EDITORIAL

Ciência aberta: reflexões sobre suas implicações na editoria de periódicos em administração

Open Science: Reflections on its Implications for Publishing Business Journals

Francisco Antonio Serralvo
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brazil

Ciência aberta: reflexões sobre suas implicações na editoria de periódicos em administração

Revista Administração em Diálogo, vol. 22, núm. 3, pp. 01-07, 2020

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

A Ciência Aberta (CA) tem assumido paulatinamente o protagonismo do debate da cena científica global, sobretudo diante de quadros mais agudos, como o vivenciado no momento com a pandemia da Covid-19, fato que tem determinado novos padrões de procedimento da comunidade científica, notadamente no que diz respeito ao acesso a conteúdos publicados demarcando, em suma, um caminho sem volta. Ainda bem! Garantir não apenas o acesso livre ao conteúdo das produções científicas dos pesquisadores/autores da academia, mas, acima de tudo, possibilitar a difusão e transparência do conteúdo produzido e publicado, livrando de amarras e entraves os pesquisadores interessados em dar sequência a esses trabalhos, é uma necessidade imperiosa e a academia, felizmente, tem se voltado cada vez mais à essa prática. Há que se considerar, no entanto, que a CA vai muito além do acesso aberto aos conteúdos publicados pelos periódicos acadêmicos, ou da abertura dos dados compilados em uma pesquisa, e tem uma proposta de ampliar significativamente o escopo das atividades científicas, com reflexos sobre diversos atores do meio científico, como: pesquisadores/autores, instituições de ensino e pesquisa, agências de fomento, editores de periódicos científicos, entre outros (Kansa, 2014). Embora a CA não seja algo novo, o debate está ainda ganhando musculatura, e novas reflexões são necessárias para o avanço do seu entendimento e, acima de tudo, suas implicações.

A CA pressupõe novos padrões de comportamento da comunidade científica, principalmente no que se refere à ética, e também uma importante mudança de atitude. Em que pese a preocupação com o modelo de divulgação científica ter sido demonstrado no início do século XX por Paul Otlet (Shintaku & Sales, 2019), esse movimento somente se tornou possível com o avanço da tecnologia da informação e comunicação (TIC), notadamente pela computação em rede.

A proposta da Ciência Aberta

Embora não exista uma concepção única, a CA pode ser vista como uma atividade científica praticada de modo aberto, colaborativo e transparente, em todos os domínios do conhecimento, permitindo não apenas a divulgação do conhecimento desenvolvido, como também a evolução e desenvolvimento desse conhecimento por meio das reconfigurações, adaptações e reconstruções e outras formas de desenvolvimento do conteúdo. Como postularam Anglada e Abadal, (2018, p. 293) “a ciência aberta é uma mudança de paradigma na forma de se fazer ciência. A mudança não está no que se faz, mas em como se faz”. Dessa forma, observa-se que a CA se configura em um amplo campo de desenvolvimento do conhecimento advindo essencialmente pela proposta de liberdade da colaboração e interação entre autores e pesquisadores.

A grande discussão subjacente à CA diz respeito ao fato de os resultados das pesquisas financiadas por recursos públicos serem veiculados em meios restritos. Nesse sentido, Anglada, e Abadal, (2018, p. 294) comentaram: “Um dos postulados básicos da ciência aberta é que a pesquisa deve ser feita com e para a sociedade”. Ora, de fato se verifica que parcela importante da produção intelectual dos acadêmicos do mundo todo, financiada com recursos públicos não está divulgada em bases de acesso aberto, como exemplo a área da saúde em que mais de 53% da produção não se encontra disponível na modalidade de acesso aberto, fato que veio a público devido a pandemia da Covid-19 (Santos, 2020).

Outro fator que vem alimentando o debate se refere ao retrabalho resultante da falta de divulgação das pesquisas ou principalmente base de dados, levando outros pesquisadores a desenvolverem pesquisas semelhantes, fato que poderia ser otimizado com o compartilhamento de dados, avançando-se no conhecimento a partir de bases já estabelecidas e formalizadas. Em grande medida, essas pesquisas são financiadas com recursos públicos e esses recursos poderiam ser otimizados com a CA. Iniciativas importantes têm sido tomadas nesse sentido, como a adotada pela União Europeia (UE) com o Plano S em que 13 agências de fomento de 12 países que compõem a UE que a partir de 2021, todas as pesquisas financiadas pelo Plano S terão que divulgar dados e resultados em plataformas de acesso aberto (Science Europe, 2018).

Todavia, como mencionado anteriormente, a abrangência da CA vai além do acesso aberto aos resultados das pesquisas científicas. A Comissão Europeia, em seu Monitor da CA, organizou as múltiplas implicações e abrangência da CA, conforme pode ser observado na figura 1, sendo estabelecido três eixos (características) centrais: i) dados de pesquisa abertos; ii) comunicação acadêmica aberta; e iii) acesso aberto à publicação. Cada um desses três eixos envolve um conjunto de indicadores de práticas da CA que envolvem atitudes e comportamentos dos pesquisadores, dos financiadores, das instituições de ensino e pesquisa e dos editores de periódicos científicos (European Commission, 2017).

O Círculo da Ciência Aberta. A proposta da Comissão Europeia se baseia na metáfora de um eixo sob o qual uma roda (a Ciência Aberta) pode girar. No eixo são considerados três elementos básicos: dados de pesquisa abertos; comunicação acadêmica aberta; e acesso aberto à publicação. Fonte: European Commission (2017). Providing researchers with the skills and competencies they need to practise Open Science: Report of the Working Group on Education and Skills under Open Science. doi: 10.2777/121253. Recuperado de https://ec.euro pa.eu/research/openscience/pdf/os_skills_wg report.pdf © European Union, 2017.
Figura 1.
O Círculo da Ciência Aberta. A proposta da Comissão Europeia se baseia na metáfora de um eixo sob o qual uma roda (a Ciência Aberta) pode girar. No eixo são considerados três elementos básicos: dados de pesquisa abertos; comunicação acadêmica aberta; e acesso aberto à publicação. Fonte: European Commission (2017). Providing researchers with the skills and competencies they need to practise Open Science: Report of the Working Group on Education and Skills under Open Science. doi: 10.2777/121253. Recuperado de https://ec.euro pa.eu/research/openscience/pdf/os_skills_wg report.pdf © European Union, 2017.

Dada a abrangência da proposta da CA, é compreensível o grande debate que se estabeleceu em torno do tema, ponderando-se prós e contras das implicações dos procedimentos requeridos para a prática da CA, desde a prática de se abrir dados, passando por procedimentos de avaliação por pares aberta e chegando ao acesso aberto às publicações (Martins, 2020).

Um outro ponto de grande sensibilidade que deve ser considerado no debate da CA, trata-se da avaliação por pares, que apresenta grande desafio para os editores dos periódicos científicos. Isto porque, a revisão dos trabalhos pelos pares é o que, em suma, assegura a qualidade e a pertinência dos trabalhos publicados pelos periódicos (Severing, 2020). Cabe destacar que, parcela significativa das revistas acadêmicas tem adotado a prática da revisão duplo cego, ou seja, nem autor nem revisor sabem quem é a outra parte (Giglia, 2015). A grande dúvida que se apresenta é se a abertura da avaliação entre autores e avaliadores, pode trazer os mesmos resultados, especialmente em casos que exista diferenças de prestígio entre um e outro. Claro é que, a revisão aberta tem a possiblidade de resolver desvios que muitas vezes ocorrem na avaliação de um trabalho, como avaliações mal elaboradas ou eventualmente comentários agressivos dirigidos ao autor. Dessa forma, a revisão aberta pode levar a uma interação entre autor e revisor, com grandes possibilidades de enriquecimento do trabalho (Abadal & Da-Silveira, 2020).

Outra possibilidade no sistema de avaliação por pares é a adoção do sistema cego, quando apenas o avaliador tem conhecimento da identidade do autor. Essa situação se torna inevitável no caso de o periódico aceitar submissões de preprints, uma vez que, o trabalho já estará publicado. Nesse caso, tanto autor quanto avaliador tem que concordar com a abertura de identidade do autor, sendo imprescindível que o avaliador declare a não existência de conflito de interesses na avaliação do trabalho.

O ponto a ser considerado tanto na avaliação totalmente aberta, quanto na avaliação parcialmente aberta (apenas cego), é o aumento do grau de dificuldade das avaliações, implicando em tempo maior de dedicação ao trabalho voluntário de realizar a avaliação acadêmica. Daí a necessária mudança de atitude requerida para a prática da CA, anteriormente referida.

A RAD no contexto da CA

Desde a criação e lançamento da Revista Administração em Diálogo (RAD) no ano de 1999 em formato impresso, o financiamento da revista foi inteiramente suportado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e a distribuição dos seus exemplares foi feita sem custo para a comunidade, quer fossem leitores, quer autores. Com a mudança da edição dos seus exemplares para o meio eletrônico, a partir do ano de 2011, essa prática se manteve, adotando o que hoje se denomina acesso aberto diamante, no qual não há cobrança para autores ou para leitores. Os outros tipos de acesso mais comumente utilizados são o ouro, cujo acesso é livre para o leitor mas há cobrança para o autor, e verde, sem cobrança para autores ou leitores, mas com um período de embargo para disponibilização livre do artigo publicado (Barnes, 2018).

Mais recentemente, a PUC-SP passou a financiar as iniciativas de pesquisa internamente pela modalidade de editais competitivos, implantando o Plano de Incentivo à Pesquisa (PIPEq) constituindo-se em diversas modalidades, dentre as quais a Publicação de Periódicos (PubPer). Essa nova modalidade de financiamento além de aumentar o volume de recursos destinados aos periódicos mantidos pela Universidade, passou a demandar um maior planejamento dos editores na formulação de suas propostas, e também a reformulação da gestão do periódico. O resultado é que houve uma significativa melhora no padrão da revista, como, por exemplo a inserção em novos indexadores como o Spell, Redalyc e Web of Science (Emerging Sources Citation Index).

Os principais desafios que se descortinam para a RAD no futuro próximo, se referem a aceitação para submissão de preprints e o incentivo para depósito dos dados das pesquisas publicadas pela revista em plataformas abertas de dados. Essas medidas deverão ser implantadas já a partir do início do próximo ano, com a introdução da nova política editorial da RAD no ano de 2021, como parte do plano de reformulação da gestão do periódico anteriormente mencionado.

A RAD está cônscia do seu papel no contexto da academia brasileira, tem atuado de forma positiva no âmbito da divulgação científica de acesso aberto (diamante) da área da administração, mas sabe que muito ainda há o que fazer na ampliação do escopo da CA.

Referências

Abadal, E., & Da-Silveira, L. (2020). Open peer review: otro paso hacia la ciencia aberta por parte de las revistas científicas. Anuario ThinkEPI, 14, e14e02. doi: https://doi.org/10.3145/thinkepi.2020.e14e02

Anglada, L, &; Abadal, E. (2018). ¿Qué es la ciencia abierta? Anuario ThinkEPI, 12, 292-298. doi: https://doi.org/10.3145/thinkepi.2018.43

Barnes, L. (2018). Green, Gold, Diamond, Black - what does it all mean? doi: https:// doi.org/10.11647/OBP.0173.0089

European Commission (2017). Open Science Monitor. Recuperado de https://ec.euro pa.eu/research/openscience/index.cfm?pg=home&section=monitor

Giglia, E. (2015). Accesso aperto ai dati della ricerca. Italian Journal of Library and Information Science JLIS, 6(2), 225-247. doi: 10.4403/jlis.it-11130

Kansa, E. C. (2014). The Need to Humanize Open Science. In: Moore, S. A. (ed.) Issues in Open Research Data. pp. 31-58. London: Ubiquity Press. doi: http:// dx.doi.org/10.5334/ban.c

Martins, H. C. (2020). The Importance of Open Science in Business Research. Revista de Administração Contemporânea - RAC, 24(1). doi: http://doi.org/10.1590/ 1982-7849rac2020190380

Santos, T. H. (2020, abril 01). Revistas científicas liberam acesso ao público para pesquisa sobre coronavírus. Jornal da USP. Recuperado de https://jornal.usp.br /universidade/revistas-cientificas-liberam-acesso-ao-publico-para-pesquisa-sob re-coronavirus/

Science Europe (2018). Plan S: Making full and Immediate Open Access a Reality. Recuperado de https://www.coalition-s.org/about/

Severing, K. (2020). Advanced Science - On the Route to Open Research. Advanced Science, 7, 1-3. doi: 10.1002/advs.201903436.

Shintaku, M., & Sales, L. F. (2019). Ciência aberta para editores científicos. Botucatu: ABEC. doi: 10.21452/978-85-93910-02-9

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