISA, cujo teor revisitou as substâncias anteriormente proibidas pela Lista F da Portaria nº 344/1998, passando a permitir a comercialização em território nacional de medicamentos que possuem como base a Cannabis Sativa. Ainda que se trate de um avanço relevante para o tema, há de se ressaltar que não há uma regulação específica e consolidada sobre o uso de medicamentos com princípios ativos proibidos, tratando-se apenas de uma revisão daqueles que eram considerados proibidos pela Lista F da Portaria nº 344/1998. Desse modo, o ordenamento jurídico brasileiro carece ainda de uma regulamentação administrativa mais eficiente, a fim de salvaguardar o desenvolvimento do direito à saúde, assim como das pesquisas que envolvem tais substâncias.
Por outro lado, quando a lei é omissa ou o papel da Administração Pública resta total ou parcialmente descumprido, torna-se importante a possibilidade de ser buscada autorização judicial.133 Assim, há de se observar as necessidades do paciente portador da doença, considerando-se a tutela diferenciada para cada caso eis que cada indivíduo apresenta situações particulares.134 Neste sentido, há de se ressaltar que “a lei não deve ser fonte de privilégios ou perseguições, mas instrumento regulador da vida social que necessita tratar equitativamente todos os cidadãos”.135 Partindo-se de uma desigualdade em termos de saúde e vida,136 a concessão de autorização para importação e uso de substâncias proscritas deve atender aos critérios de comprovação da necessidade do tratamento (através de exames e laudos médicos que indiquem o tratamento como mais eficaz para o quadro do paciente), bem como observar a constatação de eficácia do tratamento, que se dá através de pesquisas e registro do medicamento em outros órgãos sanitários fora do país. Ressalte-se que a necessidade e a eficácia do tratamento devem ser observadas tanto pela via administrativa quanto pela via judicial, salvaguardando a concessão de medicamento que de fato propicie melhora da vitalidade do paciente. Não se pretende incitar aleatoriamente o uso de substâncias proscritas, mas sim defender a criação de um conjunto normativo apto a garantir o acesso destas substâncias a pacientes que delas dependem, concretizando o direito fundamental à saúde sob um espectro não tradicional, inclusive, se necessário, modificando a anterior lógica de configuração institucional do Estado brasileiro.137