Artigo
Carreira e formação humana: percursos, percalços, dores, sabores e descobertas
Career and Character Building: Journeys, Mishaps, Pains, Flavors and Discoveries
Carreira e formação humana: percursos, percalços, dores, sabores e descobertas
Revista Administração em Diálogo, vol. 23, núm. 3, pp. 29-44, 2021
Programa de Estudos Pós-Graduados em Administração
Recepção: 03 Outubro 2020
Aprovação: 26 Março 2021
Resumo: Formação humana alude à ideia de que a humanização do homem é compreendida à medida que o sujeito conhece a interdependência entre as suas múltiplas dimensões e o cosmos. Propõe-se que trabalho e carreira sejam considerados oportunidades educativas, uma vez que podem contribuir para a humanização do ente singular. A revisão de literatura toma por base textos sobre formação humana e carreira. Este é um estudo exploratório, cujos dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas. O artigo tem como objetivo descrever experiências consideradas como promotoras de formação humana no desenvolvimento de carreira.
Palavras-chave: Carreira, gestão de recursos humanos, educação, formação humana.
Abstract: Character building alludes to the idea that the humanization of man is understood as the subject becomes aware of the interdependence between its multiple dimensions and the cosmos. The proposition is that work and career are considered educational opportunities since they can contribute to the humanization of the individual. The texts used for the literature review were about human formation and career. The work is an exploratory study, and semi-structured interviews collect the data. The article describes experiences considered to promote character building in career development.
Keywords: Career, human resource management, education.
Introdução
O problema que motivou a realização desta pesquisa é a constatação de que pouco se sabe a respeito da presença de princípios de formação humana no desenvolvimento de carreira. Falar em princípios de formação humana é pensar em Educação, que alude ao processo que busca contribuir para a humanização do homem a partir de dois prismas. O primeiro é que ao nascer o homem já é um ser humano, pois pertence à espécie humana. O segundo refere-se à intencionalidade de desenvolver no homem o que ele tem de mais humano, e que não se resume à aquisição de conhecimentos e habilidades, nem à sua maturação natural.
Para viabilizar tal desiderato, é necessário educar o sujeito e estimulá-lo a cultivar princípios de formação humana (prudência, justiça, responsabilidade, compaixão, solidariedade, autonomia, resiliência) para nortear a sua vida. A Educação pode ser relevante nesse processo, pois permite ao indivíduo compreender os seus potenciais e limites, podendo influenciar a busca para que que ele venha a se tornar o que potencialmente é.
Educação como formação humana alude à ideia de que a humanização do homem é um processo, uma vez que ele nasce incompleto, lacunar, e vai se humanizando ao longo da vida, tornando-se íntimo de si mesmo e começando a ter noção da interdependência com o cosmo. Esse processo vai sendo compreendido à medida que o sujeito entra em contato com as suas dimensões e vai (re)conhecendo os seus valores, experiências, potencialidades, possibilidades, responsabilidade e limite nos diferentes planos da vida humana, e à medida que aguça a sua capacidade de interpretar os seus arredores.
Nessa óptica, Educação e instrução são conceitos diferentes. Esta é centrada na escolarização para desenvolver as inteligências lógico-cognitivas e linguísticas e para a aquisição de qualificação profissional. Aquela está voltada para o “espírito”, “cultura”, “humanidade” e não se limita ao processo de ensino-aprendizagem, uma vez que pode ajudar o ente singular a encontrar uma conformação apropriada para a vida social e cultural, o que inclui, certamente, as demandas advindas do trabalho e da carreira
Falar em trabalho é falar em uma ação essencialmente humana e para compreender essa ação é necessário ancorá-la ao pressuposto de que o executante é uma pessoa, e uma pessoa deve ser concebida pela integralidade das suas múltiplas dimensões. O termo carreira está associado ao trabalho, mais especificamente a atividades remuneradas, mas entende-se que trabalho e carreira não são apenas um modo de “ganhar” a vida, mas oportunidades educacionais para que o sujeito possa compreender-se e compreender o mundo que o rodeia. Diante do exposto, surgiu a questão que norteia o estudo: como princípios de formação humana surgem ao longo da trajetória profissional? O objetivo do estudo é descrever experiências consideradas como promotoras de formação humana no desenvolvimento de carreira.
O segmento empírico foi desenvolvido na Região Metropolitana de Recife, Estado de Pernambuco. A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas semiestruturadas e o corpus do trabalho é constituído pelos relatos dos 28 (vinte e oito) participantes. A análise dos dados foi realizada por meio do método Análise de Conteúdo.
O arcabouço teórico utilizado demonstra a existência de intersecção entre carreira e formação humana, que são temáticas já consagrados em Administração e Educação. Carreira é aqui entendida como um padrão de experiên¬cias relativas ao trabalho, mas que abrange a vida de um ente como um todo ( Greenhaus & Kossek 2014). Formação humana, por sua vez, auxilia o homem a desenvolver uma sensibilidade que necessita ser formada para atender à vida social e cultura, uma vez que não é dada naturalmente ( Röhr, 2004). É nessa óptica que se fará a discussão a seguir.
Revisão de literatura
Carreira
O termo carreira (latim vulgar carrarìa (caminho para carros)) está associado à ideia de progressão. Essa ideia remonta ao conceito de movimento, que é a passagem da potência ao ato ( Aristóteles, 2018, Livro, II, 1): “[…] de todas as coisas que nos vêm por natureza, primeiro adquirimos a potência e mais tarde exteriorizamos os atos”. E este autor afirma: “[…] nenhuma das virtudes morais surge em nós por natureza; com efeito, nada do que existe naturalmente pode formar um hábito contrário à sua natureza”. Potência (latim potentia (força, poder, capacidade)) corresponde à possibilidade de mudar (latim mutare (mudar, trocar de lugar)). Aristóteles distinguiu esse significado fundamental em significados específicos ( Abbagnano, 2007): a) potência ativa (capacidade de realizar mudança); b) potência passiva (capacidade de sofrer mudança); c) capacidade de mudar ou ser mudado para melhor e não para pior; d) capacidade de resistir a mudanças. É a partir daí que se cunhou a expressão desenvolvimento (latim desvolvere (permitir a saída ou o aparecimento de algo que estava tolhido)), que é o movimento de passar da potência ao ato.
A ideia de carreira está vinculada à noção de movimento, partindo de vocação (latim vocation (ação de chamar)), passando por desempenho e chegando à autorrealização. Hall (2004, p.12) demonstra isso ao afirmar que carreira é: “[…] uma sequência de atitudes e comportamentos, associada com experiências e atividades relacionadas ao trabalho, durante o período de vida de uma pessoa”. London & Stumpf (1982, p. 4) advogam que carreira é: “[…]uma sequência de posições ocupadas e de trabalhos realizados durante a vida, envolvendo uma série de estágios, e a ocorrência de transições que refletem necessidades, motivos, aspirações pessoais além de imposições da organização e da sociedade”. Arthur & Rousseau (1996, p.28), por seu turno, defendem que o termo carreira pode ser utilizado em dois sentidos: “Sentido antigo: o curso de progresso profissional; cujo uso está restrito a ocupações com progressão hierárquica formal. Sentido novo: a sequência de desdobramento das experiências de trabalho de uma pessoa ao longo do tempo”. Greenhaus & Kossek (2014) advogam que a carreira é um padrão de experiências relativas ao trabalho, e abrange a vida de uma pessoa como um todo. Para Dutra (2017, p.8), carreira “[…] é uma sucessão de degraus de complexidade [e] a pessoa se desenvolve quando incorpora atribuições e responsabilidades de maior complexidade”. O termo incorpora (latim incorpòráre [reunir num só corpo]) parece sintetizar e reconhecer que, sendo parte da vida, a carreira deve contribuir para a humanização do homem.
Dutra (2017) parece sintetizar os demais autores ao reconhecer que a carreira, bem como cargos, posições e funções advindas, são parte da vida humana e guarda harmonia com a ideia de Educação. Nesse sentido, De Masi (2000, p. 101) afirma que as transformações das últimas décadas alteraram a concepção de trabalho e demonstra isso ao analisar operários que já não usam apenas os bíceps: “[…] não se trata mais de operários que soldam, torneiam, deslocam pesos com os bíceps. Muitos trabalham com computadores. Queiramos ou não, o único tipo de emprego remunerado que permanecerá será do tipo intelectual criativo”. O autor defende que (p. 167): “[…] pela primeira vez, hoje, desde os tempos de Taylor, mudar a organização do trabalho pode significar mudar a organização de toda uma existência”. De Mais (2000) considera que: a) o trabalho na sociedade pós-industrial é diferente do tradicional; b) a forma do trabalho foi alterada pela automação e informatização; e c) o número de empregos industriais tende a continuar diminuindo. Para ele, essas mudanças, fortemente ancoradas em conhecimento, deram origem à sociedade do ócio criativo, em que o indivíduo deverá ter maior clareza quanto aos objetivos, responsabilidades e encadeamentos de suas tarefas, e isso requer pessoas mais preparadas em termos humanos, técnicos e profissionais, o que deve transformar as organizações em centros educacionais.
Ora, pensar em organizações como centros educacionais é conceber que o ambiente de trabalho pode ser conducente à humanização do homem. Percebe-se, portanto, que trabalho e carreira não são atividades “estranhas” à vida humana nem se encontram “alheias” ou “afastadas” das suas outras dimensões, uma vez que para a sua consecução o indivíduo deve estar envolvido por inteiro. Para isso, é necessário que o desenvolvimento de carreira tenha como alicerce a concepção de Educação fundamentada na integralidade das múltiplas dimensões do sujeito, e, como tal, deve contribuir para a sua humanização por meio do cultivo de virtudes ( aretai).
Os estudos sobre carreira apresentam diferentes tipologias, uma das quais foi elaborada por Chanlat (1995), e é considerada clássica, e envolve quatro grandes tipos: burocrático, profissional, empreendedor e sociopolítico, e retratam a natureza, a lógica de desenvolvimento, as atividades e as recompensas associadas. Nenhum tipo é puro, já que pode haver a presença e/ou a inclusão de elementos de um tipo em um outro. Uma contribuição para essa tipologia foi dada por Mintzberg (2015) ao dividir a burocracia em: mecanizada e profissional, que, embora semelhantes em relação a procedimentos formalizados, proliferação de normas e de controles, são diferentes em relação aos mecanismos de coordenação. Na burocracia mecanizada o principal mecanismo de coordenação é a padronização de processos, enquanto na burocracia profissional é a padronização de habilidades.
A carreira tipo burocrático mecanizado está ligada à estrutura organizacional. Responsabilidade, salário, vantagens sociais são formalmente definidos pelo empregador e a progressão se dá por meio de avanços verticais na hierarquia (bancos, manufaturas). Já a carreira tipo burocrático profissional, em geral, está ligada a organizações públicas e entidade paraestatais, que realizam serviços tendentes à satisfação das necessidades coletivas, mas sem integrar a estrutura estatal. Mintzberg (2015) observa que nessas organizações a lei define salário, vantagens e a progressão, que se dá por titulação acadêmica ou agentes de acreditação 2. Esse tipo de organização ( Mintzberg, 2015, p. 213): “[…] contrata profissionais especializados […] e depois concede-lhes considerável controle sobre o seu próprio trabalho. [Esse] controle significa que o profissional age independentemente de colegas, mas diretamente com clientes”. E esclarece (p. 226): “[..] o núcleo operacional […] é dominado por trabalhadores habilitados - profissionais - que utilizam procedimentos difíceis de aprender, embora bem definidos”. O autor prossegue: “Isso significa um ambiente […] suficientemente complexo para exigir o uso de procedimentos […] que podem ser aprendidos apenas em programas extensivos de treinamento formal”.
A carreira tipo profissional tem como bases conhecimento, especialização e reputação. Aqui o avanço se dá no nível horizontal e, notadamente, no interior de uma disciplina (médico, advogado, arquiteto). A carreira tipo empreendedor é ligada a empreendedores de micro, pequeno ou médio porte - indústria, comércio, serviço, áreas artísticas, culturais, comunitárias, caridade. Já o tipo sociopolítico tem a sua base de atuação em habilidades sociais e em relações interpessoais, o que inclui pertencer a certo nível social e/ou ter proximidades com etnias. O Quadro 1 oferece uma síntese da tipologia aqui adotada:

A orientação de carreira também tem experimentado mudanças, passando da chamada carreira linear, ou tradicional, para a denominada carreira multidirecional. Na primeira a orientação é externa, cabendo à organização definir ritmo, cargos, status e responsabilidades que o funcionário poderá alcançar. A carreira “pertence” à organização, tal qual acontece na Igreja Romana, forças armadas, serviço público. A orientação multidirecional tem foco nas demandas íntima do ente singular no pressuposto de que a carreira lhe “pertence”, e cabe a ele definir ritmo, cargos, status, responsabilidades e os riscos advindos. É encontrada em áreas como publicidade, tecnologia da informação, bancas de advocacia, bancos de investimento.
A orientação guarda relação com a natureza, estrutura, setor de atuação, de uma organização ( Baruch, 2004, p. 60): “A natureza e a noção de carreiras tradicionais baseavam-se em estruturas rígidas. Os modelos de carreira tinham direção clara, unidimensional ou linear do “avanço”: isso significava promoção. A hierarquia […] era a “escada” a ser escalada”. A dinâmica de alguns setores nas décadas final do século XX levou a estruturas flexíveis (p. 60): “Os novos modelos de carreiras se compõem de uma variedade de opções, e de direções possíveis de desenvolvimento. As pessoas experimentam diferentes formas de definir a carreira: pode ser um movimento paralelo, mudança de direção, ou de organização, ou de aspiração”.
Destarte, a carreira pode ser influenciada por inúmeros fatores, e por isso exige projetar metas que se pretende alcançar, o que requer clareza quanto a possibilidades, limites, expectativas. Todavia, planejar requer sensibilidade para articular pretensão e os recursos disponíveis, e para isso é necessário atenção a três aspectos: autoavaliação, estabelecimento de objetivos e implementação do plano, de modo que o indivíduo identifique os seus interesses e potencialidades, alinhando-os aos seus objetivos. Para London & Stumpf (1982) é isso que pode tornar possível traçar cenários realistas para, então, “pavimentar” o futuro. Esse raciocínio foi corroborado pelos trabalhos de Balbachevsky (2007) e de Rosa Veloso (2009), cujos resultados apontam que a ausência de planejamento e de clareza quanto à percepção de mudanças no ambiente podem impactar negativamente a carreira. Planejar a carreira, portanto, envolve múltiplos fatores e o sujeito deve ser sensível às nuances envolvidas, o que requer Educação, pois essa sensibilidade não é dada naturalmente ( London & Stumpf, 1982; Röhr, 2010, 2013).
Formação humana
Por que educar? Porque o ente singular nasce incompleto, lacunar, e vai se humanizando ao longo da vida, tornando-se íntimo de si mesmo ao ter contato com as suas dimensões e a ter noção da interdependência entre essas dimensões e o cosmo. Esse processo é aqui chamado de formação humana, ou humanização, e sendo um processo (latim processus, “ação de adiantar-se, andamento, movimento para diante”), possibilita que a pessoa se torne cuidadosa com as suas ações e atenta às repercussões de seus atos, inclusive no trabalho e na carreira.
Educação como formação humana alude à ideia de que a humanização do homem vai sendo compreendida à medida que o sujeito conhece os seus próprios valores, o significado de suas experiências, de suas potencialidades, possibilidades, responsabilidades e limites nas diferentes esferas da vida, bem como com o seu modo de interpretar os arredores. Nessa óptica, Educação e instrução são conceitos diferentes. Esta é centrada na escolarização para desenvolver as inteligências lógico-cognitivas e linguísticas e na aquisição de qualificação profissional. A instrução é um insumo importante, mas não pode ser tido como Educação, pois enfatiza somente a cognição, que é apenas uma das dimensões humanas. De fato, a instrução tem se mostrado insuficiente para que o ente atenda às demandas das diferentes esferas da vida ( Do Valle, 2014, p. 508): “E isso não somente no sentido de que o humano em formação é mais que um ser a quem se pode, unicamente pelos recursos da cognição, ensinar a virtude, a afetividade, a sensibilidade” e a autora pontua ainda: “[…] mas também no sentido de que ele é outra coisa além de um autômato cuja ação é inteiramente determinada por leis objetivas e infalíveis - sejam elas interiores ou exteriores”. Pensar em instrução como se fosse Educação traz muitas distorções e torna difícil a compreender do fenômeno humano a partir de sua integralidade ( Do Valle, 2014, p. 504): “[…] para lidar com tudo que não se deixa reduzir à cognição, ao conhecimento imediato e transparente: eis por que outra marca inegável do conhecimento que em sua égide se institui é a incapacidade de absorver os múltiplos sentidos da ação humana”.
A Educação, por sua vez, está voltada para o “espírito”, “cultura”, “humanidade”. ( Severino, 2006, p. 621): “[…] não é apenas um processo institucional e instrucional, seu lado visível, mas fundamentalmente um investimento formativo do humano, seja na particularidade da relação pedagógica pessoal, seja no âmbito da relação social”. Ao referir-se à Educação como “fundamentalmente um investimento formativo do humano”, o autor resgata o termo Educação (latim educere) em seu significado original de estruturar, nutrir, formar, pois o homem, sendo incompleto e lacunar, se encontra em um processo contínuo de vir-a-ser. Nessa perspectiva, a ideia de Educação é um processo recíproco, espontâneo e assistemático entre pessoas e não se limita ao processo de ensino-aprendizagem, uma vez que busca retirar do homem tudo o que o restringe às fronteiras da natureza, transformando-o em um ser diverso do que ele era ao nascer, dando-lhe uma nova conformação na vida social e cultural ( Policarpo Junior, 2011): “[…] atributos humanos não são humanizados por si mesmos, mas exigem cultivo necessário para que possam expressar a todo ente singular o seu caminho próprio e pessoal capaz de realizar a si mesmo e beneficiar e enriquecer a humanidade”.
A ideia de cultivar guarda analogia com a agricultura, cuja atividade é a obtenção de produtos por meio da terra ( Policarpo Junior, 2011): “Este sentido mais limitado e estrito de cultura alude […] a modos estruturados de vida em comum e a realizações sociais e históricas que têm por escopo tal cultivo. Cultura, nesse sentido, é humanização”. Para Policarpo Junior (2010, 2011), a natureza humana demanda uma formação apropriada e a instrução é insuficiente para isso, como foi corroborado pelos trabalhos por Ximenes (2013) e Santos (2015a).
A formação humana oferece caminhos para que o aprendiz cultive princípios (grego prin; latim primus (o que vem antes)) e, assim, possa atuar sobre os meios que reproduzem a vida e ser capaz de distinguir entre ele e as outras pessoas e entre ele e o mundo. A tarefa da Educação é prover o ente de habilidades e capacidades necessárias às suas experiências, de maneira que haja coerência entre pensar, sentir e agir ( Bogéa, 2020, p. 7): “Cultura é cultivo das próprias potencialidades de modo a formar em si um todo complexo em que as multiplicidades, com suas tensões e conflitos, não se aniquilem, nem gerem uma dispersão irreconciliável” e este autor complementa “[…] mas se articulem em uma composição capaz de gerar os mais exuberantes e singulares frutos”. A esse respeito, ( Scruton 2018, p.122) defende que cada ente deve tomar para si a guarda das relações interpessoais: “Nossas relações interpessoais seriam inconcebíveis sem a suposição de que podemos assumir compromissos […], tomar responsabilidades […], fazer votos […] e assumir obrigações que sabemos ser intransferíveis para qualquer um”. O autor afirma (p. 60): “O que é central para o diálogo interpessoal é a responsabilização ( accountability). Nós tomamos conta de cada um, não apenas por nossas ações, mas também por nossos pensamentos, sentimentos e ações”.
Destarte, o ente singular deve ser educado para ser capaz de cultivar virtudes ( aretai) e para buscar um modo de vida pautado em parâmetros virtuosos ( Aristóteles, 2018, Livro II, 6): “A virtude é, pois, uma disposição de caráter relacionada com a escolha e consistente numa mediania, isto é, a mediania relativa a nós, a qual é determinada por um princípio racional próprio do homem dotado de sabedoria”. O autor afirma: (Livro VII, 10): “[…] ao falar do caráter […] referindo-nos ao hábito; e aos hábitos dignos de louvor chamamos virtudes. […] O hábito, meu caro, não é senão uma longa prática. Que acaba por fazer-se natureza”. É nessa perspectiva que este estudo defende a aproximação entre conceitos como formação humana e carreira, uma vez que trabalho e carreira são aqui considerados como oportunidades educativas. A seguir são apresentados os procedimentos metodológicos.
Procedimentos metodológicos
Para compreender como princípios de formação humana estão presentes no desenvolvimento da carreira optou-se pelo método qualitativo, por meio de um estudo exploratório. Em função do seu objetivo, este estudo busca a compreensão ( verstehen) da presença de princípios de formação humana na carreira dos entrevistados e não visa a explicação causal ( erklären) do citado fenômeno nem a generalização dos resultados obtidos.
O segmento empírico foi desenvolvido na Região Metropolitana de Recife, Estado de Pernambuco, envolvendo profissionais de diferentes ramos de atividades. A amostra foi selecionada sob a perspectiva não probabilística. O tipo mais comum é o intencional, que reflete o propósito do estudo e guia a procura por casos ricos em informação ( Merriam, 1998). A seguir foram elencados critérios para a seleção dos depoentes: a) portadores de diplomas de nível superior; b) sujeitos com pelo menos dez anos de atuação contínua; c) pessoas que atuam em qualquer ramo de atividades; e d) acessibilidade. Julga-se que alguém com este perfil dispõe de melhores condições para avaliar a presença de princípios de Educação em sua carreira.
A coleta do material empírico foi realizada por meio de entrevistas semiestruturadas. A opção por este instrumento deveu-se, principalmente, à sua flexibilidade, uma vez que permite: a) que os depoentes sejam mais espontâneos em suas respostas; b) alterar a ordem de perguntas; c) realizar perguntas não previstas; e d) reelaborar perguntas ( Merriam, 1998; Mattos, 2006). Foram realizadas 28 (vinte e oito) entrevistas, com duração média de cinquenta minutos, e que ocorreram entre janeiro e dezembro de 2019. No momento das entrevistas, 17 (dezessete) participantes atuavam no setor público e 11 (onze) na iniciativa privada.
Os dados foram analisados de acordo com os procedimentos previstos no método Análise de Conteúdo (AC), cuja intento é compreender as comunicações humanas e os seus significados imediatos e mediatos ( Bardin, 2004). Na 1ᵃ fase, pré-análise, estabeleceu-se contato com os dados por meio da leitura “flutuante” ( Turato, 2003, p. 445): “[…] ler e reler o material até chegar a uma espécie de “impregnação” do seu conteúdo… [que] desvele mensagens implícitas, dimensões contraditórias e temas sistematicamente “silenciosos”“. Essa “impregnação” permite que se tenha certa clareza a respeito das ideias, intenções, sentimentos, que não estão explícitos nas mensagens coletadas. Essa etapa busca a sistematização do material coletado, ajudando a torná-lo objetivo e operacional. Na 2ᵃ, exploração do material, o material empírico foi codificado e fracionado em unidades de registro (base de significação - palavras, frases, parágrafos) e em unidades de contexto (base de compreensão para codificar a unidade de registro), o que possibilitou o inventário e a classificação dos elementos em análise e a seguir foram identificadas as categorias, trazendo à lume o que é comum nos relatos. Na 3ᵃ etapa, tratamento dos resultados, inferência e interpretação, as evidências foram conectadas e interpretadas à luz da revisão de literatura. A análise buscou desvendar o que estava explícito e o que estava latente nos relatos - sentimentos, tendências, ideologias - para entender o fenômeno a partir da óptica dos depoentes. A seguir serão apresentados os resultados.
Resultados
Em conformidade com o objetivo do estudo foi identificada a presença de princípios de conduta nas experiências consideradas pelos entrevistados como promotoras de formação humana. No intuito de oferecer um procedimento analítico mais bem organizado, optou-se por apresentar e analisar os resultados em blocos.
Princípios de formação humana presentes na carreira
Os princípios de formação humana são balizadores para guiar a ação de uma pessoa em seu processo de humanização, já que a natureza humana demanda uma formação apropriada. Os atributos humanos não são humanizados por si mesmos, por isso a Educação requer o cultivo de virtudes, de modo que o ente encontre o seu caminho próprio e pessoal ( Severino, 2006; Policarpo Junior, 2010, 2011, Santos, 2015; Scruton, 2018). De acordo com os dados, os participantes citaram a presença dos seguintes princípios de conduta em sua carreira: gratidão, limite, responsabilidade, autonomia, dignidade e tolerância.
Os entrevistados fizeram alusão à gratidão como princípio de formação humana, mencionando pessoas que influenciaram as suas carreiras e a sua vida, como é relatado por E1: “Minha gratidão é para com os meus pais, por sua responsabilidade, dedicação, determinação e firmeza de caráter. Outras pessoas a quem eu sou grata são A e V, por seu temperamento acolhedor”. Ela acrescenta: “M também foi outro inspirador e a quem sou grata pela capacidade de comunicação, especialmente em momentos graves 3 … Porque, às vezes, é necessário dizer coisas difíceis. Ele fazia isso com maestria e, ao mesmo tempo, consolava o seu interlocutor”. E2 declara: “Eu penso que ninguém nasce docente. Você vai se tornando professor, vai se acostumando à rotina, à riqueza da sala de aula, começa a gostar dos alunos, aprende com eles, e começa a aprender o seu papel como regente em sala. Eu sou grata à docência por isso”. E5 conta: “Eu fiz parte de uma Comissão de Avaliação de Curso do MEC 4 e da CPA 5, que ampliaram a minha percepção de escola, alunos, didática. Eu posso dizer que antes disso eu era funcionária pública, depois dessas vivências eu me tornei docente”. E5 prossegue e acrescenta: “Há uns 20 (vinte) anos “baixou” o docente em mim. Essa mudança aconteceu em um curso de formação continuada oferecido por minha Instituição. Aí, eu “descobri” quão maravilhoso é a didática como recurso à disposição do professor. Hoje eu amo a sala de aula”. E9 conta que: “Eu fiz uma intervenção em um programa e não projetei as consequências. O Diretor queria me “esfolar”, mas o meu supervisor interveio e me protegeu, mas me deu uma “dura”. Eu sou grato pela forma como ele fez, porque isso me ajudou a compreender melhor os meus limites”.
E2 considera em sua fala os princípios limite e responsabilidade ao longo de sua carreira: “O docente é o regente em sala e tem dois papéis: auxiliar o aluno a conhecer e a compreender noções como autoridade, responsabilidade, limites, gratidão. Então, o professor deve ter clareza disso para não se desviar do que é essencial ao seu trabalho e não se “perder” no supérfluo”. Ela afirma: “Eu penso que ninguém nasce docente. Você vai se tornando professor, vai se acostumando à rotina, à riqueza que a sala de aula oferece, começa a aprender e a gostar do contato com os alunos, e aprende a ser regente. Eu sou muito grata à docência por tudo isso”. E5 declara: “Eu fiz parte de uma Comissão de Avaliação de Curso do MEC 6 e da CPA 7, que ampliaram a minha percepção de escola, alunos, didática. Eu posso dizer que antes disso eu era funcionária pública, depois dessas vivências eu me tornei docente”. E5 a depoente acrescenta: “Há uns 20 (vinte) anos “baixou” o docente em mim. Essa mudança aconteceu em um curso de formação continuada oferecido por minha Instituição. Aí, eu “descobri” quão maravilhoso é a didática como recurso à disposição do professor. Hoje eu amo a sala de aula”. E20 também destaca os princípios limite e responsabilidade em sua trajetória profissional: “A auditoria “fotografa” e revela o que ocorreu ou o que ocorre em uma organização. Ao detectar non-compliance report fique certo: a origem do problema está na área de limite e responsabilidade”. Ele comenta: “Eu já auditei processos com fragilidades, que foram gerados por situações nessa área. A fragilidade leva a novas fragilidades, e vai por aí… É um círculo vicioso. Aí, o “cara” na “ponta” acha que não tem limites, o que gera novos problema de responsabilidade”.
Percebeu-se que gratidão, limite e responsabilidade são destacados pelos depoentes como princípios de conduta presentes em sua trajetória profissional. Eles deixaram patente que a gratidão tem ligação com limite e responsabilidade como princípios de conduta. Pode-se depreender que essa conexão diz respeito à própria condição de viver em sociedade, uma vez que os membros têm responsabilidade uns para com os outros e sem isso a convivência tornar-se-ia insustentável. Considerando que o ambiente das organizações é um lócus importante na vida humana, pode-se afirmar que trabalho e carreira podem ajudar o sujeito em seu próprio processo de humanização ( Röhr, 2013, Santos, 2015; Aristóteles, 2018; Scruton, 2018).
E9 observa que autonomia foi outro princípio de conduta presente em sua carreira: “Um fato marcante em minha trajetória profissional foi a decisão de fazer pós-doutorado no exterior, o que realmente deu um up grade em minha vida acadêmica”. O participante complementa: “Eu sou grato à [direção da] Universidade por ter me proporcionado isso, porque era o que eu deveria fazer e era o que deveria ser feito. Assim, não há dicotomia entre dever e fazer, entre realizar e apreciar. Tudo isso pode estar reunido”. E10, por seu turno, relata que: “Eu não fui dispensado do serviço militar obrigatório, porque estava cursando Informática na Universidade. O Coronel me disse: “Tem alguns computadores na Intendência e você vai para lᔓ. O depoente prossegue e faz uma relevante observação sobre o processo de humanização do homem: “Eu fiquei um ano no Exército e fiz tudo com seriedade, não é? Com a seriedade e a dignidade que qualquer coisa em que você se mete tem que ser feita, mesmo a contragosto”.
Aqui fica evidenciado os princípios responsabilidade (fazer com seriedade), tolerância (mesmo a contragosto) e autonomia (fazer o que é necessário ser feito) e os depoimentos lançam luzes para o fato de que a dignidade não deve nem pode ser afastada de uma ação por não se gostar de algo ou de alguém. Aliás, a própria ideia de dignidade afasta a possibilidade de uma pessoa autônoma agir de modo indigno para atender quaisquer causas ( Abbagnano, 2007; Aristóteles, 2018). Alguém autônomo sabe que ao longo da vida e da carreira não se faz apenas o que é agradável nem se convive somente com pessoas tidas como simpáticas, nem se convive apenas com pessoas que comungam uma visão de mundo. Ademais, a autonomia poderá colocar alguém em uma posição antitética em relação a práticas desumanizantes que possam existir no ambiente social e cultural, uma vez que a autonomia requer coerência em pensar, sentir e agir, ou seja, a autonomia reque uma relação harmoniosa entre um elemento e o fim a que se destina ( Abbagnano, 2007). Por isso, o homem deve cultivar virtudes que o capacitem a se respeitar e a respeitar as pessoas e a natureza e a expressar comportamentos equilibrados diante das questões postas pela vida. E para uma pessoa ser tudo o que é capaz é necessário um modo de viver autônomo ( Maslow, 1970; Santos, 2015; Scruton, 2018; Aristóteles, 2018).
Experiências promotoras de formação humana
Viu-se que os princípios de Educação devem guiar a ação humana nas diferentes esferas de sua atuação, uma vez que a natureza humana exige uma formação apropriada. Como o homem se encontra em um processo contínuo de vir-a-ser, cabe à Educação oferecer caminhos para que o ente singular cultive princípios de conduta aceitos universalmente e com os quais se comprometa incondicionalmente ( Röhr, 2004, 2010, 2013; Severino, 2006; Policarpo Junior, 2010, 2011; Santos, 2015; Aristóteles, 2018; Scruton, 2018, Bogéa, 2020). Nesse sentido, a formação humana possibilita ao sujeito se apropriar de experiências pessoais e de experiências de outrem para auxiliar o seu processo de humanização. Compreender essa interdependência entre os membros de uma sociedade pode estimulá-lo a identificar o que deve ser cultivável.
E2 revela que conhecia em tese os princípios de conduta tolerância e solidariedade, mas não os tinha ainda vivenciado: “A docência tem muitos percalços, mesmo assim alargou o meu mundo, porque me deu oportunidade de aprender a ser íntima de mim mesmo. Um exemplo? tolerância… E a vida exigiu de mim um nível de tolerância que eu não sabia que eu tinha”. E2 destaca que aprender a ser tolerante tem um “preço”, notadamente em momentos graves. Ela cita a separação conjugal, não apenas pela separação em si mesma, mas por suas repercussões no âmbito pessoal, familiar, social, financeiro: “Se encaminhar os filhos normalmente é muito pesado, imagine fazê-lo sozinha! Ser mãe e pai é pesado! Eu “arranjei” forças e não sei de onde! E isso teve um “custo”: você tem que tolerar muita coisa pelo bem dos outros”. E3 conta que o trabalho lhe deu oportunidades para compreender a condição humana, ainda que parcialmente: “A minha vida foi marcada por dores… Eu tenho muitas histórias dolorosas, mas isso não me abateu e eu aprendi a ter os pés no chão, porque chorar, lamentar, “mimimi”, nada resolvem e é por isso que estou aqui. Mas, isso não quer dizer que não doeu ou que eu nunca chorei”. E22 tece alguns comentários sobre experiências como promotora de formação humana ao longo de sua carreira: “A minha saída da Unidade X foi traumática… O motivo e a forma me machucaram muito. Então, eu decidi: “Eu vou sofrer o final de semana, mas isso acabará 2ᵃ feira, porque as pessoas que vão me receber na nova Unidade não merecem que eu chegue lá com ‘mimimi’”. Ele conta: “Foi difícil? Foi muito, mas pensei: “Eu continuo empregado, tenho contas para pagar, tenho família, e tenho que continuar a viver, embora tenha passado por isso. O mundo não vai mudar por eu estar assim”. Passar por aquilo mudou a minha percepção do mundo”. O depoente declara: “O meu trabalho como gestor é ajudar as pessoas e ajudar a melhorar os ambientes onde vivo, torná-los produtivos, alegres, mesmos com as tensões que lhe são próprias, mas sem tornar a Unidade uma “selva”. O cargo de gestor me ajudou a perceber isso”.
E13 fala sobre a instabilidade em sua carreira: “Eu vivia em uma “gangorra” tanto em São Paulo/SP e em Recife, ora empregada e ora desempregada. Eu tentei ser empreendedora em duas ocasiões e em ambas fui “expulsa” do mercado pelo Plano Collor 8 e pelo Plano Real 9“. E13 comenta: “Depois de tantos altos e baixos, eu consegui me estabilizar, e passei mais de vinte anos como gerente em uma empresa local. Mesmo esses anos de estabilidade foram difíceis, mas eu resisti! Eu não sei como, mas aqui estou contando a história”.
Os relatos desse bloco deixam claro que o processo de humanização não é uma tarefa fácil nem corriqueira, porque não se faz em um único passo, e a renovação de pensamentos não é algo simples, nem é obtida em curto prazo, além de exigir do sujeito profunda convicção íntima para compreender a si mesmos e aos seus semelhantes. Os depoimentos mencionam experiências promotoras de formação humana, citando especificamente resiliência e perseverança como princípios de conduta que devem ser cultivados diante de questões postas pela vida, o que remete à ideia de Educação pela integralidade das dimensões humanas nas diferentes esferas do cotidiano. O indivíduo necessita, então, de Educação para desenvolver sensibilidade para compreender questões que estão para além do processo instrucional ( Severino, 2006; Röhr, 2010, 2011, 2013; Policarpo Junior, 2010, 2011; Do Valle, 2014; Scruton, 2018; Bogéa, 2020).
E7 relata que a docência lhe proporcionou experiências promotoras de formação humana: “Às vezes somos procurados por alunos em questões bem distintas de uma aula. Eu já fui procurado por questões, talvez insólitas: uma aluna me procurou porque estava sofrendo assédio sexual no trabalho. Já vieram casos de depressão, tireoide, coisas desse tipo”. O depoente continua: “Eu acho que o aluno percebe com que quem ele pode contar, com quem pode se abrir, quem pode ouvir… Então, de maneira cotidiana, a gente vai se humanizando”. E8 comenta sobre algumas experiências de sua carreira que foram promotoras de formação humana, citando a preparação de atletas para competições, quando tensões dos relacionamentos humanos podem vir à tona: “Em minha equipe tinha uma atleta que “brigava” com a balança… E eu recebia críticas por mantê-la, mas eu não tinha condições de chegar e dizer: “Você vai sair por estar gorda e destoar da equipe”“. Ela observa: “Eu tinha que ajudá-la a entender a sua genética e minimizar as “brigas” com a balança. O meu papel era de estimular e não de destruir. Resultado, você fica articulando o que pensar, o que fazer, o que dizer, se não vai gerar muitos conflitos”. E8 fala sobre derrotas e vitórias: “No início eu perdi todas as competições. Perder não é bom, mas se aprende… Isso pode soar como chavão, mas não é. Eu perdi muito, mastive forças para me reorganizar e reorganizar as equipes, e aos poucos desenvolvi a ideia de perder e aprender”. Ela conta: “Perder gera cobranças, mas ganhar gera muito mais cobrança. Quando ganha “vira” referência, fica na “vitrine”, e muita gente fica agressiva e vem com “tudo para cima” de você. Parece que ganhar é uma ofensa… É como se eu tivesse que ser punida!”. E19 também menciona os desafios diários do gestor para conduzir a sua equipe para alcançar os resultados almejados.
“Eu aprendi e gosto de trabalhar em equipe, e mantenho isso por onde passo. Aqui nós desenvolvemos laços de amizade, mas aprendemos a separar joio e trigo: cada um com as responsabilidades e os limites exigidos pelo cargo, a começar por mim que sou o gestor”. E19 prossegue e exemplifica: “A transferência física da nossa Unidade foi complicada, quer pela mudança, quer pelo impacto em nossas vidas. Então, elegemos um critério: localização próxima aos principais parceiros, e isso atendeu à Empresa e atendeu à maioria dos funcionários”. Ele narra: “Eu registro que havia clareza entre nós que a decisão da nova localização seria da Direção e isso poderia não agradar a todos. O fato de ser uma Unidade com poucos membros ajudou. Mas, eu creio que amizade, solidariedade, respeito mútuo, ouvir, também foi vital”. Os participantes relatam experiências promotoras de humanização, envolvendo empatia, compaixão, limite e responsabilidade, que são princípios de conduta aceitos universalmente e por isso devem guiar a vida humana. Para tal, o homem necessita de Educação para que compreenda quais princípios de formação humana devem ser cultivados e com os quais deverá se comprometer incondicionalmente. A Educação pode auxiliar o ente a compreender-se e a compreender os seus arredores, o que inclui, certamente, a compreensão dos seus papéis na vida social e cultural, bem como o trabalho e a carreira ( Maslow, 1970; Policarpo Junior, 2010).
E11, por seu turno, alude à constituição de família como uma experiência promotora de formação humana e, como tal, ele a considera um momento muito importante em sua vida e em sua carreira: “O casamento mudou a minha vida, porque eu faço agora as coisas para nós e antes eu fazia tudo para mim… A minha filha me deu foco para a família, e eu não tinha isso! Casar e ter uma filha são dois marcos em minha vida”. As experiências humanas podem ser promotora de formação humana ao possibilitar que o ente singular entre em contato com as suas dimensões e vai conhecendo, pouco a pouco, os seus próprios valores, o significado de suas experiências, de suas potencialidades, possibilidades, responsabilidades e limites, bem como a aguçar a sua percepção dos seus arredores e encontrar uma maneira harmoniosa de viver com o mundo ( Röhr, 2010, 2011, 2013; Policarpo Junior, 2010, 2011; Scruton, 2018; Bogéa, 2020).
Para os participantes os princípios de formação humana são importantes em todos os momentos da vida, em especial quando se encontraram diante da necessidade de tomar decisões graves em relação a eles mesmos e/ou em relação a outras pessoas. Os entrevistados deixaram entrever que foi diante dessas situações que eles perceberam a relevância de cultivar virtudes. Acredita-se que isso reforça a tese aqui defendida, qual seja, o desenvolvimento de carreira deve ser considerado uma oportunidade educativa para auxiliar o sujeito a cultivar princípios de Educação, de modo que ele possa encontrar harmonia consigo mesmo e com o cosmos. Nessa perspectiva, Scruton (2018, p.122) tece uma importante observação ao advogar que: “Nossas relações interpessoais seriam inconcebíveis sem a suposição de que podemos assumir compromissos […], tomar responsabilidades […], fazer votos […] e assumir obrigações que sabemos ser intransferíveis para qualquer um”. A Educação como processo de formação humana pode ajudar o sujeito a compreender as suas múltiplas dimensões e a compreender a sua interdependência com o seu derredor. A Educação também pode auxiliar o indivíduo a ser íntimo de si mesmo, de modo a tornar-se cuidadoso para com as suas ações e a compreender a implicação dos seus atos e de suas descobertas.
Conclusões
O objetivo deste trabalho é descrever experiências consideradas como promotoras de formação humana no desenvolvimento de carreira. Os resultados descrevem experiências envolvendo gratidão, limite, responsabilidade, autonomia, dignidade, tolerância, solidariedade, resiliência, perseverança, empatia, compaixão, que sendo princípios de Educação devem ser cultivados para nortear a ação humana virtuosa. Para que a virtude seja um hábito ( Aristóteles, 2018) é necessário desenvolver uma sensibilidade que não está dada, o que requer Educação.
A Educação pode oferecer caminhos para a humanização do homem. Nessa óptica, trabalho e carreira podem ser oportunidades educativas, razão pela qual vislumbra-se que os resultados apresentados venham a contribuir com a literatura sobre carreira e sobre formação humana, bem como com as práticas das organizações e das pessoas sobre desenvolvimento de carreira, notadamente sob a perspectiva de organizações como centros educacionais.
Ademais, as evidências apresentadas parecem funcionam como links entre trabalho, carreira e Educação, uma vez que carreira e trabalho não são tidos apenas como um forma de “ganhar” a vida, mas como partes integrantes da vida social e cultura e, sendo assim, podem e devem contribuir para a humanização do homem.
Referências
Abbagnano, N. (2007). Dicionário de Filosofia (5. ed.) São Paulo: Martins Fontes.
Aristóteles. (2018). Ética a Nicômacos. Coleção Filosofia. São Paulo: Blue Editora.
Arthur, M., & Rousseau, D. (1996). A Career Lexicon for the 21st Century. The Academy of Management Executive (1993-2005), 10(4), 28-39. Retrieved September 27, 2020, from http://www.jstor.org/stable/4165351
Balbachevsky, E. (2007). Carreira e contexto institucional no sistema de ensino superior brasileiro. Sociologias, v. 9, n. 17, p. 158-188, jan./jun. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S1517-45222007000100007
Bardin, L. (2004). Análise de conteúdo (3.ed.) Lisboa: Edições 70.
Baruch, Y. (2004). Transforming careers: from linear to multidirectional career paths: organizational and individual perspectives. Career Development International, 9(1), 58-73, from https://doi.org/10.1108/13620430410518147
Bogéa, D. (2020). O cultivo da singularidade como desafio para a formação humana. Educação, 43(1), 1-12. DOI: http://dx.doi.org/10.15448/1981-2582.2020.1.29629
Chanlat, J. F. (1995). Quais carreiras e para qual sociedade? Revista de Administração de Empresas, 35(6), 67-75.
Do Valle, L. (2014). Para além do sujeito isolado modelos antropológicos para pensar a educação. Revista Brasileira de Educação, 19(57), 495-512. DOI: https://doi.org/10.1590/S1413-24782014000200012
Dutra, J. S. (2017). Gestão de carreira: a pessoa, a organização e as oportunidades. (2.ed.) São Paulo: Atlas.
Greenhaus, J. H. & Kossek, E. E. (2014). The contemporary career: a work-home perspective. Annual Review of Organizational Psychology and Organizational Behavior, 1, 361-388. DOI: https://doi.org/10.1146/annurev-orgpsych-031413-091324
Hall, D. T. (2004). The protean career: a quarter-century journey. Journal of Vocational Behavior, 65(1), 1-13. DOI: https://doi.org/10.1016/j.jvb.2003.10.006
London, M. & Stumpf, S. S. (1982). Managing careers. Reading, MA: Addison-Wesley.
Maslow, A. H. (1970). Motivation and personality (3rd.). New York: Harper & Row.
Mattos, P. L. C. L. (2006). Análise de entrevistas não estruturadas: da formalização à pragmática da linguagem. In: Silva, A. B., Godoi, G.K., & Mello, R. B. de: Pesquisa Qualitativa em Estudos Organizacionais: paradigmas, estratégias e métodos. São Paulo: Saraiva.
Merriam, S. B. (1998). Qualitative research and case study applications in education. San Francisco (USA): Jossey-Bass.
Mintzberg, H. (2015). Criando organizações eficazes: estruturas em cinco configurações (2. ed.). São Paulo: Atlas.
Policarpo Junior, J. (2010). Sobre espiritualidade e educação. In: Röhr, F.: Diálogos em Educação e Espiritualidade. Recife: Ed. Universitária da UFPE.
Policarpo Junior, J. (2011). Cultura: sentidos da formação humana para o indivíduo e para a sociedade. In: O pensar, o sentir, o agir: sentidos da formação humana. Recife/PE: Instituto de Formação Humana. Livro eletrônico, Disponível em: https://www.smashwords.com/books/view/306736 Acesso em: 19/12/2013.
Röhr, F. (2004). Liberdade e destino: reflexões sobre a meta da Educação. Ágere, CD-ROM, 1-18.
Röhr, F. (2010). Espiritualidade e educação. In: Röhr, F. Diálogos em Educação e Espiritualidade. Recife: Ed. Universitária da UFPE.
Röhr, F. (2013). Educação e espiritualidade: contribuições para a compreensão multidimensional da realidade, do homem e da educação. Campinas: Mercado de Letras.
Rosa Veloso, E. F. (2009). Gestão de carreira de professores: a relação com a ação estratégica em uma universidade privada da cidade de São Paulo. Revista Administração em Diálogo, 11(1) 1-25. DOI: https://doi.org/10.20946/rad.v11i1.2739
Santos, C. I. d. (2015a). A formação do administrador: desvelando uma aproximação necessária entre formação acadêmica e formação humana. (Tese de Doutorado). Universidade Federal de Pernambuco, Recife.
Santos, C. I. d., & Policarpo Junior, J. (2015). Learning to live together in peace and harmony: Um olhar comprometido com a formação humana. Conjectura, 20(2) 94-111.
Scruton, R. (2018). A alma do mundo. (3.ed.) Rio de Janeiro: Record.
Severino, A. J. (2006). A busca do sentido da formação humana: tarefa da Filosofia da Educação. Educação e Pesquisa [online]. 32(3) 619-634. DOI: https://doi.org/10.1590/S1517-97022006000300013
Turato, E. R. (2003). Tratado da metodologia da pesquisa clínico-qualitativa: construção teórico-epistemológica, discussão comparada e aplicação nas áreas de saúde e humanas. Petrópolis/RJ: Vozes.
Ximenes, L. M. S. (2013). A promoção da formação humana no processo de formação acadêmica do educador. (Tese de Doutorado). Universidade Federal de Pernambuco, Recife.
Notas