Resumo: As estatísticas do Atlas da Violência revelam que o custo social da violência no país se aproxima de 5,9% do PIB. E como se não bastasse o problema crônico da violência no Brasil, dados do IBGE apontam que o desemprego desencadeado pela atual crise econômica afeta 27,3% dos jovens brasileiros. Assim, este ensaio discute os desafios e perspectivas de para a juventude brasileira, em especial àquela em situação de pobreza ou vulnerabilidade social, analisando o empreendedorismo como emancipação numa visão alternativa de desenvolvimento, e apresenta cinco proposições sobre as funções da universidade em relação ao jovem e ao empreendedorismo jovem nessa perspectiva emancipadora.
Palavras-chave: Empreendedorismo, emancipação, universidade, jovem, pobreza.
Abstract: Atlas of Violence shows that the social cost of violence in the country is close to 5.9% of its GDP. Furthermore, as if the chronic problem of violence in Brazil were not enough, data from IBGE indicate that unemployment triggered by the current economic crisis affects 27.3% of young Brazilians. Thus, this essay discusses the challenges and perspectives for the Brazilian youth, especially those living in a situation of poverty or social vulnerability, by analyzing entrepreneurship as emancipation in an alternative view of development and presenting five propositions about the university's role concerning youth and youth entrepreneurship in this emancipating perspective.
Keywords: Entrepreneurship, emancipation, university, youth, poverty.
Artigo
Matando o futuro: juventude, violência, e empreendedorismo como emancipação
Killing the Future: Youth, Violence, and Entrepreneurship as Emancipation
Recepção: 20 Outubro 2020
Aprovação: 20 Junho 2021
Apesar de não vivermos uma guerra propriamente dita, os números mostram que no Brasil se mata mais do em qualquer outra parte do mundo. Segundo dados do Atlas da Violência, em 2017 houve 65.602 homicídios no Brasil, o que corresponde a uma taxa de 31,6 mortes para cada 100 mil habitantes e, para além do custo incalculável da perda de vidas humanas, desperdiça-se anualmente 5,9% do PIB brasileiro por causa da violência ( Cerqueira et al., 2019). A título de comparação, durante todo o ano de 2018 a Guerra na Síria, já arrefecida, matou aproximadamente 23.000 pessoas, e com a vitória das forças governamentais os dados parciais apontam uma forte queda no número de mortos ( Syrian Observatory for Human Rights, 2018); em 2006, o ano mais sangrento para civis da Guerra do Iraque, 29.525 pessoas morreram no conflito armado ( Iraq Body Count, 2019); e, na guerra contra o narcotráfico no México, foram 28.816 homicídios relacionados ao crime organizado em 2018 ( Calderón, Heinle, Ferreira & Shirk, 2019).
Em termos absolutos, portanto, o Brasil é líder mundial em número de mortes violentas, ultrapassando até mesmo países em guerra ou aqueles cujo aparato estatal esteja em conflito declarado contra facções criminosas internas.
Além disso, os dados do Atlas da Violência mostram que está em curso um processo de “interiorização” da violência no Brasil, e agora as cidades da Região Nordeste figuram entre as mais violentas do país, como resultado da intensificação da guerra entre facções criminosas que comandam a comercialização do tráfico de drogas. Da mesma forma, um olhar sobre as estatísticas mais recentes do relatório mostra que a vítima tem rosto, idade, cor de pele e classe social, de maneira que se fosse possível personificar as estatísticas num perfil provável para próxima vítima por morte com arma de fogo no Brasil, ela seria um jovem negro, do sexo masculino, pobre, envolvido com a criminalidade, e que vive em alguma cidade no interior do Nordeste do Brasil. Ainda segundo o relatório, com 35.783 jovens assassinados no Brasil em 2017 (taxa de 69,9 para cada 100 mil jovens), já é possível se falar de uma geração de jovens perdida, com impactos permanentes e graves na demografia da própria população brasileira,
Diante da crise político-econômica que se avoluma, os jovens acabam sendo vítimas duas vezes. Primeiro por não terem oportunidades dignas de emprego, e depois por estarem mais sujeitos a serem cooptados pelo crime organizado. Sabemos que o jovem, particularmente, é a maior vítima da pobreza e da violência, e que esses são problemas que caminham lado a lado. No mundo de hoje, a superação da pobreza – e de suas consequências, como violência, criminalidade, fome, falta de acesso à saúde, água potável e saneamento básico – é um dos principais e mais complexos desafios de nossa sociedade ( Eisenhardt, Graebner & Sonenshein, 2016; George, Howard-Grenville, Joshi & Tihanyi, 2016). Não por acaso, a superação da pobreza figura como o objetivo número 1 dentre os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável que a Organização das Nações Unidas pretende alcançar até 2030 ( George et al., 2016).
Mas, no caso do Brasil, “Um Século de Favela” (Zaluar & Alvito, 1998) criou uma dualidade que feriu de morte o tecido social brasileiro em várias cidades, colocando de um lado a população branca e mais rica, e de outro lado a população pobre e negra, que vive em espaços urbanos precarizados, vítimas do descaso das políticas públicas e, nesses espaços onde falta Estado, preenchidas pela força do crime organizado quase como ente estatal.
Embora haja uma tendência de culpar o pobre pela sua própria sorte, já está estabelecido no debate sobre economia desenvolvimentista e justiça social que as oportunidades não se colocam da mesma forma para todas as pessoas ( Deaton, 2017; Sen, 2010; Stiglitz, 2016). E no caso do Brasil isso é ainda pior, pois a pobreza e a miséria estão estampadas nas caras, nos corpos e nas mentes do povo, que passa a ver com naturalidade as desigualdades sociais – e as mazelas consequenciais, a exemplo da violência – existentes em nossa sociedade ( Deaton, 2017; Ribeiro, 2015; Souza, 2018). Nesse contexto, a educação e a mudança na percepção que temos sobre nós mesmos é uma das – ou talvez a principal – formas de mudança social ( Deaton, 2017; Roche, 2015; Sen, 2010; Souza, 2018; Stiglitz, 2016).
Assim, o objetivo deste ensaio teórico é analisar o empreendedorismo como emancipação e as funções da universidade empreendedora enquanto mecanismos de mudança social, em especial nas vidas nos jovens. Ambos os fenômenos são discutidos à luz da literatura existente, e derivadas cinco proposições sobre como deve ser a atuação da universidade empreendedora – e socialmente engajada – diante dos desafios existentes.
Nas sessões seguintes o texto aborda os estudos sobre empreendedorismo e pobreza no campo teórico e o empreendedorismo como emancipação na prática; em seguida, discute a “nova missão” da universidade empreendedora, que agora incorpora o empreendedorismo – seja como criação de empresas de fato, ou como cultura ou ideal – às suas missões tradicionais de ensino, pesquisa e extensão, e sugere cinco proposições sobre as funções desse novo tipo de universidade; finalmente, apresenta considerações finais e sugestões para pesquisas futuras.
Do ponto de vista social, o empreendedorismo é destacado por causa da sua possibilidade emancipatória e como mecanismo de mobilidade social ( Al-Dajani, Carter, Shaw, & Marlow, 2015; Baskaran & Mehta, 2016; Bruton, Ketchen & Ireland, 2013; Goss, Jones, Betta & Latham, 2011; Kapoor, 2007; Marti, Courpasson & Barbosa, 2013). No entanto, em que pese o reconhecimento de que o empreendedorismo seja um fator potencialmente contribuinte para se “quebrar o ciclo da pobreza”, a literatura em empreendedorismo tradicionalmente se distanciou dessas questões ( Bruton et al., 2013).
De fato, apesar de ser uma perspectiva provocante e atual, há poucos estudos dedicados ao empreendedorismo como emancipação de formal geral, e muito menos investigações empíricas dedicadas a estudar esse fenômeno ( Jennings, Jennings & Sharifian, 2016). Assim, o empreendedorismo como emancipação é um domínio de pesquisa bastante rico e promissor do ponto de vista conceitual, principalmente porque a pesquisa pode oferecer conclusões práticas que de fato dêem à sociedade uma visão mais apurada sobre como o empreendedorismo pode ajudar a resolver as questões de pobreza, contribuindo efetivamente para que se alcance justiça social e econômica em nossa sociedade ( Baker & Welter, 2017; Bruton et al., 2013). Importante dizer, ainda, que a quarta edição do volume 59 do Academy of Management Journal foi toda dedicada à discussão sobre como e porque os pesquisadores que estudam administração devem produzir mais estudos com impacto social, especialmente no que se refere aos “Grandes Desafios” ou problemas globais que a academia pode – e deve – ajudar a solucionar ( Eisenhardt et al., 2016; George et al., 2016).
O empreendedorismo é um fenômeno fundamentalmente socioeconômico, e altamente dependente do contexto de onde se desenvolve ( Al-Dajani et al., 2015). Nesse sentido, os governos de países em desenvolvimento têm investido em políticas de empreendedorismo com potencial inclusivo, tendo como objetivo final a redução da pobreza e o desenvolvimento das regiões mais pobres ( Al-Dajani et al., 2015; George, McGahan & Prabhu, 2012).
No campo teórico, um número considerável de pesquisas tem se dedicado a analisar o empreendedorismo social e na base da pirâmide, mas o foco desses estudos geralmente está nas pessoas pobres como um mercado consumidor em potencial (Por exemplo: Dey & Steyaert, 2016; George et al., 2012; George, Rao-Nicholson, Corbishley & Bansal, 2015; Hall, Matos, Sheehan & Silvestre, 2012; Kistruck, Beamish, Qureshi & Sutter, 2013; Prahalad & Mashelkar, 2010; Prahalad, 2005). Contudo, ainda são poucos os trabalhos dedicados a estudar como a pessoa que vive em um contexto de pobreza se torna um empreendedor ( Bruton et al., 2013). Efetivamente, muito da pesquisa em empreendedorismo tem tido um foco muito grande na geração de riquezas e, como resultado, ainda se discute pouco sobre o potencial emancipador do empreendedorismo.
A tese de que o empreendedorismo tem o potencial de contribuir como solução para problemas de ordem econômica e social, especialmente em contextos de pobreza e marginalização, parte da constatação de que a atividade empreendedora tem uma natureza essencialmente de mudança, de rompimento com o status quo e com as estruturas de poder vigentes ( Al-Dajani et al., 2015; Rindova, Barry & Ketchen, 2009). Assim, o empreendedorismo como emancipação advém da visão de que a atividade empreendedora permite que os pobres avancem em graus de autonomia, paulatinamente, de forma que o empreendedor busca se libertar de restrições intelectuais, psicológicas, econômicas, sociais, institucionais, ou culturais, e busca ainda se libertar das “estruturas convencionais de autoridade e geração de renda” ( Al-Dajani et al., 2015; Jennings et al., 2016; Rindova et al., 2009).
De acordo com Rindova et al. (2009), existem três ações ou elementos principais que se relacionam aos esforços de mudança no empreendedorismo como emancipação, a saber: (1) a busca pela autonomia, ou por libertar-se daqueles que exercem poder sobre o indivíduo; (2) a autoria, ou a capacidade de criar um conjunto de relações e de regras que sirvam para reforçar a autonomia alcançada, de ser “autor de si mesmo”; e (3) o ato de fazer declarações, ou a ação discursiva de comunicar aos outros a intenção de realizar uma mudança, rompendo com a ordem vigente. A esses três elementos, Chandra (2017) adicional mais três novos: (1) a construção de uma empresa, como forma de criar e compartilhar recursos; (2) a ampliação das redes sociais, pela participação em qualquer tipo de atividade, inclusive as menos complexas, como forma de construir empatia entre as pessoas; e (3) a construção de relações harmoniosas.
Na prática, para se entender o empreendedorismo como emancipação é importante primeiro conhecer as especificidades do contexto onde o empreendedor vive, e depois – em função da heterogeneidade desse campo de estudo – abandonar as visões e formas simplistas, dicotômicas, e/ou excludentes de conceituar e estudar tal sujeito ( Jennings et al., 2016; Welter, Baker, Audretsch & Gartner, 2017). Isso porque a pobreza, como problema maior, é essencialmente um processo histórico, e também dotado de características de cronicidade e de mecanismos causais que produzem e reproduzem a pobreza continuadamente, de forma que não existe uma solução normativa para a questão, e mesmo certas formas de inclusão podem agravar o problema ao invés de aliviá-lo ( Fangen, 2010; Hickey & Du Toit, 2013). Em tal situação, o problema da cronicidade do desemprego, principalmente entre os mais jovens, se torna ainda mais dramático ( Awogbenle & Iwuamadi, 2010; Eisenhardt et al., 2016; Gordon, 2013; Jeffrey, 2010; Jennings, Shore, Strohminger & Allison, 2015; Marti et al., 2013).
Hoje, várias regiões do mundo em desenvolvimento possuem como característica comum uma população crescente de jovens que, a depender da perspectiva, pode ser vista como uma “benção” ou “maldição”: se por um lado, tais jovens podem ser uma importante fonte de desenvolvimento econômico e social para as suas comunidades, por outro eles vivem em ambientes onde são vítimas da pobreza, das doenças e da criminalidade ( Baskaran & Metha, 2016; Roche, 2015). Muitos países têm enfrentado situações de crescimento desproporcional da população jovem, e seus mercados de trabalho não conseguem comportar o grande número de jovens que se formam a cada ano, de maneira que nesses casos o “empreendedorismo forçado” pode servir como uma alternativa ao desemprego e suas consequências nefastas ( DeJaeghere & Baxter, 2014; Kasim, Zulkharnain, Hashim, Ibrahim & Yusof, 2014; Kolade, 2018; Millman, Matlay & Liu, 2008; Nunzio, 2015).
Assim, as ações de promoção da cultura empreendedora entre os jovens têm em grande medida buscado empoderá-los com os conhecimentos, habilidades e recursos financeiros necessários para tocar um negócio próprio ( DeJaeghere & Baxter, 2014; Ikebuaku & Dinbabo, 2018; Kolade, 2018). Contudo, sabe-se que essa abordagem não é capaz de isoladamente resolver a questão da pobreza, simplesmente porque em geral traz “soluções” que partem de cima para baixo – sem “ouvir as vozes que vêem de baixo” – e não considerando, por exemplo, as condições socioeconômicas e materiais específicas dos jovens ou mesmo o grande peso do fracasso nessa faixa etária ( Bruton et al., 2013; DeJaeghere & Baxter, 2014; Nunzio, 2015).
De fato, o próprio fenômeno do empreendedorismo, também, pode ser visto como uma “faca de dois gumes”, pois carrega consigo, ao mesmo tempo, forças emancipadoras e opressoras ( Rindova et al., 2009; Verduijn, Dey, Tedmanson & Essers, 2014). No caso de pessoas que vivem em situação de pobreza, elas não podem individualmente, senão pelo coletivo, alcançar algum grau mínimo de autonomia, e essa coletividade ou coesão é muito difícil de ser conseguida em determinadas situações de opressão ( Al-Dajani et al., 2015; Kuttab, 2010).
Ainda assim, a emancipação tende a ser – talvez erroneamente? – relacionada como sendo um “clamor” dos revolucionários, dos intelectuais e dos oprimidos, e esse sentimento desiludido advém da tentativa de enquadrar a emancipação numa perspectiva macro, como solução para os grandes desafios da sociedade, quando de fato é mais prudente estudá-la pela perspectiva micro, ou como solução para os desafios do dia a dia das pessoas (Huault, Perret & Spicer, 2012). Com efeito, embora a perspectiva da emancipação detenha uma visão de um futuro melhor, mais justo, mais igual, ela acaba sendo fundamentalmente utópica em sua forma pura, pois é impossível erradicar totalmente a opressão, de maneira que a “revolução” social que precisamos não é radical, mas acontece no nível local, nas atividades diárias das pessoas, onde a vida de milhões de seres humanos e o seu futuro se transformam quase que de forma imperceptível ( Kapoor, 2007; Verduijn et al., 2014).
E no caso do jovem pobre, este detém “a voz a ser ouvida”, quer dizer, as políticas de empreendedorismo voltadas para o jovem em contexto de pobreza devem ser capazes de captar os anseios dessa população, de entender seus contextos locais de uma forma não “estandardizada”, e de não apenas oferecê-los soluções, mas efetivamente tornar-los parte da elaboração de tais soluções ( Nunzio, 2015). Mas no caso do empreendedor em regiões mais pobres, por exemplo, o contexto acaba por produzir problemas adicionais na já pesada equação burocrática e nas obrigações financeiras inerentes à manutenção de uma empresa. De fato, existem três fatores críticos para o empreendedor que vive em contextos de pobreza: (1) este não apenas é vítima da falta de apoio institucional; (2) mas deve empreender mesmo com pouco ou nenhum acesso a recursos; e (c) num contexto de risco onde o fracasso talvez possa significar deixar de comer ou ter um teto para morar ( Bruton et al., 2013).
Como se não bastasse a ferida no tecido social causada pela violência, o Brasil é também conhecido como um dos países mais desiguais do mundo, e aqui a distância social entre ricos e pobres está estampada na cara do povo, que incorpora um habitus que aceita a precarização da vida como legítima, merecida ou até mesmo justa ( Ribeiro, 2015; Souza, 2018). Esse ethos é preocupante, pois, como destaca Stiglitz (2016), a pior de todas as desigualdades é a desigualdade de oportunidades, que afeta o futuro de gerações inteiras e, de forma última, tem consequências desastrosas na economia e na produtividade de uma nação.
Por isso, o investimento em educação tem sido apontado como a estratégia mais promissora para contribuir com o crescimento econômico de um país, especialmente no caso do investimento em educação tecnológica e superior e na formação e capacitação de recursos humanos, com benefícios que extrapolam a esfera político-econômica, potencialmente mudando a vida das pessoas para melhor e, portanto, reduzindo as desigualdades sociais e ajudando a “corrigir o legado da injustiça e exclusão” ( Bloom, Canning, Chan & Luca, 2014; Keller, 2006; McMahon & Oketch, 2013; Roche, 2015, p. 579; Stiglitz, 2016).
Nesse contexto, a universidade passa a ser cobrada pela sociedade, ganhando novas funções na condição de universidade empreendedora que, num processo de transformação institucional, agora deve ser capaz de produzir conhecimentos com impactos sociais e que possam ser explorados comercialmente ( Audretsch, 2014; Etzkowitz, 2003; Etzkowitz, 2013; Guerrero, Urbano, Fayolle, Klofsten & Mian, 2016; Ratten, 2017).
Essa conjunção da educação com o empreendedorismo passa a ser – talvez ainda mais ideologicamente do que na prática – a aspiração de uma sociedade do conhecimento que busca diversos ideais: empoderamento das pessoas, prosperidade cultural, desenvolvimento econômico, sustentabilidade, mais democracia, e mais interação entre a ciência e os problemas sociais, num rearranjo institucional que pede o repensar do processo colaborativo entre universidade e sociedade ( Audretsch, 2014; Carneiro, 2013; König, 2015; Lindh 2017). Diante dessa problemática, apresentamos cinco proposições relacionadas às funções da universidade empreendedora enquanto “modelo ideal” de instituição, que pode colaborar com a questão do jovem em situação de pobreza e vulnerabilidade social através do empreendedorismo como emancipação.
Proposição 1. A universidade deve ser encarada como política pública social, convergindo suas funções empreendedora e educacional em ações voltadas à redução da desigualdade social no nível micro
Existe uma tendência equivocada de que as políticas públicas de empreendedorismo sejam pensadas e implementadas em perspectivas top-down – de cima para baixo – e copy-paste – copia e cola –, que tentam replicar o sucesso de algumas regiões como modelos ideais, mas acabam desconsiderando as especificidades de cada lugar ( Arshed, Carter & Mason, 2014; Brown & Mason, 2017; Harrison & Leitch, 2010; Isenberg, 2010; Spiegel, 2017; Stephens, Partridge & Faggian, 2013). Uma boa estratégia de empreendedorismo deve ser focada em explorar as vantagens competitivas e identificar os gargalos de uma região ( Acs, Autio & Szerb, 2014; Audretsch & Belitski, 2017).
A universidade pensada como política pública social deve estar voltada ao nível micro, ou seja, em termos de relações entre indivíduos e atores sociais, que são a unidade de análise básica de um ecossistema de empreendedorismo ( Arshed et al., 2014; Audretsch & Belitski, 2017; Spiegel, 2017). A emancipação, entendida como uma afirmação de liberdade diante da desigualdade institucionalizada, pode ser mais facilmente observada no nível micro (Huault et al., 2012; Rindova et al., 2009). É nesse nível micro, também, que a emancipação pode ser melhor observada e onde a liberdade como prática e mudança social pode ser conquistada ( Bruton et al., 2013; Dey & Steyaert, 2016; Sutter, Bruton & Chen, 2019).
A universidade como instituição deve ser repensada quanto ao seu impacto, especialmente do ponto de vista regional, como produtora de conhecimento que seja socialmente e economicamente relevante ( Audretsch 2014; Urbano & Guerrero, 2013; Watermeyer, 2014). Como tal, a universidade empreendedora pode conseguir alavancar o crescimento econômico e o desenvolvimento social de uma região pela sua capacidade de explorar o conhecimento como forma de gerar oportunidades e riqueza ( Audretsch 2014; Etzkowitz, 2013; Guerrero et al., 2016; Ratten, 2017; Urbano & Guerrero, 2013).
Proposição 2. A universidade deve ser geradora de riqueza, traduzida como formação de recursos humanos e criação de empresas por jovens empreendedores
A forma mais óbvia de gerar riqueza no ambiente universitário é pela missão principal da universidade, relacionada à formação e capacitação técnica de pessoas ( Etzkowitz, 2013; Harkema & Schout, 2008; Lendel & Qian, 2017; Roessner, Bond, Okubo & Planting, 2013). Contudo, a universidade também pode ser capaz de utilizar o conhecimento – oriundo de pesquisas e demais atividades desenvolvidas em seus espaços de criação do conhecimento – com uma orientação de mercado, e trazer impactos sociais benefícios com a comercialização da ciência e do conhecimento ( Audretsch, 2014; Etzkowitz, 2013; Fini, Rasmussen, Siegel & Wiklund, 2018; König, 2015). O resultado prático é a criação de empresas ainda dentro da universidade, que mais tarde se tornam independentes num processo conhecido como spin-off universitário ( Clarysse & Moray, 2004; Mosey, Wright & Clarysse, 2012; Ndonzuau, Pirnay & Surlemont, 2002; Rasmussen, Mosey & Wright, 2014; Vohora, Wright & Lockett, 2004).
Especificamente no caso dos jovens, o processo de spin-off estudantil ainda é pouco explorado na literatura ( Åstebro, Bazzazian & Braguinsky, 2012; Bergmann, Hundt & Sternberg 2016; Bezerra, Borges & Andreassi, 2017; Wright, Siegel & Mustar, 2017). Mas tem havido um espaço cada vez maior para discussões que incluem o jovem empreendedor nesse cenário, e especialmente sobre ecossistemas locais de empreendedorismo e spillovers de conhecimento da universidade empreendedora ( Audretsch, 2014; Hayter, 2016; Hayter, Lubynsky & Maroulis, 2017; Stephens et al., 2013; Wright et al. 2017). Aqui, novamente, a solução para os problemas locais parte do entendimento de que são as pessoas no nível mais básico, na cidade, no bairro, na comunidade, que melhor conhecem os seus próprios problemas e anseios ( George et al., 2016; Hope, 2016; Osborne, Kearns & Yang, 2013).
A criação de empresas por jovens representa ainda um novo desafio para a universidade, pois esta precisa ser capaz de integrar novas formas de construção de saberes aos seus currículos, numa “sociedade de aprendizagem” que busca novas formas de aprendizagem, com a educação baseada na experiência, a sustentabilidade e a educação transformativa ( Carneiro, 2013; Etzkowitz, 2013; Hope, 2016; König, 2015; Sedlacek, 2013).
Proposição 3. A universidade deve estar localmente inserida, de maneira que o currículo ofertado reflita as capacidades e especificidades locais, tanto em termos de mercado de trabalho para o jovem quanto ao ecossistema onde está inserida
Para que a universidade desempenhe sua função empreendedora adequadamente, esta precisa estar regionalmente inserida, tendo papel ativo e de liderança no desenvolvimento socioeconômico, e contribuindo com o fortalecimento das capacidades dos membros de seu ecossistema ( Audretsch, 2014; Etzkowitz & Klofsten, 2005; Etzkowitz, 2014; Link & Sarala, 2019; Youtie & Shapira, 2008).
Pensar a universidade empreendedora enquanto espaço de interação de pessoas é também pensá-la como um lugar de produção e troca de conhecimento, um local onde se desenvolve uma cultura empreendedora ( Etzkowitz, 2003; Hope, 2016; Guerrero et al., 2016; Jansen, Van de Zande, Brinkkemper, Stam & Varma, 2015; Osborne et al., 2013).
Uma universidade localmente inserida terá seus currículos e cursos orientados e adaptados para o contexto local, para a interdisciplinaridade e para as necessidades de seus alunos, envolvendo-os como participantes ativos de sua própria educação, e adotando perspectivas de aprendizagem centrada no aluno e de educação para a vida ( Bernstein & Carayannis, 2012; Harkema & Schout, 2008; Lee, 2014; Pfeffer & Fong, 2014; Siegel & Wright). Assim, a universidade empreendedora poderá ser capaz de alavancar consigo todo o ecossistema empreendedor local, oferecendo capital humano e suporte a uma cultura empreendedora, além de servir de base para a formação de uma rede de colaboradores locais ( Belitski & Heron, 2017; Brown & Mason, 2017; Etzkowitz, 2014; Guerrero et al., 2016).
Proposição 4. A universidade deve atuar como ponte entre stakeholders, mobilizando atores locais em prol de uma agenda comum para a juventude
A capacidade que a universidade tem de atuar como ponte entre diversos stakeholders em prol de uma agenda comum recebeu inicialmente o nome de “hélice tripla”, por reunir elementos de governos, indústrias, e a própria universidade ( Etzkowitz & Leydesdorff, 2000; Etzkowitz, 2003). Como um dos desenvolvimentos posteriores, passou a se falar num modelo de “hélice quádrupla”, que incluía a sociedade civil nesse framework ( Carayannis & Campbell, 2009).
A universidade deve ser capaz de atuar na ponte universidade-indústria-governosociedade em prol de uma agenda comum para os seus alunos. Tal abordagem é mais importante ainda para a juventude, que se vê diante de um momento desafiador de transição tanto para a idade adulta quanto para o mercado de trabalho ( Bailetti, 2011; Bezerra et al., 2017; Hayter, Lubynsky & Maroulis, 2017). Atuar como ponte envolve também trazer para dentro do ambiente universitário esses atores, para que as questões pertinentes à juventude possam ser discutidas entre os diversos stakeholders do ecossistema, contribuindo para a redução da distância entre academia e mercado ( Benneworth & Jongbloed, 2010; Campanella, Della Peruta, Bresciani & Dezi, 2017; Carayannis & Campbell, 2009; Ratten, 2017).
Desse modo, uma universidade empreendedora pode ser capaz de reunir no mesmo espaço, por exemplo, estudantes pouco experientes com ideias interessantes de negócios e empreendedores, mentores e investidores mais experientes dispostos a dar suporte intelectual ou financeiro a essas ideias ( Bailetti, 2011; Etzkowitz, Mello & Almeida, 2005; Hayter et al., 2017). Na sociedade do conhecimento, a universidade pode ainda propor soluções locais para os problemas locais, onde abordagens tradicionais de mercado são pouco viáveis ( Bezerra et al., 2017; Cassity & Ang, 2016; Fini et al., 2018; Sutter et al., 2019; Zahra & Wright, 2011).
Proposição 5. A universidade deve mobilizar ações para fora de seus muros, desenvolvendo atividades de inclusão social dos jovens nas áreas em seu entorno
A universidade tradicional tem sido comparada a uma torre de marfim, por causa de sua tendência de se fechar para dentro de seus muros, se isolando da sociedade e se distanciando do mercado com o seu foco estritamente acadêmico ( Etzkowitz, 2013, Etzkowitz, Webster, Gebhardt & Terra, 2000). E o debate sobre a ética e a efetividade de se comercializar o conhecimento científico tem sido polêmico, em face da multiplicidade de papéis que a universidade empreendedora precisa desempenhar ( Etzkowitz, 2013; Goldstein, Bergman & Maier, 2013; Martin, 2012; Trencher, Yarime, McCormick, Doll & Kraines, 2013).
Acontece que novo modelo de universidade empreendedora incorpora a obtenção de resultados econômicos – e sociais – como parte de sua missão institucional, para devolver à sociedade os altos investimentos que são feitos em educação, como forma de legitimar as atividades de comercialização do conhecimento ( Audretsch, 2014; Bailetti, 2011; Etzkowitz, 2003; Rasmussen & Borch, 2010). Por isso, a universidade deve ser capaz de pensar e mobilizar ações para fora de seus muros, desenvolvendo atividades – por exemplo, de extensão – que sejam capazes de transformar as áreas em seu entorno e, portanto, trazendo benefícios sociais diretos para a sua localidade ( Audretsch, 2014; Bezerra et al., 2017).
É por isso também que o impacto social do que se desenvolve dentro da universidade – especialmente no campo da administração – tem sido cada vez mais valorizado ( Audretsch, 2014; George et al., 2012; Guerrero et al., 2016; Ratten, 2017; Samuelson, 2006). Assim, a universidade empreendedora tem como desafio adicional não apenas desenvolver novos conhecimentos para pesquisas ou para negócios que tenham uma função social e impactem positivamente o entorno da universidade, mas precisa também ser capaz de dar visibilidade às suas ações ( Bailetti, 2011; Jansen et al., 2015; Stensaker & Benner, 2013).
Este ensaio teórico buscou analisar o empreendedorismo como emancipação e as funções da universidade empreendedora enquanto mecanismos de mudança social, especialmente no contexto do jovem em situação de pobreza e vulnerabilidade social. Nessa perspectiva, verificou-se que o empreendedorismo como emancipação surge da característica fundamentalmente socioeconômica desse fenômeno, além de seu potencial inclusivo e de sua capacidade de ser um direcionador da mudança, que deve ocorrer fundamentalmente no nível micro. Mesmo assim, a pesquisa em empreendedorismo ainda trata das questões relacionadas à pobreza de forma tímida, de forma que há muito espaço para pesquisas que se debrucem sobre o estudo do empreendedorismo em contextos de pobreza.
Já em relação às funções da universidade empreendedora enquanto instituição que pode contribuir para o empreendedorismo como emancipação, verificou-se a existência de cinco funções básicas, a saber: (1) política pública social no nível micro; (2) geração de riqueza; (3) inserção local; (4) ponte entre stakeholders; e (5) ações “extra-muros”. Cada função foi apresentada como proposição, a partir de perspectivas existentes na literatura.
Entendemos que há diversos desafios a serem superados em ambas as vertentes. No empreendedorismo como campo de estudos ainda há uma distância dos temas relacionados à pobreza, de forma que o empreendedorismo como meio de redução da pobreza ainda é um campo de estudos bastante fragmentado ( Bruton et al., 2013; Sutter et al., 2019); no outro polo, mas enfrentando questão similar, ainda são poucos os estudos que tratam do suporte institucional da universidade na criação de empresas por jovens na prática ( Åstebro et al., 2012; Bergmann et al., 2016; Bezerra et al., 2017; Wright et al., 2017).
Portanto, há diversas abordagens e caminhos para pesquisas futuras. Em primeiro lugar, pesquisas que se debrucem sobre fenômenos sociais e sobre Grandes Desafios – como a pobreza – têm muito a ganhar do ponto de vista do impacto adotando métodos indutivos, sem prejuízo ao rigor desses estudos ( Eisenhardt et al., 2016). Em segundo lugar, o jovem em situação de pobreza e vulnerabilidade social e os mecanismos de transformação e mudança de vida – especialmente aqueles que acontecem no nível micro, no dia a dia das pessoas – podem ser importantes objetos de estudo. Finalmente, pesquisas que tenham as funções da universidade empreendedora como objetos de estudo podem contribuir avançando as discussões na teoria, na prática, e na formulação de melhores políticas públicas de empreendedorismo.