Resumo: Fruto do projeto “Regulação em Números”, da FGV Direito Rio, este trabalho busca avaliar o papel do Supremo Tribunal Federal (STF) como foro de debate sobre o modelo das agências reguladoras no Brasil. O tema é analisado em duas partes distintas, relativas às perspectivas dos postulantes e do STF. No primeiro caso, pretendeu-se verificar (i) quais atores buscam a invalidação ou a imposição de limites aos poderes das agências reguladoras pela via do controle abstrato de constitucionalidade de normas (“quem postula?”); (ii) quais são suas motivações (“por que postula?”) e (iii) em que momento tais demandas são ajuizadas (“quando postula?”). As mesmas perguntas básicas se repetem no segundo caso: (i) quanto tempo as contestações levam tramitando e sendo deliberadas (“quando decidem?”); (ii) o que é examinado e com base em quais fundamentos eles decidem (“o que e como decidem?”); e (i) qual o comportamento e entendimento individual dos ministros frente a estas contestações (“quem e como decidem?”). Para responder a estas perguntas, foram lidas as 18 ações movidas perante o STF e as respectivas decisões da Corte que envolvem leis sobre o regime jurídico das agências reguladoras federais no país entre os anos de 1997 e 2018.
Palavras-chave: agências reguladorasagências reguladoras,regime especialregime especial,Supremo Tribunal FederalSupremo Tribunal Federal,controle de constitucionalidadecontrole de constitucionalidade,jurisdição constitucionaljurisdição constitucional.
Abstract: A product of FGV Law School in Rio de Janeiro’s project “Regulation in Numbers”, this paper seeks to evaluate the role of the Supreme Court (STF) as a forum for debate on regulatory agencies in Brazil. The subject is analyzed in two distinct parts, concerning the perspectives of the claimants and the Supreme Court. In the first part, the paper asks (i) which actors seek to invalidate or impose limits on the powers of regulatory agencies through the abstract control of constitutionality of norms (“who postulates?”); (ii) what are their reasons (“why do they postulate?”) and (iii) when are these claims filed (“when do they postulate?”). The same questions are repeated in the second part: (i) how long do these claim take to be processed and deliberated (“when does the Court decide?”); (ii) what is examined and on what grounds does the Court decide (“what and how does the Court decide?”); and (i) what is the individual behavior of the Justices regarding these claims (“who and how do Justices decide?”). In order to answer these questions, the 18 claims filed before the Supreme Court and the respective decisions of the Court involving statutes about the legal regime of federal regulatory agencies between 1997 and 2018.
Keywords: regulatory agencies, special legal regime, Supreme Court, control of constitutionality, constitutional jurisdiction.
ARTICLES
O STF e o controle das leis sobre o regime jurídico das agências reguladoras federais
Brazilian Supreme Court and the review of statutes on federal regulatory agencies
Recepção: 17 Agosto 2019
Aprovação: 28 Outubro 2020
Este artigo é fruto do projeto denominado “Regulação em Números”, da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito Rio). O objetivo central do trabalho é avaliar o papel do Supremo Tribunal Federal no contexto da implantação do Estado Regulador brasileiro. Para este fim, foram lidas e examinadas as ações movidas perante o STF em que foram impugnadas leis e medidas provisórias que disciplinam o regime jurídico especial das agências reguladoras federais no país.
De um lado, pretende-se avaliar o uso da jurisdição constitucional para questionar o modelo das agências reguladoras sob a perspectiva dos postulantes. Isto implica identificar: quais são os principais agentes que levaram ao Supremo Tribunal Federal discussões quanto à legitimidade das agências reguladoras no ordenamento constitucional brasileiro (“quem postula”); as razões que os levam a buscar a Corte Superior para questionar o modelo (“por que postulam”); e em que momento histórico decidem impugnar determinada legislação que disciplina o regime jurídico destas instituições (“quando postulam”).
Da perspectiva da instituição, as mesmas perguntas básicas se repetem. Quis-se identificar (i) quanto tempo as contestações ao regime das agências levam tramitando e sendo deliberadas (“quando decidem”); (ii) quais temas foram decididos pelo Supremo Tribunal Federal e o respectivo entendimento firmado pela Corte (“o que e como decidem”); e (iii) qual o comportamento e posicionamento individual dos Ministros frente a estas contestações (“quem e como decide”).
A crise do Estado do bem-estar social resultou em período de intensa reforma administrativa nas últimas décadas do século XX. Antes considerado o principal agente da economia (sobretudo em seu modo de intervenção direta por meio de empresas estatais), o Estado teve seu papel reconfigurado num contexto de sucessivas privatizações e desestatizações. O processo foi acompanhado de necessidade cada vez maior de fiscalização das atividades que foram delegadas ao setor privado. Este movimento levou ao que se convencionou chamar de Estado regulador1.
A liberalização de alguns setores da economia à iniciativa privada constituiu um processo extremamente complexo e sensível. Para capitaneá-lo, em vários países se optou pela criação das chamadas agências reguladoras - entidades relativamente independentes da administração central, com autonomia reforçada2, compostas por especialistas na matéria, com garantias de poder decisório insulado do processo político e dotadas de significativos recursos financeiros e humanos. Com esse modelo, a regulação de atividades econômicas antes submetidas ao monopólio estatal (como os serviços de telecomunicações, energia elétrica, gás, transporte ferroviário, etc.) passou a ser atribuída a instituição pública desenhada para lidar com a complexidade dessas funções3.
No Brasil, esse fenômeno se deu sobretudo no final da década de 1990 e no início da década seguinte4, especialmente durante o período de Reforma Administrativa e sob a vigência do chamado Plano Nacional de Desestatização (PND - Leis nº 8.031/1990 e nº 9.491/1997).
Esse modelo, no entanto, não encontrava respaldo expresso na Constituição Federal. O constituinte originário não concebeu o desenho das agências reguladoras. Limitou-se a prever no art. 174 o papel do Estado como agente normativo e regulador da atividade econômica5. Mesmo as emendas constitucionais editadas no período de Reforma Administrativa que previram a instituição de órgãos reguladores para o setor de telecomunicações (EC nº 08/1995, que modificou a redação do art. 21, XI da CRFB) e para o setor de petróleo e gás natural (EC nº 09/1995, que alterou a redação do art. 177, §2º, inciso III da CRFB) não impuseram a regulação por meio de agências independentes; apenas previam que determinados setores da economia seriam regulamentados pela Administração Pública.
Foi apenas no âmbito infralegal que as agências reguladoras passaram a figurar na realidade normativa brasileira. A primeira delas foi a Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL, instituída pela Lei nº 9.427/1996. Em seguida, foram criadas a Agência Nacional de Telecomunicações - ANATEL (Lei 9.472/1997); a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis - ANP (Lei 9.478/1997); a Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA (Lei nº 9.782/1999); a Agência Nacional de Agência Suplementar - ANS (Lei nº 9.961/2000); a Agência Nacional de Águas - ANA (Lei nº 9.984/2000); a Agência Nacional de Transportes Terrestres - ANTT e a Agência Nacional de Transportes Aquaviários - ANTAQ (Lei nº 10.233/2001); a Agência Nacional do Cinema (Medida Provisória nº 2.228-1/2001); a Agência Nacional da Aviação Civil (Lei nº 11.182/2005) e, mais recentemente, a Agência Nacional de Mineração - ANM (Lei nº 13.575/2017). Em todas os casos, as autoridades reguladoras foram reconhecidas como autarquias6sob regime especial7.
Ao todo, há atualmente no Brasil onze agências reguladoras no âmbito federal, cujos desenhos institucionais estão em constante revisão. Exemplos disso são as ampliações das competências regulatórias da ANCINE (Lei nº 12.485/2011)8 e da ANA (Medida Provisória nº 844/2018 e Medida Provisória nº 868/2018)9, bem como as recentes propostas de unificação da ANTT com a ANTAQ numa única agência de transportes10.
A proliferação destas entidades administrativas especializadas gerou alguns desafios para a teoria do direito administrativo e do direito público. Naquilo que concerne a este artigo, diferentes atores políticos e econômicos passaram a questionar se o modelo das agências reguladoras seria compatível com a Constituição Federal e, mais especificamente, se tais instituições subvertiam ou não a separação de poderes, o princípio democrático e o princípio da legalidade.
No âmbito doutrinário, publicistas relevantes apresentaram fortes críticas às agências reguladoras. Celso Antônio Bandeira de Mello, por exemplo, além de considerar as agências reguladoras inconstitucionais, questionou duramente a extensão de mandatos de seus dirigentes para além de um mesmo período governamental. Segundo ele, a essência da República estaria na temporariedade dos mandatos e na possibilidade de a sociedade escolher governantes com orientações diversas dos governos precedentes. Nas suas palavras, o modelo desenhado para as agências reguladoras no Brasil era uma “fraude contra o próprio povo”11.
Maria Sylvia Di Pietro, por sua vez, embora contestasse a existência das agências reguladoras, adotou posição menos extrema sobre o assunto. Para ela, contudo, as agências reguladoras deveriam encontrar respaldo normativo expresso na Constituição Federal. Por isso, na sua visão, apenas a ANATEL e a ANP poderiam contar com a autonomia e a independência atribuídas às agências reguladoras. Quanto às demais, caberia a elas respeito aos mandamentos de todos os poderes da República, com ampla possibilidade de revisão de seus atos.12
Outros autores defenderam a existência das agências reguladoras no Brasil13, propondo parâmetros para compatibilizá-las com os ditames da Constituição Federal14. O embate, contudo, não se limitou ao âmbito de livros e artigos sobre o tema, espraiando-se também para o Poder Judiciário.
A discussão sobre a legitimidade de tais instituições teve o Supremo Tribunal Federal como um de seus foros de debate. Como cabe ao STF o controle de constitucionalidade sobre leis e demais atos normativos com eficácia vinculante e erga omnes (art. 102, §2º da CRFB), diversos atores passaram a questionar, perante a Suprema Corte, a compatibilidade das leis de criação destas agências com a Constituição Federal.
O objetivo deste artigo é documentar e examinar esse fenômeno, tanto sob a ótica de seus postulantes (isto é, aqueles que apresentaram demandas perante o STF para questionar o modelo das agências reguladoras) quanto sob a perspectiva do próprio Supremo Tribunal Federal enquanto instituição julgadora. Embora haja um número reduzido de ações diretas de inconstitucionalidade sobre o tema, é possível identificar variáveis que iluminam determinadas tendências de atuação sob ambos os enfoques sugeridos.
A importância desse estudo está em entender qual o papel da jurisdição constitucional e, mais especificamente, do Supremo Tribunal Federal como foro de debate sobre o modelo das agências reguladoras no Brasil. Na medida em que a história nos revela que há diversas formas de desestruturar uma agência reguladora mesmo com a manutenção de tais instituições no ordenamento legal15, este estudo tem o condão de iluminar em que medida o STF é uma engrenagem relevante para o desenvolvimento e consolidação de modelos institucionais específicos para a regulação econômica e social no país. É dizer: mesmo que, em uma análise contextual, seja possível vislumbrar pouca independência prática para as agências reguladoras no Brasil, certo é que sua existência pressupõe a própria validação do modelo institucional das autarquias em regime especial pela Corte Constitucional.
Por isso, este artigo se propõe a averiguar, sob a perspectiva dos postulantes, (i) quais atores buscam a invalidação ou a imposição de limites aos poderes das agências reguladoras pela via do controle abstrato de constitucionalidade de normas (“quem postula?”); (ii) quais são suas motivações (“por que postula?”) e (iii) em que momento tais demandas são ajuizadas (“quando postula?”). As mesmas perguntas básicas se repetem na segunda parte, em que se adota a perspectiva do STF: (iii) quanto tempo as contestações levam tramitando e sendo deliberadas (“quando decidem?”); (ii) quais os objetos debatidos e com base em quais fundamentos eles decidem (“o que e como decidem?”); e (iii) qual o comportamento e o posicionamento individual dos ministros frente a estas contestações (“quem e como decide?”). Em suma, pretendeu-se investigar os elementos do passado para buscar indícios sobre o futuro, sobretudo porque o debate sobre a independência institucional das agências reguladoras volta constantemente à tona.
Este artigo está estruturado da seguinte forma. Após esta introdução, o item 2 abordará o objeto da pesquisa, a sua metodologia, os critérios de avaliação e uma síntese das conclusões obtidas. Nos itens 3 e 4, então, serão exibidos os resultados a partir de delimitações e classificações desenvolvidas pelos autores. No item 3, os dados serão analisados sob a ótica dos postulantes das ações, enquanto no item 4 serão avaliados os dados relativos à atuação do Supremo Tribunal Federal. No item 5, por fim, serão apresentadas as conclusões finais do trabalho e breves reflexões sobre o assunto.
Como já se afirmou acima, este artigo é fruto do projeto denominado “Regulação em Números”, da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas (FGV Direito Rio). O objetivo do trabalho é avaliar o questionamento do modelo das agências reguladoras no Brasil perante o Supremo Tribunal Federal. Para este fim, foram lidas e examinadas todas as ações movidas perante o STF e as decisões da Corte que envolvem leis infraconstitucionais que tratem sobre o regime jurídico das agências reguladoras federais no país.
De logo, observe-se que este artigo se dispõe a analisar apenas leis (no seu sentido amplo, o que também abrange medidas provisórias) que tenham por objeto definir o regime jurídico das agências reguladoras federais. Este corte metodológico inclui as leis de criação das agências reguladoras, leis que ampliam as suas competências, como também outras leis que disciplinam o seu regime jurídico de forma específica (tal como o fez, v.g., a Lei nº 9.986/2000, em que se adotava o regime celetista para os agentes públicos das agências reguladoras, e que foi questionada nas ADI nº 2310 e 2315).
O objetivo é identificar em que medida o modelo das agências reguladoras é questionado em abstrato, e não por meio da contestação de atos concretos editados e promovidos pelas agências reguladoras16. Daí a escolha das ações movidas perante o Supremo Tribunal Federal, instituição a quem foi atribuída a capacidade institucional para avaliar a constitucionalidade objetiva de leis e atos normativos. Por outro lado, a escolha das agências federais se justifica pela sua importância na economia do país, o maior conhecimento geral sobre a sua existência (o que amplia, também, o debate sobre elas) e a presença de um maior número de entidades regulatórias independentes no Poder Executivo federal em comparação com os demais entes da Federação.
É preciso reconhecer, contudo, que a definição deste escopo encontra dificuldades e fragilidades não negligenciáveis. Isso porque importantes manifestações jurisprudenciais sobre o tema se deram em casos envolvendo agências estaduais (tal como na ADI nº 1949, em que se legitimou o modelo de mandatos fixos dos dirigentes das entidades reguladoras independentes do Estado do Rio Grande do Sul17) ou em demandas em que se questionavam atos concretos das agências e leis estaduais que conflitavam com mandamentos normativos por elas editados18-19. Ainda assim, no entanto, o recorte aqui realizado permite levantar diretrizes sobre a atuação da sociedade civil e do Supremo Tribunal Federal no debate em questão.
Para encontrar respostas a tais indagações, foi necessário analisar um amplo número de processos ajuizados perante o Supremo Tribunal Federal. O portal da Corte disponibiliza em seu site um campo de pesquisa em que é possível identificar, a partir dos termos definidos pelo usuário, quais ações de controle concentrado foram ajuizadas. Para tanto, utilizaram-se os nomes de cada uma das agências reguladoras, o termo genérico “agência reguladora” (no plural e singular) e diferentes variações dos números das leis criadoras de cada agência reguladora para delimitar o primeiro espaço amostral da pesquisa. O limite temporal estabelecido para tanto foi o dia 31/12/2018, tendo em vista o período em que as pesquisas foram realizadas. Com isso, foram encontradas centenas de ações de controle concentrado (ADI, ADC, ADO e ADPF) sobre o tema.
A partir de então, a pesquisa envolveu a leitura da ementa das ações identificadas, de suas petições iniciais, de seus acompanhamentos processuais, de suas decisões liminares e dos acórdãos proferidos no curso de cada ação. Foram eliminadas todas as ações que, embora fizessem menções aos termos pesquisados, não guardavam pertinência com o objeto de pesquisa. Esta medida foi especialmente importante já na etapa inicial das pesquisas, na medida em que diversas leis que criaram agências reguladoras também estipulam regras sobre o marco regulatório do setor econômico no geral. Daí a necessidade de realização de um exame crítico de cada uma das ações com o objetivo de delimitar com precisão a base de dados sobre a qual o estudo se debruçaria.20
Além disso, mesmo ações diretas que questionaram leis e dispositivos específicos sobre as competências das agências reguladoras federais foram excluídas do espaço amostral em razão do fundamento adotado pelos autores das ADI. O objetivo deste corte foi delimitar um espaço amostral em que a intenção dos requerentes das ações foi obter um provimento de mérito do Supremo Tribunal Federal sobre a invalidade material do desenho institucional ou de determinado aspecto relativo à agência reguladora.
Na ADI nº 3465 e na ADI nº 3326, por exemplo, questionou-se a ampliação da competência da ANP, mas apenas por questões formais. É que a Medida Provisória nº 227/2004 estabelecia, em seu art. 11, a competência da ANP para estabelecer os termos e as condições de marcação do biodiesel, para sua identificação e delimitação do percentual de biodiesel ao óleo diesel derivado do petróleo, observadas as diretrizes estabelecidas pelo Conselho Nacional de Política Energética. Segundo o autor das ações - o Partido da Frente Liberal (PFL), atualmente Democratas (DEM) - o dispositivo em questão seria inconstitucional na medida em que a Constituição Federal, em seu art. 177, §2º, III, seu art. 246 e o art. 3º da Emenda Constitucional nº 09/1995, vedaria a edição de medida provisória sobre tal matéria. Assim, embora o dispositivo impugnado tenha relação com a competência regulatória da ANP sobre o mercado de biodiesel, o fundamento apresentado pelo partido político não tinha por pretensão impugnar o regime jurídico da agência reguladora sob qualquer aspecto. O mesmo se deu, por exemplo, no bojo da ADI nº 3090, em demanda relativa à ampliação de competências da ANEEL pela Medida Provisória nº 144/2003. Por tal circunstância, as aludidas ações foram excluídas do objeto de análise deste artigo.
Ao final, chegou-se ao resultado de 18 ações diretas de inconstitucionalidade, envolvendo a ANATEL (2), a ANTT (4), a ANTAQ (2), a ANP (3), a ANCINE (1), a ANVISA (1), a ANA (2) e todas as agências em uma mesma ação (4), conforme tabela a seguir:
Uma vez estabelecida a base de dados, os casos foram destrinchados e classificados a partir das seguintes variáveis: (i) número do processo no STF; (ii) agência reguladora envolvida; (iii) assunto do processo; (iv) lei questionada; (v) dispositivos legais questionados; (vi) data da publicação da lei; (vii) data da distribuição da ação; (viii) tempo de reação entre a data de distribuição da ação e a data de publicação da lei; (ix) requerente da ação; (x) dispositivos constitucionais invocados; (xi) relator da ação; (xii) existência de julgamento liminar e, em caso positivo, (xiii) seu resultado; e (xiv) data em que a decisão foi proferida; elementos também reproduzidos no caso das decisões de mérito (variáveis xv, xvi e xvii). Além disso, foi delimitado (xviii) o tempo de julgamento final nos casos em que houve julgamento final; ou, (xix) o tempo em que o processo se encontra em trâmite perante o STF sem decisão final, considerando como marco limite o dia 31/12/2018, tendo em vista o limite temporal estabelecido para a elaboração dos estudos e deste artigo.
Em síntese, a despeito do reduzido número de processos de controle concentrado examinados para a pesquisa, foi possível observar que (i) as ações são dominadas por partidos políticos, a despeito de associações dos setores regulados apresentarem uma crescente participação nestes processos. Além disso, (ii) embora a existência das agências reguladoras tenha sido contestada em abstrato no início do seu surgimento, as ações diretas de inconstitucionalidade se sofisticaram com o tempo e apresentam demandas sobre aspectos específicos de seus regimes jurídicos, com o objetivo de impor limites à sua atuação. Por fim, foi possível verificar que (iii) partidos políticos possuem a tendência de contestar os atos normativos criadores de competências de agências reguladoras em um curto espaço de tempo desde sua edição, enquanto associações e federações tem pretensões em tempos consideravelmente mais extensos, muitas vezes em razão de elementos contextuais da atividade concreta da agência reguladora.
Já em relação ao Supremo Tribunal Federal, é possível notar que a Corte desempenhou (e ainda desempenha) papel relevante na consolidação do modelo das agências reguladoras no Brasil, processo este ainda em andamento. Nos cinco casos em que houve julgamento pelo Plenário (ADI nº 1668, 3273, 3366, 4679 e 4874), o Tribunal validou o modelo das agências reguladoras, embora alguns ministros tenham apresentado cautelas quanto à extensão da independência de tais instituições. De um modo geral, foram identificadas como diretrizes da jurisprudência da Corte (i) a constitucionalidade da atribuição de competências técnicas às agências reguladoras; (ii) a necessidade de que seus poderes estejam sujeitos à observância dos parâmetros previstos em leis (a ideia de “princípios inteligíveis”); e (iii) sua independência não afasta a possibilidade de posterior controle de seus atos, embora seja recomendável a adoção de uma postura deferente do Poder Judiciário.
Estabelecidas tais premissas, passa-se à análise efetiva dos resultados da pesquisa.
Conforme apresentado anteriormente, este item do artigo se destina a analisar os dados relacionados aos postulantes de demandas perante o Supremo Tribunal Federal que tratem sobre o regime jurídico das agências reguladoras. Mais especificamente, os subitens a seguir avaliarão (i) quem são os autores das ADIs identificadas na base de dados estipulada na pesquisa; (ii) os pedidos e razões apresentados por estes autores em suas petições iniciais; bem como (iii) o momento em que se postula a invalidação de determinada norma sobre as agências reguladoras federais. Em cada um destes pontos, os autores deste artigo procurarão apresentar dados contextuais sobre as ações, sempre que entenderem pertinentes para situar o leitor.
A primeira pergunta a ser respondida por este artigo está relacionada aos agentes que litigam perante o Supremo Tribunal Federal para questionar o regime jurídico especial das agências reguladoras. Sobre esse tema, a tabela a seguir estipula o requerente de cada uma das ADIs identificadas na pesquisa:
A base de dados demonstra que as ações relativas ao modelo institucional das agências reguladoras estão concentradas especialmente no campo político. De um total de dezoito ADIs, nove foram movidas por partidos políticos (ADIs nº 6006, nº 5993, nº 4679, nº 3596, nº 3366, nº 3240, nº 2315, nº 2310 e nº 1668) e uma pelo Governador do Estado do Paraná (ADI nº 3273).
Além disso, cinco medidas foram apresentadas pelo setor regulado, tanto por meio de associações representantes de uma categoria específica - casos da ABRATI (ADI nº 5906), da CONUT (ADI nº 5372) e da ABRAMULTI (ADI nº 4226) - como por confederações de legitimidade ampla - casos da CNI (ADI nº 4.874) e da CNC (ADI nº 2.658). Foi possível identificar, ainda, duas ações movidas por grupos de interesse relacionados ao funcionalismo público - a ANER (ADI nº 6033) e a ABER (ADI nº 2543). Por fim, aponte-se uma ação ajuizada pela Procuradoria Geral da República (ADI nº 5371).
Como é possível notar, mais da metade das ADIs relativas ao regime jurídico das agências reguladoras federais foram ajuizadas por partidos políticos. Quanto ao espectro político de tais partidos, é possível afirmar, ainda, que as ações estão concentradas em partidos de orientação de esquerda. Basta notar que, entre os partidos políticos que apresentaram demandas perante o Supremo Tribunal Federal ao longo do período pesquisado, sete entre nove ADIs foram ajuizadas pelo Partido dos Trabalhadores (PT); pelo Partido Comunista do Brasil (PC do B); pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT); pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) e pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Até mesmo a ADI nº 3273 foi movida pelo então Governador do Estado do Paraná Roberto Requião, que, embora seja membro de um partido considerado de centro-direita (o Movimento Democrático Brasileiro - MDB, ex-PMDB), apresenta clara orientação política pessoal de esquerda21. Apenas duas ações foram movidas, por sua vez, por partido mais à direita do espectro político nacional - o Democratas (DEM).
Não é surpreendente que partidos de esquerda se destaquem na contestação do modelo das agências reguladoras. O Partido dos Trabalhadores, em especial, sempre lhe foi abertamente contrário. O PT e o PDT foram os principais responsáveis, autonomamente ou em conjunto com outros partidos de oposição, pelo ajuizamento de ações no período do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).22
No início de 2003, ao assumir seu primeiro mandato presidencial, o presidente Lula declarou que agências reguladoras estavam independentes demais23 e que as decisões que mais afetavam a população não passavam pelo seu governo. No caso mais notório, o governo conseguiu induzir a renúncia de Luiz Guilherme Schymura da presidência da ANATEL, após duras críticas das medidas de reajustes tarifários dos serviços de telecomunicações por ele intentadas24. Em paralelo, o governo petista também propôs alterações legislativas na estrutura das agências reguladoras25.
A resistência ao modelo das agências também pode ser identificada pela escassa criação de tais instituições durante a gestão dos governos de Lula (2003-2009) e de Dilma Roussef (2010-2016). Neste ínterim, apenas uma agência reguladora foi criada: a ANAC, por meio da Lei nº 11.182/2005. Isso não impediu que o então presidente Lula criticasse a atuação desta agência reguladora na mídia. Em 2007, ele afirmava que a agência, criada para defender os passageiros, fora capturada pelos interesses das empresas aéreas26, sugerindo uma possível demissão de todos os seus cinco diretores27.
Durante o governo do presidente Michel Temer (2016-2018), o modelo institucional das agências reguladoras voltou a debate por força de duas inovações legislativas promovidas pelo governo federal. A primeira, com a edição da Medida Provisória nº 791/2017, que transformou o Departamento Nacional de Produção Mineral - DNPM, órgão vinculado ao Ministério de Minas e Energia, na Agência Nacional de Mineração - ANM. A segunda, com a edição das Medidas Provisórias nº 868 e nº 884/2017, que ampliaram a competência da Agência Nacional de Águas - ANA, atribuindo-lhe o poder para estabelecer normas de referência nacionais para a regulação da prestação dos serviços públicos de saneamento básico. As novas competências da ANA também foram motivo para que partidos de esquerda (PT e PSB) retomassem o ajuizamento de ações em busca de um pronunciamento do Supremo Tribunal Federal sobre a inconstitucionalidade das medidas.
Por outro lado, ambas as ações ajuizadas pelo DEM se deram no período de governos do Partido dos Trabalhadores.28 Isso sugere que, independentemente da ideologia adotada pelo partido, o ajuizamento de ADIs contra leis que disciplinam o regime jurídico das agências reguladoras pode constituir um importante instrumento de uso político.
Embora a contestação do regime jurídico especial das agências reguladoras se dê majoritariamente no campo político, há outros atores que encontraram no Supremo Tribunal Federal uma via para contestar aspectos específicos das competências destas instituições. É possível destacar dois grupos distintos nesse campo: (i) associações, federações e confederações que representam o setor regulado e contestam os limites dos poderes das agências responsáveis por regulamentar a atividade econômica por eles exercida; (ii) grupos de interesses sobre o funcionalismo público, também representado por associações, que têm por objetivo impugnar aspectos relacionados ao regime jurídico dos agentes públicos das agências reguladoras.
A Procuradoria-Geral da República, legitimada universal para o ajuizamento de ações de controle abstrato (art. 103, inciso VI, CRFB), ajuizou uma das ações identificadas na base de dados.
A segunda pergunta a ser respondida por este artigo está relacionada à motivação dos agentes que litigam perante o Supremo Tribunal Federal para questionar o regime jurídico das agências reguladoras. Sobre esse tema, a tabela a seguir estipula o assunto de cada uma das ADIs incluídas na pesquisa:
A base de dados demonstra que há pouca homogeneidade nas ações movidas perante o Supremo Tribunal Federal sobre o assunto. Ao menos sete das onze agências existentes no Brasil tiveram seus poderes questionados perante o Supremo Tribunal Federal. Nesse contexto, é possível observar ao menos quatro blocos de ADIs que congregam os objetivos buscados pelos postulantes: (i) ações que contestam a própria existência do regime jurídico especial das agências reguladoras; (ii) ações que pretendem limitar a extensão dos poderes e competências das agências reguladoras; e (iii) ações que tratam especificamente sobre o regime jurídico dos agentes públicos das agências reguladoras.
O primeiro grupo de ações envolve casos em que foi questionada a existência de um regime jurídico especial das agências reguladoras. O leading case sobre o assunto foi a ADI nº 1668, ajuizada pelo Partido Comunista do Brasil (PC do B), pelo Partido dos Trabalhadores (PT), pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) e pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) em setembro de 1997. Naquele momento, as agências reguladoras ainda estavam em fase de implementação - apenas as leis da ANEEL, da ANATEL e da ANP tinham sido editadas.
Por meio da ADI, os partidos impugnaram amplamente o regime jurídico especial das agências reguladoras. A argumentação adotada foi a seguinte: os partidos reconheceram, de início, que o art. 21, XI da Constituição Federal prevê a existência de um órgão regulador para os serviços de telecomunicações. No entanto, segundo eles, o regime jurídico disciplinado na Lei nº 9.472/1997 seria manifestamente inconstitucional por violar a independência dos Poderes da República (art. 2º, CRFB). Isso porque não haveria, no art. 37, inciso XIX - que disciplina o regime das autarquias - qualquer previsão de aspectos como (i) a independência administrativa; (ii) a ausência de subordinação hierárquica; (iii) a existência de mandato fixo e estabilidade de seus dirigentes; e (iv) a autonomia financeira.
Assim, segundo os autores, a “independência administrativa” estipulada nos arts. 8º, §2º e 9º da Lei nº 9.472/1997 constituiria aspecto estranho à Administração Pública brasileira, na medida em que implicaria invasão das competências privativas do Presidente da República e dos Ministros de Estado, a quem compete a direção superior da Administração Pública federal (art. 84, inciso II e art. 87, parágrafo único da CRFB). Concluem, neste cenário, que atribuir a qualquer órgão da Administração uma autonomia administrativa importaria em inevitável quebra da orientação constitucional, excluindo do Chefe da Administração Pública a possibilidade de exercer a sua função. Assim, a única leitura possível da Constituição seria aquela que permitisse o controle das agências pelos órgãos superiores da Administração Pública direta, incluindo-se a supervisão ministerial.
Por fim, outro fundamento apresentado para impugnar o modelo institucional das agências reguladoras foi a suposta inconstitucionalidade da atribuição de poderes normativos à ANATEL. Segundo a petição inicial da ADI, tal competência contrariaria o princípio da legalidade (art. 37, caput, CRFB) e o art. 25 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT)29-30
Como será identificado no subitem 4.2.3 deste artigo, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, em menos de um ano após o ajuizamento da ADI nº 1688, julgou a ação parcialmente procedente para dar a alguns dispositivos da lei interpretação conforme à CF. É possível que a posição do STF tenha sido determinante para que nenhuma outra ação impugnasse a própria existência de um regime especial das agências reguladoras. De fato, as ações apresentadas logo em seguida focaram-se em aspectos específicos de cada una das agências reguladoras, como se verá a seguir.
Ao longo do tempo, as ações relativas ao regime jurídico das agências reguladoras se sofisticaram. Em vez de contestar a própria existência das agências, os partidos políticos e o setor regulado passaram a impugnar aspectos específicos relacionados a estas instituições, seja em relação à sua própria competência, seja em relação ao alcance de seus poderes. Trata-se de um cenário de contestação do modelo de agências reguladoras não pela subversão integral de seu regime especial, mas para limitar o leque de ações ou instrumentos à sua disposição31. Nestes casos, embora as pretensões sejam específicas a cada uma das demandas, em grande parte delas os seus fundamentos são similares.
Veja-se a hipótese da ADI nº 5906. Nela, a Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros - ABRATI questiona a competência da ANTT para a criação de penalidades e infrações por atos normativos infralegais. No entender da associação, seria incompatível com a Constituição Federal a delegação de poder normativo amplo e irrestrito à agência, sobretudo porque o art. 78-A da Lei nº 10.233/2001 já estabeleceria um rol exaustivo sobre as possíveis sanções aplicáveis. Aponta, para tanto, o fato de que a ANTT editou a Resolução nº 233/2003, “cujas disposições estabelecem diversos tipos infracionais em caráter absolutamente inovatório, cominando-lhe as respectivas sanções, em acintosa invasão da esfera de competência atribuída exclusivamente ao Poder Legislativo pelo poder constituinte originário”.
O debate levado ao STF em muito se assemelha àquele apresentado na ADI nº 1668 - isto é, a legitimidade do exercício de poder normativo pelas agências reguladoras. No entanto, sobretudo por se tratar de uma ação movida pelo setor regulado, a existência per se da agência reguladora não é um ponto de estresse. Pelo contrário: de um modo geral, o modelo de agencificação é reconhecido como favorável à economia32. A estratégia do setor, portanto, é limitar o alcance dos poderes das agências (no caso, da ANTT) para garantir, em tese, uma atuação com amarras pré-estabelecidas pela lei.
A competência normativa das agências reguladoras é tema espinhoso não só do ponto de vista doutrinário, mas também político e econômico. Tanto é assim que tais poderes também foram contestados nas ADIs nº 3596 (ajuizada pelo PSOL em face de poderes normativos da ANP); nº 4679 (ajuizada pelo DEM contra o poder regulamentar da ANCINE no setor de produção audiovisual); nº 4874 (ajuizada pela CNI contra competência normativa específica da ANVISA para proibir produtos por motivos de vigilância sanitária); e nº 5372 (ajuizada pela CONUT em face da competência da ANTT para regular o transporte rodoviário coletivo regular interestadual e internacional de passageiros).
As ações também contestam competências executivas das agências. É o caso das ADIs nº 3366 e nº 3273, que pedem a declaração de inconstitucionalidade da competência da ANP para exportação do petróleo e do prazo conferido à agência para exercício do seu poder decisório (silêncio administrativo); da ADI nº 4226, que impugna o poder da ANATEL para proferir decisões cautelares de busca e apreensão em processos administrativos; da ADI nº 5371, que contesta o sigilo nos processos administrativos sancionadores da ANTT; e da ADI nº 2658, que pretende esvaziar a competência da ANVISA para fiscalização de farmácias e drogarias.
Aliás, o caso da ADI nº 2658 demonstra que, por vezes, outra estratégia utilizada para enfraquecer - ou excluir - competências das agências reguladoras consiste na alegação de usurpação de competência federativa. Nesta ação, a CNC alegava que a competência fiscalizatória sobre farmácias e drogarias não poderia ser realizada pela ANVISA, mas apenas por órgãos e entidades municipais. O mesmo se deu nas recentes ações sobre o poder normativo da ANA para disciplinar diretrizes gerais no setor de saneamento básico (ADIs nº 6006 e 5993). Segundo os partidos, a União - e, portanto, a ANA - não tem competência para editar normas sobre o serviço público mencionado, algo que caberia aos municípios (cf. art. 30, incisos I e IV).
Os casos da ANA apresentam peculiaridades interessantes. Há, nestas ações, um embate em favor das agências reguladoras regionais, que teriam sua independência comprometida pelas regras editadas pela ANA. Outro motivo de razão pragmática também vale ser mencionado. O Partido dos Trabalhadores defende que a criação de novas competências para a ANA implica prejuízo para as competências já desempenhadas pela agência, uma vez que seu quadro de pessoal foi qualificado apenas para as competências originais e não teriam conhecimento técnico suficiente para o exercício de novas atribuições. Assim, recomenda que a ANA se limite a regular os recursos hídricos - poder que resultou da sua criação no ano 2000 -, de modo a racionalizar sua atividade e não torna-la ineficiente.
Os casos em questão demonstram que, embora os fundamentos apresentados sejam similares, a contestação do modelo em abstrato das agências reguladoras não é um ponto de grande volume de ações. As ADIs se sofisticaram ao longo do tempo para questionar aspectos específicos do regime jurídico das agências. Tanto no caso do setor regulado ou dos partidos políticos, isso pode representar uma real intenção de mera enfraquecimento da agência - ou uma estratégia para pressionar o Supremo Tribunal Federal a se manifestar contra o modelo das agências no Brasil.
Por fim, é necessário apontar um conjunto de ações relacionadas ao regime jurídico de pessoal das agências reguladoras. No ano 2000, foi editada a Lei nº 9.986/2000 que, dentre outros fatores, previa a submissão dos agentes públicos das agências reguladoras federais ao regime trabalhista. Isto é, as relações entre agências e seus empregados seriam regidas contratualmente pela Consolidação das Leis do Trabalho, e não pelo regime estatutário geral previsto para os servidores públicos federais. O objetivo da lei era conferir maior autonomia gerencial às entidades reguladoras autônomas33.
Esse regime de gestão de pessoal foi fortemente contestado34 perante o Supremo Tribunal Federal, em um primeiro momento, pelo Partido dos Trabalhadores e pelo Partido Democrático Trabalhista no bojo das ADIs nº 2310 e 2315, respectivamente. Igual pleito foi formulado na ADI nº 2543, dessa vez para impugnar a lei de criação da ANTT e da ANTAQ (Lei nº 10.233/2001). Segundo os fundamentos apresentados, o exercício de função de fiscalização, inerente à atividade precípua do Estado, pressupõe prerrogativas não agasalhadas pelo contrato de trabalho.
No mais, outras duas ações movidas perante o STF sobre o regime jurídico dos servidores das agências reguladoras têm o condão de afetar sua autonomia gerencial e política. A primeira delas, ajuizada em 2004 pelo Democratas, impugnou o art. 30 da Lei nº 10.871/2004, a qual permite a contratação temporária de servidores por agências, nos termos do art. 37, IX da Constituição Federal. Já a recente ADI nº 6033, ajuizada pela Associação Nacional dos Servidores Efetivos das Agências Reguladoras - ANER, pretende que sejam declaradas inconstitucionais as disposições do art. 23 e do art. 36-A da Lei nº 10.871/2004 relativas à vedação ao exercício de atividades profissionais ou de direções político-partidárias por servidores de agências reguladoras. O objetivo da norma é garantir a ausência de conflitos de interesses entre a atividade regulatória e as atividades exercidas por seus servidores.35 Contudo, a associação defende que tais restrições violam a liberdade de profissão, a liberdade partidária, o pluralismo político, o direito de reunião, a liberdade de associação e a liberdade de expressão e manifestação do pensamento.36
A terceira pergunta a ser respondida por este artigo está relacionada com o momento em que os agentes litigam perante o Supremo Tribunal Federal para questionar o regime jurídico das agências reguladoras. Nesse ponto, confira-se a linha do tempo quanto às ações ajuizadas no período entre 1997 e 2018:
O gráfico acima não representa nenhum indicativo relevante sobre um período de maior contestação de leis sobre agências reguladoras, tampouco uma tendência de crescimento ou decréscimo do volume de ADIs ao longo do tempo. O ano de 2018 é fundamental para essa compreensão: nada menos que quatro ações foram ajuizadas perante o Supremo Tribunal Federal, o que demonstra que um tema aparentemente adormecido retornou a ser objeto de debate perante a Corte Superior.
No entanto, caso avaliada a relação entre a data em que a lei impugnada foi editada e a data de ajuizamento da ação, é possível identificar padrões mais evidentes. Quanto a este ponto, a tabela a seguir estipula dados temporais sobre as ADIs identificadas na pesquisa:
As informações acima demonstram que parte das ações ajuizadas em face de leis instituidoras de competências ou disciplinadoras do regime jurídico das agências reguladoras foram impugnada em menos de três meses após a sua publicação, período relativamente curto para o ajuizamento de ADIs perante o Supremo Tribunal Federal. Um dado interessante sobre esse ponto é que, em todos esses casos, o autor da ação é um partido político.
No mais, segundo os dados obtidos na pesquisa, há ainda um número relevante de ações movidas perante o Supremo Tribunal Federal em que leis que disciplinam o regime jurídico das agências reguladoras são impugnadas após ultrapassado tempo considerável entre a edição do ato impugnado e o ajuizamento da ADI.
Em determinados casos, os agentes regulados o fazem ainda em tempo intermediário (superior a noventa dias, mas inferior a um ano). Contudo, em outros, determinadas ações são ajuizadas em períodos que variam entre sete e dezesseis anos, o que evidencia um tempo de reação consideravelmente longo.
Um exemplo disso é a ADI nº 5372, que foi impetrada pela Confederação Nacional dos Usuários de Transportes Coletivos Rodoviário, Ferroviário, Hidroviário e Aéreo (Conut), pretendendo obter a declaração de inconstitucionalidade do artigo 14, III, “j” da Lei 10.233/2001. Referido dispositivo havia sido alterado pelo art. 3º da Lei 12.996/2014. Segundo a requerente da ação, a norma introduziu disciplina inconstitucional de delegação dos serviços públicos, alterando o regime de exploração de transportes coletivos interestaduais e internacionais para o de autorização, o que usurparia competência privativa do Chefe do Poder Executivo (art. 84, inciso IV da CRFB).
Segundo a legislação impugnada, a regulamentação desse procedimento de autorização dos serviços de transporte seria feita por meio de ato normativo expedido pela ANTT. Nesse sentido, a agência editou a Resolução 4.770/2015, que disciplinou a matéria. O que é interessante avaliar, neste caso, é o possível impulsionamento causado pelo aludida resolução. Isso porque o protocolo da ADI foi realizado no dia 20 de agosto de 2015, pouco menos de um mês após a edição do ato normativo (publicado no dia 25 de julho de 2015). Isso demonstra que a reação, embora relativamente lenta em relação à Lei nº 12.996/2014 - cerca de mais de um ano -, foi rápida em relação ao seu ato regulamentador.
Trata-se de uma evidência de que atos concretos das agências reguladoras podem levar a um movimento de retomada da contestação de seus poderes em abstrato pelos agentes regulados afetados por tais decisões regulatórias. Por certo, essa premissa não será verdadeira em todos os casos, mas pode ser um elemento relevante para a compreensão de uma fase menos imediata de contestação do modelo das agências reguladoras perante o Supremo Tribunal Federal.
Essa premissa também é identificada, e.g., nas ADIs nº 3596, 3366 e 3273, ajuizadas por partidos políticos e pelo Governador do Estado do Paraná em face de dispositivos da Lei nº 9.478/1997, que criou a Agência Nacional do Petróleo. Nestas ações, o tempo de reação também pode ser justificado por elementos contextuais.
Isso se torna perceptível a partir da ADI nº 3273. A ação foi formulada com pedido cautelar com o objetivo de suspender dispositivos da Lei do Petróleo. O periculum in mora era fundamentado na ocorrência da 6ª Rodada de Licitações das áreas produtoras de petróleo e gás natural, em que a Bacia de Santos, próxima ao litoral do Estado do Paraná, faria parte do certame. Foram justamente tais circunstâncias, aliás, que levaram o Supremo Tribunal Federal a reconhecer a pertinência temática do Governador para o ajuizamento da ADI.
O mesmo se diga em relação à ADI nº 3596, ajuizada pelo PSOL. Segundo o partido, o contexto do ajuizamento da ação se deu com a publicação da 7ª Rodada de Licitações de Bacias Petrolíferas pela ANP. O pedido cautelar do partido expõe o verdadeiro motivo para o ajuizamento da ADI: “Não se trata de periculum com o advento da lei, mas com o uso concreto que dela foi dado, com a utilização nefasta de atribuição exclusiva delegada pelo legislador ordinário a uma autarquia, evidenciando efetiva perda definitiva do subsolo nacional”. Igual circunstância ocorreu no bojo da ADI nº 3273, que levou, inclusive, à suspensão da 6ª Rodada de Licitações pelo Ministro relator Ayres Britto.37 Ou seja: para limitar uma atuação específica da agência, o partido buscou no Supremo Tribunal Federal um meio para conseguir, de forma célere, um provimento geral que limitasse de forma ampla os poderes gerais da ANP.
A ADI nº 4.874 talvez seja ainda mais evidente em relação a esta hipótese. Ajuizada mais de treze anos após a edição da Lei nº 9.781/1999, a ação questionava o poder regulatório da ANVISA para proibir a produção de produtos por meio de atos gerais e abstratos, ante a competência prevista no seu art. 7º, inciso XV. A relatora do caso, Ministra Rosa Weber, destacou em seu relatório que “o pano de fundo da discussão [foi] a iniciativa da ANVISA de proibir a importação e a comercialização no país de produtos fumígenos derivados do tabaco que contenham as substâncias ou compostos que define como aditivos”. Tanto é assim que o próprio ato regulamentar mencionado - a Resolução da Diretoria Colegiada nº 14, editada em março de 2012 - foi objeto explícito de impugnação por meio da ação direta, ajuizada em agosto do mesmo ano.
Foi possível notar, a partir dos dados observados, que a ADI é uma ferramenta para um debate essencialmente político sobre as agências reguladoras, sendo o Supremo Tribunal Federal um foro relevante para deflagrar tal discussão de forma célere e imediata. Ainda sob a ótica dos postulantes, foi possível notar que o setor regulado, embora não seja necessariamente contrário ao modelo das agências reguladoras no Brasil, vem tentando diminuir o alcance de seu poder em casos específicos, muitas vezes diante de algum elemento contextual que funciona como gatilho desta pretensão.
Conforme apresentado anteriormente, o item 4 deste artigo se destinará a analisar os dados relacionados à atuação do Supremo Tribunal Federal nas ações em que foram impugnadas leis que disciplinam o regime jurídico das agências reguladoras. Mais especificamente, os subitens a seguir avaliarão, com base nas mesmas premissas do item anterior (i) quais processos foram julgados até o momento, o tempo de tramitação dos feitos e os dados sobre o momento em que houve alguma decisão relacionada às leis das agências reguladoras (quando decidem); (ii) quais assuntos foram decididos até então pelo STF, incluindo-se o posicionamento institucional da Corte (o que e como decidem); (i) os dados gerais sobre os posicionamento individuais dos Ministros, decisões liminares e decisões de mérito, quando existentes (quem e como decidem).
O primeiro passo é identificar quando os processos relacionados às leis que disciplinam o regime jurídico das agências reguladoras brasileiras. Tal tópico envolve a própria análise sobre quais processos foram julgados (tanto monocraticamente como por decisão colegiada), qual o tempo de deliberação das demandas já julgadas e em quanto tempo eles tramitam perante a Corte.
Em relação aos processos que já foram objeto de deliberação (provisória ou definitiva), foi identificado um total de 10 ações (pouco mais da metade), sendo que 5 delas foram extintas por questões processuais (não conhecimento da ação) ou fáticas (perda do objeto por revogação da norma impugnada). Confira-se a tabela abaixo com a linha do tempo sobre os julgamentos:
A linha do tempo de tais decisões demonstra que um período de quase uma década separa blocos de períodos em que o modelo institucional das agências reguladoras esteve em debate no Supremo Tribunal Federal: o primeiro, entre 1998 e 2005; e o segundo, entre 2013 e 2018. O primeiro deles, como se viu, foi marcado por um primeiro período de contestação das agências reguladoras, em que houve uma série de ações ajuizadas por partidos políticos em face das leis criadoras de tais entidades (e.g., ADI nº 1668) ou que definiam o seu regime jurídico como um todo (e.g., ADI nº 2310). Já o segundo bloco de decisões se dá num momento em que o modelo institucional das agências reguladoras já se encontra consolidado no Brasil, representando uma etapa de sua reafirmação por um órgão colegiado composto por diferentes membros40. Como se verá no item 4.2, isso levou a uma visão mais sofisticada sobre as agências reguladoras e os parâmetros para sua atuação.
Além disso, se atentarmos aos casos em que houve julgamento colegiado, poucas foram as manifestações do Supremo Tribunal Federal ao longo destes anos. De fato, apenas nos anos de 2005, 2017 e 2018 o plenário do STF se manifestou sobre o regime jurídico, respectivamente, da ANP (ADI nos3273 e 3266), da ANCINE (ADI nº 4679) e da ANVISA (ADI nº 4874) de forma definitiva. Adiciona-se, ainda, a ADI nº 1668, em que o regime jurídico da ANATEL foi objeto de julgamento do plenário da Corte em sede de medida cautelar. Isso demonstra que o julgamento da constitucionalidade de leis que tratam sobre o regime jurídico das agências reguladoras no Brasil não é uma constante, revelando um comportamento casuístico do STF sobre o assunto.
No reduzido espaço amostral de decisões tomadas pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, há um dado que revela uma constante em relação a todos os casos: a necessidade de mais de uma sessão da Corte para deliberação. De fato, observando a data entre o início e o fim do julgamento das cinco ações apreciadas pelo colegiado, conclui-se que o debate sobre o regime jurídico das agências reguladoras demanda um tempo de debate acima da média, por motivos como pedidos de vista (como no caso das ADIs nos3273, 3366 e 4679), a forma de deliberação (na ADI nº 1668, o Ministro Marco Aurélio, então relator, optou por fracionar o voto por grupos de dispositivos impugnados) e um número elevado de sustentações orais, tal como ocorreu no caso da ADI nº 4874.
Em relação ao tempo de tramitação, não é possível apontar nenhuma tendência específica do STF. Entre os procedimentos que ainda não foram julgados em seu mérito, há casos que aguardam sua análise pelo colegiado há mais de vinte anos, havendo um elevado percentual de contingente de ações ainda não julgadas em relação ao número total do espaço amostral delimitado na pesquisa.
Quanto aos casos que já tiveram julgamento final (de mérito ou extinto por razões processuais), também não é possível vislumbrar nenhuma orientação específica a partir da prática do Supremo Tribunal Federal. Os quatro casos em que houve decisão definitiva se dividem entre aqueles que foram julgados ora de forma muito célere (tal como os casos relativos à ANP - ADIs nº 3273 e nº 3366), ora com um tempo considerável para a apreciação final pelo colegiado (mais de cinco anos), tal como identificado nas ADIs nº 4874 e 4679.
Avaliado o fator tempo sobre os julgados do STF, passa-se à análise sobre a segunda questão a ser analisada em relação ao Supremo Tribunal Federal: os assuntos tratados pela Corte em relação às agências reguladoras e o posicionamento adotado a partir dos tópicos identificados.
Uma nota preliminar, contudo, é necessária. A tarefa de definir o posicionamento institucional do STF não é fácil. Isso porque o método de deliberação colegiada do Supremo Tribunal Federal não é construído de forma que a corte tome decisões com base em fundamentos uniformes, cabendo a cada Ministro apresentar as razões pelas quais entende que um processo deve ser julgado procedente ou não. Isso significa que o resultado final e a ementa apresentada pelo relator não necessariamente refletem o entendimento exposto por todos os membros do tribunal, mesmo em casos nos quais os resultados são unânimes. Esse fenômeno é conhecido como “onze ilhas”, conforme expressão cunhada por Virgílio Afonso da Silva43. A despeito de tais dificuldades metodológicas, os subtópicos a seguir demonstrarão as decisões definitivas do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria do ponto de vista institucional, ainda que o posicionamento individual dos Ministros (tema que será explorado no item a seguir) tenha relevância para tanto.
De um modo geral, é possível afirmar que o STF considera, em abstrato, o modelo das agências reguladoras compatível com a Constituição Federal. A concepção do tribunal sobre o assunto, no entanto, é cambiante ao longo do tempo. Em um primeiro momento, as agências reguladoras foram consideradas constitucionais porque a dita independência administrativa não afastaria a supervisão ministerial e o controle da entidade pelo chefe do Poder Executivo. Em um segundo momento, contudo, a autonomia das agências reguladoras é reforçada pelo posicionamento da Corte, que reconhece sua importância para a tomada de decisões técnicas, céleres e insuladas do processo político. Tais entendimentos, a propósito, coincidem com os dois blocos de conjuntos de decisões identificados na linha do tempo no subitem 4.1.1.
A primeira ação em que o Supremo Tribunal Federal se debruçou sobre o assunto foi a ADI nº 1668, que tinha por objetivo impugnar o regime jurídico especial da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL). Em relação à matéria examinada - isto é, a contestação em abstrato do modelo das agências reguladoras, o autor da ADI havia postulado a declaração de inconstitucionalidade dos arts. 8º, §2º e 9º da Lei nº 9.742/1997, que previam a criação da agência reguladora e conferiam a ela a “independência administrativa” própria destas instituições. Segundo o entendimento assentado pelo Plenário entre 1997 e 1998, o Decreto-lei nº 200/1967 previa há muito a existência de autarquias, entidades autônomas em relação a sua personalidade jurídica, e modo que não haveria qualquer inconstitucionalidade na criação da ANATEL em abstrato. Para tanto, afirmou que o regime especial “longe está de revelar a existência de uma entidade soberana, afastada do controle pertinente”. Portanto, o modelo institucional da ANATEL só foi considerado constitucional porque a tutela administrativa exercida pelo Ministério das Comunicações e pelo Presidência da República subsistiriam em relação àquela entidade da Administração Pública indireta.44
O mesmo se deu em relação à Agência Nacional do Petróleo. Nas ADIs nº 3273 e 3366, julgadas entre os anos de 2004 e 2005, o entendimento prevalecente da maioria do Plenário do STF assentou a constitucionalidade do art. 60 da Lei nº 9.478/1997, que conferia à ANP a competência para autorizar a exportação de petróleo no Brasil. O grande embate sobre a questão condizia na violação ou não à soberania nacional com a atribuição de tal competência a uma entidade administrativa independente (e não ao Poder Executivo central). Mais uma vez, um dos fundamentos adotados para afastar a inconstitucionalidade do dispositivo foi a circunstância de que a independência da agência era limitada. Dito de outro modo, não haveria nenhum comprometimento à soberania nacional, uma vez que, para exportar petróleo, a agência reguladora deveria observar as políticas aprovadas pelo Presidente da República, propostas pelo Conselho Nacional de Política Energética - CNPE, conforme disposto no art. 4º da Lei n. 8.176/1991. Ainda na visão prevalecente do Plenário, a ANP, enquanto autarquia, estaria submetida à direção superior do Presidente da República, nos termos do art. 84, inciso II da Constituição Federal, motivo pelo qual o dispositivo impugnado seria constitucional. Significa dizer que, para os fins desta pesquisa, o resultado final das ADIs é uma contradição em seus próprios termos: a manutenção da competência da ANP é fruto da ausência de autonomia reforçada da agência.
O segundo bloco de decisões, contudo, revela uma defesa mais sólida do modelo das agências reguladoras. Na ADI nº 4679, julgada entre os anos de 2015 e 2017, o Supremo Tribunal Federal validou competências atribuídas à ANCINE para a regulação do setor audiovisual nacional, reconhecendo a importância dos desenhos institucionais de tais entidades. O acórdão do caso expõe extensos votos em que são abordadas questões como (i) o conhecimento técnico e especializado das agências reguladoras; e (ii) a necessidade de respostas mais rápidas do que as propiciadas pelo naturalmente moroso processo legislativo formal. Nesse contexto, (iii) as agências reguladoras, reconhecidamente dotadas de autonomia reforçada e concentradoras de funções públicas normalmente distribuídas entre Poderes do Estado, (iv) são voltadas ao desenvolvimento de normas setoriais aptas a, com autonomia e agilidade, regular a complexa e dinâmica realidade social subjacente.
O mesmo se deu na ADI nº 4874, ajuizada com o objetivo exclusivo de discutir a extensão do poder normativo da ANVISA. Naquela oportunidade, reconheceu-se que as agências reguladoras representam inegável aperfeiçoamento da arquitetura institucional do Estado de Direito contemporâneo no sentido do oferecimento de uma resposta da Administração Pública para fazer frente à complexidade das relações sociais verificadas na modernidades. Sua importância também é destacada ante a exigência de agilidade e flexibilidade para lidar com decisões de natureza técnica, o que levou à emergência destas estruturas administrativas relativamente autônomas e independentes.
Como é possível notar, o discurso de legitimação das agências nos votos apresentados nestes casos revela uma variação do Supremo Tribunal Federal no enfrentamento do assunto. Se antes as agências eram constitucionais porque estavam sujeitas à tutela do Poder Executivo, a concepção atual é que seu modelo institucional é relevante dentro de uma nova concepção de separação de poderes em que decisões de caráter técnico e isentas são essenciais para a promoção de finalidades públicas específicas.
O principal assunto relativo à independência das agências reguladoras nas decisões proferidas pelo STF está no debate sobre a abrangência e extensão do poder normativo de tais entidades.
A função normativa da ANATEL foi objeto de intensa controvérsia entre os membros do STF no bojo da ADI nº 1668. A maioria do STF adotou a orientação de que o poder de editar normas gerais e abstratas era possível, desde que em caráter regulamentar, subordinada à legislação e a eventuais atos normativos da Presidência da República. Conforme assentado pelo Plenário, a atuação normativa das agências reguladoras não poderia subtrair do agente político a competência reguladora da lei de telecomunicações. Foi nesse sentido que foi dada interpretação conforme à Constituição em relação aos dispositivos impugnados para fixar a tese de que os atos normativos da agências reguladoras deveriam necessariamente observar a lei (preferência da lei sobre os atos regulatórios) - orientação seguida pela maioria dos julgadores45.
O Supremo Tribunal Federal voltou a se pronunciar acerca do regime jurídico das agências reguladoras apenas em 2015, em julgamento que durou mais que dois anos. Tratava-se da ADI nº 4679, que tinha como objetivo ver declarada inconstitucional a Lei nº 12.485/2011 na parte em que reconhecia diversas competências da ANCINE para regular o setor audiovisual de acesso condicionado (a antiga TV a cabo).
Na oportunidade, o STF também votou a favor da competência normativa da ANCINE. Mas sua concepção sobre o princípio da legalidade em relação às agências reguladoras foi sensivelmente distinta. Segundo o tribunal, a Constituição chancela a atribuição de poderes normativos ao Poder Executivo, desde que pautada por princípios inteligíveis (intelligible principles)46 capazes de permitir o controle legislativo e judicial sobre os atos da Administração. Daí porque o importante não era condicionar a atuação da ANCINE estritamente aos comandos legais; mas sim avaliar se sua lei de criação (Medida Provisória nº 2.228-1/2001) e se a lei que disciplina o serviço de acesso condicionado (art. 3º da Lei nº 12.485/2011) seriam suficientes para lhe atribuir poderes normativos. Apenas se tais normas legais fossem demasiadamente amplas é que se evidenciaria a inconstitucionalidade do poder normativo da agência. No fim, concluiu-se que a técnica legislativa empregada na legislação era constitucional, na medida em que atendia à contemporânea noção de Estado regulador, em que o papel da lei em sentido formal é apenas definir as metas principais e os contornos da atividade do órgão regulador, cometendo-lhe margem relativamente ampla de atuação, mas condicionada aos espaços deixados em aberto pela legislação.
Igual entendimento foi firmado no âmbito da ADI nº 4874. No que concerne especificamente ao poder normativo da ANVISA, o Supremo Tribunal Federal, por maioria, entendeu que a legislação setorial de vigilância sanitária possuía elementos suficientes para a aferição da legitimidade do poder normativo da agência. No entanto, por se tratar da primeira ação em que o Supremo se debruçou exclusivamente sobre o tema da edição de normas por entidades reguladoras independentes, os parâmetros apresentados pelo STF relevam uma sofisticação ímpar sobre o tema.
De modo sintético, é possível afirmar que a orientação geral do colegiado dirigiu-se no sentido de que, para que o exercício de competências normativas pelas agências reguladoras) seja considerada legítima, (i) não poderá envolver matérias sujeitas, por decisão constitucional, à reserva de lei, e (ii) tal competência há de ser acompanhada de parâmetros mínimos e claros, que, de modo enfático, limitem a atuação da agência reguladora, e permitam a fiscalização dos seus atos (reiterando-se a tese dos princípios inteligíveis, ou da tipificação mínima); e que (iii) é possível o controle a posteriori dos atos das agências reguladoras, ainda que seja recomendável a adoção de uma postura deferente do Poder Judiciário em relação às suas decisões técnicas, cabendo ao Judiciário avaliar apenas se a solução a que chegou a agência foi devidamente fundamentada e se tem lastro em interpretação da lei razoável e compatível com a Constituição
Como é possível notar, os standards adotados pelo STF na ADI nº 1668 e aqueles estipulados nas ADIs nos4679 e 4874 foram sensivelmente distintos. Na fase em que o modelo das agências reguladoras ainda era posto em cheque, cabia ao STF ser cauteloso e permitir que o exercício do poder normativo pelas agências reguladoras não fugissem abruptamente da concepção majoritária da época sobre o princípio da legalidade. O mundo dos fatos, desde então, demonstrou que o exercício de competências administrativas normativas é um dado inevitável para a realidade contemporânea e complexa da Administração Pública. Por isso que a fase de consolidação do modelo das agências reguladoras pela jurisprudência do STF vem acompanhada de uma nova visão, em que a Corte deixa de se preocupar se é possível a edição de normas, voltando-se a questionar como essa competência deve ser exercida.47
Não só de produção de normas vive uma agência. Do ponto de vista gerencial, as agências precisam de recursos próprios para que possam tomar decisões empiricamente bem informadas. Isso envolve, por certo, determinada discricionariedade para alocação de seus recursos em pessoal e na contratação de terceiros para treinamentos, estudos, bens e serviços em geral. É dizer: a autonomia financeira é essencial para o êxito de uma agência reguladora. É nesse contexto, aliás, que tais instituições têm passado a sofrer diversos reveses que as enfraquecem do ponto de vista institucional, sobretudo por meio de contingenciamento de receitas.48
A autonomia gerencial das agências reguladoras foi objeto de exame em duas oportunidades pelo Supremo Tribunal Federal: (i) uma em relação aos seus processos de contratação, mais especificamente em relação a dispositivos que previam regras específicas de licitações para a ANATEL (ADI nº 1668); e (ii) outra em relação aos regime de pessoal das agências reguladoras como um todo, em ação que discutia a constitucionalidade do regime celetista de seus agentes burocráticos (ADI nº 2310).
Quanto à possibilidade de previsão de regras específicas de contratações administrativas em favor das agências reguladoras, o STF, por maioria, adotou entendimento favorável à autonomia gerencial da ANATEL. Os arts. 22, inciso II, 54 a 59, 89, 119 e 210 da Lei nº 9.472/1997 previam a possibilidade de adoção de duas modalidades não existentes na então Lei Geral de Licitações e Contratos (Lei nº 8.666/1993): o pregão e a consulta, incluindo-se a possibilidade de edição de atos normativos pela agência para discipliná-los na via infralegal. A apertada decisão da Corte garantiu que a ANATEL pudesse realizar contratações mais eficientes, sendo este um dos raros casos no Brasil em que a abertura de experiências institucionais isoladas pudessem ser ampliadas para toda as Administrações Públicas nacionais a partir da constatação dos resultados positivos da política adotada49.
Embora o caso não tenha sido levado a Plenário (as normas impugnadas foram posteriormente revogadas), a ADI nº 2310 também tem uma importância acentuada50 quanto ao tema da autonomia gerencial das agências reguladoras. Referida ação tinha por objeto dispositivos da Lei nº 9.986/2000 que continham previsões sobre a gestão de recursos humanos das agências reguladoras, mais especificamente aqueles que submetiam o regime de pessoal das entidades às regras da Consolidação das Leis do Trabalho, afastando-se o regime estatutário próprio das autarquias. Dito de outra forma, os autores da ação defendiam que o exercício da função de fiscalização, inerente à atividade precípua do Estado, pressupunha prerrogativas não agasalhadas pelo contrato de trabalho. A tese foi encampada pelo Ministro Marco Aurélio, para quem somente o cargo público propicia desempenho técnico, isento e imparcial necessário para a atuação pública das agências reguladoras51.
Por fim, registre-se o julgamento sobre uma questão relevante que envolve a eficiência gerencial de uma agência reguladora. O art. 26, §3º da Lei nº 9.478/1997 prevê uma hipótese de efeitos positivos ao silêncio administrativo da ANP em casos de submissão de planos e projetos de desenvolvimento e produção na exploração de petróleo ou gás natural.52 O objetivo desta norma é evitar a inércia da agência nestes procedimentos, garantindo a celeridade de seus órgãos na análise dos pleitos relativos à matéria. Por maioria, o Supremo Tribunal Federal legitimou este mecanismo no bojo das ADIs nos 3273 e 3366.
Por fim, é necessário registrar casos em que o Supremo Tribunal Federal debateu a constitucionalidade de competências específicas de agências reguladoras que foram contestados por usurpar poderes específicos reservados a outras instituições: o Poder Judiciário e o (chefe do) Poder Executivo.
Na ADI nº 1668, a liminar foi deferida em relação ao poder de realização de busca e apreensão pela ANATEL. No entender da Corte, embora as agências reguladoras possuam competências fiscalizatórias, não se pode compreender, nela, a realização de busca e apreensão de bens de terceiros, matéria essa sujeita à reserva de jurisdição. O Plenário afirmou, assim, que somente o Poder Judiciário poderia realizar atos de constrição do gênero. Por isso, o STF suspendeu, cautelarmente, o disposto no art. 19, inciso XV da Lei da ANATEL.
Já nas ADIs nº 3273 e 3366, uma competência específica da ANP foi questionada por supostamente usurpar uma competência específica do chefe do Poder Executivo. Dentre outros aspectos sobre o marco regulatório no setor de petróleo e gás, os autores de ambas as ações diretas questionaram a competência da Agência Nacional do Petróleo para autorizar a exportação de petróleo (art. 60 da Lei nº 9.478/1997). Ambos os autores defendiam que a competência em questão seria uma matéria de Estado (i.e., Administração Pública direta), não sujeito à reserva técnica da agência reguladora. Seria inconstitucional, portanto, deferir à agência reguladora uma questão que envolvesse essencialmente a soberania nacional. Como já mencionado, o STF, por maioria, julgou as ações improcedentes, reconhecendo o espaço de atuação da agência (condicionado, contudo, às políticas adotadas pelo Presidente da República em conformidade com as proposições do Conselho Nacional de Política Energética - CNPE).
A terceira e última questão a ser analisada em relação ao Supremo Tribunal Federal é a forma como se comportam os Ministros, tanto do ponto de vista das condutas individuais adotadas no curso de um processo que envolva a impugnação de uma lei que discipline o regime jurídico de uma agência reguladora, como do ponto de vista do posicionamento adotado em julgamentos sobre a matéria.
Retomando-se a ideia das onze ilhas destacada acima, duas condutas tomadas individualmente por Ministros podem ter impacto direto em uma ação de controle abstrato, sem a necessidade de manifestação colegiada sobre o assunto53. São elas: (i) a tomada de decisões monocráticas por parte do relator; e (ii) os pedidos de vista formulados no curso do processo de deliberação do plenário do STF.
Em relação aos relatores, é necessário apontar, em primeiro lugar, uma curiosidade: a acentuada distribuição dos casos envolvendo agências reguladoras ao Ministro Marco Aurélio (7 em um total de 18). Como se verá abaixo, trata-se de um dos poucos membros do Supremo Tribunal Federal que possuem postura declaradamente contrária a uma ampla autonomia das agências reguladoras no ordenamento brasileiro.
Em relação ao comportamento dos relatores em si, é possível apontar uma reduzida atuação monocrática. De um modo geral, adota-se o rito do art. 10 (em que a análise do pedido cautelar é postergado após a obtenção de informações das entidades legitimadas)54 ou o do art. 12 da Lei nº 9.868/1999 (em que o relator, em face da relevância da matéria, entende que o caso deva ser julgado em definitivo, sem apreciação do pedido cautelar)55. Em 10 de 16 ações em que medidas liminares foram pleiteadas, essa foi a posição adotada pelo relator.
Em apenas três oportunidades a medida liminar foi concedida monocraticamente. A primeira delas foi a já relatada: ADI nº 2310, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, em que dispositivos da Lei nº 9.986/2000 foram suspensos para impedir a contratação de pessoal das agências pelo regime celetista, no ano de 2000. A segunda foi proferida pelo Min. Carlos Ayres Britto no bojo da ADI nº 3273, em agosto de 2014, para suspender a eficácia de diversos dispositivos da Lei nº 9.478/1997, em razão da ocorrência da 6ª Rodada de Licitações das áreas produtoras de petróleo e gás natural. Já a terceira foi proferida pela Ministra Rosa Weber. Embora tenha inicialmente aplicado o rito do art. 12 da Lei nº 9.868/199960 ao caso, a relatora deferiu a medida cautelar pleiteada pela autora da ação por um fato superveniente: o Tribunal Regional Federal da 1ª Região confirmou a decisão antecipatória de tutela proferida pela 9ª Vara Federal da Seção Judiciária de Brasília havia garantido a suspensão da eficácia da RDC nº 14/2012 para parte do setor do mercado fumígeno. Assim, a relatora, em setembro de 2013, deferiu a suspensão integral de dispositivos da resolução a fim de assegurar tratamento isonômico a todos os potencialmente afetados pelos atos normativos impugnados. Nos três casos, condutas concretas (contratação de pessoal; realização de procedimentos licitatórios; e proibição de comercialização de cigarros com ingredientes específicos) deram ensejo ao deferimento dos pedidos.
Ainda quanto às decisões cautelares, não é possível apontar nenhum elemento adicional satisfatório que indique uma tendência decisória do Supremo Tribunal Federal. Um dado, contudo, desperta curiosidade: nenhum dos casos em que houve deferimento do pedido cautelar levou a um julgamento de mérito procedente: na ADI nº 3273, o Ministro Eros Grau foi relator para acórdão; enquanto que na, ADI nº 4874, a Ministra Rosa Weber julgou a demanda improcedente.
Passando ao segundo ponto, os pedidos de vista foram formulados em metade dos casos julgados pelo plenário do Supremo Tribunal Federal. Em ambas as hipóteses, os pedidos foram formulados para que os Ministros pudessem abrir divergência sobre o resultado final do julgamento (como nas ADIs nos3273 e 3366), ou para um exame mais aprofundado da matéria em razão de prévia divergência suscitada por outro membro do tribunal (como na ADI nº 4679).
Nas ADIs nos3273 e 3366, julgadas conjuntamente, tanto o Ministro Marco Aurélio como o Ministro Eros Grau pediram vista no feito para que pudessem elaborar votos divergentes ao relator original do caso, o Ministro Carlos Ayres Britto. Já na ADI nº 4679, o Ministro Dias Toffoli requereu vista para poder examinar, com maior apuro, a constitucionalidade do art. 25 da Lei nº 12.485/2011, que não se relaciona ao tema das agências reguladoras, mas ao marco regulatório do setor de serviço de acesso condicionado. Ao final, o Ministro votou no mesmo sentido do relator, discordando da divergência aberta pelo Ministro Edson Fachin. Nesse último caso, o pedido de vista teve impacto significativo para o deslinde da ação, ampliando o tempo de tramitação do feito em mais de dois anos.
Em relação ao entendimento jurídico específico dos Ministros da Corte, é possível notar que parte deles tem uma posição bem definida em relação ao modelo legal das agências independentes; enquanto outros, embora votem em sentido favorável às agências reguladoras, não o fazem com a exposição de razões contundentes.
Os Ministros Nelson Jobim e Moreira Alves foram aqueles que, no âmbito da ADI nº 1668, apresentaram os principais contrapontos aos argumentos desfavoráveis ao modelo das agências reguladoras no Brasil. Atualmente, os Ministros Luiz Fux e Rosa Weber, aparentemente, foram aqueles que mais aprofundaram o debate sobre o tema nos acórdãos mais recentes. A circunstância de terem sido relatores, respectivamente, das ADIs nº 4679 e 4874 permitiu um estudo mais denso sobre o tema, o que se reflete em parâmetros similares de interpretação - mesmo que, no mérito, seus votos venham a divergir. Foram eles, aliás, que incluíram expressamente em seus votos as orientações sobre a doutrina dos princípios inteligíveis61 e a teoria da deferência judicial aos atos das agências reguladoras62.
Em outro prisma, observa-se que o Ministro Marco Aurélio é, desde o início dos debates sobre o assunto no âmbito do STF, o Ministro que apresenta maior resistência ao regime jurídico especial das agências reguladoras. É verdade que o Ministro Marco Aurélio não ignora a possibilidade de delegação de competências técnicas para agências reguladoras. Assim, nas ADIs 3273 e 3366, o Ministro foi favorável ao poder da ANP de exportar petróleo.63 Tratava-se, contudo, de competência administrativa e executiva. Nos demais casos apreciados pelo Plenário, sua posição foi muito mais restritiva, em especial na ADI nº 4874, em que o Ministro sustentou forte contestação contra a autonomia normativa das agências reguladoras64.
De mais a mais, a partir da ADI nº 4874, é possível identificar que as divergências entre as posições individuais dos Ministros aparecem mais no exame de atos concretos do que na disciplina legal das agências reguladoras.66 Há ao menos três grupos distintos em razão dos fundamentos que foram apresentados e dos votos que foram proferidos para o caso.
O primeiro, capitaneado pela Ministra relatora Rosa Weber, defendeu o poder normativo das agências reguladoras e, no caso concreto, entendeu existir parâmetros suficientes para a edição do ato normativo pela ANVISA. Seguiram esta orientação os Ministros Edson Fachin, Ricardo Lewandowski, Celso de Mello e Carmen Lúcia. O segundo grupo, capitaneado pelo Ministro Alexandre de Moraes e pelo Ministro Luiz Fux, embora tenha considerado o desenho institucional das agências reguladoras algo compatível com a Constituição Federal - e até desejável -, julgaram a demanda procedente em relação à declaração de inconstitucionalidade da RDC nº 14/2012. Neste grupo, também está incluído o Ministro Dias Toffoli. Já o terceiro grupo é composto pelos Ministros Marco Aurélio e Gilmar Mendes, esse último, em sua primeira manifestação contrária às agências reguladoras nos casos pesquisados67. Em ambos os votos, foram apresentadas críticas contundentes à atuação das agências reguladoras, o que os levou a julgar a demanda procedente, em relação ao primeiro, e parcialmente procedente, em relação ao segundo.
Significa dizer que, do ponto de vista estratégico, a apresentação de atos concretos das agências reguladoras pode induzir e alterar a interpretação sobre os limites dos poderes regulatórios em abstrato. Tais assertivas, contudo, demandam melhor comprovação empírica no futuro, quando mais casos relacionados às agências reguladoras serão julgados pelo Supremo Tribunal Federal.
O escasso espaço amostral de julgamentos do STF em relação às ações pesquisadas impede que conclusões mais assertivas sejam firmadas. Contudo, os elementos apresentados neste item 4 permitem apontar algumas diretrizes sobre o poder decisório do Supremo Tribunal Federal.
Em relação ao fator tempo, é possível identificar que os processos relacionados ao regime jurídico das agências reguladoras possuem longo tempo de tramitação; e que os casos que já foram julgados até então geralmente tomam elevado tempo do plenário, todos eles em mais de uma sessão do colegiado. A linha do tempo dos casos também demonstra dois blocos de períodos distintos em que se concentraram as decisões sobre o tempo: o primeiro, em um período de afirmação do modelo das agências reguladoras (1998-2005); e o segundo, em um período de consolidação e aprimoramento deste modelo institucional (2013-2018).
Em relação à orientação geral do STF no exame sobre as leis que disciplinam o regime jurídico das agências reguladoras, é possível afirmar que o histórico de decisões da Corte indica que o modelo geral das agências reguladoras é compatível com a Constituição Federal. A evolução de sua concepção, contudo, é perceptível: se antes as agências reguladoras eram uma possibilidade legislativa e o exercício de suas competências normativas estavam submetidas à estrita legalidade, a evolução da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal leva ao reconhecimento da importância institucional das agências reguladoras no desenvolvimento social e ao estabelecimento de parâmetros específicos para o bom exercício do seu poder normativo.
De um modo geral, o STF reconhece que as agências reguladoras representam um desenho institucional voltado para o exercício do poder regulatório sobre questões técnicas específicas. No entanto, as competências extraordinárias de tais entidades somente serão válidas quando existentes e observados os parâmetros previstos em lei (princípios inteligíveis). E mais: autonomia das agências reguladoras não impossibilita posterior revisão de seus atos pelo Poder Judiciário, mesmo que seja recomendável a adoção de uma postura deferente para a reavaliação de decisões técnicas das agências.
Por fim, em relação aos Ministros, é possível apontar uma tendência acentuada à deliberações colegiadas sobre o assunto, registrando-se poucos casos de deferimento de pedidos cautelares monocraticamente. No mais, os pedidos de vista são utilizados geralmente para que os membros do tribunal possam apresentar posições divergentes daquelas apresentadas por outros Ministros da Corte. Por fim, destaca-se o posicionamento acentuado dos Ministros Luiz Fux e Rosa Weber em defesa do modelo institucional das agências reguladoras na atual composição do STF, entendimento esse seguido por grande maioria. A exceção fica com o Ministro Marco Aurélio - curiosamente, relator de grande número de ações sobre o caso -, que apresentou posicionamentos e fundamentações mais contundentes em sentido contrário ao regime jurídico especial das agências reguladoras.
Passados mais de vinte anos desde a adoção do modelo institucional das agências reguladoras no Brasil, ainda não há respostas definitivas sobre os limites impostos aos seus regimes jurídicos. A escassez de casos examinados nesta pesquisa, contudo, não retira o valor das suas conclusões. Pelo contrário: o número reduzido de casos demonstra que, embora o Supremo Tribunal Federal seja um foro relevante para o debate sobre o regime jurídico das agências reguladoras, o uso cauteloso dessa via pelos agentes legitimados torna ainda mais crucial o estudo dos dados sobre os postulantes destas ações e sobre o poder decisório do STF.
Do ponto de vista dos postulantes, este artigo demonstrou que a ADI é uma ferramenta para um debate essencialmente político sobre as agências reguladoras, sendo o Supremo Tribunal Federal um foro relevante para deflagrar tal discussão de forma célere e imediata. Ainda sob a ótica dos postulantes, foi possível notar que os setores regulados, embora não sejam necessariamente contrários ao modelo das agências reguladoras no Brasil, vêm tentando diminuir o alcance de seu poder em casos específicos, muitas vezes diante de algum elemento contextual que torna esta contestação oportuna. De todo modo, o volume de casos ajuizados perante o Supremo Tribunal Federal não revela ainda nenhum padrão - as demandas, quase sempre, estão relacionadas a elementos contingentes que justificam a busca pela jurisdição constitucional.
Já em relação à atuação Supremo Tribunal Federal, é possível notar que a Corte reconhece a constitucionalidade do regime jurídico especial das agências reguladoras. De um modo geral, sua jurisprudência encontra-se em fase de consolidação de um modelo voltado ao aprimoramento do regime jurídico de tais entidades. Reconhece-se, assim, (i) a constitucionalidade da atribuição de competências técnicas às agências reguladoras; (ii) a necessidade de que seus poderes estejam sujeitos à observância às regras de direito público e aos parâmetros previstos em leis setoriais; e (iii) o fato de que sua independência não afasta a possibilidade de posterior controle de seus atos, ainda que seja recomendável a adoção de uma postura deferente do Poder Judiciário.
Tal como qualquer estudo empírico, este artigo não pretendeu apresentar respostas definitivas sobre o assunto. Ainda assim, investigar os elementos do passado é essencial para buscar indícios sobre o futuro, sobretudo porque o debate sobre o regime jurídico especial das agências reguladoras volta constantemente à tona na doutrina, na sociedade e, inevitavelmente, também no Supremo Tribunal Federal.