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Trauma organizacional em tempos de Covid-19: contribuições para a gestão de pessoas
Organizational trauma in Covid-19 times: contributions to people management
Revista Administração em Diálogo, vol. 23, núm. 2, pp. 97-107, 2021
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Artigo


Recepção: 05 Agosto 2020

Aprovação: 15 Dezembro 2020

DOI: https://doi.org/10.23925/2178-0080.2021v23i2.49998

Resumo: Organizações podem ser confrontadas com situações traumáticas, causando impactos em suas operações, processos e coletivo de trabalhadores. Neste momento, passam a funcionar de modo adoecido, não conseguindo executar suas funções como antes, podendo, se tornar não efetivas no seu fazer ou até perigosas para sua clientela e/ou a saúde de seus trabalhadores. Por este motivo, o presente estudo apresenta o conceito de Trauma Organizacional em organizações de saúde que atuaram na chamada “linha de frente” da COVID-19, a partir da realidade brasileira, e as contribuições possíveis para a área de Gestão de Pessoas. Para tanto, procura sustentação a partir do construcionismo social, apresentando ferramentas de identificação do TO, visando mediações possíveis para a área de Gestão de Pessoas.

Palavras-chave: Trauma Organizacional, Gestão de Pessoas, COVID-19, Construcionismo Social.

Abstract: Organizations can face traumatic situations, causing impacts on their operations, processes, and collective of workers. At this moment, they start to work in a sick way, failing to perform their functions as before and may become ineffective in their work or even dangerous for their clients and/or the health of their workers. For this reason, the present study presents the concept of Organizational Trauma in health organizations that acted on the so-called “front line” of COVID-19, based on the Brazilian reality and the possible contributions to Human Resources. To do so, it seeks support from social constructionism, presenting TO identification tools, aiming at possible mediations for the Human Resources.

Keywords: Organizational Trauma, Human Resources, COVID-19, Social Constructionism.

Introdução

Em 11 de março, a Organização Mundial de Saúde (OMS), declarou que o Corona Virus Disease (COVID-19) era uma grave doença infecciosa que iria se espalhar entre a população ao redor do mundo simultaneamente e rapidamente, o que lhe deu o patamar de pandemia. Esta enfermidade, chamada também de Sars-Cov2, COVID-19 ou Coronavírus, avançou rapidamente entre todos os continentes, em diferentes culturas e nacionalidades, impondo necessidades de contenção e isolamento de comunidades. Neste percurso foi também visível o esforço de inúmeros trabalhadores para minimizar o crescimento exponencial do número de pessoas infectadas, assim como um significativo contingente para atender e cuidar aqueles com diferentes graus de adoecimento.

Com o passar do tempo a enfermidade foi progressivamente sobrecarregando os sistemas de saúde, tendo em vista a demanda de novos pacientes, substancialmente superior à capacidade de atendimento habitual. Neste cenário, governos, organizações privadas, profissionais de diferentes especialidades, estudiosos e um conjunto de pessoas interessadas em contribuir na assistência, segurança e provimento de recursos, passaram a compor uma rede de trabalho e colaboração para o cuidado dos enfermos e redução da velocidade de difusão da doença (Cruz et al., 2020). Contudo, mesmo considerando os inúmeros esforços, o que foi vivenciado em uma chamada primeira fase da pandemia, nos 100 primeiros dias da doença no Brasil, o país ultrapassou nesta ocasião os 57.070 mortos sem enxergar o pico da doença (Ministério da Saúde, 2020). É importante dizer que na maioria dos países o ponto mais alto da curva de óbitos chegou aos 40 e 50 dias depois do início da pandemia (Alves, 2020).

Tão inquietante quanto este cenário é o fato de que as políticas e ações de prevenção da contaminação e de redução de danos não conseguiram alcançar todos os públicos e localidades e, igualmente, aos profissionais de saúde e as organizações que atuaram na linha de frente do atendimento à população. Este fato é comprovado quanto observamos os números de profissionais da saúde contagiados que, em junho de 2020, fazia do Brasil o “campeão” mundial em mortes de profissionais de saúde devido a COVID-19. Segundo a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) dialogando com os dados do Sindicato dos Médicos de São Paulo (SIMESP) e do Conselho Federal de Enfermagem (COFEN), até o dia 17 de junho de 2020, 139 médicos e 190 enfermeiros morreram no País por COVID-19 (Associação Brasileira de Saúde Coletiva, 2020). Aqui é importante dizer, que os números de óbitos podem ser ainda maiores, já que é difícil o acesso a dados fidedignos, dada a subnotificação.

Assim sendo, a COVID-19 se configura como uma enfermidade que traz uma crise humanitária significativa, já que tanto a doença em si, quanto as medidas de contenção, geram efeitos graves e persistentes de ordem socioeconômica (Rede CoVida, 2020). Embora a evolução da pandemia ainda esteja em pleno curso, a expectativa é que as desigualdades sociais sejam intensificadas, fazendo com que os trabalhadores da chamada “linha de frente” sejam o alvo prioritário da atenção no controle e disseminação da doença, além de eixo articulador das políticas públicas de proteção social e à saúde (International Labour Organization, 2020).

Mediante este cenário, não é de se espantar que as políticas e ações governamentais e organizacionais tenham se dedicado nestes primeiros “100 dias” de COVID-19 no Brasil, essencialmente às possibilidades de contenção e mitigação dos efeitos biológicos e letais da doença (Brooks et al., 2020), além da tentativa de enfrentamento das questões de ordem econômica, deixando de lado (ou no melhor dos cenários em segundo plano) o enfrentamento das inúmeras sequelas na saúde mental das pessoas. Assim, temos vivido em uma situação de crise e emergência em âmbito mundial, com reflexos sociais, econômicos e na saúde física e psíquica das populações, especialmente as mais vulneráveis.

Entre os profissionais expostos diretamente aos riscos de contaminação, especialmente aqueles que atuam em hospitais e postos de saúde, há registros de exaustão, redução da empatia, ansiedade, irritabilidade, insônia e decaimento de funções cognitivas e do desempenho (International Labour Organization, 2020; Rubin & Wessely, 2020; The Lancet, 2020). Também é importante dizer que em situações de quarentena impostas no passado, foram ainda mapeados aumento da violência social, casos de suicídio, além da manifestação de sintomas de estresse agudo, poucos dias após a implementação da quarentena (The Lancet, 2020). No curto período de tempo em que a pandemia se expandiu, ocorreu aumento da prevalência de Transtornos Mentais Comuns (TMC), como a fadiga e a agressividade, estresse agudo, episódios de pânico, a manifestação de estresse pós-traumático (TEPT), depressão e ansiedade, na população geral e nos profissionais (Chen et al., 2020; Liu et al., 2020).

Buscando avançar na discussão sobre o sofrimento individual que a pandemia possa ter causado, instigou-nos a possibilidade de olhar por um outro ângulo ainda pouco explorado pelas ciências: para as organizações que possam ter adoecido, com seus trabalhadores, processos e fluxos de trabalho, gerando disfunções no seu fazer.

Sobre o Trauma Organizacional

As discussões sobre Trauma Organizacional (TO) trazem significativa contribuição para o contexto vivenciado pelas organizações de saúde, que atuaram na linha de frente do atendimento de pessoas contagiadas, de uma forma muitas vezes difundida como precária e beirando a lotação dos leitos (ou com a lotação efetiva).

A literatura sobre trauma organizacional apareceu no início dos anos 90 com os trabalhos de Stein (1991), Brown (1997) e Kahn (2003) recebendo importantes e recentes contribuições de Gantt e Hopper (2008) e Alonso Peña et al., (2017) . Das diferentes definições adotadas a de Gantt e Hopper (2008) parecem auxiliar nesta compreensão, ao enumerarem quatro tipos de TO:

  • O grupo pode ficar traumatizado por uma falha administrativa ou qualquer outra grave violação causando perda de segurança para os membros do grupo.

  • O grupo que teve uma experiência traumática pode regredir para uma fase anterior do ciclo de maturidade, tornando-se um grupo inseguro, receoso e desconfiado.

  • Os membros de um grupo compartilham uma história específica para certos tipos de traumas psicológicos.

  • Pode-se ainda existir processos de equivalência, onde novos eventos e processos traumáticos são importados pelas vítimas e pelo grupo e, em seguida, passam a ser adotados por estes.

De acordo com Guiho-Bailly e Guillet (2005), uma experiência potencialmente traumatizante é geralmente considerada um evento que afeta pessoas que são confrontadas com situações repentinas e potencialmente ameaçadoras, fisicamente ou emocionalmente. Tem-se aqui os acidentes graves, catástrofes naturais, violências. Ainda que esta seja uma abordagem clássica do trauma, centrada no indivíduo, comumente adotada na literatura, é importante trazê-la para o debate, já que inspira o olhar para além das estruturas organizacionais, ao focalizar os trabalhadores envolvidos. No entanto, o ponto em que se avança na discussão, e é apresentado por diferentes autores (Alonso Peña et al., 2017; Brown & Brown, 1999; Kahn, 2003), é que as organizações, assim como os indivíduos, também podem ser confrontadas com trauma.

Quando uma organização vivencia uma situação traumática, independentemente de seu porte, segmento de atuação ou tempo de existência, elas passam a funcionar de modo adoecido, não conseguindo executar suas funções como antes, podendo assim, se tornar não efetivas no seu fazer ou até perigosas para sua população atendida e/ou perante a saúde física e psíquica de seus trabalhadores (Šešić & Stefanović, 2017). O ponto defendido pelos estudiosos sobre TO é que após eventos potencialmente traumatizantes, as organizações também podem sofrer mudanças que afetam seus princípios elementares, de tal maneira que não mais se consiga atuar como antes.

Para Alonso Peña et al. (2017) um TO acontece quando: (1) ocorre uma ruptura de uma espécie de proteção emocional da organização e, (2) os mecanismos de adaptação após a ruptura do sistema de proteção, continua quando as condições não o exigirem mais, ou seja, há a dificuldade do reestabelecimento da condição de normalidade do funcionamento organizacional. Salienta-se aqui que, para os autores, o TO é o resultado de um potencial evento traumático, envolvendo o aparecimento de distúrbios emocionais e diferentes problemas organizacionais.

Burke, (2012), ao tentar compreender o TO e suas consequências, aponta que quando uma organização sofre um evento desastroso e fora do alcance da experiência usual, causado por um ou mais indivíduos ou por situações traumáticas (TO), pode-se resultar em grave sofrimento psicológico, danos à propriedade, ferimentos ou morte a um ou mais funcionários de uma organização, assim como podem impactar outras organizações que tenham contato com a mesma.

Recentes pesquisas problematizam ainda a incidência de doenças ocupacionais em seus trabalhadores, em decorrência do TO, tal como a Síndrome de Burnout (Alonso Peña et al., 2019). Sendo assim, vê-se que além de um diagnóstico institucional, faz-se importante também visibilizar os impactos individuais que tais experiências podem desencadear.

Cabe-nos aqui dizer que, apesar das várias indicações que destacam a existência de uma organização que adoece, vítima de um trauma, e o crescente interesse neste conceito, este ainda é um reduto em construção, tendo uma literatura ainda emergente e, de certo modo, localizada fora do Brasil (Brown & Brown, 1999; Burke, 2012; Gantt & Hopper, 2018; Kahn, 2003) Esse modelo, no entanto, parece particularmente importante para o diagnóstico organizacional em Gestão de Pessoas, visando desenvolver e implementar intervenções corretivas e/ou preventivas.

Também é fundamental aqui dizer que a Gestão de Pessoas e, particularmente as práticas da psicologia organizacional e do trabalho, tem historicamente contribuído para diferentes situações complexas, ao longo dos tempos, tendo enfrentado diferentes desafios, transformado suas práticas e inovado em seu fazer, para dar conta dos novos cenários que foram progressivamente sendo apresentados. Faz-se aqui fundamental pensar o compromisso da área em contribuir para estas discussões e, primordialmente, para uma atuação que vise a transformação e a aplicabilidade de intervenções na prática, auxiliando aos sujeitos, organizações e sociedade (Bal et al., 2019).

A chegada da COVID-19, sua transformação em uma pandemia, a forma como os atendimentos transcorreram, a urgência da criação de métodos de trabalho, equipamentos e protocolos, somado as inúmeras mortes, pode ter acarretado inúmeras disfunções organizacionais, que versariam em diferentes distúrbios, paralisias, medos, tensões, angústias e outros sintomas. Nestes casos, as intervenções tradicionais em Gestão de Pessoas não teriam efeito, já que não estariam abordando o cerne da problemática (a experiência traumática em si). Tal situação pode acarretar ações não efetivas, perda de tempo, retrabalho, custos e, o que talvez seja mais perigoso, contribuir ainda mais para a disfunção organizacional.

Gestão das Organizações de Saúde na linha de frente da COVID-19

Diversas organizações da área da saúde estiveram (e estão) na linha de frente de atendimento de pessoas enfermas pela COVID-19 no Brasil: hospitais, ambulatórios, clínicas especializadas, centros de diagnósticos, entre outros. São instituições que, independentemente de seu planejamento estratégico, história, missão, visão e valores, tiveram que se reinventar abruptamente no seu fazer para atender a uma demanda desconhecida, tanto em termos de volume, quanto em termos das facetas da enfermidade em si.

Como outras tantas organizações, de tantos outros segmentos, estas instituições de saúde não foram preparadas para o atendimento de uma situação extrema, tal como o número significativo de pacientes acometidos pela COVID-19, ainda que tenham de algum modo trabalhado planos de contingência para situações gerais consideradas de crise. Entretanto, a pandemia, como se apresentou ao mundo, trouxe consigo situações inéditas, tanto nos aspectos organizacionais, quanto no que diz respeito a formação e capacitação dos trabalhadores.

Mesmo com algumas ações de preparação, como montagem de hospitais de campanha, compra e fabricação de respiradores, força tarefa para o processamento de testes diagnósticos, entre outros, o que se pode ver empiricamente, exibidos cotidianamente em diversos meios de comunicação, foram as inúmeras dificuldades no gerenciamento geral dessas organizações. Profissionais de todas as áreas da saúde relatando excesso de trabalho, em razão da dificuldade das instituições em contratar trabalhadores para cargos específicos ou ainda em função do absenteísmo ou turnover, gerando quadros funcionais reduzidos. Por este motivo Mehmet, Ma, Donkor, e Gökler (2020), apontam para a necessidade de todas as áreas envolvidas em corporações da saúde em traçar uma gestão da escassez. Nesta lógica, temos a falta de equipamentos de segurança (EPI’s), de protocolos e normativas, ao lado da iminência da escolha dos pacientes que receberiam atendimento e/ou vaga na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), daqueles que retornariam para suas casas.

Por estes desafios substanciais, hospitais ao redor do mundo inovaram em seus fluxos de trabalho (Alban et al., 2020; Mehmet et al., 2020; Petrosillo, Puro, Di Caro, & Ippolito, 2005), indo para além do previsto em 2014 pela World Health Organization para os contextos de epidemia (World Health Organization, 2014). As adversidades por ocasião do surto do novo Coronavírus é que hospitais ao redor do mundo foram solicitados a aumentar sua capacidade de espaço, suprimentos, pessoas, equipamentos e assistência médica aos trabalhadores, com qualidade e rapidez, simultaneamente (Michigan Public Health News Center [MPHNC], 2020). Tais questões, impactam diretamente nas práticas de Recursos Humanos, já que cabe a área o auxílio as organizações e seus trabalhadores a buscarem soluções para a escassez, as limitações e os desconhecimentos de ordem técnica e científica perante o tratamento da enfermidade.

Por este motivo, não é de se espantar que os processos de trabalho, os suprimentos, a organização objetiva do serviço e os dilemas que são apresentados no cotidiano, tomem conta da rotina dos profissionais de gestão de pessoas, deixando em segundo plano questões venais, mas ainda distantes da literatura e das práticas rotineiras, como o Trauma Organizacional.

Assim como tantas outras áreas de uma organização a gestão de pessoas tem sido alvo de profundas mudanças, ajustes, ampliações e discussões ao longo dos tempos. Uma das suas características, como área de conhecimento e intervenção, é a sua multi e interdisciplinaridade, ao dialogar com diversos campos do conhecimento, em especial, a administração, a psicologia, a sociologia, sociologia do trabalho, antropologia, ciências econômicas, história, engenharia e estatística, construindo uma ecologia de saberes sobre o trabalho. Por este motivo, faz-se fundamental, dado os desafios que são apresentados por ocasião da COVID-19, como o Trauma Organizacional, que os profissionais envolvidos nesta área possam analisar as condições culturais, históricas e políticas que marcam a organização, dando a cada uma delas contornos e desafios próprios.

Compreensões e mediações em Gestão de Pessoas a partir do construcionismo social para atuação em TO

A proposta que aqui se apresenta, certamente não a única, não é estável e não objetiva se tornar “a verdadeira”, em preterimento a tantos outros modos de atuar. A partir de uma perspectiva construcionista visa apresentar uma forma de contribuir para o cenário que se apresenta à Gestão de Pessoas, contribuindo com um modo de costurar novas ações para o enfrentamento do Trauma Organizacional. É aqui importante dizer que se buscou a palavra “mediação” em preferência a tradicional palavra “intervenção”, já que a primeira aponta para uma lógica compartilhada, de um fazer coletivo, localizado em um tempo e espaço e que pressupõe trocas. Nesse sentido a área de gestão de pessoas se torna uma “mediadora”, assumindo um lugar de organizadora da complexidade posta.

Seguindo o construcionismo social em diálogo com a Teoria Ator-Rede (TAR) e sua ruptura da centralidade do ser humano como foco único do conhecimento. Tem-se aqui um modo de conceber o conhecimento produzido em uma articulação simétrica entre humanos e não-humanos, ou actantes, como postula Latour (2000, 2012). A opção pelo uso da palavra actante, ao invés de ator, é uma tentativa de se desvencilhar da proximidade que a palavra ator tem com os humanos e com a lógica teatral. Um actante também é considerado, em algumas obras da TAR, como aquele que ainda não possui uma figuração definida (Latour, 2012). Estes, de algum modo, mobilizam outros atores e produzem efeitos independente de sua intencionalidade (Latour, 2000, 2012; Law & Lien, 2013; Law & Mol, 2008). Assim, tanto as pessoas quanto os objetos criam realidades e estabelecem redes de conexões, constituindo-se como mediadores das associações sociais, o que abala a tradicional divisão entre ação humana e causalidade material (Law, 2001).

Temos aqui uma abordagem em acentua que as realidades são construídas, não dadas ou pré-estabelecidas, sendo desempenhadas no conjunto de relações que envolvem as ações (Law & Lien, 2013; Law & Mol, 2008). Law e Lien (2013) denominam de “ontologia empírica” o estudo da realidade que se configura a partir destas práticas heterogêneas. Assim, ontologicamente e epistemologicamente temos: a compreensão de que as realidades são múltiplas e construídas em práticas, a importância dos humanos e dos não-humanos nessa construção, a ruptura com as dicotomias interior-exterior, sujeito-objeto e mente-corpo. Nesse sentido e, seguindo o modo construcionista de compreender e atuar em organizações que possam ter vivenciado situações traumáticas, adotamos aqui como ferramentas metodológicas qualitativas para a qualificação de TO (ou não): a) análise de práticas organizacionais; b) entrevistas e c) investigação de incidentes críticos.

  • Análise de práticas organizacionais: o termo prática sugere uma ação repetitiva, periódica, habitual ou rotineira, remetendo a ideia de ação, atividade ou trabalhos específicos. Neste sentido, as práticas representariam as tradições, normas, regras e rotinas que estruturam o ambiente organizacional para o alcance dos objetivos estratégicos da organização e de seus membros (Bedani & Veiga, 2015). Propõem-se assim investigar tais práticas, por meio de documentos, protocolos, rituais, regras, treinamentos, entre outros. Para tal, a estratégia adotada versa quase que em uma lógica etnográfica (Law, 2007; Law & Lien, 2013), ou seja, a partir de observações participantes, conversas (que podem acontecer no local de trabalho, de modo espontâneo ou intencional) e no exame de documentos diversos. Essa estratégia procura levar em consideração diferentes atores, instrumentos, instituições, ambientes e seus entornos. É importante que este mapeamento leve em consideração o “antes” e o “depois” das vivências possivelmente traumáticas vivenciadas pela organização.

  • Entrevistas: Destaca-se aqui que a entrevista não é uma “colheita” de informações, como se pudéssemos ir a campo e buscar respostas prontas e acabadas, sem a participação ativa de quem entrevista. Compreende-se que entrevistas são coproduções, entre quem entrevista e quem é entrevistado, sendo envolvida por uma negociação de sentidos por todo o seu curso (Spink, 1999). Neste sentido, para responder às perguntas feitas, o participante recorre às informações construídas durante suas experiências que circulam em seu cotidiano, podendo, no decorrer da entrevista, ser agrupadas, questionadas, ratificadas, categorizadas e/ou ressignificadas.

  • Incidentes críticos: Os incidentes críticos são experiências intensas que, por mais dolorosas que possam ser, fornecem um posto privilegiado de observação e análise, que conduz por entre o emaranhado de contestações, articulações, significações e posicionamentos que o grupo pode, ou não, assumir perante ocorrências extremas. Trata-se de um recurso indicado, quando se pretende fazer uma análise profunda que mobilizou visivelmente o grupo, como o volume de pacientes buscando o serviço de saúde, lutos coletivos, falta de infraestrutura, entre outros. A área de gestão de pessoas realiza constantemente e intuitivamente diagnósticos sobre os momentos críticos da instituição, compondo análises, tendências e panoramas. Contudo, propõe-se com o uso dos incidentes críticos, a tentativa de localizar as situações que podem ter sido traumáticas para o grupo, significando ainda amarrar e desamarrar as relações estabelecidas no entorno desse evento (considerando o antes, o durante e o depois), os diferentes atores presentes (humanos e não-humanos), os argumentos expostos (quem falou o que e para quem), e os efeitos (o turnover, o absenteísmo, o acidente de trabalho, os erros, o conflito). Pode-se inclusive contar com o uso de materiais e documentos que dialoguem com a situação exposta.

A opção pela escolha do método, da ferramenta, do momento, de com quem devo aplicar o quê, deve se debruçar sobre as realidades vivenciadas pela equipe e instituições. Deve levar em consideração o fluxo dos acontecimentos e seus diferentes atores sociais envolvidos, assim como as possibilidades que se tem ou não se tem (orçamentos, tempo, espaços, etc.). Há também de se buscar não cair na armadilha dos inúmeros diagnósticos, mapas, tendências e análises, sem, contudo, conseguir atuar sobre eles.

É importante que se tenha clareza do referencial teórico-metodológico escolhido, que será o balizador das leituras, mediações e expectativas de resultados das atuações posteriores. Uma prática sem referencial teórico-metodológico é um barco à deriva. Ainda que estejamos nesse momento tecendo contribuições em um campo em intensa construção, tensão e produção, é importante contar com um aporte, ainda que parcial e provisório, sobre as escolhas e os caminhos que se pretende percorrer (aspectos ontológicos, epistemológicos e metodológicos).

Considerações Finais

A discussão sobre trauma organizacional é, de certa forma, recente, e localiza-se sobretudo fora do Brasil. Também faltam perspectivas teóricas que suportem estudos aprofundados e empíricos, tanto de ordem quantitativa, quanto de ordem qualitativa. Essa constatação sugere uma lacuna de estudo e a necessidade de investigação em diferentes organizações, sobretudo aquelas expostas a situações altamente estressantes e adoecedoras.

Espera-se que o presente artigo forneça um panorama conceitual para inspirar e engajar mediações em Gestão de Pessoas que resultem em melhorias e redução dos impactos do TO para as organizações, sua clientela e seus trabalhadores. Assim, este artigo pretendeu visibilizar que as experiências traumáticas podem vincular-se a uma dimensão organizacional, rompendo com a tradicional visão individualista e personalista sobre o trauma.

Para esse debate buscou-se as organizações de saúde da chamada “linha de frente” na atuação da COVID-19 no Brasil, apresentando seus dilemas, dificuldades e limitações. Estes locais foram obrigados abruptamente a repensar seus espaços, circuitos, protocolos, procedimentos, equipamentos de proteção individual, integração de novos trabalhadores na equipe, entre outros, atuando em situações muitas vezes dilemáticas e sem o suporte e conhecimento necessário. Tais vivências podem ter desencadeado experiências traumáticas, motivo pelo qual este artigo se propôs a apresentar ferramentas qualitativas para a identificação do TO à luz do construcionismo social. Nesse percurso se salientou também a necessidade de romper com a lógica dos inúmeros diagnósticos, mapas e análises, tão presentes em Gestão de Pessoas e na administração de um modo geral, mas que não se comprometem com a transformação do ambiente organizacional.

Por fim, almeja-se que novas pesquisas venham incorporar este campo de estudos, visando auxiliar as organizações e seus trabalhadores para, assim, contribuir com os seus serviços prestados.

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