Artigo
Optar pelo Consumo Colaborativo Pode Aumentar seu Bem-Estar?
Choosing Collaborative Consumption can Increase Your Well-Being?
Optar pelo Consumo Colaborativo Pode Aumentar seu Bem-Estar?
Revista Administração em Diálogo, vol. 21, núm. 2, pp. 215-239, 2019
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Recepção: 24 Outubro 2018
Aprovação: 20 Fevereiro 2019
Resumo: Esta pesquisa analisa narrativas e percepções quanto ao impacto da adesão ao consumo colaborativo no bem-estar dos consumidores. Para isso, realiza uma pesquisa exploratória de abordagem qualitativa, na qual 41 participantes responderam a questionário aberto, com posterior análise de conteúdo na perspectiva interpretativista. Com as verificações, propõe-se que (1) a adesão ao consumo colaborativo aumenta o bem-estar dos consumidores; (2) o aumento de bem-estar nos consumidores no consumo colaborativo é distinto do aumento que ocorre na situação de consumo tradicional; (3) o aumento de bem-estar devido ao consumo colaborativo, diferente daquele oriundo do consumo tradicional, deve-se principalmente (a) às interações sociais, (b) à economia de custos, (c) ao altruismo e (d) à consciência ambiental, propiciadas pelas práticas de colaboração e compartilhamento.
Palavras-chave: Consumo Colaborativo, Bem-estar, Marketing.
Abstract: This research aimed to analyze perceptions of the impact of collaborative consumption adoption on consumer well-being. An exploratory qualitative approach was carried out, in which 41 participants aswer an open questionnaire and the data was analyzed through the Analysis of Interpretive Content. It was verified that (1) collaborative consumption adoption increases consumers’ well-being; (2) the increase in consumer well-being in collaborative consumption is distinct from the increase in traditional consumption; (3) the inc rease in well-being due to collaborative consumption, different from that derived from traditional consumption, is mainly due to (a) social interactions, (b) cost savings, (c) altruism and (d) environmental awareness, facilitated by practices of collaboration and sharing.
Keywords: Collaborative Consumption, Well-being, Marketing.
Introdução
Como um comportamento em ascensão no âmbito do consumo, o fenômeno de colaboração e compartilhamento mostra-se uma relevante tendência no mercado em nível global. Tornando-se marcante na sociedade contemporânea nos últimos anos, o consumo colaborativo foi considerado pela economista-chefe do SPC Brasil, Marcela Kawauti, “uma poderosa força econômica e cultural em curso capaz de reinventar não apenas o que consumimos, mas principalmente a forma como consumimos”, sendo que 68% dos brasileiros se imaginam participando de práticas de consumo colaborativo até 2019 (SPC Brasil, 2017)3.
Midiaticamente, o consumo colaborativo vem sendo abordado desde meados dos anos 2000, juntamente ao seu surgimento, que foi potencializado pela ascensão das redes digitais interativas (Belk, 2010). Por sua vez, na academia esse tema tem exploração mais recente e ainda é pouco consolidado, proporcionando diversos campos para investigação, em diversas áreas do conhecimento (Rohden, Durayski, Teixeira, Montelongo, & Rossi, 2011), o que o torna um tema mais atrativo e relevante para pesquisas acadêmicas no Brasil e no mundo (Arruda, Bandeira, Silva, & Rebouças, 2016).
Marcado por questões individuais, ambientais, sociais e econômicas, o consumo colaborativo relaciona-se à valorização do uso em detrimento da posse, o que implica menor ônus ao consumidor (Botsman, & Rogers, 2011; Belk, 2010; 2014a; 2014b). Além disso, essa configuração alternativa do consumo está atrelada ao fortalecimento do caráter experiencial do consumo e da busca de multisensações e vivências que extrapolam a simples posse de um bem (Holbrook, & Hirschman 1982; Sousa, & Melo, 2018).
O consumo colaborativo é sustentado por diversos e múltiplos fatores, que incluem o fortalecimento da interação e colaboração, bem como o aumento da preocupação com a sustentabilidade e com a redução do hiperconsumo e desperdício (Botsman, & Rogers, 2011; Pizzol, 2015). Assim, essa configuração do consumo envolve a ascensão do compartilhamento, do empréstimo e da locação, potencializado pelas tecnologias digitais em escala de massa antes impossível (Botsman, & Rogers, 2011).
Diversas dimensões pessoais e valores individuais influenciam a adesão a atividades de consumo colaborativo, conforme apontou Pizzol (2015), sendo elas: economia de custos, crença no bem comum, consciência socioambiental, conveniência, identidade social, confiança e riscos. Entretanto, os consequentes individuais relacionados à adesão a esse comportamento de consumo, como, por exemplo, o bem-estar, ainda não foram devidamente explorados em pesquisas.
Nesse sentido, o presente estudo pretende ampliar o conhecimento sobre o fenômeno dessa nova configuração de consumo e suas implicações sociais e humanas, com o intuito de responder ao seguinte questionamento: Qual a percepção dos consumidores quanto ao impacto da adesão ao consumo colaborativo em seu bem-estar?
Sendo assim, o objetivo geral deste trabalho é analisar a percepção dos consumidores quanto ao impacto da adesão ao consumo colaborativo em seu bem-estar, sendo desmembrado nos seguintes objetivos específicos: (1) compreender os consequentes da adesão ao consumo colabrativo; (2) descobrir se a adesão ao consumo colaborativo pode interferir no bem-estar dos consumidores; (3) apontar os possíveis elementos do consumo colaborativo que possam levar ao aumento dos níveis de bem-estar; (4) gerar subsídios para futuros estudos sobre esta relevante temática.
Isso posto, menciona-se que o presente artigo está organizado da seguinte maneira: primeiramente, apresenta uma breve revisão bibliográfica sobre as temáticas de consumo colaborativo e bem-estar, apontando possíveis interrelações dos temas. Logo, há uma seção dedicada aos procedimentos metodológicos aplicados e, em seguida, os resultados da pesquisa bem como a sua análise. E, por fim, estão dispostas as considerações finais do estudo, juntamente com as limitações e sugestões de pesquisas futuras.
Consumo Colaborativo
O consumo colaborativo não é um fenômeno recente, tendo em vista que o compartilhamento é uma prática antiga potencializada pelas redes digitais, as quais a facilitam e tornam mais popular, propiciando constantes inovações (Belk, 2010). Com isso, destaca-se que, após o advento da Web 2.0, diversos novos formatos de compartilhamento e interação foram possibilitados, sendo que também as formas mais antigas de compartilhamento foram fomentadas devido à larga escala que alcançaram com a internet (Belk, 2014a).
Em um sentido amplo, a própia internet se constitui como fenômeno inerentemente colaborativo, pois provê conteúdos compartilhados que podem ser acessados por qualquer pessoa (através da mediação de um certo aparato tecnológico). É interessante esclarecer que a Web 2.0 representou uma evolução em relação à Web 1.0 ao permitir ao usuário a interação com conteúdo e com outros usuários (Rüdiger, 2011). Essa evolução tecnológica foi tão importante para o fenômeno sociocultural do compartilhamento que foi apontada como a "virada do compartilhamento" (Grassmuk, in press, apudBelk, 2014a).
Desse modo, Belk (2014a) afirma que o consumo colaborativo é um fenômeno intrínseco à era digital, embora a colaboração e o compartilhamento sejam fenômenos tradicionais, anteriores ao advento digital. Nesse mesmo sentido, Botsman e Rogers (2011) apontam que o consumo colaborativo é uma reinvenção dos comportamentos de compartilhamento e colaboração que foi possibilitada pela Web 2.0. Desse modo, sintetiza-se que o consumo colaborativo envolve o compartilhamento, a troca, o empréstimo e a locação, sendo ele potencializado pelas tecnologias digitais.
Com isso, define-se o consumo colaborativo como a coordenada aquisição e distribuição de um recurso por consumidores em busca de uma compensação, não necessariamente monetária (Belk, 2014a). Evidencia-se que entre as compensações esperadas ao se engajar no comportamento de colaboração e compartilhamento estão as sociais. O compartilhamento é apontado por Benkler (2004) e coadunado por Belk (2014a) como um comportamento pró-social.
Ressalva-se suas intersecções e sobreposições e compreende-se que o fenômeno do compartilhamento é histórico e com dimensões variadas que extrapolam o contexto do mercado (Belk, 2014b). Desse modo, neste estudo, enfoca-se no consumo colaborativo, uma modalidade, dentro do âmbito do compartilhamento, que visa lucro ou outro tipo de benefício material. O consumo colaborativo está situado como uma vertente lucrativa do compartilhamento, como os modelos de aluguel de curto prazo (Belk, 2014b; Bostman, & Rogers, 2010). Para Belk (2014a, p. 1597), o consumo colaborativo envolve “pessoas que coordenam a aquisição e distribuição de um recurso por uma taxa ou outra compensação. Ao incluir outras compensações, a definição também engloba troca, negociação e permuta, que envolvem dar e receber através de compensações não-monetárias”.
Acredita-se que o consumidor, ao adotar o comportamento de consumo colaborativo, tem como intuito a utilização do produto e a prestação de serviço, ou seja, o acesso aos bens e à experiência pelo tempo necessário de uso em vez de deter a posse permanente do objeto (Bardhi, & Eckhardt, 2012). A vantagem da modalidade do consumo colaborativo está em possibilitar um consumo mais sustentável e com menor ônus ao consumidor (Botsman, & Rogers, 2011).
Inúmeras plataformas, potencializadas pela Web 2.0, possibilitam o compartilhamento de conteúdo. Como exemplos podem-se enfatizar plataformas legalizadas como iTunes e Youtube, as quais prestam serviços pagos ou gratuitos. Contudo, existem outras diversas formas de downloads que ainda são consideradas ilegais pelas legislações contemporâneas. Um exemplo é a plataforma The Pirate Bay, a qual é utilizada comumente por jovens para o compartilhamento de músicas e filmes e mesmo livros, sem qualquer pagamento, violando leis de direitos autorais (Belk, 2014a). Ademais, salienta-se que essas proibições de compartilhamento ultrapassam o conteúdo estritamente digital, sendo percebidas também em serviços de transporte de passageiros através de aplicativos móveis, como o Uber e Cabify, plataformas digitais que organizam possibilidades de mobilidade urbana colaborativa que enfrentaram, durante um longo período, resistências políticas e de mercados e disputas jurídicas no Brasil.
Com isso, salienta-se que, além dos conteúdos midiáticos e de consumo cultural, a transferência ou uso de produtos físicos entre os consumidores é uma modalidade de compartilhamento facilitada pela internet, a exemplo do site Ebay e de plataformas como o Airbnb, que oferece hospedagem, entre tantos outros exemplos (Belk, & Llamas, 2012). Outros exemplos vão desde o compartilhamento de músicas pela internet (The Pirate Bay), a doações a projetos culturais e sociais em plataformas colaborativas, crowdfunding (Catarse), compartilhamento de livros, anotações e conteúdos educacionais (Passei Direto, MinhaTeca), trocas de roupas (Retroca), troca de livros (Livra Livro), compartilhamento de escritórios (CoWorking, Link2u), compartilhamento de imóveis para hospedagem (Airbnb), compartilhamento público de bicicletas (BikeRio, BikePoa), compartilhamento e uso de carros e aplicativos de caronas que possibilitam que pessoas que estão em rota para o mesmo itinerário se juntem (Zaznu, BlablaCar, Zazcar, Uber) e empréstimo de objetos entre vizinhos, como máquinas de lavar e de costura, ferramentas elétricas e de jardinagem, bicicletas e brinquedos para crianças (TemAçúcar?, Descolaí) dentre tantos outros.
As plataformas que aproveitam a proximidade física entre os consumidores, segundo Belk (2014a), não apenas evitam a redundância de posses de produtos que se tornam ociosos, como também, sobretudo, promovem um senso de comunidade. Esse senso de comunidade, supõe-se neste estudo, pode impactar nos níveis de bem-estar, principalmente no bem-estar social.
Nessa perspectiva, Kozinets (2002 apud Rohden et al., 2011) aponta que em comunidades há enfoque na coletividade e na relação com os outros membros do grupo, de modo que o compartilhamento se torna um objetivo central e geral. Por outro lado, em uma estrutura de mercado o foco está nas transações e o objetivo central é aumentar a vantagem individual sobre o outro.
Bem-Estar
Com relação ao bem-estar, assim como a felicidade, a qualidade de vida e o desenvolvimento humano são temas interdisciplinares importantes para estudos em marketing e administração, maximizando o viés social da ciência. Pesquisar e aprender mais sobre o bem-estar fortalece a área de marketing em seu direcionamento à promoção do bem-estar social, em consonância com MacInnis (2005), Kotler, Kartajaya e Setiawan (2010), entre outros autores que apontam a importância da interface social da área. Por isso, empreender pesquisas de bem-estar em uma nova configuração de consumo mostra-se relevante para a pesquisa em marketing e administração. Uma breve revisão sobre o tema do bem-estar é então apresentada para situar o leitor e o desenvolvimento da pesquisa.
Conforme Diener, Suh, Lucas e Smith (1999), os indivíduos respondem de maneira distinta a situações idênticas, tendo em vista que as suas avaliações são baseadas em valores, expectativas e vivências próprias. Nesse sentido, destaca-se que os pesquisadores do tema bem-estar subjetivo (BES) têm apresentado menos interesse em expor o perfil demográfico correlato a ele. Tal fato, segundo os mesmos autores, demonstra uma tendência ao “maior reconhecimento do papel central desempenhado pelos objetivos das pessoas, os esforços de enfrentamento, e disposições”, o que evidencia a magnitude do componente subjetivo (Diener et al., 1999, p. 276).
Com isso, Ettema, Gärling, Olsson e Friman (2010) conceituam o bem-estar subjetivo como a proporção em que uma pessoa pondera de forma positiva a qualidade global da sua vida. Da mesma maneira, Diener et al (1999, p. 277) sustentam que o bem-estar subjetivo compreende “uma categoria ampla de fenômenos, incluindo as repostas emocionais da pessoa, satisfações com os domínios, e julgamentos globais de satisfação com a vida”.
Desse modo, salienta-se que o bem-estar subjetivo possui dois aspectos, um que diz respeito à cognição, que engloba os julgamentos de satisfação, e outro afetivo, que abarca as emoções e humores (Biswas-Diener, & Diener, 2006). Assim, menciona-se que a satisfação com a vida compreende um julgamento completo do bem-estar alicerçado nas informações consideradas pertinentes (Diener, & Seligman, 2004). Por sua vez, as emoções e humores representam os juízos disponíveis das pessoas sobre os acontecimentos das suas vidas (Diener et al., 1999).
Ademais, faz-se necessário mencionar que as pesquisas em bem-estar possuem certa complexidade e não têm unanimidade científica, isso por que, segundo Ryan e Deci (2000), há duas correntes de estudos na literatura de bem-estar, a subjetiva e a psicológica. A primeira relaciona-se a uma perspectiva de hedonismo, enquanto a segunda, de uma eudaimonica da felicidade.
Nessa perspectiva, Comassetto, Solalinde, Souza, Trevisan, Abdala e Rossi (2013) declaram que a felicidade se sujeita, não exclusivamente, às características pessoais, mas também ao prisma econômico, etário e educacional. Biswas-Diener e Diener (2006) frisaram o aspecto social ao indicar as redes sociais como fundamentais para o BES. Já Diener e Seligman (2004) comentam que, através dos achados de sua pesquisa, chegaram a uma fórmula parcial para o alto bem-estar, a qual inclui:
Viver em uma sociedade democrática e estável que fornece recursos materiais para atender às necessidades; ter amigos e familiares solidários; ter trabalho gratificante e envolvente e um rendimento adequado; ser razoavelmente saudável e ter tratamento disponível em caso de problemas mentais, ter metas importantes relacionadas com os próprios valores, ter uma filosofia ou religião que fornece orientação, finalidade, e um sentido à vida. (Diener, & Seligman, 2004, p. 25).
De acordo com Lyubomirsky, Sheldon e Schkade (2005), transformações sustentáveis no bem-estar podem ser obtidas através de determinadas tipologias de atividades voluntárias. Há indícios de que atividades intrinsecamente motivadas afetam positivamente o bem-estar (Deci, & Ryan, 2000), tendo em vista que os indivíduos as desempenham com o intuito de se sentirem capazes e produtivos, não havendo aflição quanto às suas consequências ou retribuições (Comassetto et al., 2013).
Além disso, ressalta-se que há indicativos de uma associação negativa entre materialismo e bem-estar, já que estudos concluíram que altos níveis de valores materiais são negativamente associados ao bem-estar subjetivo (Labarbera, & Gurhan, 1997; Burroughs, & Rindfleisch, 2007). Compreende-se também que o materialismo, definido como o valor colocado na aquisição, posse individual e permanente de objetos materiais, é um aspecto minimizado pelo consumo colaborativo. Nesse contexto, esses resultados podem ser traduzidos como indícios de uma relação entre o consumo colaborativo e o bem-estar.
Método
Considerou-se a pesquisa exploratória sobre a hipotética relação entre o engajamento em práticas de consumo colaborativas e o bem-estar como a opção mais pertinente. Pesquisas conclusivas e quantitativas, como a cogitada aplicação de escala de bem-estar social em grupos de participantes do consumo colaborativo, mostraram-se inadequadas, dada a amplitude das variáveis que podem impactar o bem-estar e ao ainda escasso conhecimento sobre os consequentes do consumo colaborativo.
No que diz respeito à abordagem, opta-se pela qualitativa, que, de acordo com Godoy (1995), diferencia-se dos demais estudos por permitir que um evento seja compreendido de forma mais ampla no ambiente que o compõe e se encontra inserido. Desse modo, a análise é realizada através da perspectiva dos indivíduos que fazem parte da circunstância, com a ponderação das diversas e múltiplas narrativas.
Com isso, realiza-se uma pesquisa de campo com a aplicação de questionário aberto através da plataforma Google Forms e divulgados na rede social Facebook para atrair respondentes espontâneos. O questionário foi composto de questões amplas que solicitam a narrativa de experiências e sensações quanto a vivências em situações de consumo colaborativo, demandando engajamento e dedicação dos participantes, permitindo a obtenção de maior profundidade nas respostas e riqueza de dados. As entrevistas em profundidade foram cogitadas, entretanto, com o questionário on-line, pôde-se atingir uma maior variedade de respondentes, de diversas regiões, incluindo fora do Brasil, e obter, assim, relatos mais diversificados sobre os consequentes das experiências de consumo colaborativo.
As questões foram elaboradas de modo a dar liberdade narrativa ao respondente, para que fosse possível identificar a partir das respostas as relações da prática com o bem-estar. Essa amplitude nas questões abertas também impôs o ônus de, em alguns casos, receber respostas vagas e ligeiras de respondentes não dispostos a narrar com detalhes suas vivências, ônus este que seria contornado em situação de entrevistas pessoais. Por outro lado, diversas respostas, devido a essa abertura no questionário, possibilitaram acesso a histórias, experiências e percepções de consumidores que praticaram o comportamento de consumo colaborativo.
No que tange a análise de dados, foi empregada a técnica de Análise de Conteúdo Interpretativa. Bardin (2009) explica que a análise de conteúdo corresponde um agregado de técnicas voltadas à análise das comunicações, que advém por meio da execução de métodos práticos e ordenados para a explicação do conteúdo das mensagens. Portanto, foi aplicada a técnica com suas três etapas: a pré-análise, que compreende a ordenação e sistematização das ideias incipientes em operações consecutivas que se converterão em um plano de análise; a exploração do material, que abarca basicamente a codificação, decomposição ou enumeração; e, por fim, o tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação, que visa sintetizar e ressaltar dados descobertos na análise (Bardin, 2009).
Análise e Discussão dos Resultados
Neste tópico se apresentam os achados da pesquisa. A coleta de dados foi realizada ao longo de um mês, através da aplicação de questionário aberto via Google Forms, com a obtenção de 41 questionários respondidos válidos para a pesquisa. Todavia, vale frisar que os respondentes não eram obrigados a responder todos os questionamentos, portanto, algumas questões não possuem a totalidade de 41 respostas.
No que tange ao perfil demográfico dos respondentes, identificou-se a preponderância do gênero feminino, representando 77%, correspondendo o sexo masculino a 23%. A faixa etária dos respondentes compreendeu o intervalo entre 18 e 58 anos, sendo 28 anos a idade média.
Quanto ao grau de escolaridade dos respondentes, grande parte (41%) possui ensino superior incompleto, seguido daqueles que possuem pós-graduação (36%) e ensino superior completo (23%). Nenhum respondente apontou ter apenas ensino médio ou fundamental, o que demonstra que a amostra possui um nível educacional elevado.
Em relação ao estado civil, a maioria, 77%, é solteira, seguido de pessoas casadas, que representam 18%. Apenas 5% dos respondentes apontou ser divorciado, e nenhum declarou-se viúvo. Além disso, menciona-se que predominaram, com 82%, as pessoas que não possuem filhos, sendo que 15% possuem apenas um filho e 3% possuem dois. Nenhum respondente apontou ter mais de dois filhos.
No que diz respeito às profissões e/ou ocupações dos respondentes, por se tratar de uma questão aberta, houve uma variedade considerável de respostas. Muitos indicaram ser estudantes (graduação e mestrado - Psicologia, Fonoaudiologia, Ciências Jurídicas, Geologia, Administração), outros indicaram ser professores (Administração, Fonoaudiologia, Educação Física, Matemática). Além destas, os respondentes também apontaram ter profissões de fonoaudiólogo, administrador, empresária, advogado, assessor, pesquisador, cientista social, educador físico, jornalista, analista de sistema, engenheiro agrônomo, músico, tecnólogo em agricultura familiar, técnico em química, auxiliar administrativo, servidor público e teleoperador.
No que concerne ao local de residência dos respondentes, igualmente constataram-se uma amplitude de localidades. A maioria dos respondentes reside no Brasil, abrangendo o Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Ademais, alguns respondentes assinalaram morar em outros países, sendo eles: Uruguai, Estados Unidos e Alemanha.
No tocante à renda mensal individual, grande parte (36%) recebe entre R$ 641,00 e R$ 1.500,00, seguido daqueles que ganham mais de R$ 4.431,00 (23%), e de R$ 1.501,00 até R$ 2.500,00 (21%). Ainda, 10% possuem renda menor de R$ 640,00 e a mesma porcentagem recebe entre R$ 2.501,00 e R$ 4.430,00.
A seguir são discutidos os resultados referentes aos questionamentos sobre o consumo colaborativo. No que se refere ao conhecimento das modalidades de consumo colaborativo e de compartilhamento, apenas três respondentes indicaram não conhecer. Poucos apontaram conhecer, mas não utilizar as modalidades de consumo colaborativo e compartilhamento, e somente duas pessoas afirmaram que não costumam aderir ou que aderem pouco a esse tipo de consumo.
Sendo assim, a grande maioria afirmou engajar-se no consumo colaborativo. Entre as modalidades destacadas pelos respondentes, encontram-se: compartilhamento de música, aplicativos de caronas, compartilhamento de livros, compartilhamento de informações e conteúdos educacionais, grupo de trocas de objetos, trocas de roupa, empréstimo de objetos entre os vizinhos, doações a projetos sociais e culturais, compras e vendas coletivas, trocas de hospedagem para turismo e espaços. As modalidades e marcas citadas pelos respondentes são: Couchsurfing, Crowdsourcing, Coworking, Mercado Livre, Bikerio, Airbnb, The Pirate Bay, Catarse, Blablacar, Uber, Bikepoa, Passei Direto, Uber, Ebay, Descolaí, Minha Teca, Zazcar, Beepme, Nós.Vc, Pra Escambá, Free Your Stuff, Benfeitoria, Enjoei.
Entretanto, algumas críticas ao consumo colaborativo também foram tecidas, como a de um respondente (R26) que se posicionou contrariamente ao fenômeno, alegando: “Sou contra toda e qual tentativa de engenharia social para moldar o cidadão comunista”.
O questionamento a respeito da frequência com que os respondentes aderem ao consumo colaborativo resultou em uma amplitude bastante diversa. A maioria declarou não ter uma frequência definida. Alguns afirmaram engajar-se nesse tipo de consumo raramente como, por exemplo, semestralmente, outros mensalmente. Alguns respondentes também afirmaram adesão semanal, sendo também retratado o engajamento com muita frequência, como diária.
Além disso, alguns respondentes preferiram indicar o número de vezes que já utilizaram algum serviço específico, como: “utilizei três vezes o Uber” (R1), ou a situação de uso: “quando vou para fora do país” (R3). Essa amplitude se deve à não restrição dos serviços ou modalidades em questão, dado que respondentes que aderem ao consumo colaborativo em uma ou outra área de consumo (informação, educação, transporte e hospedagem) têm uma variação bastante indicativa na questão da frequência. Com isso, torna-se árdua a tarefa de estabelecer níveis de uso para uma amplitude tão grande como o fenômeno do consumo colaborativo, que engloba diversas áreas de consumo, com frequências de uso bastante diferentes.
No que se refere às percepções de distinções entre o consumo tradicional e o consumo colaborativo, primeiramente, assinalam-se algumas diferenças quanto às características mais básicas das ofertas de ambos os tipos de consumo, que se referem ao preço, qualidade, acessibilidade, entre outros: “O colaborativo você tem acesso e resposta rápida para o que você procura ou quer trocar” (R41); “Agilidade, praticidade e custo” (R20). Nesse sentido, respondentes realçaram percepções de distinções nos propósitos de cada tipo de consumo:
De forma geral, acredito que a diferença está no propósito do consumo. Enquanto o consumo tradicional estaria atrelado à uma insatisfação (não tenho tal produto, não tenho tal experiência, então preciso consumir) o consumo colaborativo estaria associado a uma causa social conjunta, construída de forma coletiva para as pessoas. (R19).
Nesse contexto, alguns respondentes mencionaram que há uma dessemelhança na perspectiva dos dois tipos de consumo. Ao passo que o consumo tradicional e comum é mais individualista, o consumo compartilhado abraça o coletivismo, o senso de comunidade, a socialização: “O consumo comum é individual e o colaborativo é da sociedade/comunidade” (R27); sendo que “O consumo colaborativo ajuda pessoas, enquanto o comum só o consumidor participa” (R35). Também foi relatado que: “Acredito que a principal diferença seja que no consumo colaborativo existe a necessidade de troca/envolvimento com outras pessoas, as quais possuem um mesmo objetivo comum, facilitando o acesso àquilo que se deseja” (R29), e, ainda, que isso “aumenta a quantidade de pessoas que um determinado produto pode atingir” (R1). Desse modo, acredita-se que “o consumidor passa a fazer parte da geração de valor do produto ou serviço” (R4).
Nessa perspectiva, evidencia-se que, no consumo colaborativo, em oposição ao consumo tradicional, a posse e a exclusividade não são necessárias, mas sim a utilização do produto, como foi destacado por alguns respondentes: “No tradicional compro algo para meu uso exclusivo. No colaborativo compartilho com outros, sendo por empréstimo ou na divisão da compra” (R31); “O interesse é na experiência, não em um bem ou posse” (R10); “Não usar dinheiro, é outra lógica, é o ‘ter acesso’, não necessariamente ‘possuir’” (R25).
Outrossim, essa “lógica” do consumo colaborativo apresenta-se de forma muito mais profunda segundo alguns respondentes: “O consumo colaborativo visa beneficiar de forma mais equilibrada, eu diria ecológica (leia-se ecologia social), pois o princípio desta proposta é melhorar ou viabilizar opções de melhora e qualidade de vida para as pessoas” (R21); “O consumo colaborativo é inteligente e contribui com questões atuais de economia e mundo globalizado” (R32).
Tais afirmações corroboram com a dissociação entre bem-estar e materialismo, já indicadas na literatura (Labarbera, & Gurhan, 1997; Burroughs, & Rindfleisch, 2007), de tal modo que permitem uma aproximação evidente entre essa modalidade alternativa de consume e o bem-estar.
Ressalta-se também que os respondentes consideraram como diferença entre os dois consumos o fato de terem fundamentos de troca diferentes, sendo mencionado que:
O colaborativo é mais consciente e diferente do tradicional, não visa o lucro, visa a satisfação das necessidades de ambas as partes. Para haver esse tipo de consumo não é possível que haja oportunismo entre as partes, caso contrário o próprio grupo tende a 'excluir' determinado membro. É a minha ação para o bem maior do grupo. O consumo tradicional é meramente uma troca financeira. (R18).
Em contrapartida, foi salientado que o consumo colaborativo pode transmitir menor confiança e segurança aos consumidores, sendo esta uma diferença em comparação ao consumo tradicional, pois, na opinião do respondente, a competição interfere: “passa menos segurança, mas se houver competição vale a pena” (R30); “[...] o consumo tradicional é mais confiável. Além disso, o consumo colaborativo pode ser por vezes ilegal” (R5).
Ainda, um respondente alega que a existência de uma distinção entre o consumo tradicional e o colaborativo dependem da modalidade de consumo em questão:
Depende, acho que uma compra no Mercado Livre não tem diferença de uma compra em uma loja comum, mas por exemplo, como mencionado, o compartilhamento de casas e escritórios tem a diferença que os usuários precisam ter um cuidado maior com o bem, pois não é só seu. As bicicletas compartilhadas também têm que ter um cuidado maior do usuário para conservá-la. (R14).
Ademais, os respondentes foram questionados sobre a sua percepção acerca das diferenças dos resultados e consequências do consumo compartilhado e do consumo tradicional/individual. Quanto a isso, um respondente salientou que não acredita que os resultados sejam distintos (R28). Do mesmo modo, dois respondentes concordam com o anterior, todavia, trazem a ressalva de acreditar que a experiência de consumo é díspar: “Acho que não. Eles proporcionam quase os mesmos benefícios somente com diferentes tipos de experiências na aquisição do bem” (R39); “Nem sempre. Os resultados podem ser os mesmos, mas a experiência de uso é diferente” (R4).
Com isso, a maioria dos respondentes consideram que as consequências e resultados do consumo colaborativo são diferentes daqueles do consumo individual. Poucas pessoas acreditam que o consumo colaborativo pode ter efeitos negativos, como, por exemplo: “Possibilidade de problemas com o produto” (R2); “Sim, pois é prejudicial ao mercado no ponto de vista do produtor” (R33); e, ainda um respondente sustentou que: “Sim, impacta negativamente a economia formal e positivamente a informal. Deve servir como manifestação da insatisfação com o método tradicional e assim ser encarado pelas empresas” (R37).
Dessa forma, grande parte dos respondentes defende que diferenças entre as consequências do consumo comum e do colaborativo existem, sendo que as deste último são positivas, uma vez que é mais barato e prático, beneficiando mais o consumidor; diminui o consumismo, os gastos e o endividamento das pessoas; minimiza os efeitos negativos no meio ambiente ao incitar a sustentabilidade e reduzir a produção de resíduos, a poluição e estimular a reutilização; amplia o senso de comunidade ao motivar a socialização; e também incrementa o cuidado com o que pertence ao coletivo.
Assim, foi citado sobre o consumo compartilhado que:“Sim, menos desperdício, menos uso de recursos, maior contato entre as pessoas e estabelecimento de um senso se comunidade” (R12); “[...] Tu podes ajudar alguém, ou talvez a ti mesmo na medida em que interage com outros grupos, gasta menos para consumir, e ajuda alguém no meio do caminho [...]” (R18);
Sim, a longo prazo a população vai tomando consciência de que é preciso ter um cuidado maior com as coisas, uma conservação, pois atualmente tudo está muito descartável. Com o compartilhamento pode ser que diminua essa taxa de produção de bens exagerado, o lixo dos objetos descartados, é uma prática mais sustentável. (R14).
Além disso, um indivíduo afirmou que, apesar de não haver confiança no início em relação ao consumo colaborativo, com o tempo percebe-se que os resultados podem ser mais positivos:
Talvez o colaborativo não traga tanta confiança inicialmente. Parece não ser tão seguro quanto o tradicional, mas depois de um tempo, se o produto for bom, dá pra perceber que os resultados e consequências podem ser até melhores do que uma compra tradicional, em questão de preço, de entrega e satisfação do cliente. (R22).
Ademais, dois respondentes fazem uma ponderação acerca dos resultados do consumo colaborativo, ressaltando seus aspectos positivos e negativos:
Depende de qual área se trata, em relação à economia de gastos, produção de lixo o consumo colaborativo é de grande valia em relação ao consumo comum, porém o lado negativo do consumo comum seria a diminuição de um mercado já estabelecido. (R13)
Sim, são diferentes. Através de um consumo colaborativo mais pessoas possuem a oportunidade de ter acesso ao que precisam, por exemplo, livros para lazer ou fins académicos, filmes, séries. Um resultado bom para a sociedade nesse sentido. No entanto, existe a consequência da violação do direito autoral de autores que trabalharam para criar este conteúdo e tiveram seus direitos injustamente violados. Nesse sentido, acredito que programas como o Spotify, por exemplo, possam ser um tipo de solução. É mais barato e acessível, mas o autor escolhe compartilhar neste aplicativo o seu trabalho. Portanto, ao contrário do que acontece com o uso do The Pirate Bay, por exemplo, os direitos do autor não são violados, mas mesmo assim as pessoas têm acesso fácil ao conteúdo, e por um preço relativamente viável. (R5).
Ainda, um indivíduo salientou o fato de o consumo colaborativo incitar, entre outras coisas, a democracia digital, sendo esta referente ao emprego da internet e dispositivos compatíveis em prol do desenvolvimento de uma participação civil potencial na orientação de negócios públicos (Gomes, 2005). Nesse sentido, o respondente enfatizou: “Sim, pois possibilita novos conhecimentos, novos contatos que se vinculam desde plataformas oferecendo tecnologias, democracia digital (ex: Podemos na Espanha), novas realidades que poderão vir a impactar na sociedade como um todo, e consequentemente no ambiente!” (R21).
No que tange às sensações sentidas após o consumo compartilhado e o consumo tradicional, alguns respondentes declararam não ter sentido distinção alguma considerando tal comparação:
Como só lembro de ter participado do Mercado Livre, que é como uma compra normal, não senti diferença. Mas acho que não deve ter muita diferença, é como usar algo público, quando se vai em uma praça ou praia, não se deve deixar seu lixo lá, deve-se procurar conservar aquele ambiente, não danificar, pois não é só seu. (R14)
Com isso, a maioria das pessoas confirmou ter sentido sensações diferentes nos dois tipos de consumo. Poucos sujeitos declararam experimentar sensações negativas depois de engajar-se no consumo colaborativo, sendo frisada a sensação de preocupação em relação aos objetos compartilhados com outros e, inclusive incômodo pelo compartilhamento: “As coisas que troquei que são as mais comuns, fiquei preocupada se a pessoa ia cuidar, e quando eu recebi, fiquei me sentindo incomodada” (R31). Outro respondente alegou, de forma abrupta que: “Senti que só dá certo na cabeça de uma dúzia de idiotas úteis (termo utilizado por Vladimir Lenin para definir a massa de manobra do comunismo)” (R26).
Ainda assim, a maioria dos respondentes apontou ter sensações positivas após o consumo colaborativo, como a sensação de ter efetuado ótimo negócio: “senti que fiz um excelente negócio pois minha aquisição foi mais barata em uns 60% do valor tradicional direto na loja” (R39). Além disso, os respondentes salientaram experimentar a sensação de satisfação em vista da facilidade de acesso e atendimento ao cliente excepcional: “Me senti extremamente satisfeita por ter conseguido encontrar o que buscava facilmente e sem custos. Também me senti bem em compartilhar com outros a informação de como obter o mesmo resultado” (R5);
Sim, a atenção ao cliente em consumo colaborativo é ótima. Quando entra no Uber, que foi o que eu usei, já percebe uma diferença, a forma de atendimento, o trato com os clientes é especial. Parece que estamos em um país de primeiro mundo. (R36)
Igualmente, foi referido o fato de sentir maior controle no decorrer do serviço: “Sim. A experiência foi diferente. Senti mais controle durante a utilização do serviço” (R4), já que, como mencionado anteriormente, acredita-se que o cliente participa como coprodutor no consumo colaborativo.
Destarte, diversas pessoas mencionaram sentir a sensação de ser útil e de dever cumprido, o que acredita-se, está relacionado ao ato de empreender ações altruístas - que geram bem-estar (Deci, & Ryan, 2000) -, fazer o que é correto, o bem e ajudar os demais, enfim, “fazer a diferença”: “Sim, senti que estava consumindo sem causar tantos danos ambientais e sem cair nas tramas do consumo capitalista, tirando assim um sentimento de culpa” (R1); “Sensação de dever cumprido em saber que estou ajudando alguém” (R40); “Me sinto empoderada e leve, cumprindo com meu papel para a construção de uma sociedade diferente do consumo capitalista, tirando assim um sentimento de culpa” (R12).
Também pôde-se inferir que que sensações positivas encontram-se associadas à maior interação social entre os consumidores no contexto da prática do consumo colaborativo, o que cria um senso coletivo de cooperativismo e possível bem-estar social: “Estar experimentando relações diferentes, mais colaborativas, menos mercantis” (R25); “me senti mais conectada às pessoas e mais satisfeita com o consumo” (R19); “pude conhecer novas pessoas, partilhar de experiências, entre outros” (R3), de acordo com proposições de Comassetto et al. (2013) e Deci e Ryan (2000).
Por fim, com as respostas sobre as sensações surge o indício da potencial relação entre o consumo colaborativo e o bem-estar, já que dois respondentes alegaram diretamente sentir bem-estar com a prática. Um dos respondentes mencionou: “Em resumo é uma sensação de bem-estar, de fazer parte de algo com propósito, diferente de uma troca monetária que é o que acontece quando eu consumo algo do sistema tradicional” (R18). É relevante indicar que essas respostas foram obtidas de forma não induzida, dado que até o momento desta questão o termo bem-estar não havia sido apresentado aos respondentes, o que sustenta e reforça a hipotética relação entre o consumo colaborativo e o bem-estar.
Após serem questionados sobre as práticas de consumo colaborativo, e as suas percepções acerca dessa prática, consequências e sensações que incita, foi perguntado diretamente se o nível de bem-estar poderia ser elevado com a prática desse consumo. A grande maioria das respostas iniciaram com a afirmativa “sim”, indicando grande confiança dos respondentes sobre a questão da hipotética relação entre o consumo colaborativo e o bem-estar.
Entre os elementos citados que justificam o bem-estar incitado pela prática do consumo colaborativo, os respondentes indicaram: a possibilidade de aproximar pessoas, a interação social, o rompimento do isolamento social, a possibilidade de fazer novas amizades, a autenticidade nas relações humanas, a comunicação e união de pessoas em prol de um objetivo comum, a promoção de atitudes e posturas coletivas e cidadãs, o estímulo à consciência socioambiental, a redução de impactos ambientais, a minimização do desperdício, os preços mais justos, o nível satisfatório dos serviços, o conforto, a democratização do acesso, as soluções a necessidades específicas, a geração de empatia, a promoção da tolerância, a conexão com o outro, a ajuda ao outro, a solidariedade e o cuidado com o outro, com a cidade, com o ambiente e com o mundo.
Esses elementos são evidenciados em alguns trechos: “Essas práticas geram empatia e fazem pensar sobre as outras pessoas com as quais compartilhamos o bairro, a cidade e o mundo” (R12); “Aumenta a solidariedade e interação com o próximo” (R27);
Em alguns casos pode aproximar as pessoas como no sistema de caronas, em outros, um sentimento de ajuda mútua, de se reconhecer no outro, fica ressaltado, já que percebe que existem outras pessoas passando por situações semelhantes, precisando de soluções semelhantes, como no caso dos sites de estudos. (R1)
Dois indivíduos apontaram uma mesma ressalva para a ocorrência do aumento dos níveis de bem-estar a partir do consumo colaborativo, referente à não restrição à busca de benefícios financeiros e utilitários. Assim, evidenciam os respondentes que é através das relações sociais autênticas propiciadas por esse fenômeno de consumo que ocorre a elevação do bem-estar. Esses apontamentos coadunam fortemente com o que se propõe no presente estudo.
Apenas três respondentes rejeitaram a hipótese de uma relação com aumento do bem-estar, dentre os quais dois afirmaram que o benefício financeiro é o principal: “Acho que não tem relação com isso, mas sim com ter acesso a coisas que nosso sistema monetário faz com que seja muitas vezes inacessível pelo alto preço x uso” (R37). E um respondente afirmou não ter opinião sobre o assunto.
Questionados sobre uma possível sensação de bem-estar, distinta daquela do consumo tradicional, após suas experiências de consumo colaborativo, a maioria dos respondentes sustentou a proposição de aumento de bem-estar. Entretanto, observou-se que mais respondentes negaram essa questão em comparação à questão anterior, ou seja, alguns que anteriormente afirmaram acreditar em uma elevação do bem-estar devido ao consumo colaborativo, indicaram agora não terem vivenciado essa elevação. Nos casos de negações, alguns respondentes justificaram não ter sentido nada de diferente em comparação ao consumo tradicional ou não ter participado do consumo colaborativo.
Entre os que afirmaram ter experienciado o bem-estar devido ao consumo colaborativo o relacionaram com o compartilhamento, a ajuda ao outro, a interação social, o engajamento social, o acesso facilitado, o custo atraente e a economia financeira, o bom atendimento e a liberdade no consumo; o que se evidencia nos exemplos a seguir: “Ao utilizar as bikes do compartilhamento no Rio eu tive a oportunidade de andar de bicicleta na Lagoa Rodrigo de Freitas (o que não seria possível sem o compartilhamento) […]” (R18); “Foi bem mais divertido fazer uma viajem de carro com pessoas agradáveis do que teria sido se eu tivesse ido de ônibus” (R24); “O acesso sem posse dá uma sensação de liberdade” (R10); “Não pagar pra assistir um filme, conseguir PDF de livros de graça e alugar uma bike por R$ 5,00, é uma economia que me faz sentir muito bem” (R22).
Desse modo, percebe-se que diversos fatores são elencados como propulsores de bem-estar no contexto do consumo colaborativo. Esses fatores são basicamente: interação social e acesso facilitado devido aos menores ônus ao consumidor, entre eles principalmente custos financeiros, mas também com considerações de custos ambientais.
Questionados se acreditavam em aumentos em nível de bem-estar em de dimensões específicas, como bem-estar psicológico, convívio social, autonomia e liberdade, felicidade, bem-estar físico, cultura, lazer e meio ambiente, os respondentes em sua maioria responderam de maneira afirmativa, com apenas quatro negativas e três abstenções (não sei) dentre as 38 respostas.
Novas justificativas para o bem-estar no contexto do consumo colaborativo vieram à tona, como: “Sentem-se melhor compartilhando, saindo de um consumismo individualista, causando menos problemas ambientais e ajudando a se repensar uma nova cosmologia social” (R1); “Através do consumo colaborativo as pessoas tem mais acesso a lazer, cultura e informação, o que com certeza melhorara o convívio social e seu bem-estar psicológico” (R5); “[…] maior contato entre as pessoas e estabelecimento de um senso se comunidade” (R12); “O consumo colaborativo por si, em sua essência, traz a dimensão do bem estar. Uma vez que é mais acessível e muitas vezes mais barato, pode chegar a mais pessoas” (R7).
Questionados sobre suas experiências de consumo colaborativo e elevação do nível de bem-estar em dimensões específicas, os respondentes em sua maioria sustentaram positivamente a relação proposta e apresentando histórias de suas experiências de consumo, como os exemplos a seguir: “É diferente de uma experiência tradicional porque não estou pensando somente em mim e me sinto conectada com as outras pessoas, envolvida em algo maior” (R12); “Um exemplo foi quando comprei minha Bike através de um desses sites. A pessoa que me vendeu era muito simpática e acabamos nos tornando amigas” (R24);
Financeiramente pude gastar menos, no caso da autonomia não precisei de um intermediário por exemplo para pedir um carro ou dificuldades em conseguir uma bicicleta, culturalmente me senti fazendo parte de uma nova reformulação de consumo e senti estar causando menos danos ambientais pelo meu consumo. (R1)
[…] [N]a Europa, lá utilizei airbnb, decolar.com, blablacar, booking, entre outros. [...] pude conhecer pessoas que me contaram sua história, compartilharam dos seus afazeres e momentos comigo, sem contar que pude aprimorar meu francês [...] Já quando fui para os EUA foi totalmente diferente, ficamos em um hotel e para me locomover usava o metrô ou então taxi [...] nada comparado à minha viagem da Europa, pude ter as duas sensações, estou programando a próxima viagem, e não só pelo custo, mas por toda experiência que tive, irei de consumo colaborativo novamente. (R3)
Ao participar de um consumo colaborativo me senti vitoriosa por ter encontrado o que precisava, no caso, todos muito caros e impossíveis de encontrar, diversos livros usados para aprender certas matérias do meu curso. Fiquei feliz de estudar por bons materiais, sem pagar e de forma digital. Me trouxe grande satisfação, poder ajudar toda a minha turma de 100 alunos a ter acesso ao mesmo conteúdo. (R5, sobre experiência com Minha Teca)
Recentemente eu comecei a pegar livros emprestados em uma cafeteria em troca de livros meus. Além da sensação de liberdade, da troca na base da confiança, no compartilhamento de um mesmo bem, com utilidade limitada, por mais pessoas me fizeram sentir mais racional ao utilizar um recurso tão escasso. (R10)
Com isso, pode-se inferir de modo geral que a maioria dos respondentes concorda com a existência de uma relação entre a prática do consumo colaborativo e aumento nos níveis de bem-estar, sustentando a proposição deste estudo em alinhamento a ideias propostas por autores da temática do bem-estar (Deci, & Ryan, 2000; Burroughs, & Rindfleisch, 2007). No entanto, os elementos que sustentam essa relação são variáveis conforme as situações contextuais do consumo, envolvendo a modalidade e área, como transporte, hospedagem, locação, educação, entretenimento e outros, dada a amplitude e complexidade do fenômeno do consumo colaborativo (Bardhi, & Eckhardt, 2012; Hamari, Sjöklint, & Ukkonen, 2016; Bostman, & Rogers, 2010).
Também se evidenciou que o consumidor passa a ter seu papel tensionado nessas situações, às vezes, exigindo uma saída da zona de conforto para aproveitar as experiências proporcionadas pelo consumo colaborativo, em consonância com o que já elencou Belk (2007; 2014b). De modo geral, os respondentes indicaram que o preço, a facilidade de acesso, as percepções de engajamento socioambiental e as possibilidades de interação social através da colaboração são os principais elementos a prover bem-estar, felicidade e sensação de liberdade no contexto do consumo colaborativo.
Considerações Finais
Como mencionado anteriormente, o consumo colaborativo é um fenômeno de rápido crescimento com diversas variáveis (Belk, 2014a). O presente estudo teve como objetivo compreender os consequentes da adesão ao consumo colaborativo e identificar a possível interferência do mesmo nos níveis de bem-estar dos consumidores.
Com base na pesquisa realizada, foram construidas as seguintes proposições de estudo: (1) a adesão ao consumo colaborativo aumenta o bem-estar dos consumidores; (2) o aumento de bem-estar nos consumidores no consumo colaborativo é distinto do aumento que ocorre em situação de consumo tradicional; (3) o aumento de bem-estar devido ao consumo colaborativo, diferente daquele oriundo do consumo tradicional, deve-se principalmente (a) às interações sociais, (b) à economia de custos, (c) ao altruismo e (d) à consciência ambiental, propiciadas pelas práticas de colaboração e compartilhamento.
Com isso, acredita-se que, apesar de ter caráter exploratório, esta pesquisa contribui consideravelmente para a compreensão do fenômeno, já que, até o momento, nenhum estudo havia proposto a possível relação entre o consumo colaborativo e o bem-estar. Nesse sentido, destaca-se que o questionário aplicado foi cautelosamente elaborado de forma que os respondentes não foram induzidos a confirmar essa relação, mas que esta surgiu antes mesmo de se mencionar a palavra bem-estar.
Apesar disso, o presente estudo apresentou algumas limitações. Primeiramente, destaca-se a não apresentação da definição de bem-estar e bem-estar social ao longo do questionário, diferentemente do que foi feito com o consumo colaborativo, em que definição e exemplos foram apresentados. Considera-se que a definição e o estabelecimento de um consenso conceitual entre os respondentes sobre a temática explorada poderia ter proporcionado maior esclarecimento sobre a relação e, possivelmente, consenso ainda maior sobre a mesma.
Este estudo se mostrou relevante para a compreensão sobre o engajamento em práticas de comportamento de consumo e seu impacto no bem-estar. Como sugestões para pesquisas futuras, destaca-se a continuação através de um estudo quantitativo que vise testar as proposições construídas e verificar constatação da relação entre consumo colaborativo e índices de bem-estar social através de mensuração em escalas.
Nessa perspectiva, acredita-se que seria relevante mensurar os níveis de bem-estar através de escalas validadas em consumidores envolvidos no comportamento em questão, bem como testar dimensões específicas de bem-estar. Igualmente propõe-se a verificação de relações entre bem-estar, felicidade e escolhas de consumo, considerando, sobretudo, a ascensão de novas configurações de consumo, pautadas por interesses sociais, ambientais e cidadãos, para além dos econômicos, incluindo modalidades de consumo cultural, mercado digital, o próprio consumo colaborativo em modalidades específicas e comportamentos de consumo consciente a exemplo do veganismo.
Referências
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