Artigo

Tipologias de empreendedores acadêmicos e limites e possibilidades da integração com empresas e o Estado

Typologies of academic entrepreneurs and limits and possibilities of integration with companies and the State

Celso Fraga da Silva
Universidade Federal Fluminense, Brazil
Américo da Costa Ramos
Universidade Federal Fluminense, Brazil
Thiago Borges Renault
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Brazil
Marcus Vinícius de Araújo Fonseca
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brazil
Sérgio Yates
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brazil

Tipologias de empreendedores acadêmicos e limites e possibilidades da integração com empresas e o Estado

Revista Administração em Diálogo, vol. 23, núm. 2, pp. 121-140, 2021

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Recepção: 28 Setembro 2020

Aprovação: 04 Janeiro 2021

Resumo: Este artigo objetiva explorar perspectivas alternativas de tipologias de empreendedorismo acadêmico. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de caráter exploratório, com orientação fenomenológica e hermenêutica e com utilização da técnica amostral bola de neve para recrutamento dos entrevistados. Os sujeitos da pesquisa foram constituídos por 15 acadêmicos de duas universidades públicas do estado do Rio de Janeiro, que, de alguma forma, exerceram ou tentaram exercer atividades de empreendedorismo acadêmico e/ou se autodeclaram empreendedores de acordo com suas representações cognitivas do fenômeno. Optou-se pela utilização de entrevistas semiestruturadas conversacionais em profundidade, como a técnica de coleta de dados. As conclusões da pesquisa dão algumas pistas sobre os caminhos plurais do processo de produção, difusão e comercialização do conhecimento.

Palavras-chave: Empreendedorismo Acadêmico, Abordagem Triple Helix, Novo Marco Legal da CT&I.

Abstract: This paper aims to explore alternative perspectives on academic entrepreneurship typologies. This study consists of qualitative research of exploratory character-oriented phenomenology and hermeneutics and applies the snowball sampling technique for recruiting the interviewees. The subjects of this research consisted of 15 scholars from two public universities in Rio de Janeiro. They somehow perform or have tried to perform academic entrepreneurship activities and/or self-identify as entrepreneurs, according to their cognitive representations of the phenomenon. We opted for carrying out in-depth conversational semistructured interviews as a data collection technique. The conclusions of this research provide some clues regarding the plural ways in the process of production, diffusion, and commercialization of knowledge.

Keywords: Academic entrepreneurship, Triple Helix Approach, New Legal Landmark of ST&I.

Introdução

O empreendedorismo acadêmico na universidade brasileira tem sido um fenômeno bastante discutido na contemporaneidade. As representações cognitivas sobre a importância da pesquisa básica e da pesquisa aplicada tendem a moldar a visão dos cientistas acadêmicos sobre esse assunto. A percepção que esses têm sobre o fenômeno pode ser a chave para a compreensão de como esses cientistas se relacionam com diferentes modos de produção, difusão e comercialização do conhecimento.

O empreendedorismo acadêmico está ligado às iniciativas de capitalização do conhecimento e transferência de tecnologia semelhantes às que ocorreram em universidades empreendedoras americanas. Na década de 1980, os EUA promulgaram o “Bayh-Doyle Act”, lei que permitiu uma maior aproximação entre a universidade e a indústria, estimulando a transferência de tecnologia da universidade para o setor privado, modificando o comportamento científico e ampliando o empreendedorismo acadêmico nas universidades americanas (Aldridge & Audretsch, 2017). Após a promulgação dessa lei, foram regulamentadas práticas informais que existiam entre universidades, empresas e governos locais, realizadas por escritórios universitários, que colaboravam na transferência de tecnologia para o setor produtivo industrial americano (Etzkowitz, 2009; Hayter, Nelson, Zayed & O’Connor, 2018).

A discussão sobre o fenômeno do empreendedorismo acadêmico e da produção, difusão e comercialização do conhecimento não é inédita. Inicialmente, tais fenômenos foram debatidos como capitalismo acadêmico por Slaughter e Leslie (1997), cuja temática da pesquisa refere-se ao fenômeno do uso do capital humano nas universidades para angariar receitas em virtude da redução de investimentos pelo Estado, à tentativa de obtenção de recursos pelas universidades por meio de patentes e licenciamento de tecnologias, e à criação de startups e serviços de consultoria.

Todavia, uma renovação no debate é oportuna em razão da recente influência de uma política pública científica, tecnológica e industrial - o Novo Marco Legal da CT&I no Brasil, estabelecido pela Lei nº 13.243/2016 e regulamentado pelo Decreto nº 9.283/2018, que potencializou as parcerias entre universidades, empresas e governos locais induzindo o empreendedorismo acadêmico.

A lei brasileira se inspirou na legislação francesa sobre inovação (Loi n. 99-587 du 12 juillet 1999 sur l'innovation et la recherche) na sua concepção. Essa incentivou a mobilidade de pesquisadores em direção à indústria, a cooperação entre universidades, institutos de pesquisas e laboratórios do setor público com a indústria e forneceu incentivos fiscais para empresas inovadoras (Dudziak, 2007; Kruglianskas & Matias-Pereira, 2005). A abordagem Triple Helix (TH), que tende a ser um modelo analítico utilizado para descrever a dinâmica dentro de sistemas de inovação de modo a construir uma aliança prática entre universidades, indústrias e governo (Etzkowitz, 2009); também teve impacto na nova legislação.

Este artigo busca apresentar uma discussão contemporânea, esclarecendo lacunas e despertando reflexões, sobre tipologias de empreendedorismo acadêmico e a percepção de cientistas empreendedores sobre a interação universidade, empresa e governo. Esses são temas relevantes que merecem uma ampliação no debate nos cursos de gestão e empreendedorismo nas universidades brasileiras.

Problema de pesquisa e objetivos

Este é um artigo teórico-empírico, fruto de uma pesquisa mais ampla, com uma abordagem exploratória, qualitativa, fenomenológica e hermenêutica, em que foram coletadas, por meio de longas entrevistas conversacionais, descrições em profundidade e representativas das falas dos entrevistados sobre empreendedorismo acadêmico, relação universidade-empresa -governo e o Novo Marco Legal de CT&I.

A abordagem investigativa fenomenológica, de acordo com Lewin e Somekh (2017), é o estudo de fenômenos humanos vivenciados dentro dos contextos sociais do cotidiano em que eles ocorrem e do ponto de vista das pessoas que os vivenciam. As abordagens fenomenológica e hermenêutica filiam-se ao paradigma interpretativista de investigação científica (Burrell & Morgan,1979). A pesquisa guiou-se pelas seguintes questões norteadoras com o propósito de compreender, de maneira mais profunda, a percepção de cientistas acadêmicos empreendedores - que são pesquisadores que circulam nas diferentes esferas institucionais das universidades, empresas e governos locais, tentando criar empreendimentos e influenciando negócios públicos e privados.

Portanto, como objetivo geral, o presente artigo visa realizar uma análise sobre tipologias de empreendedorismo acadêmico e as percepções de cientistas empreendedores acadêmicos sobre as novas tendências e regramentos que estão influenciando a universidade brasileira.

Como objetivos específicos se procura: (a) identificar e descrever tipologias de empreendedorismo acadêmico relevantes encontradas na revisão da literatura; (b) descrever como ocorre a relação entre pesquisadores acadêmicos entrevistados e a tríade universidade, governo e empresa; (c) descrever como ocorre a relação entre pesquisadores acadêmicos entrevistados e o novo Marco Legal da CT&I; e (d) relacionar as tipologias de empreendedorismo acadêmico com os relatos dos pesquisadores acadêmicos entrevistados.

A partir desta introdução, apresenta-se, a seguir, a estrutura do artigo com a disposição de suas seções. Logo após, na fundamentação teórica, realiza-se uma revisão da literatura sobre tipologias de empreendedores acadêmicos, com estudos que explicitam tipologias complementares, com vistas a consubstanciar a discussão e a análise dos resultados. Em seguida, apresenta-se o caminho metodológico escolhido para pesquisa. Posteriormente, realiza-se a análise das entrevistas com enfoque na subdivisão dos grupos de indivíduos estudados. A última seção, tece considerações finais sobre o fenômeno estudado.

Fundamentação teórica

Tipologias de empreendedorismo acadêmico

O caminho trilhado neste trabalho procura situar o empreendedor acadêmico como o elo entre a universidade, a indústria e o governo, uma interpenetração institucional e organizacional que vem se consolidando desde o último quartil do século XX.

A literatura sobre a abordagem TH lançou uma nova luz sobre a compreensão dos papéis e as relações dos diferentes atores no desenvolvimento local na produção de inovação. Essa abordagem descreve a circulação desses atores ao redor dos elementos da abordagem TH, através da metáfora de uma porta giratória, isto é, o fluxo de indivíduos que podem introduzir ideias de uma esfera para a outra: a) de forma bidirecional, na interface universidade-indústria, com acadêmicos conciliando atividades na indústria e na universidade ao mesmo tempo; e b) de forma alternada, com acadêmicos intercalando períodos sucessivos em uma única esfera (Etzkowitz, 2009).

Esses atores, segundo Etzkowitz (2009, p.78), são denominados indivíduos de vida dupla - acadêmicos que dominam o lado técnico e gerencial de um negócio, atuando num movimento constante em duas direções, exercendo papéis técnicos e empresariais ao mesmo tempo. Etzkowitz (2009) acredita que o indivíduo de vida dupla pode infundir novas ideias, oriundas da prática industrial, sobre pesquisas nas universidades, e afirma que a cooperação entre atores governamentais, industriais e acadêmicos pode ampliar a formação de empresas inovadoras.

Nas próximas seções, apresenta-se uma discussão oriunda de pesquisas que demonstram como cientistas acadêmicos operam em arenas interseccionais e lidam com o fenômeno do empreendedorismo acadêmico atuando de forma híbrida.

Cientistas empreendedores: acadêmicos, pioneiros e Janus

Os resultados de um estudo sobre a categoria cientista-empreendedor, organizado por Shinn e Lamy (2006), assinalam que certos pesquisadores ligados ao Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e às universidades, que tentaram estabelecer uma empresa e ao mesmo tempo manterem suas posições acadêmicas, podem ser divididos em três categorias: empreendedores, acadêmicos e Janus.

Segundo Shinn e Lamy (2006), o perfil cientista-acadêmico está relacionado fortemente com a universidade e a pesquisa básica. Os autores constataram que nesse perfil, a atividade empresarial era proporcional à adequação dos interesses acadêmicos dos cientistas, privilegiando a pesquisa fundamental e as publicações. Essa categoria de cientista privilegiava mais o valor científico de suas realizações do que o valor econômico, isto é, a importância de qualquer projeto econômico era determinada pelo mérito e pelo reconhecimento profissional que a pesquisa podia proporcionar entre os pares, reforçando suas reputações. Além disso, pela possibilidade de obtenção de recursos materiais, humanos e de capital de risco externo, para alavancar a pesquisa fundamental; recursos que não conseguiriam obter através da universidade ou de financiamento público.

Shinn e Lamy (2006), ainda relatam que o perfil cientista-empreendedor pioneiro é simetricamente oposto ao perfil acadêmico. Entretanto, os pioneiros não realizam a integração universidade/empresa. De acordo com os autores, esses são experimentadores que correm riscos em busca de vantagens econômicas. Em razão destes fatores, as escolhas de pesquisa são estabelecidas pelos imperativos do mercado.

Para Shinn e Lamy (2006), a visão empresarial e financeira da ciência adotada pelo cientista-empreendedor pioneiro falha em atingir as expectativas dos parceiros comerciais, pois esse não é, por formação, um administrador, um contador, ou um profissional de marketing. Segundo os autores, os pioneiros não são empreendedores autênticos, haja vista que não possuem o instinto empreendedor, desconhecendo o ethos e o habitus do campo empresarial.

Conforme destacam Shinn e Lamy (2006), a categoria Janus é a que sofre menos tensões na relação entre empresa e academia. O nome Janus se refere à divindade romana que olha em direções opostas. Janus era a divindade guardiã das portas do céu, geralmente apresentado com duas cabeças, pois todas as portas se voltavam para dois lados (Bulfinch, 2001). O grupo é representado dessa forma, pois se volta, em um momento, para a academia, e, em outro momento, para a empresa, de modo sequencial, intermitente e seletivo, cruzando as fronteiras em um movimento pendular. Esses cientistas acreditam que é impossível ser cientista e empreendedor ao mesmo tempo, e que o envolvimento com os negócios pode ocupar uma fase da vida, mas não de maneira concomitante. Consequentemente, esses indivíduos alternam passagens entre a universidade e a empresa. Segundo Shinn e Lamy (2006), das categorias analisadas, o Janus é o que mais se envolve em publicações com parcerias entre universidade-empresa e em trabalhos em rede de pesquisas com empresas e outros pesquisadores.

As categorias analisadas por Shinn e Lamy (2006) contemplam três fatores: níveis de sinergia universidade-empresa, níveis de tensão universidade-empresa, e níveis de autonomia acadêmica, que categorizam a relação universidade-empresa, como se observa na Figura 1.

Modos de coordenação e perfis de cientistas empreendedores. Fonte: De “Paths of commercial knowledge: Forms and consequences of university-enterprise synergy in scientist-sponsored firms” deT. Shin e E. Lamy, 2006, Research policy, 35(10), p. 1474.
Figura 1
Modos de coordenação e perfis de cientistas empreendedores. Fonte: De “Paths of commercial knowledge: Forms and consequences of university-enterprise synergy in scientist-sponsored firms” deT. Shin e E. Lamy, 2006, Research policy, 35(10), p. 1474.

No estudo realizado, Shinn e Lamy (2006) esclarecem que a sinergia se refere a benefícios recíprocos advindos das diferentes interações universidade-empresa. A tensão refere-se ao equilíbrio do atendimento da satisfação das expectativas dos parceiros comerciais em contraponto com os valores científicos e acadêmicos. A autonomia, por sua vez, refere-se ao posicionamento na base de um sistema regulado que inclui metas, recompensas, métodos de mensurar reputação e trajetórias de carreira.

Em suas análises, Shinn e Lamy (2006) mostram que as interações entre a universidade e a empresa são altamente complexas. A categoria cientista-empreendedor Janus demonstra forte sinergia entre a universidade e a empresa, um alto índice de autonomia em relação aos objetos de estudo e um baixo nível de tensão no relacionamento com empresas. Este grupo manifesta um modo de coordenação sequencial (alternando passagens entre a academia e a empresa).

O cientista-empreendedor acadêmico apresenta baixa tensão no relacionamento entre universidade e a empresa, autonomia científica elevada em relação ao campo empresarial, porém, demonstra baixa sinergia na relação universidade-empresa. Este grupo manifesta um modo de coordenação estratégico (um aparelhamento da empresa em função de interesses científicos).

A categoria denominada pioneira exibe uma sinergia fraca e uma tensão forte no relacionamento com empresas. Esse grupo desenvolve um modo imitativo de coordenação (a adaptação do cientista aos objetivos empresariais). Para Shinn e Lamy (2006), a categoria que apresentou maior eficiência em relação à interação universidade-empresa, facilitando a produção e difusão do conhecimento, foi à cientista-empreendedor Janus. Esses autores afirmam que o cientista-empreendedor Janus atua através de uma divisão de fronteira entre universidade-empresa.

Cientistas tradicionais, híbridos e empreendedores

Um estudo semelhante ao apresentado na seção anterior, que foi realizado por Lam (2010), desafia os pontos de vista predominantes sobre o surgimento de um ethos de mercado dominante e crescente na ciência acadêmica sob a influência de cientistas empreendedores. O estudo examina como os cientistas buscam proteger e negociar suas posições profissionais, identificando quatro orientações diferentes: a tradicional e a empreendedora, com dois tipos híbridos entre elas. Enquanto alguns aderem às normas tradicionais da ciência básica e resistem à invasão de práticas comerciais, outros exibem uma orientação empreendedora e participam do universo da ciência e dos negócios. De acordo com Lam (2010), conforme representado na Tabela 1, entre as duas posições polares - orientação tradicional e orientação empreendedora, a maioria dos cientistas exibe orientações "híbridas" e é particularmente hábil em mapear seus próprios espaços sociais para circular nas fronteiras difusas entre ciência e negócios.

Tabela 1
Cientistas tradicionais, híbridos e empreendedores
Cientistas tradicionais, híbridos e empreendedores
Nota. Fonte: Adaptado de “From ‘ivory tower traditionalists’ to ‘entrepreneurial scientists’? Academic scientists in fuzzy university-industry boundaries” de A. Lam, 2010, Social Studies of Science, 40(2), p. 315.

Lam (2010) relata que para os cientistas Tipo I - tradicionais, a universidade deve ser o cenário para a busca da pesquisa de base desinteressada, enquanto o trabalho aplicado deve ser feito no ambiente comercial. Segundo a autora, os cientistas do Tipo I veem as pressões para mercantilização de pesquisas como uma ameaça à autonomia científica. Lam (2010) descreve que, na tipologia apresentada, esses cientistas são caracterizados por uma crença de que a relação entre a academia e empresas devem ser distintas e buscam o sucesso principalmente na arena acadêmica. Embora possam desenvolver alguma interação com empresas, o principal motivo da interação é a busca de recursos financeiros para apoiar pesquisas acadêmicas.

Em relação aos cientistas Tipo II - tradicionais híbridos, Lam (2010) relata que esses compartilham o compromisso do paradigma tradicional de que a fronteira entre academia e empresas deve ser distinta, embora, ao mesmo tempo, reconheçam a necessidade de se engajar na colaboração entre ciência e negócios para o avanço científico. Esses cientistas mantêm uma forte identidade acadêmica. De acordo com Lam (2010), os cientistas Tipo II compartilham a visão de que o envolvimento em atividades comerciais pode ser prejudicial para a ciência acadêmica e acreditam na importância de se manter uma fronteira entre academia e empresa. No entanto, estão preparados para alterar seus programas de pesquisa para acomodar demandas industriais em uma estratégia adaptativa pragmática com o intuito de aumentar suas chances de obterem financiamento para pesquisa.

A outra posição híbrida, descrita por Lam (2010), é o Tipo III - empreendedor híbrido. Para esses cientistas, a fronteira entre a universidade e empresa é permeável e fornece um espaço aberto no qual a pesquisa básica e a pesquisa aplicada podem ser combinadas. A pesquisa de Lam (2010) assinala que os cientistas do Tipo III percebem os esforços de parceria comercial como legítimos; para muitos dos híbridos empreendedores, a comercialização do conhecimento equivale a uma extensão do seu papel científico. Para Lam (2010), o trabalho desses cientistas é complexo e inteligente. Esses cientistas negociam ativamente as fronteiras entre a ciência e negócios, e buscam mapear novos espaços para os seus trabalhos enquanto protegem sua autonomia e identidade acadêmica.

Segundo Lam (2010), os cientistas Tipo IV - empreendedores veem a fronteira entre academia e empresa como altamente permeável e flexível, e acreditam na importância fundamental da colaboração entre ciência e negócios para a aplicação de conhecimento e exploração comercial. O que também define essa categoria, para além dos outros três tipos, é a importância dos ganhos financeiros. Lam (2010) aponta que a ciência sem aplicação comercial imediata parece ter pouca importância para a maneira como esses cientistas abordam suas pesquisas.

Cientista empreendedor estatal

A ideia de cientista-empreendedor estatal remete a atores que exercem um papel ativo de liderança na esfera estatal, influenciando políticas públicas que beneficiem suas comunidades científicas. Pode-se apontar o relato de Sharif (2006), que realizou uma pesquisa com doze entrevistados - os principais atores no surgimento do conceito de Sistema Nacional de Inovação (SNI), que surgiu pela primeira vez em meados da década de 1980, no contexto de debates sobre política industrial na Europa, revelando suas afiliações institucionais e relações profissionais e intelectuais.

De acordo com Sharif (2006), o conceito de Sistema Nacional de Inovação foi construído através de manobras estratégicas de um grupo de defensores que tinham uma visão estratégica de política científica. Os principais proponentes do conceito foram atores que tinham papéis influentes tanto na academia quanto nas organizações de formulação de políticas científicas e tecnológicas na OCDE, difundindo ideias e influenciando policy makers e tomadores de decisão. Os principais atores foram Christopher Freeman, que trabalhou como consultor para a OCDE na década de 1980, elaborando o conceito de competividade estrutural, e Bengt-Åke Lundvall, que foi o Diretor Adjunto da Directorate for Science, Technology and Innovation (DSTI), na OCDE de 1992 a 1995. Sharif (2006) ainda cita outros atores cientistas-empreendedores estatais, como Keith Pavitt, Stanley Metcalfe, Richard Nelson e Nathan Rosenberg, que atravessaram fronteiras difusas, que distinguem os círculos acadêmicos e políticos, fertilizando com ideias e considerações teóricas as arenas de tomadas de decisões governamentais.

Isso significa que a política científica e tecnológica de um país acaba refletida no projeto político dos cientistas que estão ocupando a direção das instituições públicas de pesquisa e de ensino superior formulando políticas públicas para ciência e tecnologia. Portanto, para esses acadêmicos, além da busca de recursos, a atividade da ciência empreendedora envolve a formulação de estratégias de legitimação e institucionalização de sua comunidade epistêmica.

No referencial teórico acima, o tema empreendedorismo acadêmico foi desdobrado em uma discussão sobre tipologias de empreendedorismo acadêmico, dentre as quais verificou-se uma tendência a um comportamento denominado hibridismo acadêmico nos indivíduos apresentados. Reconhecer essa ambivalência pode ser importante para analisar as mudanças que estão reconfigurando as relações entre universidade, governo e empresas na procura de indivíduos que atuam nas intersecções dessas fronteiras tentando empreender.

Realizada a revisão da literatura desta investigação, na seção a seguir, descrevem-se as opções metodológicas que foram utilizadas para atingir os objetivos propostos.

Metodologia

Neste artigo escolheu-se utilizar uma metodologia qualitativa. Optou-se pela abordagem investigativa fenomenológica e hermenêutica - uma abordagem heterodoxa ao fazer científico. A fenomenologia é o estudo de fenômenos humanos vivenciados dentro dos contextos sociais do cotidiano em que eles ocorrem e do ponto de vista das pessoas que os vivenciam (Moustakas, 1994, Lewin & Somekh, 2017; Van Manen, 2016).

Moreira (2002) argumenta que a pesquisa fenomenológica é mais apropriada quando: a) existe uma necessidade de maior clareza do fenômeno selecionado; b) o fenômeno precisa ser descrito com maior profundidade; e c) o interesse é dar destaque à experiência de vida das pessoas. Além disso, Moreira (2002) argumenta que o uso do enfoque fenomenológico irá nascer de uma investigação prévia sobre o objeto de estudo e das pretensões do pesquisador quanto ao tipo de informação que mais lhe interessa.

De uma forma geral, Creswell (2014) aponta que na fenomenologia o grupo de indivíduos a ser estudado pode variar, em tamanho, geralmente entre dez e quinze entrevistados, com o procedimento de coleta de dados através de entrevistas conversacionais.

Como técnica de recrutamento utilizou-se de uma amostragem não probabilística em redes denominada técnica bola de neve ou snowball, na qual a amostra é obtida a partir do estabelecimento de algum critério de inclusão, a partir de cadeias de referências nas quais os atores participantes da pesquisa são reconhecidos pelos seus pares em decorrência de seu papel relevante para o tema proposto (Biernacki & Waldorf, 1981; Vinuto, 2016). A amostra foi construída a partir de atores-chave nomeados como sementes - primeiros indivíduos contatados com conhecimento e influência na rede de atores a ser estudada. O objetivo foi identificar atores relevantes para participarem da pesquisa.

A escolha da população da amostragem, ligada a universidades, teve como critério primordial de inclusão selecionar indivíduos envolvidos na produção e aplicação do conhecimento que percebem a junção entre academia e os negócios públicos ou privados, que já atuaram com temas semelhantes àqueles delimitados pela Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação - ENCTI 2016 - 2022 do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). Essa estratégia adotada no Brasil para ciência, tecnologia e inovação contém orientações de médio prazo para a implantação de políticas públicas na área de CT&I, como saúde, biotecnologia e áreas tecnológicas em geral.

A pesquisa centrou-se em longas entrevistas semiestruturadas de conversação, em um período de três meses com quinze pesquisadores de duas universidades públicas do estado do Rio de Janeiro que constam no ranking das vintes universidades brasileiras com melhor desempenho de produção acadêmica, colaboração com a indústria e colaboração internacional do relatório intitulado Research in Brazil. Optou-se pela realização de entrevistas semiestruturadas de conversação, pois, de acordo com Manzini (2003), durante as entrevistas podem surgir, a partir das respostas dos informantes, novas variações de questionamentos inerentes às circunstâncias da entrevista. Podendo assim corroborar com o enfoque fenomenológico.

O relatório intitulado Research in Brazil foi elaborado pela Clarivate Analytics para a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), e gerado com documentos analisados (artigos, trabalho em eventos, livros, patentes e compostos químicos) e indexados na base de dados multidisciplinar Web of Science, no período de 2011 a 2016.

Nas entrevistas, cada participante foi solicitado a responder verbalmente os questionamentos do problema da pesquisa. Quando emergiam respostas consideradas significativas para o pesquisador, algumas variações das perguntas foram realizadas. As perguntas não seguiram uma ordem rígida estabelecida, pois a entrevista conversacional proporcionou que perguntas adicionais surgissem de forma espontânea. E incluiu-se novos participantes até o ponto de saturação teórica; esse ponto foi atingido quando novos entrevistados passaram a repetir os conteúdos já obtidos em entrevistas anteriores.

A saturação teórica se obtém quando o pesquisador constrói uma grade de saturação, na qual os principais tópicos da entrevista são listados e as recorrências das informações são checadas por um ou mais pesquisadores a fim de identificar a repetição de ideias (Fontanella, Luchesi, Saidel, Ricas, Turato, & Melo, 2011).

Análise dos Resultados

Com exceção do grupo denominado Gestor, os entrevistados da Tabela 2 foram classificados pelo 1º nível da área de conhecimento da tabela CAPES. A grande área - 1º nível - é a aglomeração de diversas áreas do conhecimento.

Tabela 2
Perfil dos entrevistados
Perfil dos entrevistados
Nota: CS = Ciências da Saúde e Biológicas; G = Gestor; CET = Ciências Exatas e da Terra; E = Engenharia.

Os perfis dos entrevistados foram coletados na base de dados da Plataforma do Currículo Lattes do CNPq e validados nas entrevistas. Na tabela de identificação informou-se a graduação inicial, a titulação atual, a área de pesquisa de atuação, o tempo de formação desde a graduação e o sexo do entrevistado. No tratamento dos dados pessoais, utilizou-se a anonimização por meios técnicos razoáveis com o objetivo de evitar a possibilidade de associação direta aos respondentes da pesquisa

A amostra caracterizou-se por pesquisadores seniores com média de tempo de formação após a graduação de 33,6 anos, incidindo em pesquisadores da área tecnológica e áreas afins ligadas aos temas semelhantes àqueles delimitados pela Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação. A variedade de participantes de diferentes áreas do conhecimento permitiu fazer verificações cruzadas dos relatos em relação às temáticas suscitadas.

Estabeleceu-se uma subdivisão em grupos para que se pudesse identificar e comparar as configurações intersubjetivas das diferentes percepções dos entrevistados. Os temas das entrevistas versaram sobre os seguintes pontos: a) motivações, experiências e desafios empreendedores; b) interação entre universidade, indústria e governo; c) financiamento pelo capital público e privado; d) o Novo Marco Legal da CT&I e a universidade pública; e e) empreendedorismo acadêmico na universidade pública. O conteúdo das respostas tematizadas dos entrevistados foi sumarizado em subgrupos e descrito nas seções a seguir.

Ciências da Saúde e Biológicas

As indicações dos informantes-chave confluíram para um grupo de pesquisadores que atuam no campo de pesquisa clínica com trabalhos nas áreas de biologia molecular, bioengenharia, oncologia molecular e avaliação e controle da qualidade físico-química de fármacos, desenvolvendo pesquisas com foco em saúde, farmacologia e biotecnologia.

Neste tema, os entrevistados trouxeram à tona uma discussão sobre o tabu criado por muitos pesquisadores em relação à cooperação com empresas e na capitalização do conhecimento.

Os entrevistados ainda relataram sobre a dificuldade no processo de difusão e comercialização do conhecimento vivenciada pelos alunos da pós-graduação na universidade brasileira, de uma forma geral, e pelos profissionais da área de saúde, mais especificamente. Para os entrevistados, a morosidade da universidade pública, no processo de parcerias e estabelecimentos de contratos com empresas privadas provoca a perda de oportunidades para a criação de um empreendimento.

Na ótica dos entrevistados desse grupo, são poucos os que se arriscam em uma empreitada para transformar ideias em produtos, em razão do desconhecimento dos trâmites administrativos e dos entraves da estrutura universitária para fazer parcerias e estabelecer contratos com a iniciativa privada. Segundo os entrevistados, isto ocasiona uma relação fraca entre a universidade e as empresas. Um dos entrevistados ainda apontou que grande parte dos alunos da área de saúde não deseja empreender.

O modelo de promoção e progressão utilizado da universidade pública brasileira também foi um fator apontado por um entrevistado como entrave para o empreendedorismo acadêmico. Para ele o sistema de avaliação da promoção e progressão da carreira universitária do professor na universidade pública brasileira possui um foco na medição da produtividade do pesquisador através de publicações em revistas indexadas e revisadas por pares. Somado a isso, a dupla atuação na carreira, o dilema entre ser pesquisador e professor e às vezes coordenador, foi um fator apontado como barreira para o empreendedorismo.

Gestores

Neste grupo, os entrevistados confluíram para um grupo de pesquisadores acadêmicos que atualmente exercem cargo de gestão em posições estratégicas, seja atuando na área de gestão da inovação, na gestão de um órgão setorial da universidade, ou em órgão superior executivo na universidade.

As representações cognitivas que surgiram desse bloco de entrevistas retrataram a dificuldade encontrada no processo de integração entre a universidade e a empresa por diversos fatores e da implantação do marco legal, como relata a fala de um dos entrevistados.

Outro ponto em destaque foi o processo de construção de confiança entre empresas e universidades. Os entrevistados desse grupo apontaram que o processo de construção de parcerias entre empresas e universidades é lento e depende do acúmulo de experiências e valores compartilhados por ambas as partes. Segundo os entrevistados desse grupo, a partir do momento que parcerias são estabelecidas com laboratórios e grupos de pesquisas dentro de uma universidade, essas parcerias criam barreiras de entrada para outros grupos ou universidades. Pois, geralmente, as empresas consideram os acadêmicos demasiadamente teóricos e com pouca sensibilidade aos problemas práticos e cotidianos do universo industrial.

Ciências Exatas e da Terra

Os entrevistados dessa área fazem parte de um grupo de pesquisadores que atuam no campo de tecnologia de informação e comunicação e possuem projetos na área de comunicação de dados multimídia, com ênfase nas linhas de redes sem fio, engenharia de redes de telecomunicações, televisão digital interativa, telemedicina, sistemas de hipermídia digitais e protocolos de streaming. Esses também realizam pesquisas em sistemas de apoio à decisão, diagnóstico de doenças associadas ao envelhecimento e jogos eletrônicos como mecanismos de inclusão e melhoria da qualidade de vida.

Os entrevistados desse grupo tendem a ser mais positivos à integração entre a universidade e a empresa. Entretanto, acreditam que essa integração poderia ser mais efetiva. Nesse grupo, de forma unânime, a universidade americana aparece como um modelo a ser seguido. No modelo americano, o professor em início de carreira é avaliado pela capacidade da integração com empresas por via de financiamentos para pesquisas.

Os entrevistados ainda acreditam que está ocorrendo uma maior integração entre a universidade e a empresa em razão da entrada de docentes na universidade pública que possuem uma visão da importância dessa integração. Entretanto, os entrevistados relataram que a aproximação com empresas ainda é uma iniciativa particular do pesquisador, isto porque, geralmente, a universidade não possui uma estratégia de atração de empresas e de valorização do pesquisador.

Os entrevistados desse grupo são oriundos de cursos de pós-graduação em universidades com perfil empreendedor. Esses se envolveram em diversas atividades acadêmicas com professores e grupos de pesquisas visando à criação de startups e projetos com base na pesquisa da pós-graduação. Os respondentes também apontaram que os diversos afazeres, como tarefas concomitantes de pesquisa, ensino, extensão e coordenação, realizadas por um professor na universidade pública atrapalham suas tentativas de atividades empreendedoras.

Esse grupo aponta o modelo de dedicação exclusiva como uma barreira para o empreendedorismo acadêmico. Segundo os entrevistados, a dedicação exclusiva impede que professores também se dediquem a atividades empresariais, auxiliando seus alunos na formação de spin-offs universitárias fruto do trabalho acadêmico dos estudantes. Apesar disso, existe uma constatação de que: a) a mentalidade do estudante no nicho tecnológico de computação é mais voltada para criação de empresas; e b) o modelo de estudante que entra na faculdade desejando prestar concurso público tem se tornado ultrapassado na área de computação e engenharia de sistemas. As respostas desse grupo demonstraram uma maior capacidade de iniciativas empreendedoras.

Engenharia

Os entrevistados dessa área são oriundos de um grupo de pesquisadores que atuam no campo de pesquisa de engenharia de uma instituição que possui um forte histórico de interação com empresas e órgãos governamentais. Estes respondentes atuam nas áreas de tecnologia submarina, energia renovável, tecnologia química de materiais, modelagem numérica de processos físico-químico.

A lentidão na tramitação dos processos administrativos e o excesso de controle foram características evidenciadas por este grupo, quando os entrevistados foram questionados sobre a interação entre universidade, empresa e governo. Os respondentes declararam que a demora nos projetos e soluções tecnológicas para demandas das empresas, geralmente, é provocada pela forma como os contratos e convênios tramitam na esfera administrativa da universidade pública.

Para os entrevistados desse grupo, tentar realizar atividades empreendedoras na universidade pública provoca desgaste pelos embates jurídicos e burocráticos que tolhem a capacidade de iniciativa dos professores que tentam empreender ao longo do tempo em suas carreiras.

Além das dificuldades relatadas acima, os entrevistados declararam que a falta de investimento em PD&I é uma característica das empresas brasileiras. Somado a isto, eles destacaram a disfuncionalidade entre a demanda das empresas e a oferta de soluções tecnológicas pela universidade. Como solução para esse problema, apontaram a necessidade de as empresas possuírem um núcleo de pesquisa com nível de desenvolvimento e maturidade para conseguirem realizar a ligação entre as soluções tecnológicas das universidades e as necessidades práticas das empresas. Afirmaram também que a relação entre empresa/universidade é um processo de confiança que se consolida com o tempo. Em relação a este tema, os entrevistados relataram a dificuldade em conciliar as atividades de ensino, pesquisa e extensão, que são os pilares que compõem uma universidade, e, ao mesmo tempo, atuar com um enfoque empreendedor.

Os respondentes destacaram, ainda, a importância de professores empreendedores atuarem como exemplos para os alunos. Porém, ressaltaram a dificuldade da construção de uma mentalidade empreendedora tanto pelos alunos como pelos professores, e a falta de conhecimento na área de marketing, administração e contabilidade dos acadêmicos empreendedores que tentam criar uma spin-off de base tecnológica. Apesar dessas dificuldades, o grupo possui diversas iniciativas na área de criação de empresas, consultorias e prestação de serviços para empresas.

Diferenças e semelhanças entre os grupos pesquisados

Nesta seção apresenta-se uma síntese das análises efetuadas dos grupos pesquisados comparados com a discussão teórica apresentada e, uma análise fenomenológica num processo de interpretação hermenêutica dupla, enfatizando que da mesma forma que as pessoas procuram entender e interpretar sua experiência, o pesquisador precisa interpretar as próprias interpretações das pessoas sobre essas experiências.

As dimensões sintetizadas das análises foram estruturadas de forma a facilitar a compreensão do fenômeno examinado. As tipologias convergentes e complementares, apresentadas na fundamentação teórica, dialogam com a síntese das entrevistas conversacionais de acordo com a estrutura da Tabela 3.

Tabela 3
Diferenças e semelhanças entre os grupos pesquisados
Diferenças e semelhanças entre os grupos pesquisados

Verificou-se, na pesquisa, que os entrevistados do Grupo 1 - Ciência da Saúde e Biológicas se identificam mais com o perfil empreendedor acadêmico, de Shinn e Lamy (2006); Tipo II - híbrido tradicional, de Lam (2010); dando maior ênfase à pesquisa fundamental e às publicações, apesar de algumas tentativas empreendedoras e de interação com empresas.

Os entrevistados do Grupo 2 - Gestores Acadêmicos, pesquisadores que atuam na área de gestão, deram destaque à importância da interação universidade, empresa e governo. A posição estratégica que estes indivíduos ocupam em cargos de gestão na estrutura universitária tende a favorecer um discurso alinhado com essa interação. Semelhante ao Grupo 1 - Ciências da Saúde e Biológicas, esse grupo possui uma tendência mais acadêmica, embora busque a interação com empresas. Também notamos uma maior identificação com o perfil empreendedor acadêmico, de Shinn e Lamy (2006), Tipo II - híbrido tradicional, de Lam (2010); e empreendedor estatal, de Sharif (2006).

O Grupo 3 - Ciências Exatas e da Terra - demonstrou uma forte interação universidade/empresa e uma forte tendência empreendedora, possivelmente, pelas experiências de interação com empresas e envolvimento em projetos durante seus estudos avançados de pós-graduação. Sem contar que os componentes desse grupo são oriundos de universidades consideradas com perfil empreendedor. Esse grupo tende a se identificar com o perfil empreendedor Janus, de Shinn e Lamy (2006); Tipo III - híbrido empreendedor, de Lam (2010).

Por último, o Grupo 4 - Engenharia - possui uma forte interação universidade/empresa, e uma percepção bastante semelhante ao do Grupo 3 - Ciências Exatas e da Terra. Uma característica que se destaca é a relação com seus laboratórios de pesquisas dentro da universidade, que se consolidaram e são mantidos por financiamentos que envolvem projetos para instituições privadas. Esse grupo tende a se identificar com o perfil empreendedor Janus, de Shinn e Lamy (2006), Tipo III - híbrido empreendedor, de Lam (2010).

Nosso processo de entrevistas, esse estudo apropriou-se de uma perspectiva fenomenológica e hermenêutica dupla para entender o universo do empreendedorismo acadêmico, para além de categorias e classificações. Essa perspectiva enfatiza que da mesma forma que as pessoas procuram entender e interpretar suas experiências, o pesquisador precisa interpretar as interpretações das pessoas sobre essas experiências.

Dessa forma, por meio das entrevistas, que foram sintetizadas nas análises, podemos inferir que o universo do empreendedorismo acadêmico é híbrido. Nesse universo coexistem caminhos aparentemente díspares, que às vezes, tornam-se complementares: o mundo das normas jurídicas e o mundo da ciência. Entender o chamado hibridismo acadêmico pode ser a chave para compreensão dos limites e obstáculos para integração de cientistas acadêmicos com órgãos governamentais e com empresas.

Esse embate entre o universo jurídico e o universo acadêmico exteriorizou-se em diversas falas, perpassando todos os grupos estudados. Expressões como “insegurança jurídica”, mecanismos de controle”, “procuradores” e “reitoria” aparecem diversas vezes como termos representativos e enunciadores de uma oposição ao empreendedorismo e às práticas inovadoras dentro da universidade pública.

Eu percebo que ainda temos uma área de instabilidades, grandes dúvidas para fazer valer, pessoas com receio de fazer acontecer... Fatos colocados como regulares e legais, pela lei e a regulamentação, mas que podem suscitar eventualmente um questionamento de um ou outro procurador. Então, essa insegurança, não digo nem jurídica, é quase que uma insegurança operacional, porque a insegurança jurídica não existe, porque a lei está posta e a regulamentação também, então é uma insegurança operacional, eu diria, então eu vejo dessa maneira, acho que ainda temos... Ainda estamos muito precoces, eu não vi ainda acontecer a regulamentação, o marco legal no dia a dia. (G2 - Gestor)

Alguns grupos evidenciaram essas barreiras de forma mais tênue, enquanto outros com maior ênfase, como o grupo Ciências da Saúde e Biológicas. Neste grupo, um dos entrevistados sintetizou esses entraves jurídicos através da utilização de uma construção alegórica para expressar seu mundo interior e as dificuldades de se empreender na universidade pública, valendo-se da figura de Dom Quixote. A interpretação alegórica e hermenêutica reflete as representações cognitivas do entrevistado sobre a temática estudada, pois, em sua ótica, o empreendedorismo acadêmico na universidade pública trata-se de uma narrativa de sonhos e dificuldades.

Aí tem que levar na reitoria ..."ah, mas isso não pode", e toda uma trabalheira se pode ou não pode, depois vai para outra pró-reitora: "ah, mas assim não pode", é desanimador esse quadro, a gente vem...vem lutando, mas é luta de Dom Quixote, é luta de Dom Quixote. (CS2 - Ciências da Saúde e Biológicas)

A metáfora de Dom Quixote, utilizada pelo entrevistado, é um recurso semântico utilizado para expressar as dificuldades e os embates com os órgãos de controle e os advogados da instituição universitária, que são uma espécie de Sancho Pança, que representam a universidade em questões jurídicas.

O personagem Dom Quixote, uma encarnação de sonho e idealismo, com uma fé de remover montanhas, é incompreendido pelos que o rodeiam. O romance Dom Quixote narra a história de um homem de meia-idade, que lê livros de cavalaria e enlouquece por acreditar em tudo que lê. Por influência das leituras, o personagem tornou-se um cavaleiro andante em busca de aventuras. Dom Quixote usa velhas armas, uma armadura enferrujada e um capacete quebrado com uma gambiarra de papelão na viseira, e tem um velho cavalo pangaré magro que trata como um cavalo de batalha veloz.

O personagem mítico tem como parceiro um fiel escudeiro, chamado Sancho Pança. Os dois representam a oposição entre o mundo idealizado e a realidade. A função de Sancho, na narrativa alegórica, é, principalmente, de corrigir as loucuras do amo, trazendo-o das nuvens para a realidade.

Além de oposição, as figuras de Dom Quixote e Sancho Pança representam complementação. O plano da loucura de Dom Quixote significa a busca diária pela manutenção de um ideal contra o espírito prático de Sancho Pança. Mesmo quando acontece tudo errado nas suas batalhas em que sai cheio de ferimentos e com o corpo dolorido, nem por isso Dom Quixote tem o ânimo abatido, pois a força interior e a resistência pelo ideal fazem-lhe recuperar as forças rapidamente.

Dom Quixote encontra explicação e justificativa para tudo na perspectiva do sonho, e mesmo os argumentos mais convincentes de Sancho Pança não impedem sua empreitada. Em um episódio da narrativa, Dom Quixote enxerga gigantes ao invés de moinhos de vento e resolve enfrentá-los, pois Sancho Pança não consegue dissuadi-lo do combate. Dom Quixote não reconhece o moinho de vento, pois, ele tinha um moinho de vento na sua cabeça, isto é, sonhos.

O romance nos ensina que Dom Quixote é um herói sonhador que morre quando já não enxerga possibilidades de novas aventuras. Na fala de um entrevistado, descrita abaixo, percebe-se que o ideal e o sonho vão se perdendo por razões práticas e pelas barreiras dos regramentos jurídicos que, de alguma forma, tolhem a capacidade de iniciativa dos professores que tentam empreender ao longo do tempo em suas carreiras.

Eu acho que está mudando, mas é muito lento. Eu não sei se é por que eu estou ficando mais velho... A sensação de você chegar à finitude está mais próxima, então você quer que as coisas se realizem, então, você fica mais angustiado por que o tempo... Hoje eu tenho 67 anos e o tempo hoje tem uma relação maior do que quando eu tinha 30. Eu tinha uma perspectiva de vida muito maior do que eu tenho hoje. Eu gostaria que essas coisas acontecessem logo. Isso me angustia um pouco, mas, a gente está correndo atrás. (E3 - Engenharia).

Este homem da ciência, limitado pelo tempo da vida, tenta empreender, de alguma forma, porém percebe que os trâmites burocráticos não ocorrem conforme desejado na relação entre a universidade e a empresas, como descrito no trecho abaixo.

[...]E aí a gente formou, claro, a gente formou uma companhia[...]A firma é uma indústria farmacêutica e estamos tendo muitos investidores nos Estados Unidos. Nós aqui, nós não temos essa cultura e isso é uma falha nossa, parece que é pecado a gente fazer isso. (CS1 - Ciências da Saúde e Biológicas).

Como consequência disto, fica a sensação de que poderia realizar muito mais, porém, o ser humano é limitado no tempo e no espaço pelas regras e leis estabelecidas pela sociedade.

Considerações Finais

Neste artigo sintetizou-se e abordou-se parte de uma pesquisa mais ampla que tratou do fenômeno do hibridismo acadêmicos e sobre uma análise das configurações de empreendedorismo acadêmico e dos modos de produção, difusão e comercialização do conhecimento. No intuito de estabelecer-se um diálogo com a literatura apresentada sobre tipologias de empreendedorismo acadêmico, instituiu-se uma subdivisão dos entrevistados. Isto permitiu identificar as configurações intersubjetivas quando se analisam as diferentes percepções dos entrevistados em relação ao processo ao fenômeno do empreendedorismo acadêmico e suas percepções do marco legal e da interação universidade, governo e empresa.

Talvez a mais importante descoberta dessa pesquisa exploratória de caráter qualitativo tenha sido o achado de que a universidade não é um arranjo harmônico de organização social. Pelo contrário, nota-se, às vezes, visões distintas em relação à ciência e ao empreendedorismo, com alguns grupos que absorvem rapidamente as novas tendências e paradigmas da universidade empreendedora, enquanto outros reproduzem padrões de um paradigma tradicional. O paradigma tradicional de universidade nos remete ao modo clássico de universidade, centrado na formação de alunos para o mercado de trabalho. E ainda, outros grupos, por sua vez, circulam entre fronteiras híbridas universidade-empresa-governo de forma sequencial e estratégica.

Nessa perspectiva, a universidade tende a ser uma organização híbrida composta por visões díspares da forma como se lida com a produção, difusão e comercialização do conhecimento. A universidade convive com estruturas tensionadas entre pessoas que acreditam que o conhecimento básico deve ser produzido de forma independente de aplicações voltadas para a indústria; e pessoas que acreditam que o conhecimento deve ser produzido no contexto das aplicações voltadas para a indústria. Além disto, alguns acadêmicos empreendedores sentem-se tolhidos pela lentidão dos trâmites burocráticos.

Demonstrou-se nesse artigo que as diferentes áreas do conhecimento e perfis acadêmicos afetam a trajetória de interação entre a universidade e a indústria. Portanto, tratar do fenômeno do empreendedorismo acadêmico de forma linear, homogênea e evolutiva talvez esteja levando a universidade para o perigo da universalização de uma verdade única e absoluta - a busca da implantação de um paradigma empreendedor como solução de todos os problemas do desenvolvimento socioeconômico.

A passagem do modo "tradicional" para o modo "empresarial/empreendedor" de produção, difusão e comercialização do conhecimento não é necessariamente um processo linear, pois pode ser interrompido, ou mesmo invertido, como resultado da aprendizagem ou contestação estratégia dos atores que interagem no ecossistema de inovação. Espera-se que este artigo possa ser um guia introdutório para novas pesquisas que identifiquem limites e possibilidades de políticas de incentivo ao empreendedorismo acadêmico, que são geralmente realizadas sem uma compreensão da lógica de atuação de cientistas acadêmicos que possuem potencial para empreender e inovar no dia a dia do ecossistema de inovação. Nesse sentido, faz-se mister que os pesquisadores e professores com perfil acadêmico reconheçam que a diversidade de perfis de seus pares está atrelada ao conceito - “Universidade”; da mesma forma, que aqueles com perfil empreendedor desatrelem a concepção de que academia representa apenas uma relação unívoca empresarial. E que ambos os perfis podem contribuir em diferentes aspectos para o desenvolvimento socioeconômico.

As perguntas que se colocam para novas pesquisas, após a perspectiva apresentada na fundamentação teórica e na análise dos resultados, são: como preparar e lidar com os diversos perfis de cientistas, pesquisadores e professores da universidade brasileira? Como a universidade pode aproveitar o potencial dos diversos perfis de empreendedores descritos nesta investigação? Quais são os limites das ações de políticas científicas e tecnológicas no fomento e criação de estratégias de inovação diante das tipologias de empreendedores acadêmicos?

Adicionalmente, sugere-se que futuras investigações dialoguem com este estudo para auxílio na elaboração de surveys com maior abrangência geográfica e outras áreas do conhecimento. Desse modo, contribuindo para o aprofundamento e a continuidade da próxima fase dessa pesquisa a ser realizada com enfoque e perspectiva analítica quantitativa.

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