
Resumo: Este artigo discute como se dá a lógica de construção teórica e empírica dos objetos de investigação de estudos críticos no campo organizacional. Analisamos trabalhos da área de Estudos Críticos e Práticas Transformadoras em Organizações do ENANPAD considerando: práticas de problematização, aspectos metodológicos, e práticas investigadas. Predominam a identificação de lacunas da teoria organizacional, e sua avaliação crítica, e desenvolvimento de bases alternativas, em geral guiado por um viés emancipatório nem sempre claro. A noção do aparato organizacional como contingente favorece abordagens pós-estruturalistas que permitam identificar elementos de uma formação hegemônica, práticas de resistência e articulações que visam a transformação.
Palavras-chave: Estudos Críticos, Organizações, Problematização.
Abstract: This article discusses logics of theoretical and empirical construction of research objects by critical studies in the organizational field. We analyzed papers published in the area of Critical Studies and Transformational Practices Organizations in ENANPAD considering: problematizing practices, methodological aspects, and practices investigated. The construction of the field has been guided by identification of gaps in organizational theory, its critical evaluation, and development of alternative bases, generally guided by an emancipatory bias not always clear. The notion of organizational apparatus as contingent favors poststructuralist approaches that identify elements of a hegemonic formation, resistance practices and articulations aimed at transformation.
Keywords: Critical Studies, Organizations, Problematization.
Introdução
No campo das organizações e no contexto mais amplo da organização social, a reflexão teórica tem enfrentado importantes desafios para a articulação de subsídios críticos (CAVALCANTI; ALCADIPANI, 2011). Críticas consolidadas em torno dos traços do capitalismo foram solapadas pela fragmentação da Esquerda pós-1970; o surgimento de novos movimentos sociais suscitou novas perspectivas críticas; a consolidação da União Europeia e destaque de países como a China no cenário econômico também relativizaram modelos e valores gerenciais anglo-americanos; incertezas crescentes suscitadas por eventos diversos (como atentados terroristas), e a sucessão de crises naturais e sociais despertam atenção para questões em torno da ética gerencial, ambientalismo e neoimperialismo (ADLER et al., 2007).
Os Critical Management Studies (CMS) têm buscado – por meio do questionamento de pressupostos estabelecidos e consensuais, crítica ao instrumentalismo, postura reflexiva, e olhar mais atento para questões de poder-conhecimento – alternativas ao enfoque gerencial mainstream visando a transformação radical da prática gerencial (ADLER et al., 2007). Pensadores do pós-estruturalismo, em especial, têm influenciado o campo a partir do desenvolvimento de uma perspectiva ontológica alternativa para a explicação crítica de fenômenos diversos (PETERS, 2000; WILLIAMS, 2012). Na esfera analítica, esse esforço tem contribuído à conceituação do caráter e transformação das estruturas sociais, e à clarificação da relação entre estruturas sociais, agência política e poder (GLYNOS; HOWARTH, 2007).
Numa fecunda discussão comparativa entre o movimento CMS e os Estudos Organizacionais Críticos (EOC) brasileiros, Paes de Paula, Maranhão, Barreto e Klechen (2010) apontaram diferenças epistemológicas significativas. As características da produção nacional - influenciadas pelo pensamento humanista radical de Alberto Guerreiro Ramos e Maurício Tragtenberg - sugerem um direcionamento distinto para as linhas de pesquisa nos EOC no Brasil, sendo que a crítica pós-estruturalista, apesar de uma influência maior a partir dos anos 2000, é pouco utilizada. No Brasil, a influência do pensamento pós-estruturalista é mais evidente no campo da Educação que, a partir da década de 1990, tem ampliado esforços de pesquisas segundo uma perspectiva de ruptura com as tradições metanarrativas e universalistas modernas (OLIVEIRA et al., 2013).
O esgotamento de projetos, lógicas ou arcabouços universalizantes face às complexas transformações que incidem sobre a dinâmica organizacional realça possíveis limites do saber-poder contemporâneo. Apesar da contestação oferecida às tendências de compartimentalização da investigação positivista nas Ciências Sociais (GLYNOS; HOWARTH, 2007), há aspectos em torno da explicação crítica – como o uso de metodologias abertas, recursos teóricos, aspectos analíticos e normativos –, além do próprio status da crítica na comunidade acadêmica na área de estudos organizacionais (PAES DE PAULA et al., 2009) que merecem discussão mais ampla no sentido de se evitar uma crítica domesticada (MISOCZKY; AMANTINO-DE-ANDRADE, 2005).
Bacchi (2015) afirma que um número crescente de orientações de pesquisa tem encorajado a problematização, com diferentes matizes - interpretativa, política, linguística, construcionista e pós-moderna. Para Alvesson e Sandberg (2011), em especial, a problematização é indicada como metodologia para identificar e desafiar pressupostos subjacentes à literatura e, daí, formular perguntas de pesquisa com potencial para gerar teorias de maior influência nos estudos em gestão. Os autores entendem que o campo tem se concentrado de forma conservadora na identificação de lacunas na literatura vigente e a necessidade de preenchê-las. O predomínio desse gap-spotting não seria restrito à pesquisa hipotético-dedutiva, também prevalecendo no âmbito da pesquisa qualitativa indutivista.
Reconhecemos que há uma polissemia conceitual em torno do termo ‘problematização’, mas em geral se destacam as noções de uma descrição do que as pessoas ou governos fazem, ou como resultado de um processo – o de problematizar -, ou como descrição de uma forma de análise crítica, ou ainda para se referir a um movimento que coloca para frente ou designa algo como um problema (BACCHI, 2015). Ainda que haja diferentes sentidos, problematização sugere questionamento, como a interrogação crítica de práticas gerenciais e de organizações.
Visando discutir como se dá a explicação crítica no âmbito dos estudos críticos, e como avança sua agenda no campo organizacional, consideramos pertinente enfatizar como estes têm problematizado a relação da organização com o presente. Nosso propósito é refletir acerca das problematizações nesse campo disciplinar, com um olhar mais atento a influências da perspectiva pós-estruturalista, sendo que o eixo norteador da nossa discussão é a lógica de construção teórica e empírica dos objetos de investigação nos estudos críticos, indagando os caminhos da crítica que colocam em crise o presente, desestabilizando-o para transformação de práticas em organizações.
Procedimentos Metodológicos
Discussões relevantes têm sido empreendidas quanto à evolução e caráter da produção acadêmica em campos específicos (PAES DE PAULA et al., 2010; RODRIGUES; CARRIERI, 2001; MELLO et al.; LIMA, 2000), e estudos anteriores (PAES DE PAULA et al., 2009) já apontaram o caráter plural dos estudos organizacionais críticos, bem como a multiplicidade de abordagens epistemológicas na produção intelectual dos seus participantes. Nosso trabalho, que segue uma abordagem exploratória e qualitativa (MERRIAM, 1992), não traz como objetivo o mapeamento do campo disciplinar, mas uma leitura integrada a partir de dimensões chave.
Constituímos um corpus de artigos científicos produzidos na área de Estudos Críticos e Práticas Transformadoras em Organizações do Encontro Nacional da ANPAD (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração). Em 2007 e 2008, o Encontro passa a estimular, por meio da divisão de Teoria Crítica em Estudos Organizacionais, trabalhos pautados em análise e pesquisa crítica, sobretudo nas tradições marxista (em suas diversas correntes) e frankfurtiana. Em 2009, as três divisões amplas na área de estudos organizacionais são subdivididas em 13 seções, destacando-se como subtema Teoria Crítica e práticas transformadoras em organizações. A partir de 2010, amplia-se o escopo temático para Estudos Críticos e Práticas Transformadoras em Organizações, recebendo-se trabalhos de abordagens diversas (marxistas, frankfurtianas, pós-estruturalistas, fenomenológicas críticas etc.) e estudos com análises sobre práticas organizacionais transformadoras. Em 2014 e 2015, o Encontro traz uma demarcação diferenciada para a temática quando designa que os estudos sobre práticas transformadoras sejam necessariamente pautados por uma intencionalidade contra hegemônica e/ou emancipatória. Nesse mesmo período, a concepção da organização é ampliada para contemplar as diversas formas do estar organizado (desde pequenos grupos de trabalho até a apropriação dos espaços da cidade).
Nosso corpus de pesquisa, como uma coletânea de textos naturais que caracterizam um estado ou variedade de discursos (SINCLAIR, 1991), é composto pelos trinta (30) trabalhos publicados em 2014 e em 2015 (Quadro 1), e considera esse recente recorte para desenvolver uma leitura integrada dos textos a partir de dimensões chave, para discutirmos como se dá a construção teórica e empírica de seus objetos de investigação, suas problematizações, com um olhar mais atento a influências e contribuições da perspectiva pós-estruturalista.

Foram publicados quinze (15) trabalhos teórico-empíricos, sendo 09 (dos 11) publicados em 2014, e 06 (dos 19) publicados no ano de 2015. Em relação à afiliação institucional dos autores, verificou-se que a mais frequente foi a da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), com 05 publicações, seguida da FGV/EBAPE, com 04 publicações (05 se considerarmos a afiliação institucional de coautoria). Com o mesmo número de publicações estão a UFSC e a UFLA, cada uma com três artigos. Houve a publicação de apenas um artigo da região Centro-Oeste (da UFT) e um do Nordeste (da UEFS), sendo as demais publicações concentradas nas regiões Sul e Sudeste (cada instituição com apenas 01 artigo cada).
Consideramos como dimensões de análise (1) práticas de problematização, (2) percursos em métodos, e (3) práticas da atualidade investigadas por esses trabalhos. Nossa discussão é apresentada em três eixos: práticas em evidência na problematização da relação da organização com o presente; influências do pós-estruturalismo nos estudos organizacionais; e desafios em percursos metodológicos. Na última seção, trazemos contribuições acerca da crítica a partir de uma perspectiva pós-estruturalista foucaultiana.
Problematizando a Organização e o Presente: Práticas em Evidência
Um dos pontos de partida da problematização na Academia tem em geral consistido na identificação de lacunas na literatura vigente (ALVESSON; SANDBERG, 2011). A ideia de lacuna pode remeter à percepção da negligência ou tratamento superficial dado a aspectos relevantes em contextos organizacionais específicos. É a situação identificada em trabalhos como o de Baptista e Limongi-França (2015), o qual denuncia a pouca atenção dada na área da Economia Solidária à temática da Qualidade de Vida no Trabalho (QVT) em ambientes de trabalho autogeridos; as autoras investigam, sob a ótica de cooperados, fatores condicionantes da QVT nesse lócus. O trabalho de Medeiros e Teixeira (2014), apesar de reconhecer que a temática da dignidade nas organizações não tenha saído da pauta, aponta lacunas crescentes no entendimento desse assunto diante do avanço da precarização nas relações de trabalho em universidades brasileiras.
Além da ideia de insuficiência em esforços investigativos num dado campo disciplinar, pode haver desacordos em torno daquilo que deve (ou não) ser objeto de estudo. Os trabalhos de Fontoura e Naves (2014) e Mafra e Fontoura (2015), que analisam a construção da resistência a partir do movimento agroecológico - são ilustrativos desse aspecto à medida que o estudo de movimentos sociais por vezes foi negado como objeto pertinente ao campo dos estudos organizacionais. A abordagem neogramsciana de Laclau e Mouffe (1989) elucida aí relações de poder, experiências, agentes, práticas, instituições, organizações e materialidades envolvidos no processo de resistência. Esse esforço fortalece a perspectiva dos movimentos sociais como práticas de organização social, pois “desenvolvem processos, organizam, deliberam, produzem territórios das mais diversas formas e, até mesmo, constroem estruturas” (MISOCZKY et al., 2008, p. 184). O campo disciplinar dos estudos organizacionais é assim ser problematizado de maneira mais ampla.
Para avançar na problematização da literatura (teoria) por meio do desafio a teorias vigentes, além de se identificar a relevância crítica do objeto, deve haver esforços para se avaliar criticamente a literatura (teoria) atual, e buscar o desenvolvimento de bases alternativas. Na área de controle organizacional, ideologia e política são aspectos elucidativos das relações que prevalecem entre atores organizacionais, mas num paradigma funcionalista são privilegiados aspectos técnicos em detrimento de aspectos humanos, o que o estudo de Nascimento (2014) aponta como lacuna a ser preenchida. Calbino e Paes de Paula (2014), por sua vez, discutem conceitos de eficiência na literatura em Economia Solidária apontando aí um caráter neutro, a-histórico e a-político, portanto a necessidade de reconceituá-los como um construto social.
Assuntos destacados entre trabalhos teórico-empíricos, que incluíram cooperativismo, economia social e solidária e práticas em autogestão (CALBINO; PAES DE PAULA, 2014; SIMON, 2015; BAPTISTA; LIMONGI-FRANÇA, 2015; ONUMA et al., 2015; GOUVÊA; ICHIKAWA, 2015; ECKERT, 2015), refletem preocupações do contexto local em que se insere a prática da pesquisa. A preocupação com fenômenos emergentes, como os movimentos Occupy em sua interface com mídias digitais, pode sugerir o resgate da teoria social clássica. Assim, acerca da competência organizativa de brasileiros e sua suposta indisposição para exercício da cidadania, o ensaio de Ribeiro e Gurgel (2015) busca em autores clássicos (Oliveira Vianna, Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro, Darcy Ribeiro, Caio Prado Júnior e Florestan Fernandes) subsídios para discutir a ideia de uma apatia popular que costuma ser atribuída à formação histórica do nosso povo.
Diversos são os recursos teóricos mobilizados no escrutínio crítico e para desenvolvimento de bases alternativas. Nesse esforço, o pensamento marxista e suas variações inspira fortemente os estudos organizacionais críticos (ADLER et al., 2007), sobretudo no apontamento de contradições das interfaces com o capital. A relação dialética entre base e superestrutura é usada por Barros e Xavier (2015) para apontar que o estudo, no campo do management, de objetos a partir de uma posição marginal, seja do ponto de vista epistemológico, econômico ou geográfico, esbarra no atraso destes objetos e análises em relação aos desenvolvimentos teórico, sociais e econômicos do centro (países anglo-saxões). Camara e Misoczky (2015), em uma análise dos Programas Sociais de Combate à Pobreza na Argentina e no Brasil, tomando como referência as perspectivas liberal, da questão social e do marxismo latino-americano, apontam que esses programas, contraditoriamente, reproduzem a pobreza ao consubstanciá-la à superexploração do trabalho; além de legitimar a precarização do trabalho, reduzem os riscos de revolta popular.
Os aspectos contemporâneos da acumulação do capital norteiam Goulart e Flores (2015) em sua análise das contradições em torno do tema do acesso aberto a publicações acadêmico-científicas, particularmente o processo de transformação de uma tradição cooperativa - o projeto SciELO - em alvo de interesses de negócios. No âmbito do cooperativismo, Gouvêa e Ichikawa (2015) recorrem à abordagem marxista para refletir sobre a inserção contraditória de organizações cooperativas no modelo capitalista pelo viés da reprodução, em detrimento da transformação.
Fenômenos diversos são problematizados, como a ideia de emergência de uma nova classe média brasileira. A categoria de superexploração do trabalho, no âmbito da Teoria Marxista da Dependência, auxilia na compreensão de como e porque o aumento do consumo dos ‘não-consumidores’ (que consomem excepcionalmente nos momentos econômicos favoráveis e, em momentos desfavoráveis, ficam endividados) aprofunda e renova as contradições do capitalismo dependente no Brasil. A partir da articulação de proposições teóricas marxistas - consumo, classes sociais, trabalho e produção - segundo o pensamento de Álvaro Vieira Pinto e Ruy Mauro Marini, Abdala e Misoczky (2015) propõem um arcabouço de análise da Nova Classe Média brasileira que foi adotado como estratagema pelo governo. Fontoura e Mafra (2015), no contexto dos movimentos sociais, tentam trilhar uma ponte teórico-empírica entre estudos em estética e a perspectiva pós-marxista de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe. Simon (2015), por sua vez, aproxima Economia Social Solidária (ESS), economia feminista e empoderamento feminino vislumbrando a possibilidade de oferecer às mulheres dos empreendimentos uma perspectiva mais coerente com as propostas da ESS.
A primazia do mercado, sua lógica de expansão e a disseminação da cultura do gerencialismo enquanto projeto universalista é o contexto em que se insere a discussão de Rampazo e Saraiva (2015), acerca da atuação ideológica do management e seu aparato que inclui mídia de negócios, escolas de Administração, consultorias e gurus de gestão, todos recursos para naturalização da racionalidade instrumental. A categoria teórica da ideologia é ainda destacada em sua relação com o discurso empreendedor no trabalho de Almeida (2014), no âmbito da democratização do processo social de trabalho (FARIA, 2015), e denunciada por Moura-Paula, Ferraz e Moreira (2015) no contexto de produção de conhecimento sobre silêncio organizacional. Persson e Moretto Neto (2015) rediscutem, ainda, o argumento de Maurício Tragtenberg (na obra Burocracia e Ideologia, de 1974), enfatizando o aspecto subjetivo do conceito weberiano de burocracia, e se aproximando de uma noção de ideologia que privilegia o fenômeno da dominação e as operações da ideologia burocrática para estabelecer e manter relações de dominação nas organizações.
Nos estudos críticos, referenciais teóricos não ortodoxos são acessados segundo um ideal emancipatório. Para Souza, Souza e Silva (2013), a emancipação aparece como ponto-nodal entre os estudos críticos em gestão, e não apenas como característica comum. Nesta perspectiva, diferentes aportes teóricos atuam como norteadores da produção intelectual, incluindo a sociologia das ausências de Boaventura de Sousa Santos (MEDEIROS; TEIXEIRA, 2014; BORGES; PAES, 2014), a ação dialógica e libertadora em Paulo Freire (BORGES & PAES, 2014), e a abordagem neogramsciana da hegemonia de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (NASCIMENTO, 2014; FONTOURA; PECI, 2015; FONTOURA; NAVES, 2014; e MAFRA; FONTOURA, 2015).
O trabalho de Vizeu e Oliveira (2015) acessa a Teoria da Ação Comunicativa de Habermas no seu potencial de apontar as possibilidades de manipulação embutidas no sistema de arbitragem brasileiro, enquanto o ensaio de Justen (2014) insere sua análise dos fundamentos epistemológicos e ontológicos da abordagem habermasiana em um projeto de desposicionamento/reposicionamento da trajetória dos estudos organizacionais (BOHM, 2006), apontando limites entre o potencial contra-hegemônico presente em Habermas e sua apropriação nesse campo disciplinar; o autor aponta que a obra de Habermas vem apoiando alternativas pretensamente contra hegemônicas, como a noção de Gestão Social e o próprio ideal da emancipação nos estudos organizacionais críticos. As abordagens teóricas críticas são mobilizadas, pois, não apenas para lançar luz sobre contradições presentes no campo dos estudos organizacionais, mas também para demarcar um posicionamento dos intelectuais, quem sabe numa perspectiva de tornar o fazer acadêmico uma práxis (PAES DE PAULA et al., 2009). Abdala e Misoczky (2015), por exemplo, declaram em seu trabalho uma rejeição ao management e à possibilidade de converter a pesquisa acadêmica em um instrumento de criação de estratégias mercadológicas.
Na construção teórica e empírica dos objetos de investigação, devemos atentar que, mais do que um diagnóstico de manipulação ideológica ou o nosso engajamento na identificação de prós e contras em torno de um dado objeto (BACCHI, 2012), devemos destacar os objetos de investigação como práticas. Estas práticas estão imbricadas no cotidiano do fazer organizacional, e reforçam a ideia de organização como conceito multifacetado, em disputa. O cotidiano, à luz de Agnes Heller, Henri Lefebvre e Michel de Certeau, é enfatizado no trabalho de Gouvêa e Ichikawa (2014) para estudar o contexto organizacional do ambiente cooperativo, e as micropráticas cotidianas aí desenvolvidas. O pensamento de Michel Foucault norteia o trabalho de Mendes e Santos (2014) sobre práticas em gestão voltadas a saúde e segurança no trabalho, particularmente suas concepções de biopoder e biopolítica numa reflexão em torno de vida, mutilações e morte nas organizações.
A pesquisa de Brulon e Peci (2014) analisou de que forma os processos de organizar, postos em prática por representantes do Estado, transformam o espaço social de favelas no contexto da política de pacificação na cidade do Rio de Janeiro. Esse tipo de trabalho ilustra a relevância de se desvelar a história social do problema, buscando-se condições de emergência e políticas públicas que contribuem para moldar a favela como problema. Das políticas de remoção, às políticas de urbanização pautadas em acordos clientelistas, à complexificação e disseminação da violência e da consolidação de grupos paraestatais nas favelas cariocas, esse trabalho explicita o modo como o espaço social (e sua produção) tem sido negligenciado em estudos organizacionais, isto é, as organizações têm sido afastadas de elementos do mundo material e social. Abordaremos uma influência da perspectiva pós-estruturalista sobre os estudos organizacionais.
Pós-estruturalismo e Estudos Críticos: Influências em Destaque
A influência do pensamento pós-estruturalista reflete as diversas reformulações que incidiram sobre a tradição estruturalista, que tiveram como denominador comum o questionamento da noção de totalidade fechada, marco do estruturalismo clássico (PETERS, 2000; WILLIAMS, 2012). No que diz respeito à perpsectiva pós-estruturalista segundo uma abordagem analítica, a “tradução das intuições teóricas e analíticas em estratégias viáveis, consistentes e produtivas de investigação empírica continua a ser um desafio” (OLIVEIRA et al., 2013, p. 1328). Contudo, Cavalcanti e Alcadipani (2011) reconhecem um potencial dessa perspectiva em oferecer um contraponto nos debates tecidos acerca da crítica e de seu papel nos estudos organizacionais contemporâneos.
Destacamos as influências dessa perspectiva em especial a partir da ênfase observada no uso de estudos teórico-discursivos. No campo dos estudos organizacionais, essa ênfase se intensificou nos últimos 15 anos (e.g., ALVESSON; KARREMAN, 2000; HARDY, 2001; MARSTON, 2000). Apontamos desde já o esforço de revisão crítica feito por Justen (2014) de dois conceitos centrais da teoria do discurso habermasiana - Ação Comunicativa e Esfera Pública. O autor problematiza a apropriação desse legado pelos estudos organizacionais confrontando-o com a perspectiva pós-marxista de Chantal Mouffe (1999). Justen (2014) destaca as limitações à crítica no campo, sobretudo porque o posicionamento tendente à harmonia e à conciliação (viés habermasiano) traz em si “uma incompreensão da natureza do fenômeno político, ao tempo em que nega à lógica hegemônica do capital um papel político ativo, de constante embate pela manutenção da posição política dominante em dado contexto” (p. 10). Ao passo que Mouffe aponta o caráter fundacional do político, o que implica considerar toda formação social, incluindo o aparato organizacional, como contingente, parcial e fundamentada em formas de exclusão, portanto, de poder, trata-se de uma perspectiva que permite importantes avanços ao campo dos estudos organizacionais críticos.
Dentro da tradição marxista, a elaboração e radicalização de algumas das ideias centrais de Antonio Gramsci contribuíram para a formação de um terreno teórico do pós-marxismo. A partir de Laclau e Mouffe (1989) o espaço teórico da hegemonia abre caminho para uma nova lógica do social. Hegemonia supõe um campo teórico-político delimitado pela categoria de articulação, logo, pela possibilidade de se distinguir e/ou identificar os diferentes elementos que compõem uma dada formação hegemônica. A estrutura discursiva é uma prática articulatória que constitui e organiza relações sociais, sendo que a totalidade resultante de práticas articulatórias é o discurso (BURITY, 1997).
Fontoura e Naves (2014) recorrem à Teoria do Discurso (TD) de Laclau e Mouffe visando o entendimento das práticas de resistência do movimento agroecológico no campo organizacional da agricultura brasileira. O trabalho aponta o potencial desta perspectiva para se investigar, no processo de formação hegemônica, como se dão as contestações políticas e relações de poder por meio da investigação do conflito de interesses entre redes de atores, materialidade e estruturas discursivas. Ainda nesse contexto, Mafra e Fontoura (2015) tentam criar uma interface entre os estudos em Estética e a abordagem neogramsciana de Laclau e Mouffe, para investigar de que forma expressões estéticas influenciam a construção da contra-hegemonia no movimento agroecológico brasileiro. O trabalho traz elementos que possibilitam investigar a estética como ferramenta na construção de um conhecimento-saber comum, refletido na identidade do movimento social por meio de um processo de competição política, apontando-se a estética como uma possibilidade de manifestação de visões de mundo de grupos sociais subalternos.
Nos debates em torno da articulação entre organizações da sociedade civil, tem havido avanços na investigação acerca das práticas de resistência em que se engajam estes atores. O estudo realizado por Fontoura e Peci (2015) focaliza a prática articulatória de ONGs e movimentos sociais internacionais no contexto de governança de organismos geneticamente modificados. Podemos observar a partir desse recorte empírico como se dá o processo de representação ideológica discutido por Laclau (2002). As lutas ideológicas são lutas pelo preenchimento de significantes vazios – a exemplo de ‘organismos geneticamente modificados’; há uma proliferação de significantes flutuantes na sociedade (no estudo de Fontoura e Peci, foram apontados os significantes ‘ciência’ e ‘sustentabilidade’), e a competição política é vista como tentativas de forças rivais de fixar parcialmente esses significantes a configurações significativas particulares (LACLAU; MOUFFE, 1989). Preservação da biodiversidade, segurança alimentar e agricultura ecológica são imbricados no significante ‘sustentabilidade’, o qual é articulado para construção de consenso entre ONGs e movimentos sociais internacionais para a luta hegemônica.
A ênfase da perspectiva pós-estruturalista no movimento dos estudos organizacionais críticos é, contudo, alvo de críticas (e.g., PAES DE PAULA et al., 2009). No âmbito da TD, em particular, Glynos e Howarth (2007), argumentam que, se alegações de que um déficit metodológico questionam a capacidade da TD de explicar e interpretar, a noção de um déficit normativo envolve a questão da crítica. Os autores se referem, em especial, a questionamentos que têm sido dirigidos à capacidade da TD avaliar e transcender à ordem vigente das coisas em nome de algo novo. Glynos e Howarth (2007) consideram que a lógica investigativa deve interligar três momentos: a problematização de fenômenos empíricos, a explanação retrodutiva desses fenômenos, e a persuasão de – e intervenção sobre – a comunidade e práticas de acadêmicos e atores leigos. O trabalho de Nascimento (2014), em particular, reconhece que para compreender a incorporação de tecnologias de controle gerencial à rotina organizacional, considerar processos políticos é crucial. Nessa esfera, a perspectiva pós-estruturalista obstrui esforços ingênuos de abordagens interpretativas e funcionalistas que desconsiderem a maneira como a política permeia as práticas humanas, e permite analisar como elementos de controle gerencial são construídos, destacando as condições políticas que permitem sua aceitação e institucionalização. Este tipo de estudo traz uma nova perspectiva teórica à área, a do controle gerencial como lógicas de práticas.
Essa ideia remete ao desenvolvimento por Glynos e Howarth (2007) de lógicas de explanação crítica que, juntamente com uma gramática de conceitos e pressupostos que servem como suas condições de possibilidade, e de articular uma tipologia de lógicas básicas - sociais, políticas e fantasmáticas - o que pode servir para caracterizar, explicar e criticar fenômenos sociais. A retrodução é enfatizada aí de duas formas face à prática científica: (1) a racionalidade retrodutiva é evidente em práticas em que a dimensão de construção teórica é dominante – lógica retrodutiva de construção teórica (e.g., LACLAU; MOUFFE, 1989); e (2) é também evidente em práticas cujo propósito central seja o de explicar e compreender fenômenos particulares que são problematizados pela perspectiva de uma teoria ou paradigma específico (e.g., o paradigma funcionalista). Na retrodução, ao invés de testes empíricos derivados de hipóteses, a lógica da pesquisa segue ciclos retrodutivos que (re)elaboram a hipótese, de acordo com a ampliação ou aprofundamento do conhecimento construído sobre o campo analisado. Mas na prática investigativa com um viés crítico, a interface com campos empíricos não está livre de desafios, discussão que abordamos a seguir.
Aberturas e Precauções nos Percursos Metodológicos
Há uma variedade de aspectos envolvidos nas (por vezes controversas) opções metodológicas, conforme sugere Mattos (2002, p. 177), sendo que não pretendemos recair no lugar comum que opõe “as óticas quantitativa e qualitativa”, nem tampouco assumir uma postura vale tudo ou encarar o assunto como questão de preferência pessoal. Em pesquisas com metodologias abertas, muito do que se faz é “criação criteriosa” (SÁ, 2015, p. 75). Entendemos a metodologia como a sistematização de práticas na solução de problemas de pesquisa (MATTOS, 2005) e que, na construção teórica e empírica de objetos de investigação, contexto e condições de pesquisa são repensados ao longo do percurso. Na esfera analítica, há ainda múltiplos recortes que complexificam a gama de opções metodológicas.
Entre os trabalhos observados, em particular, a Análise de Conteúdo (BARDIN, 2002) foi usada para analisar entrevistas junto a docentes (MEDEIROS; TEIXEIRA, 2014). A análise textual (METZ, 1968) norteou a reflexão em torno do documentário Carne e Osso (MENDES; SANTOS, 2014). A abordagem estruturalista da Análise do Discurso (AD) de linha francesa em Michel Pêcheux (1997) foi usada por Gouvêa e Ichikawa (2014) em seu trabalho acerca do cotidiano cooperativo para indicar que o discurso de ajuda mútua e da ‘grande família’ parece que vale apenas enquanto os interesses individuais não são afetados. A Análise Crítica do Discurso (ACD) de Norman Fairclough (2001) apresenta uma abordagem tridimensional (análise textual, análise da prática discursiva e análise da prática social) que, no trabalho de Silva, Costa e Lemos (2014) pretendia elucidar a orientação ideológica da revista de negócios Você S.A. a partir de reportagens coletadas pelos pesquisadores. A abordagem da Análise do Discurso (AD) de Eni Orlandi (2005) guiou Almeida (2014) na análise da ideologia dos discursos dos agentes difusores da cultura empreendedora. A Teoria do Discurso (TD) de Laclau e Mouffe (1989) foi associada a campos empíricos numa abordagem analítica neogramsciana (FONTOURA; NAVES, 2014; FONTOURA; PECI, 2015) e até numa interface com a estética no trabalho de Mafra e Fontoura (2015). Nascimento (2014) considera que o uso da Lógica da Explanação Crítica de Glynos e Howarth (2007) junto à TD de Laclau e Mouffe (1989), permitiu inovações metodológicas relevantes, pois proporcionou uma plataforma para relacionar o contexto político, econômico e social do Brasil, e as instituições políticas de controle, com as ações gerenciais de uma organização específica.
Além da predominância da pesquisa qualitativa, o recurso a entrevistas não estruturadas, ou em profundidade (apenas três dos quinze trabalhos teórico-empíricos não recorreram à entrevista, usando a análise de documentos, filme, e painéis gráficos) nas pesquisas de campo ligadas aos estudos críticos no campo organizacional tem sido um traço significativo. O uso da entrevista não se confunde com o viés da generalização indutiva (MATTOS, 2005). Em abordagens etnográficas, em particular, uma preocupação central reside na obtenção de uma descrição densa sobre o que um grupo em particular de pessoas faz e o significado das perspectivas que possuem daquilo que fazem (MATTOS, 2001). Nesse esforço, a observação (de atividades, rotinas, objetos, quadros de aviso, procedimentos de segurança, reuniões, eventos etc.), mais do que uma técnica de coleta de dados, é um modo de estar no mundo social, característico dos pesquisadores (ATKINSON; HAMMERSLEY, 1994).
Tomemos a pesquisa de campo, de um ano e três meses, de Brulon e Peci (2014), em duas favelas cariocas, incluindo observação participante e 83 entrevistas. A inserção de uma das pesquisadoras na favela é apresentada em sua narrativa sobre armas, uniforme dos UPPs (Unidades de Polícia Pacificadoras), crachás e objetos de identificação, sedes físicas e equipamentos de trabalho, entre outros aspectos. Esse estudo mostrou que o que se entende por (des)organizar depende da posição que se ocupa na dinâmica da vida na favela, e processos de organizar, na concepção de representantes do Estado, acabam gerando, na visão dos moradores, desorganização das favelas por meio da relativização de categorias absolutas e do aumento da fluidez e da complexidade do espaço (i.e., as pessoas não reconhecem mais todos na comunidade, não sabem onde estão os bandidos e o que se pode falar). A liquidez do espaço contribui à produção de uma universalização do medo.
Esse tipo de investigação reforça a ideia de que a seleção de casos pode trazer avanços ao campo disciplinar dos estudos críticos. ‘Casos paradigmáticos’ podem atuar como exemplares ou metáforas para um conjunto amplo de casos, a exemplo da lógica do Apartheid como forma exemplar do discurso racista, e o uso por Michel Foucault do panóptico de Jeremy Bentham para condensar o conjunto de mecanismos disciplinares e de vigilância que representa a lógica da sociedade disciplinar (GLYNOS; HOWARTH, 2007). Não há critérios claros para se identificar um caso paradigmático, ou acessar seu valor metafórico; mas, uma vez estabelecidos, esses casos podem ser críticos na prática de generalização de certos tipos de lógicas e práticas, a exemplo da linha de montagem e sua lógica de padronização, ou o caso do Exxon Valdez no contexto do discurso de responsabilidade corporativa ambiental, ou ainda o caso da Petrobras nas discussões em torno de corrupção nas organizações.
Do campo empírico, pois, além de uma ampla gama de dados secundários e observação de eventos, há relatos de atores da sociedade civil e cientistas no âmbito da governança em organismos geneticamente modificados (FONTOURA; PECI, 2015); Fontoura e Naves (2014) trazem relatos e experiências de atores do município de Araponga e o significado que atribuem aos acontecimentos no movimento agroecológico; no contexto organizacional do ambiente cooperativo, técnicos, gestores e produtores são entrevistados (GOUVÊA; ICHIKAWA, 2014; CALBINO; PAES DE PAULA, 2014). Podemos destacar aqui, num recorte interpretativista, a ênfase sobre a maneira como trabalhadores e gestores desenvolvem uma problematização, isto é, sua maneira (auto-interpretações) de compreender um problema.
À medida que assumimos os traços de contingência e precariedade da formação social (portanto, do aparato organizacional, conforme apontado), precisamos conceder um papel expressivo e válido para a subjetividade na problematização. Trata-se de uma visão que destaca o papel construtivo do social, e contribui para articularmos categorias e conceitos no processo analítico. Contudo, para transcender a particularidade de uma situação e fazermos avançar a crítica, as explanações no âmbito das ciências sociais não devem ser redutíveis às auto-interpretações de atores sociais investigados (BACCHI, 2012). Em outras palavras, na explicação crítica, não podemos confiar exclusivamente no que as pessoas dizem; ao mesmo tempo em que a explicação crítica requer a passagem pela auto-interpretação contextualizada do sujeito, ela também requer algo que lhe transcende (GLYNOS; HOWARTH, 2007).
Glynos e Howarth (2007) explicam que desafios metodológicos têm a ver com as dimensões ontológicas e epistemológicas de qualquer investigação social, assim como as técnicas de coleta de dados e de análise pertinentes a um caso concreto sob análise. Os autores resistem à tentação de oferecer um método ou solução técnica para supostos déficits metodológicos, porque “isso nos cegaria para o fato de que qualquer conjunto de métodos ou técnicas é sempre relativo a, e pautado em uma instância ontológica” (p. 7). Por outro lado, também rejeitam a arbitrariedade metodológica e soluções que envolvam um fechamento num tipo de relativismo ou subjetivismo onde tudo se pode, porque isso eliminaria quaisquer restrições metodológicas na produção e avaliação de explanações e avaliações críticas.
Contribuições de uma Perspectiva Pós-estruturalista de Problematização
Discutimos a construção teórica e empírica de objetos de investigação na área de estudos críticos e práticas transformadoras em organizações, com um olhar mais atento a influências e contribuições da perspectiva pós-estruturalista. Observamos que essa construção tem sido guiada pela identificação de lacunas da teoria organizacional vigente, e sua avaliação crítica, bem como alguns esforços no desenvolvimento de bases alternativas voltadas a desafiar teorias vigentes e para as quais diferentes recursos teóricos críticos são mobilizados. Esses esforços, que incluem o apontamento de contradições no campo disciplinar, e a articulação de proposições teóricas, tendem a ser guiados por um viés emancipatório, nem sempre explícito no posicionamento dos pesquisadores. A história social dos problemas investigados também não é uma ênfase clara no conjunto de trabalhos apreciados. Nesse processo, organização é um conceito em disputa.
Esclarecemos que, ao problematizarmos objetos, desvelamos relações de dominação em direção a um escrutínio crítico, sendo que nesse esforço podemos apontar que tais relações são contingentes, portanto, passíveis de mudança. Essa noção, ligada a uma perspectiva pós-estruturalista (em especial, teórico-discursiva) para o campo dos estudos organizacionais, inclui o aparato organizacional, e aponta as possibilidades de identificarmos diferentes elementos que compõem uma formação hegemônica, bem como as contestações políticas e práticas articulatórias que visam a transformação em organizações. Além de indicar os desafios nos percursos investigativos que uma abordagem pós-estruturalista enseja, traçamos considerações em torno da Teoria do Discurso de Laclau e Mouffe (1989) e a perspectiva de Glynos e Howarth (2007), que destacam o modo como uma racionalidade retrodutiva pode contribuir a uma explicação crítica de um amplo conjunto de fenômenos e práticas.
Consideramos relevante, nesta última seção, avançarmos em torno da crítica no contexto da problematização, em especial, acessando o pensamento de Michel Foucault, que passou a ser mais acessado no campo dos estudos organizacionais a partir da década de 1980 (ALCADIPANI, 2005). A abordagem foucaultiana da problematização, junto a perspectivas pós-estruturalistas, é coerente com uma descrição do pensamento enquanto prática (i.e., o pano de fundo inteligível para ações). Assim, pensamento não é meramente um fenômeno mental, cognitivo, especulativo ou linguístico; trata-se de um conjunto de práticas, um processo que participa da constituição dos objetos dos quais fala, e que tem efeitos políticos específicos e identificáveis. Pensar problematicamente, para Foucault (1984), envolve examinar como um dado assunto é questionado, analisado, classificado e regulado em períodos específicos e sob circunstâncias específicas (DEACON, 2000).
A problematização influenciada por Foucault consiste em ver sobre quais tipos de suposições, de noções familiares, de modos estabelecidos ou não examinados de pensar, as práticas aceitas são baseadas (FOUCAULT, 1984). Em seu estudo sobre a loucura, Foucault argumenta que a loucura não existia como objeto de pensamento fora das práticas que a constituíram como tal. Ele afirma que para ver como os loucos vieram a ser pensados como um tipo específico de entidade, precisamos olhar para como eles eram internados, tratados, e excluídos da sociedade. Ao examinar tais práticas, poderíamos ver como a loucura era pensada ou problematizada (BACCHI, 2012).
Neste sentido, o propósito de estudarmos problematizações é o de desmantelar objetos como essências fixas e dadas como certas, e de mostrar como vieram a ser. Ao estudarmos como as coisas emergem no processo histórico de problematização, questionamos seu status natural e podemos traçar as relações (apoios, bloqueios, jogo de forças, estratégias etc.) que resultam em sua emergência como objetos (BACCHI, 2012; 2015). Como sugerido por Bachi (2012), alertar nós ‘jogadores’ (game-players) das regras internas que moldam a emergência de objetos reais, alcançado por meio do estudo de problematizações, é uma intervenção política crucial. Esse gesto analítico permite que compreendamos como algo, a exemplo da cooperação, competição ou da competência, veio a ser verdade.
Traçando um paralelo, não estamos falando apenas de ideias ou atitudes, uma percepção mental do que significa ser, por exemplo, competente, mas sim de como a competência é pensada, conceituada, problematizada, e demonstrada como um tipo específico de fenômeno. Nesse processo, devemos dar atenção à influência modeladora dos vários corpos modernos de conhecimento (e.g., administração, economia, pedagogia, psicologia etc.) em torno do objeto, e às estruturas políticas, leis, exigências e regulações acerca das práticas em torno desse objeto.
É preciso rejeitar, ainda, uma dicotomia teoria-prática. Deacon (2000) nos alerta de que a teoria é em si prática, ela não expressa, traduz ou simplesmente serve para ser aplicada. A teoria é prática e é política à medida que a teoria exerce um papel na produção dos objetos que ela analisará, e no sentido de que a teoria pode ajudar a constituir um certo ponto de vista, ou prover ferramentas que sejam não apenas úteis analiticamente, mas que podem estimular perturbações e disrupções daquilo que consideramos ser real.
Foucault (1984) começa com sua história do presente identificando um aspecto anômalo ou surpreendente em discursos contemporâneos. A problematização de Foucault (1984) envolve a tentativa de dar conta dos discursos ao localizá-los em conjunto mais amplo de relações sociais ao longo do tempo. O que está em questão é o fato discursivo, é a maneira como o objeto é posto em discurso. O método foucaultiano para acessar problematizações começa das práticas. Ele precisou acessar arquivos - textos práticos ou prescritivos (e.g., decretos, regulamentações, registros hospitalares e de prisões, precedentes judiciais) -, escritos para oferecer regras, opiniões e conselhos sobre como se comportar; tais textos são propriamente o objeto de uma prática no sentido de que são desenhados para constituir o arcabouço de nossa conduta diária (FOUCAULT, 1972). Ele inicia, assim, a análise de um conhecimento cujo corpo visível não era propriamente teórico ou científico nem literário, mas a prática diária, cotidiana.
A abordagem foucaultiana, genealógica, não apenas lança luz sobre o fenômeno, como também provê a possibilidade de diagnóstico e crítica a fenômenos no presente. É neste sentido que Glynos e Howarth (2007) apontam a abordagem de Foucault como sendo uma forma de explanação retrodutiva. Para Alcadipani (2005), a ontologia do presente de Foucault não trata do homem propriamente dito, como figura traçada no saber moderno, mas do ser do homem, ou seja, seu ser histórico, e deve se afastar de qualquer projeto que tenha a pretensão de ser global, totalizante ou radical. Se a questão do presente é relevante para a análise organizacional contemporânea, entendemos que, nos estudos críticos no campo das organizações, esse tipo de intervenção problematizadora deve ser bem acolhido.
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