Artigo
Recepção: 23 Janeiro 2019
Aprovação: 30 Julho 2020
DOI: https://doi.org/10.23925/2178-0080.2020v22i3.41153
Resumo: Este ensaio teórico busca aprofundar a discussão sobre questões de gênero em empresas familiares, verificando elementos de dominação masculina, desafios e perspectivas acerca do assunto na esfera organizacional. O seguinte questionamento é realizado: como as questões de gênero permeiam a dinâmica das empresas familiares? Para elucidar tal indagação, discute-se sobre questões de gênero e dominação masculina, considerando concepções e perspectivas relacionadas às empresas familiares. Argumenta-se que a superação da dominação masculina pode ocorrer através do sentimento do amor, que, com uma concepção valorativa das relações, pode reprimir a produção de desigualdades entre gêneros e por meio da competência feminina, uma vez que as mulheres possuem potencial para ocupar cargos de alto nível e conciliar interesses individuais, familiares e empresariais..
Palavras-chave: Família, Gênero, Feminino, Masculino.
Abstract: This theoretical essay aims to deepen the gender issues in family business discussion, verifying male domination elements, challenges, and gender perspectives in the organizational sphere. The following question is asked: How do gender issues permeate the dynamics of family businesses? We discuss gender issues and male domination to elucidate this question, considering concepts and perspectives related to family businesses. It is argued that overcoming male domination can occur through the feeling of love, which, with a valuing conception of relationships, can repress the production of gender inequalities and, through feminine competence, once women have the potential to hold high-level positions and reconcile individual, family and business interests.
Keywords: Family, Gender, Female, Male.
Introdução
As empresas familiares se destacam por representar uma parcela significativa das organizações, contribuindo para a economia das nações. No âmbito mundial, a maioria das empresas são controladas por seus fundadores ou descendentes de seus fundadores (Bennedsen et al., 2007; Claessens, Fan & Lang, 2000). Embora apresentem as mais variadas formas, estas organizações possuem sua origem e sua história vinculadas a uma família, cujos membros estão à frente da administração dos negócios e mantêm expectativas sobre sua continuidade na organização (Estol & Ferreira, 2006). Conforme destaca Pounder (2015), um dos principais desafios na gestão de uma empresa familiar decorre do gerenciamento da inter-relação entre as preocupações da família e as da empresa.
Nesse sentido, ao considerar a empresa familiar é imprescindível compreender a noção de família no mundo contemporâneo, uma vez que, por meio dos arranjos familiares, se dá a constituição desse tipo de organização. Ao longo dos anos, mudanças foram percebidas em relação a estrutura familiar, sendo que a atual estrutura social se apresenta de forma mais complexa do que décadas atrás, quando a noção de família patriarcal era o núcleo de socialização (Machado, 2005). Castells (1999, p. 169) destaca que a principal transformação que está ocorrendo na família é o fim do patriarcalismo, que “caracteriza-se pela autoridade imposta institucionalmente, do homem sobre mulher e filhos no âmbito familiar”.
Alguns pesquisadores abordaram as transformações familiares, indicando uma compreensão diferente daquela relacionada à família patriarcal (Giddens, 2004; Gilding, 2000; Machado, 2005). Neste cenário de mudanças, destaca-se a emergência de uma nova concepção de família, denominada de “família igualitária” (Figueira, 1987). A atuação de homens e de mulheres envolve condições semelhantes no mercado de trabalho formalmente remunerado e o trabalho doméstico e a educação dos filhos são atividades divididas, embora que a maior parte destas tarefas ainda se mantenha a cargo da mulher (Scavone, 2001). De acordo com Torres (2000), ao observar a realidade brasileira, verifica-se o aumento do número de uniões consensuais, de famílias chefiadas por mulheres e de famílias reconstituídas, as quais são originadas de novas uniões.
Castells (1999) destaca que as transformações ocorridas na família ocidental contemporânea, com o crescente declínio da família patriarcal, causam impactos em empresas familiares. Adicionalmente, Gilding (2000) salienta que as mudanças nas características familiares ocidentais, tais como a autonomia individual e a igualdade entre gêneros, afetam as organizações familiares. Em relação à agricultura familiar, por exemplo, Conway et al. (2016) salientam que os agricultores mais velhos exploram o seu poder simbólico como chefe de família e de fazenda, com vistas a estimular e manter o seu controle de gestão e de propriedade.
Ainda que avanços são percebidos em relação a participação de mulheres em cargos de gestão, elas correspondem a minoria no que diz respeito à liderança empresarial em todo o mundo (Catalyst, 2019). Em relação ao espaço feminino nas empresas familiares, nota-se que a sucessão intergeracional é um dos tópicos mais discutidos em investigações sobre esses empreendimentos, no entanto, poucas pesquisas têm se dedicado ao estudo das mulheres e seu papel na sucessão de organizações familiares (Kubíček & Machek, 2019).
Partindo da perspectiva de que a configuração das empresas familiares tem mudado nos últimos anos, em decorrência de alterações na estrutura das famílias, e da discreta participação de mulheres na gestão de organizações, o seguinte questionamento é apontado: como as questões de gênero permeiam a dinâmica das empresas familiares?
Este ensaio teórico busca aprofundar a discussão sobre questões de gênero em empresas familiares, verificando elementos de dominação masculina, desafios e perspectivas acerca do assunto gênero na esfera organizacional, sobretudo familiar. De acordo com Hatch e Cunliffe (2006), entender aspectos de gênero inclui estudar as formas nas quais comportamentos e linguagens expressam a visão cultural hegemônica sobre o significado de homem e de mulher, demonstrando, assim, as relações de poder que ocorrem nas organizações e na sociedade. Corroborando, Haberman e Danes (2007) indicam o estudo de gênero em empresas familiares como uma vertente de pesquisa que necessita ser mais aprofundada, visando contribuir com a sobrevivência destas organizações.
A estrutura do trabalho contempla algumas considerações sobre empresas familiares, questões de gênero e dominação masculina; em seguida, discute-se sobre concepções e perspectivas de gênero em empreendimentos familiares e perspectivas para futuras pesquisas são apontadas. Por fim, as considerações finais são apresentadas.
Empresas Familiares
A compreensão das empresas familiares perpassa pelo entendimento da transformação das famílias. Na abordagem tradicional, a família é constituída de um grupo de pais e filhos, conceito correspondente à noção de família nuclear e patriarcal. Mas, nas décadas de 1980 e 1990, a compreensão da família é alterada e torna-se mais igualitária, sendo os seus membros percebidos como iguais, com direitos similares, embora existem diferenças sexuais e etárias (Dias & Lopes, 2003).
O sistema patriarcal de família está enraizado na civilização, conforme aponta Castells (1999), devido sua perpetuação histórica e cultural. O autor afirma que a transformação mais relevante que está ocorrendo na família é o fim do patriarcalismo e um dos principais fatores determinantes dessa mudança é a inserção das mulheres no mercado de trabalho, sendo que a ampliação da participação feminina em postos de trabalhos foi generalizada a partir da década de 1980. Outro fator considerado refere-se às transformações tecnológicas, que propiciaram maior controle sobre a reprodução humana. Destaca-se ainda o movimento feminista, com impacto na dimensão do trabalho e na eliminação de formas de opressão ou desigualdade de poder. Ademais, a difusão de uma cultura globalizada, na qual a noção de uma nova identidade feminina é disseminada, proveniente da emancipação das mulheres.
Diante das transformações na constituição das famílias, em que a crise da dimensão patriarcal é representada pelo “enfraquecimento do modelo familiar baseado na autoridade e dominação contínua exercida pelo homem, como cabeça do casal, sobre toda a família” (Castells, 1999, p. 173), evidencia-se uma profunda diversificação e mudança do sistema de poder. Machado (2005) afirma que diferentes formas familiares passam a coexistir na mesma cultura, representando uma composição diferenciada da família nuclear tradicional, tanto pelos seus integrantes e pela redefinição de papéis familiares, assim como pela nova distribuição de poder. A autora salienta os novos contornos da dinâmica familiar, que incluem: distribuição de poder, distância entre gerações e tamanho da família.
As empresas familiares representam grande parte das organizações e são caracterizadas como empreendimentos “que tem sua origem e sua história vinculadas a uma família; ou ainda, aqueles que mantém membros da família na administração dos negócios” (Bernhoeft, 1991, p. 35). Já para Pounder (2015), uma definição ampla de empresa familiar é aquela em que uma família possui patrimônio suficiente para exercer controle sobre a estratégia organizacional e está envolvida em cargos de alta gerência. Na perspectiva de Adachi (2006), uma empresa familiar possui a concentração do poder de decisão entre uma ou poucas famílias, envolvendo o controle da sociedade e, eventualmente, a participação na gestão. O autor ainda destaca que empresas familiares envolvem desde pequenos estabelecimentos, como um pequeno bar administrado pela família, até organizações multinacionais, como o Wal-Mart.
No contexto brasileiro, segundo a revista Exame (2019), os dados do IBGE e do Sebrae mostram que 90% das empresas ainda são familiares e representam cerca de 65% do PIB, empregando 75% da força de trabalho do país. Nota-se, assim, a clara relevância de empresas familiares para a economia nacional, especialmente, pelo seu elevado número, oportunidades de emprego e volume de negócios.
Uma das características marcantes desse tipo de empresa é que a coexistência de situações possibilita que a cultura familiar influencie a esfera da organização, compartilhando os seus valores, que determinam comportamentos específicos (Gonçalves, 2000). Assim, nota-se que os objetivos e os princípios organizacionais confundam-se com os valores prezados na família. Tillmann e Grzybovski (2005) salientam que o equilíbrio entre os interesses individuais e/ou familiares e os objetivos organizacionais constituem a chave para a sobrevivência das organizações familiares.
Corroborando, Peiser e Wooten (1983) indicam que a participação da família na direção e gerenciamento das empresas familiares pode desencadear conflitos referentes às dificuldades de se separarem as relações familiares das decisões profissionais. Para Lodi (1999), existem conflitos de interesses entre família e empresa, destacando quatro problemas frequentes: (1) uso indevido dos recursos da empresa por seus membros; (2) falta de sistemas de planejamento financeiro e de apuração de custo; (3) resistência à modernização; (4) emprego e promoção de parentes por favoritismo e não por competência. O processo sucessório representa um dos fatores importantes para a sobrevivência de empresas familiares, fundamental no ciclo de vida dos negócios e normalmente acompanhado de problemas gerenciais e obstáculos emocionais (Flören, 1998).
A sucessão empresarial conta com diferentes desafios e dificuldades, que podem representar o desaparecimento da organização após o processo de transição. Leach e Bogod (2006) referem-se à sucessão como um conjunto complexo de opções a que está sujeito o fundador de uma empresa: nomear um membro da família, um gestor membro da família ou um gestor que não seja membro da família, liquidar a empresa, vender em sua totalidade ou deixar a empresa seguir seu curso natural. De acordo com Gonçalves (2000), é necessário considerar que a família, como instituição, experimentou mudanças profundas, que devem ser compreendidas em função de uma revolução das individualidades. Assim, a empresa familiar enfrenta o desafio de ajustar-se a uma nova família, organizada democraticamente, além da concepção tradicional de pai e filho (Gonçalves, 2000).
Dumas (1998) destaca algumas diferenças entre as formas como filhos e filhas herdeiros são socializados para a sucessão: a partir de uma regra implícita de que filhas não poderiam ser sucessoras no empreendimento familiar e, por isso, seriam encorajadas a buscar outras carreiras, enquanto os filhos seriam estimulados a se tornarem aprendizes na empresa da família; e, quando comparadas com seus irmãos, as filhas gastariam menos tempo na empresa, desenvolveriam menos qualificações e seriam encorajadas a ingressar no negócio familiar menos frequentemente.
Complementarmente, Machado, Wetzel e Rodrigues (2008) enfatizam que poucos estudos sobre sucessão familiar se concentram no aumento do número de mulheres sucessoras. Em nível nacional, no ano de 2016, o percentual de 39,1% dos cargos gerenciais era ocupado por mulheres (IBGE, 2018), taxa inferior ao gênero masculino, mas que demonstra crescimento de 300% desde o ano de 2000. Conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (2018), o gênero feminino apresenta maior nível de escolaridade, atingindo, em média, um nível de instrução superior ao dos homens. No entanto, a estrutura ocupacional demonstra maiores salários e cargos mais elevados relacionados ao gênero masculino.
Os empreendimentos familiares contam com desafios inerentes aos aspectos de gestão e de relações pessoais, pois, ao mesmo tempo, que necessitam alcançar desempenho satisfatório para sobrevivência dos negócios, carecem de harmonizar as relações entre os membros da família. Nesse sentido, Chua, Christman e Steier (2003) reiteram que, para uma empresa se sustentar como familiar no ambiente competitivo do século XXI, necessita contar com sinergia e relacionamento estreito entre a família e a empresa, sendo que a organização precisa ter um desempenho que crie valor para a família e a família proporcione valor para a empresa, e isto só é possível por meio de envolvimento familiar
Questões de gênero e dominação masculina
Na concepção mais tradicional, gênero envolve a divisão do ser humano em dois sexos: masculino e feminino. Conforme Souza, Corvino e Lopes (2013), inicialmente, os estudos de gênero estavam diretamente relacionados à história das mulheres e envolviam uma série de aspectos relacionados às questões femininas, considerados como opostos aos homens. Scott (1995) destaca que os estudos de gênero surgiram na década de 60 com o movimento feminista e tinham um caráter altamente político, sendo representados como sinônimo de mulheres. Com o passar dos anos, as abordagens de gênero foram ampliadas ao universo masculino.
A partir dos estudos de Foucault (1988), os conceitos de gênero e de sexualidade foram deslocados da biologia para a cultura, compreendidos então como uma construção social. O gênero não é determinado pelo fator biológico, mas constituído por diversas práticas sociais, superando o modelo binário masculino e feminino. Para Scott (1995), a definição de gênero repousa numa conexão integral entre duas proposições, a primeira envolve o termo como um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos; e, a segunda inclui uma forma primária de dar significado às relações de poder.
Embora acontecimentos e modificações na sociedade marcaram a emancipação das mulheres, em muitas situações, a diferenciação entre gêneros prevalece. Wall, Aboim e Cunha (2010) demonstram que a produção social do gênero não se verifica apenas nas formas de divisão familiar e social do trabalho, estando simbolicamente arraigada na produção de categorias e de identidades sociais. De acordo com Bourdieu (2012, p. 17), “a divisão entre os sexos parece estar “na ordem das coisas”, como se diz por vezes para falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável”.
Na perspectiva de Amâncio (1994), existe uma assimetria dos modelos de masculino e feminino, cujos significados são mais universais no polo masculino e mais situacionais no polo feminino. Assim, o modelo de masculinidade é uma “fotografia” do modelo social de individualidade dominante, enquanto que o modelo feminino tende a ser o espaço privado da família e com a expressão das emoções e dos sentimentos. Conforme realçam Wall, Aboim e Cunha (2010), as representações sociais reguladoras dos comportamentos constituem-se como modelos estereótipos de masculino e de feminino, que coexistem com as transformações ao nível das práticas ou daquilo que se considera normativamente correto, como a importância da participação das mulheres no mercado de trabalho.
Em relação à ordem social, Bourdieu (2012) afirma que a mesma funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a confirmar a dominação masculina sobre a qual se alicerça, ao passo que envolve a divisão social do trabalho, de seu local e seus instrumentos; compreende a estrutura do espaço, direcionando o lugar de mercado para aos homens e a casa às mulheres; inclui a estrutura do tempo, o ano agrário ou o ciclo de vida, com momentos de ruptura, associados ao masculino, e longos períodos de gestação, atrelados ao feminino. O autor destaca que a realidade social constrói o corpo de maneira sexuada, sendo que o próprio corpo, na sua dimensão biológica, estabelece a diferença entre os sexos biológicos, conformando-a aos princípios de uma visão mítica do mundo, arraigada na relação de dominação dos homens sobre as mulheres. A diferença biológica entre os sexos pode ser considerada uma justificativa da diferença socialmente construída entre os gêneros e, principalmente, da divisão social do trabalho (Bourdieu, 2012).
O gênero com um componente relevante para abordar a identidade no trabalho é ressaltado por Molinier (2003), ao sugerir que a atividade laboral é uma das categorias que influenciam a subjetividade, sendo crucial na mediação da construção das feminilidades e também das masculinidades que, nessa esfera, equivalem a identidades sociais. O autor utiliza o termo feminilidade social para remeter as ideias de como uma mulher deveria ser no trabalho, com características de um homem ou de acordo com o funcionamento psíquico desse. Dessa forma, as mulheres devem optar por uma aparência que demonstre os elementos estéticos pensados pelos homens, além de adotar uma atitude submissa e não concorrencial quanto ao poder.
Corroborando, Bourdieu (2012) salienta que, para as mulheres alcançarem efetivamente uma posição no trabalho, teriam que possuir, além das exigências da descrição do cargo, um conjunto de atributos que os ocupantes masculinos atribuem usualmente ao cargo, tais como estatura física, voz ou aptidões como a agressividade, a segurança e a autoridade natural. Dessa forma, verifica-se que é por meio do adestramento dos corpos que são impostas as disposições mais fundamentais, aquelas que tornam inclinados e aptos a entrar nos jogos sociais mais favoráveis ao desenvolvimento da virilidade, característica masculina, como a política, os negócios e a ciência (Bourdieu, 2012).
Existem profissões e posições que dificilmente serão ocupadas por mulheres, uma vez que são moldadas especialmente para os homens. Para Boas, Paula Neto e Cramer (2003), as características consideradas essencialmente femininas direcionam a mulher aos cargos em que habilidades sociais são imprescindíveis, mas, ao mesmo tempo, essas habilidades fazem com que a mulher seja desconsiderada para a ocupação de determinadas funções nas organizações, como aquelas que exigem autoridade, força, habilidades técnicas, exposição a riscos físicos, que são comumente atreladas ao gênero masculino. Complementarmente, Bourdieu (2012) destaca que as oportunidades de acesso das mulheres decrescem à medida que se atingem posições mais raras e mais elevadas nas organizações. Algumas das dificuldades atribuídas às mulheres no mercado de trabalho envolvem o fato de que elas são sempre menos remuneradas do que os homens; obtêm cargos menos elevados com a mesma qualificação e são mais atingidas pelo desemprego e pela precariedade de empregos, o que implica, entre outros efeitos, o de excluí-las dos jogos de poder e das perspectivas de carreira.
Quanto à discriminação de gênero no ambiente trabalho, Cavazotte, Oliveira e Miranda (2010) verificaram que a percepção por parte das mulheres a respeito da discriminação afeta sua satisfação e sua identificação com a organização, assim como influencia a sua decisão de mudança de emprego. Adicionalmente, Proni e Proni (2018) verificaram que o combate à discriminação de gênero, respaldado pela evolução da legislação trabalhista e por políticas públicas, é fundamental para valorizar a força de trabalho feminina, no entanto, não é capaz de eliminar as diferenças em termos de ascensão na carreira e de remuneração entre homens e mulheres, mesmo em empresas líderes de mercado.
Dessa forma, verificam-se desafios em relação às questões de gênero na sociedade e nas organizações. Embora muitos discursos prezam pela igualdade de gênero no ambiente de trabalho, estudos apontam que as mulheres permanecem com remuneração inferior e dificilmente ocupam os cargos mais elevados. Ademais, nos casos em que alcançam posições mais altas nas organizações, as mulheres se valem de características consideradas masculinas. Souza, Corvino e Lopes (2013) destacam que há uma lacuna de pesquisas que estudam o feminino não somente em mulheres, mas também em homens, rompendo assim com a visão biológica de gênero, determinado pelo sexo. Além disso, verificaram que estudos desenvolvidos sobre o feminino na área de Administração ainda carecem de um maior aprofundamento conceitual. Nesse sentido, demonstra-se a complexidade do tema gênero, que, na realidade social, é, muitas vezes, desconsiderado devido as relações de poder envolvidas.
Considerações e perspectivas sobre gênero em empreendimentos familiares
Conduzidas à gestão do capital simbólico das famílias, as mulheres são levadas a transportar este papel para dentro das empresas, onde coordenam atividades de apresentação e de representação, de recepção e acolhida e também a gestão de procedimentos burocráticos que, como os rituais domésticos, contribuem para a manutenção e o aumento do capital social de relações e do capital simbólico da empresa (Bourdieu, 2012). Outros autores assinalam uma tendência de as mulheres ocuparem posições estratégicas nas empresas (Cole, 1997; Élvarez, Sintas & Gonzalvo, 2002).
Bourdieu (2012) atenta para o fato de que as mulheres que alcançam os mais altos cargos empresariais, têm que “pagar” por este sucesso profissional com um menor sucesso na ordem doméstica, representado por divórcio e dificuldades com os filhos, e na economia de bens simbólicos; ou, por outro lado, o sucesso na dimensão doméstica tem, muitas vezes, por contrapartida, uma renúncia parcial ou total de sucesso profissional. Nesse sentido, Teixeira (2005) salienta que o equilíbrio entre a vida pessoal e a profissional é ainda mais importante para o gênero feminino, uma vez que, mesmo com todos os avanços conquistados nas últimas décadas, as principais funções domésticas ainda são de responsabilidade das mulheres, assim como a criação dos filhos, exigindo tempo e dedicação. A conciliação entre trabalho e casa, vida pública/privada, apresenta, evidentemente, maior dificuldade para as mulheres.
Os desafios enfrentados pelas mulheres para que possam desempenhar atividades laborais com dedicação perpassam, assim, por estratégias de suporte de cônjuge e/ou familiares. Com o intuito de prosperar numa carreira profissional, as mulheres necessitam contar com o apoio do cônjuge, familiares ou empregada para que as atividades domésticas e cuidados com os filhos sejam realizados. Garcia e Tassara (2003) enfatizaram, a partir de entrevistas realizadas com mulheres casadas, que o comportamento dos companheiros se caracteriza como de colaboração e não como responsabilidade partilhada, sendo que tal aspecto independia da inserção ou não da mulher no mercado de trabalho. Corroborando, Heikkinen, Lämsä e Hiillos (2014) destacam que as mulheres finlandesas em posições gerenciais, ao contrário dos homens, possuem uma jornada dupla, atuando no trabalho e em casa. Demonstra-se, assim, que o gênero feminino continua responsável pela vida privada e necessita organizar o desenvolvimento das atividades domésticas inerentes. Machado, Wetzel e Rodrigues (2008) destacam que um ponto valorizado pelas mulheres é a possibilidade de flexibilizar as horas e os locais de trabalho.
Nesse âmbito, os empreendimentos familiares contribuem na medida em que os aspectos pessoais dos membros são considerados, diferentemente das empresas baseadas em lucratividade (Cole, 1997). Os achados de Cromie e Sullivan (1999) corroboram, indicando que a conciliação entre trabalho e família foi favorecida para as trabalhadoras das organizações familiares, embora dificuldades foram relatadas sobre a diferença de remuneração em relação aos cargos masculinos equivalentes; impacto nas relações pessoais, devido ao exercício simultâneo dos papéis de gerente, esposa e mãe e prejuízo na vida social.
Ainda que o horário de trabalho na empresa da família possa ser flexibilizado, Cadieux, Lorrain e Hugron (2002) reiteram que o sucesso em alcançar um saudável equilíbrio entre a vida pessoal e a vida profissional é controverso, pois nos negócios familiares, a dedicação com o trabalho envolve carga horária superior a quarenta e cinco horas semanais, considerada o limite para evitar conflitos entre a esfera profissional e a doméstica. Por outro lado, Machado, Wetzel e Rodrigues (2008) indicam que existe uma troca justa entre a herdeira e a empresa familiar, uma vez que o preço que ela paga por não ter uma cobrança rígida de carga horária é a disponibilidade de seu tempo além do expediente normal para eventuais atividades.
A partir das transformações ocorridas na família ocidental contemporânea, um novo contexto social foi redesenhado, o qual inclui mudança na demografia social, redefinição de papéis sociais, acompanhada de revisão de antigos estereótipos e representações associadas ao gênero (Machado, 2003). Nesse sentido, a indissolubilidade do casamento e a estabilidade familiar cederam espaço para uma nova concepção de relação entre empresa e família, que pode ser constituída a partir de uma família monoparental, na qual atuam mãe e filha, por exemplo. Machado (2003) destaca que o preparo de sucessores, que, geralmente, era centrado na relação de pais e filhos, hoje tem como possibilidades múltiplas relações, envolvendo: mãe e filha (s); mãe e filho (s); pai e filho (s); pai e filha (s).
Élvarez, Sintas e Gonzalvo (2002) demonstraram que a tendência educacional da mulher de apresentar mais anos de estudos que os homens está alterando os tipos de sucessão em empresas familiares, nas quais irmãos e irmãs concorrem pelos cargos de alta gerência. Para esses autores, há uma tendência de as mulheres assumirem posições estratégicas na empresa, associadas às áreas de marketing, design e tecnologia da informação, enquanto os homens sucessores ocupariam cargos mais operacionais, tais como de finanças, logística e contabilidade. No entanto, estudos têm demonstrado que as mulheres, em muitos casos, são excluídas do processo sucessório. Macedo et al. (2004) verificaram que, na maioria dos empreendimentos familiares pesquisados, houve exclusão da herdeira durante a escolha dos sucessores, sendo que essa exclusão teria ocorrido de várias formas, sendo declarada em alguns casos e dissimulada em outros. Nos casos em que as filhas e as esposas participaram do processo sucessório, as mesmas assumiram, geralmente, funções ligadas a cargos socialmente considerados “femininos”, como posições na área de recursos humanos, reproduzindo, assim, a divisão sexual do trabalho (Macedo et al., 2004).
Dumas (1998) identificou que as herdeiras que trabalham em empresas familiares encontram problemas similares aos enfrentados por mulheres em outros negócios e que também suportam problemas relacionados aos conflitos entre papéis e lealdade, relacionamentos com irmãos e parentes e brigas por poder e autoridade. Assim, as mulheres, muitas vezes, precisam se autopromover, visando anunciar constantemente seus desejos e sua capacidade de assumir posições hierárquicas mais altas, tornando-se mais visíveis nos negócios (Hollander & Bukowitz, 1990). Os autores complementam que a autopromoção é percebida socialmente como uma atitude não-feminina, que remete à ambição e à agressividade. Tal fato se relaciona com a dominação masculina, uma vez que as profissionais se valem de características masculinas para conquistar espaço nas organizações. Conforme Bourdieu (2012), a divisão entre os sexos está presente, ao mesmo tempo, em estado objetivado nas coisas e em estado incorporado, nos corpos e nos habitus dos agentes, funcionando como esquemas de percepção, de pensamento e de ação.
Apesar das transformações sociais e da expansão do número de mulheres empresárias, existem ainda restrições de ordem cultural, que balizam o ingresso de mulheres na sucessão de empresas familiares (Vidigal, 2000). Corroborando, Gonçalves (2000) destaca que é a visão patrimonialista que provoca as grandes inconsistências na empresa familiar, incluindo o autoritarismo, o nepotismo, o uso da confiança pessoal, e não da competência, para a escolha de colaboradores, implicando ainda o paternalismo como forma de relacionamento com os colaboradores. Nota-se, assim, que as empresas familiares são organizadas a partir dos valores da família, especialmente do fundador, e suas decisões refletem aquilo que este considera relevante, sendo que, em muitos casos, a sucessão é direcionada a um familiar do gênero masculino. Leach (1998) complementa ao demonstrar que características como o medo da morte, a relutância em abdicar do controle e do poder, a incapacidade de escolher entre os filhos, o preconceito com o planejamento e o medo da perda da identidade empresarial são aspectos comuns entre os fundadores e se tornam entraves ao processo sucessório. De acordo com Barnes (1988), os pais tendem a expressar maior resistência e pressão sobre as filhas quando estas assumem os negócios do que sobre os filhos.
Cabe salientar que as questões de gênero tendem a ser consideradas nas empresas familiares, uma vez que se observa o crescimento da participação feminina em posições de gerência, assim como elas são responsáveis por escolaridade mais elevada, influenciando a escolha de sucessores. Nota-se que as mulheres concorrem por espaço nas organizações e, especialmente no contexto de empresas familiares, diferentes variáveis podem determinar sua posição, inclusive interação e envolvimento com a família e percepções do fundador. Félix e David (2019) assinalam que uma porcentagem maior de mulheres em posições gerenciais e administrativas pode ser encontrada em empresas familiares, já que um dos objetivos dessas organizações é garantir sua continuidade e crescimento por meio de membros da família.
Além disso, o estilo de gestão feminino pode colaborar para a dinâmica empresarial familiar. Conforme Lodi (1999), as mulheres executivas tendem a adotar um estilo de liderança mais democrático, enquanto os homens buscam um estilo diretivo de comando e controle. No contexto das organizações familiares, Grzybovski, Boscarin e Migott (2002) enfatizam que as mulheres executivas utilizam a visão sistêmica para antecipar oportunidades e riscos, atuam com um número maior de informações e planejam estrategicamente e de forma sustentável o futuro da empresa. Ainda, as gestoras apresentam um estilo de liderança com foco nas pessoas e orientação para o poder, estando propensas a negociar e a fazer poucas concessões. Nessa perspectiva, Munhoz (2000) destaca que um dos fatores do sucesso de empreendimentos geridos por mulheres envolve o entendimento da questão de gênero, a compreensão de que as mulheres desenvolvem um estilo singular quando administram, uma vez que sua liderança é fruto de um aprendizado sobre valores, comportamentos e interesses voltados mais para a cooperação e relacionamentos.
Em relação à dominação masculina, Bourdieu (2012) destaca que o amor constitui uma forma de enfrentamento, pois é uma dominação aceita, não percebida como tal e praticamente reconhecida. De acordo com o autor, as forças que agem na obscuridade e no segredo das relações íntimas fazem os homens esquecer dos deveres ligados à sua dignidade social, determinando, assim, uma inversão na relação de dominação. É por intermédio do amor que acontecimentos são observados, os quais são denominados como milagres por Bourdieu (2012): o milagre da não-violência, que torna possível as relações baseadas em total reciprocidade; o milagre do reconhecimento mútuo; e, o milagre do desinteresse, que possibilita relações desinstrumentalizadas.
Na vida familiar, a lógica afetiva assume diferentes formas, demonstrando a sobreposição que tende a acontecer entre o instrumental e o expressivo (Wall, Aboim & Cunha, 2010). Embora que, nas organizações burocráticas, predomine a racionalidade instrumental ou formal (Kalberg, 1980), nas empresas familiares, a racionalidade substantiva pode se constituir num elemento norteador de suas práticas, uma vez que é pautada pela ação orientada por valores emancipatórios (solidariedade, liberdade, comprometimento, por exemplo), independentemente dos resultados obtidos. Conforme Leach e Bogod (2006), as relações presentes na empresa familiar envolvem a presença de dois sistemas, o familiar e o empresarial. O sistema voltado para a empresa contempla os valores que são referidos na literatura da área de Administração e tem por base a consecução de objetivos profissionais, enquanto o sistema familiar compreende as emoções e a vinculação de seus membros entre si por laços afetivos e emocionais.
Além disso, as mulheres podem superar a dominação masculina por meio da sua competência com os negócios, refletida em desempenhos organizacionais satisfatórios. Félix e David (2019) constataram que a presença de um membro feminino na direção da empresa familiar tem impactos positivos no desempenho, em comparação com empresas com apenas membros masculinos. Os autores sustentam que as empresas familiares devem reconhecer formalmente a relevante contribuição das mulheres na sua gestão, assim como esse aspecto precisa estimular as mulheres para se esforcem na eliminação das barreiras existentes e alcancem níveis de sucesso idênticos aos dos homens.
Na Figura 1, é apresentado um esquema que ilustra as questões de gênero nas empresas familiares. A dominação masculina é percebida durante a transformação da estrutura familiar, na sucessão familiar e no equilíbrio entre empresa, família e mulher. Há fatores que inibem e que facilitam o equilíbrio entre esta tríade, com destaque a percepção do fundador, que é institucionalizada na organização e expressa, de forma favorável ou não, à inserção das mulheres na gestão. Como formas de superar a dominação masculina em empreendimentos familiares, argumenta-se que os sentimentos de amor e a competência empresarial alcançada pelas mulheres são os caminhos apontados. Na medida em que as mulheres apresentam desempenhos satisfatórios, proporcionados por sua capacidade e sensibilidade empresarial, além da tendência de possuírem maior escolaridade, aspectos negativos atrelados ao seu gênero serão minimizados.

Dessa forma, a compreensão das questões de gênero pode contribuir para a gestão das empresas familiares, na medida em que há envolvimento emocional e afetivo entre os membros da família e este pode refletir nas decisões gerenciais, ultrapassando horizontes de discriminação entre os gêneros feminino e masculino e pautando-se por valores que refletem a história e os princípios familiares. Embora elementos de dominação masculina são observados nas empresas familiares, estas constituem espaços relevantes para a ampliação da participação feminina na gestão das organizações. Valores associados à dimensão afetiva, característicos nas relações familiares, e resultados positivos da gestão feminina podem romper com a dominação masculina e propiciar condições iguais de trabalho entre os gêneros. Assim, as empresas familiares podem servir de modelo para outros formatos organizacionais ao alavancar o talento feminino e ampliar o número de mulheres nos níveis gerenciais (Félix & David, 2019).
Pesquisas futuras
A partir das considerações apresentadas, tópicos associados ao estudo de gênero em empresas familiares são apontados como agenda de pesquisa. Temas que merecem uma investigação mais aprofundada se referem ao contexto cultural, as mulheres na sucessão intergeracional, práticas organizacionais de gênero e desigualdade de gênero na família.
Considerando que a cultura e a história nacionais influenciam a natureza das famílias, o que reflete na gestão das empresas familiares, o assunto contexto cultural carece de investigações, especialmente, em economias emergentes que apresentam mais restrições ao iniciar e gerenciar seus empreendimentos, considerando as condições socioculturais prevalecentes e o menor nível educacional da população (Ambrish, 2014). Além disso, as restrições socioculturais podem inibir a capacidade das mulheres empreendedoras de desenvolver habilidades gerenciais e técnicas necessárias para iniciar e operar seus negócios em relação aos homens empresários (UNESCO, 2015).
Grande parte dos trabalhos desenvolvidos sobre sucessão em empresas familiares apresentam visões gerais sob várias perspectivas, mas abordam as questões de gênero de forma limitada (Kubíček & Machek, 2019). Neste sentido, ampliar a discussão sobre a sucessão feminina no âmbito das empresas familiares possibilitará avançar na compreensão do ingresso da mulher na gestão das organizações, desencadeada, em parte, pela transformação na estrutura das famílias, e que implica na transição entre gerações. Além dos aspectos de gênero, fatores atrelados às diferentes gerações merecem atenção, uma vez que valores, comportamentos e atitudes mudam com o tempo.
Conforme afirmam Menéndez, Fagan e Ansón (2012), as organizações podem ser vistas como de gênero e não como neutras, ao passo que o design do cargo, planos de carreira, práticas de trabalho, métodos de recrutamento e seleção e a cultura organizacional são revestidos de suposições e expectativas sobre os papéis apropriados ao gênero. Dessa forma, ao ampliar a discussão sobre as práticas organizacionais que se associam ao gênero no sentido de superar tal divisão é um passo inicial para fomentar a equidade entre homens e mulheres assim como alterar a cultura organizacional.
Apesar da maior inserção do homem na esfera doméstica dos lares, ainda a mulher é considerada como responsável pelos afazeres da casa e pelo cuidado dos filhos. Dessa forma, existem diferenças na forma como o tempo é usado e valorizado, conforme aponta Bryson (2007). O autor afirma que as maneiras pelas quais o tempo é compreendido são centrais para a manutenção das desigualdades de gênero na vida pública e privada, uma vez que os pais, sobretudo as mães, se percebem cada vez mais pressionados pela intensidade do uso do tempo.
Assim, a falta de tempo das mulheres na esfera pública está ligada às responsabilidades domésticas e de cuidados tradicionais que não são valorizadas ou recompensadas, podendo ocasionar diminuição da sua autonomia e redução das possibilidades de alcançarem posições mais altas no trabalho.
Nesse sentido, enquanto a desigualdade de gênero continua a perfazer a dinâmica familiar, avanços em nível macro na sociedade são comprometidos. A consciência de que não há papel definido para as responsabilidades domésticas precisa ser explorada para que os filhos e as filhas compreendam que a mulher assim como o homem necessita dedicar tempo para as diferentes tarefas cotidianas, seja para o trabalho, casa, filhos, amigos e lazer.
Por fim, cabe destacar a necessidade de estudos empíricos, conforme verificado por Kubíček e Machek (2019) que, ao realizarem uma revisão sistemática da literatura sobre os fatores associados ao gênero na sucessão de empresas familiares, constataram que foram realizados principalmente estudos exploratórios e ainda faltam achados empíricos generalizáveis. Portanto, nota-se a existência de uma lacuna de investigações empíricas que possam propiciar o aprofundamento da compreensão do tema.
Considerações Finais
A Constituição Federal de 1988 assegura direitos iguais para homens e mulheres, especialmente na esfera laboral, e se constitui num instrumento de promoção de políticas públicas para combater a discriminação e evitar que a força de trabalho feminina seja segregada ou desqualificada (Lavinas, 1996). Entretanto, observa-se que as desigualdades de gênero continuam se manifestando no Brasil e que elementos de dominação masculina ainda permeiam a realidade social. Conforme destacam Rodríguez-Ariza et al. (2017), embora os papéis das mulheres nos negócios e na sociedade em geral tenham mudado nos últimos anos, a verdadeira igualdade entre homens e mulheres ainda não foi alcançada.
Bourdieu (2012) atenta para o fato de que as mudanças que influenciaram a condição feminina mascaram a persistência de estruturas invisíveis, que só poderão ser esclarecidas por meio de um pensamento relacional, que seja capaz de associar a economia doméstica, incluindo a divisão de trabalho e de poderes, e os diferentes setores do mercado de trabalho. O autor salienta que o caminho é relacional, ao invés de apreender separadamente, como tem sido feito, a distribuição de tarefas entre os sexos. Para tanto, instituições que produzem e disseminam a dominação masculina, como a Família, a Escola e o Estado, são mecanismos chave para promover seu desaparecimento. Adiciona-se a estas instituições, as empresas familiares, tendo em vista que refletem as relações entre os membros da família e que denotam envolvimento emocional e afetivo. Dessa forma, o sentimento de amor e uma concepção valorativa das relações podem romper com a dominação masculina, instaurada nas mais diversas esferas sociais, até mesmo de forma invisível, mas ativa na produção de desigualdades entre os gêneros.
Além disso, o nível de escolaridade mais elevado e as caraterísticas peculiares da liderança feminina aliados a resultados positivos alavancados por gestoras fornecem subsídios para compreender que o espaço ocupado pelas mulheres tende a crescer nas organizações, incluindo as administradas por famílias. Conforme afirmam Kubíček e Machek (2019), o estilo de liderança feminino é mais aberto, empático e menos competitivo, sendo que essas características podem reduzir o conflito entre as esferas comercial e familiar. A superação da dominação masculina se dará, assim, por meio da competência feminina, que possui potencial para ocupar cargos de alto nível e conciliar interesses individuais, familiares e empresariais.
Reitera-se que as organizações têm promovido iniciativas para equidade de gênero, mas este processo é lento e requer uma mudança da cultura organizacional (Proni & Proni, 2018). Mais, a equidade parte de uma alteração social frente às relações de dominação, enquanto esta transformação não atingir todos os níveis da sociedade, os interesses serão periféricos e desintegrados. O caminho compreende considerar todos como seres humanos, sem diferenciações entre os gêneros feminino e masculino, capazes de contribuir no espaço organizacional, agregando conhecimento e somando competências e habilidades.
Por fim, vale ressaltar que este ensaio não pretende esgotar as discussões acadêmicas sobre as questões de gênero e as empresas familiares, tampouco apresentar concepções únicas para abordagem destas temáticas. A finalidade é de propor possibilidades para a compreensão das questões de gênero no contexto de organizações familiares.
Referências
Adachi, P. P. (2006). Família S. A: gestão de empresa familiar e solução de conflitos, São Paulo: Atlas.
Amâncio, L. (1994). Masculino e Feminino: A Construção Social da Diferença. Porto: Edições Afrontamento.
Ambrish, D. (2014). Entrepreneurial development: An approach to economic empowerment of women. International Journal of Multidisciplinary Approach and Studies, 1(6), 224- 232.
Barnes, L. (1988). Incongruent hierarchies: daughters and younger sons as company CEO’s. Family Business Review, 1(1), 9 - 21.
Bennedsen, M. et al. (2007). Inside the Family Firm: The Role of Families in Succession Decisions and Performance. The Quarterly Journal of Economics, 122(2), 647 - 691.
Bernhoeft, R. (1991). Empresa familiar: Sucessão profissionalizada ou sobrevivência comprometida. São Paulo: Nobel.
Boas, L. H. B., Paula Neto, A., & Cramer, L. (2003). Relações de gênero nas organizações: um estudo no setor de venda de veículos. Revista de Administração da USP, 38(3), 219-229.
Bourdieu, P. (2012). A dominação masculina. 11 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
Bryson, V. (2007). Gender and the Politics of Time: Feminist Theory and Contemporary Debates. Bristol: Policy Press.
Cadieux, L., Lorrain, J., & Hugron, P. (2002). Succession in Women-Owned Family Businesses: A Case Study. Family Business Review, 15(1), 17-30.
Castells, M. (1999). O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra.
Catalyst. (2019). Women CEOs of the S&P 500. Recuperado de Recuperado de https://www.catalyst.org/research/women-ceos-of-the-sp-500, Acessado em 30 dezembro, 2019
Cavazotte, F. S. C. N., Oliveira, L. B., & Miranda, L. C. (2010). Desigualdade de gênero no trabalho: Reflexos nas atitudes das mulheres e na sua intenção de deixar a empresa. Revista de Administração da USP, 45(1), 70-83.
Chua, J., Chrisman, J., & Steier, L. (2003). Extending the Theoretical Horizons of Family Business Research. Entrepreneurship Theory and Practice, 27(3), 331-338.
Claessens, S., Fan, J. P. H., & Lang, L. H. P. (2000). The Separation of Ownership and Control in East Asian Corporations. Journal of Financial Economics, 58, 81-112.
Cole, P. (1997). Women in family business. Family Business Review, 10(4), 353 - 371.
Conway, S. F. et al. (2016). Cease agricultural activity forever? Underestimating the importance of symbolic capital. J. Rural Stud., 44, 164 - 176.
Cromie, S., & Sullivan, S. (1999). Women as managers in family firms. Women in Management Review, 14(3), 76 - 88.
Dias, A. C., & Lopes, R. C. (2003). Representações de maternidade de mães jovens e suas mães. Psicologia em Estudo, 8, 63-73.
Dumas, C. (1998). Women’s pathways to participation and leadership in the family-owned firm. Family Business Review, 11(3), 219 - 228.
Élvarez, E., Sintas, J., & Gonzalvo, P. (2002). Socialization patterns of successors in first to second generation of family businesses. Family Business Review, 15(3), 189 - 203.
Estol, K. M. F., & Ferreira, M. C. (2006). O Processo Sucessório e a Cultura Organizacional em uma Empresa Familiar Brasileira. RAC, 10(4), 93 - 110.
Exame. (2019). Empresas familiares assumem liderança de mercado. Recuperado de Recuperado de https://exame.abril.com.br/negocios/dino/empresas-familiares-assumem-lideranca-de-mercado/. Acessado em 30 dezembro, 2020
Félix, E. G. S., & David, D. S. T. (2019). Performance of family-owned firms: the impact of gender at the management level. Journal of Family Business Management, 9(2), 228-250.
Figueira, S. (1987). O “moderno” e o “arcaico” na nova família brasileira: notas sobre a dimensão invisível do social. In: Figueira, S. (Org.). Uma nova família. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 11-30.
Flören, R. H. (1998). The Significance of family business in the Netherlands. Family Business Review, 11(2), 121-178.
Foucault, M. (1988). História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal.
Garcia, M. L. T., & Tassara, E. T. O. (2003). Problemas no casamento: uma análise qualitativa. Estudos de Psicologia, 8(1), 127-133.
Giddens, A. (2004). Sociologia. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Gonçalves, J. S. R. C. (2000). As Empresas Familiares no Brasil. RAE Light, 7(1), 7-12.
Gilding, M. (2000). Family business and family change: individual autonomy, democratization, and the new family business institutions. Family Business Review, 12(3), 239-249.
Grzybovski, D., Boscarin, R., & Migott, A. (2002). Estilo feminino de gestão em empresas familiares gaúchas. RAC, 6(2), 185-207.
Haberman, H., & Danes, S. M. (2007). Father-daughter and father-son family business management transfer comparison: family Firo model application. Family Business Review, 20(2), 163-184.
Hatch, M. J., & Cunliffe, A. L. (2006). Organization theory. New York: Oxford University Press.
Heikkinen, S., Lämsä, A. M., & Hiillos, M. (2014). Narratives by women managers about spousal support for their careers. Scandinavian Journal of Management, 30(1), 27-39.
Hollander, B. S., & Bukowitz, W. R. (1990). Women, Family Culture, and Family Business. Family Business Review, 3(2), 139-151.
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2018). Estatísticas de Gênero - Indicadores sociais das mulheres no Brasil. Estudos e Pesquisas, Informação Demográfica e Socioeconômica, 38. Recuperado de Recuperado de https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101551_informativo.pdf. Acessado em 30 julho, 2018.
Kalberg, S. (1980). Max Weber’s types of rationality: comerstones for the analysis of racionalization process in history. American Journal of Sociology, 85(5), 1145-1179.
Kubíček, A., & Machek, O. (2019). Gender‑related factors in family business succession: a systematic literature review. Review of Managerial Science, 13, 963-1002.
Lavinas, L. (1996). Aumentando a competitividade das mulheres no mercado de trabalho. Revista Estudos Feministas, 4(1), 171-182.
Leach, P. (1998). Guia da empresa familiar. Rio de Janeiro: Xenon.
Leach, P., & Bogod, T. (2006). Claves de la empresa familiar. Madrid: Instituto de Estudios Económicos.
Lodi, J. B. (1999). Fusões e aquisições: o cenário brasileiro. Rio de Janeiro: Campus.
Macedo, K. et al. (2004). O processo sucessório em organizações familiares e a exclusão da mulher. Psicologia & Sociedade, 16(3), 69-81.
Machado, H. P. V. (2005). Reflexões Sobre Concepções de Família e Empresas Familiares. Psicologia em Estudo, 10(2), 317-323.
Machado, H. P. V. (2003). Sucessão familiar e gênero: implicações para estudos sobre empresas familiares. Anais do Encontro de Estudos sobre Empreendedorismo e Gestão de Pequenas Empresas, Brasília, DF, Brasil, 3.
Machado, R. M. C., Wetzel, U., & Rodrigues, M. E. (2008). A experiência de sucessão para herdeiras de empresas familiares do Rio de Janeiro. Cadernos Ebape. Br, 6(3), 1 - 24.
Menéndez, M., Fagan, C., & Ansón, S. (2012). Introduction, in Fagan, C., Menéndez, M. & Ansón, S. (Eds.), Women on Corporate Boards and in Top Management. New York: European Trends and Policy, 1-17.
Molinier, P. (2003). Sujeito e subjetividade: questões metodológicas em psicodinâmica do trabalho. Rev. Ter. Ocup, 14(1), 43 - 7.
Munhoz, G. de S. (2000, outubro). Quais as contribuições que o estilo feminino de liderança traz para as organizações empreendedoras? Anais do Encontro de Estudos sobre Empreendedorismo e Gestão de Pequenas Empresas, Maringá, PR, Brasil, 1.
Peiser, R. B., & Wooten, L. M. (1983). Life-cycle changes in small family business. Business Horizons, 26(3), 56-65.
Pounder, P. (2015). Family business insights: an overview of the literature. Journal of Family Business Management, 5(1),116-127.
Proni, T. T. R. W., & Proni, M. W. (2018). Discriminação de gênero em grandes empresas no Brasil. Revista Estudos Feministas, 26(1), 1 - 21.
Rodríguez‐Ariza, L., et al. (2017). The role of female directors in promoting CSR practices: an international comparison between family and non‐family businesses. Business Ethics: A European Review, 26(2), 162-174.
Scavone, L. (2001). Maternidade: transformações na família e nas relações de gênero. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, 5(8), 47-59.
Scott, J. W. (1995). Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, 20(2), 71-99.
Souza, E. M., Corvino, M. M. F., & Lopes, B. C. (2013). Uma Análise dos Estudos sobre o Feminino e as Mulheres na Área de Administração: A Produção Científica Brasileira entre 2000 A 2010. Organizações & Sociedade, 20(67), 603 - 621.
Teixeira, Z. (2005). As mulheres e o mercado de trabalho. Universia: Portal de Educação para Estudantes Universitários. Recuperado de Recuperado de http://www.universia.com.br/. Acessado em 25 julho, 2018.
Tillmann, C., & Grzybovski, D. (2005). Sucessão de dirigentes na empresa familiar: estratégias observadas na família empresária. Organizações & Sociedade, 12(32), 45-61.
Torres, A. (2000). A individualização no feminino, o casamento e o amor. In: Peixoto, C., Singly, F., & Cicchelli, V. (Orgs.). Família e individualização. Rio de Janeiro: FGV, 135-156.
UNESCO. (2015). Literacy statistics metadata information table. Montreal, Quebec, Canada: UNESCO Institute for Statistics.
Vidigal, A. C. (2000). A sobrevivência da empresa familiar no Brasil. Revista de Administração, 35(2), 66-71.
Wall, K., Aboim, S., & Cunha, V. (2010). A Vida Familiar no Masculino: Negociando Velhas e Novas Masculinidades. Lisboa: Editorial do Ministério da Educação.