Dossier: Interseccionalidad crítica, educación y derechos humanos y de los pueblos. Perspectivas, experiencias y políticas en América Latina
Contextos culturais e coloniais da opressão às mulheres mapuche
Contextos culturales y coloniales de la opresión hacia las mujeres mapuche
Cultural and Colonial Contexts of Oppression Towards Mapuche Women
Contextos culturais e coloniais da opressão às mulheres mapuche
Revista nuestrAmérica, núm. 22, e10424028, 2023
Ediciones nuestrAmérica desde Abajo

Recepción: 06 Julio 2023
Aprobación: 07 Noviembre 2023
Publicación: 22 Diciembre 2023
Resumo: Este estudo concentra-se na opressão e empoderamento das mulheres mapuche (domo mapuche), explorando suas conversas, sentimentos e questionamentos em busca de igualdade cosmogônica, mas enfrentando diferenças materiais. O objetivo é visibilizar as demandas próprias e comuns das mulheres mapuche em meio à luta contra o colonialismo interno, o patriarcado e o capitalismo. Realiza-se uma análise crítica da complementaridade, que pode se tornar uma obrigação de serviço aos homens indígenas, reforçando assim a opressão patriarcal. Reflete-se sobre a adoção do feminismo como uma ideologia estrangeira e levanta-se a ambivalência da equidade como objetivo. Além disso, destaca-se a participação das mulheres nos processos de encarceramento dos presos políticos Mapuche e a importância de seu papel na perpetuação da cultura. O estudo conclui com a necessidade de reconhecer e visibilizar as demandas próprias das mulheres Mapuche na luta pela igualdade e emancipação.
Palavras-chave: mulheres mapuche, igualdade, participação política.
Resumen: Este estudio se centra en la opresión y empoderamiento de las mujeres mapuche (domo mapuche), explorando sus conversaciones, sentimientos y cuestionamientos en busca de igualdad cosmogónica, pero enfrentando diferencias materiales. El objetivo es visibilizar las demandas propias y comunes de las mujeres mapuche en medio de la lucha contra el colonialismo interno, el patriarcado y el capitalismo. Se realiza un análisis crítico de la complementariedad, que puede convertirse en una «obligación» de servicio hacia los hombres indígenas, reforzando así la opresión patriarcal. Se reflexiona sobre la adopción del feminismo como una ideología foránea y se plantea la ambivalencia de la equidad como objetivo. Además, se destaca la participación de las mujeres en los procesos de encarcelamiento de los presos políticos Mapuche y la importancia de su rol en la perpetuación de la cultura. El estudio concluye con la necesidad de reconocer y visibilizar las demandas propias de las mujeres Mapuche en la lucha por la igualdad y la emancipación.
Palabras clave: mujeres mapuche, igualdad, participación política.
Abstract: This study focuses on the oppression and empowerment of Mapuche women (domo mapuche), exploring their conversations, feelings, and inquiries in the pursuit of cosmogonic equality but facing material differences. The aim is to shed light on the unique and common demands of Mapuche women amidst the struggle against internal colonialism, patriarchy, and capitalism. A critical analysis of complementarity is conducted, which can morph into an "obligation" of service to indigenous men, thus reinforcing patriarchal oppression. Reflections are made on the adoption of feminism as a foreign ideology, and the ambivalence of equity as an objective is raised. Additionally, the study underscores the involvement of women in the processes of incarcerating Mapuche political prisoners and the significance of their role in perpetuating culture. The study concludes with the necessity to recognize and bring visibility to the unique demands of Mapuche women in the fight for equality and emancipation.
Keywords: Mapuche women, equality, political participation.
Pu Domo Mapuche: Pu Domo Züngü
[1]
Atualmente, as formas de ser mulher mapuche respondem a características múltiplas, ações que buscam recriar o küme mogen, ou seja, o viver bem para todas e todos.
(…) nos processos de empoderamento de seus corpos, seus territórios e de suas organizações, têm reinterpretado as relações de gênero e revisado os elementos de suas tradições que podem ter um papel opressor para a mulher, reafirmando aqueles elementos tradicionais que consideram potencialmente emancipadores. (Painemal Morales e Alvarez Diaz 2016, 77)
As mulheres mapuche (domo mapuche) historicamente estavam incorporadas às atividades político-sociais do povo, podendo assumir qualquer papel de liderança ou orientação no interior deste como interlocutoras válidas, um fato desconhecido na historiografia oficial. «A mulher mapuche sempre teve um papel importante na sociedade mapuche, embora muitas vezes tenha sido invisibilizado e onde apenas seu papel mais ligado à cultura e tradições tem sido acentuado» (Cayuqueo 2008, 4). Com as invasões espanhola (século XVI) e chilena (século XIX), instala-se uma nova ordem econômico-social cuja base de relações pode ser identificada a partir da imposição de uma matriz colonial, seguindo Quijano (referenciado por Lugones 2008) colonialidade do poder, do ser e do saber onde «o poder está estruturado em relações de dominação, exploração e conflito entre atores sociais que disputam o controle» (Lugones 2008, 78), considerando que a partir desse enfoque podemos entender os sistemas que se (re)produzem na América Latina uma vez que o colonialismo administrativo desaparece (com a independência das colônias). A ordem social que coloca os indígenas e as mulheres em uma situação de dominação e hegemonia eurocentrada, com ideias de democracia e cidadania, de desenvolvimento alheias ao reconhecimento do outro como sujeito válido, a partir da classificação destes pelo grau de humanidade ou selvageria, em torno da ideia de raça; onde o padrão humano e de desenvolvimento será dado pela Europa.
A imposição no território mapuche de um Estado-nação estrangeiro chileno levou as mulheres a serem invisibilizadas, mesmo nos estudos e políticas públicas, o que Elisa García Mingo chama de «invisibilidade analítica» (Epulef et al. 2017, 18). A racialização das mulheres mapuche se articula nas relações dentro da sociedade mapuche, mas sobretudo entre a sociedade chilena e a sociedade mapuche, o que fez com que passassem de ocupar espaços de poder político público para um lugar de poder político dentro das famílias, onde, a partir desse processo, «a racialização consegue se efetivar ao naturalizar as desigualdades e alojá-las em um elemento visível, o corpo. Este último acabou sendo o traço distintivo para representar a alteridade» (Ocoró Loango 2010, 50).
Dessa forma, as mulheres mapuche vão experimentar múltiplas opressões que se entrelaçam e, atadas, se reforçam mutuamente tanto interna quanto externamente a partir da construção de estereótipos para a dominação, que indicam os requisitos previamente estabelecidos que devem ser cumpridos para ser e que tendem à homogeneização. Dessa maneira, as mulheres mapuche, em toda a sua diversidade e experiências, vão ser invisibilizadas ou negadas a partir de uma perspectiva interseccional. Seguindo Maria Lugones (2008), isso sugere a existência de um vazio, de «uma ausência», devido à inexistência de lugares que as incluam; essa identidade misturada que responde ao conceito de xampurria, «aquele sujeito que não é puramente mapuche e também não é puramente chileno» (Milanca Olivares 2015, 1).
Durante a década de 1990, na América Latina, começam a ser criados espaços organizativos de mulheres indígenas nos quais se luta pelas demandas culturais de seus povos e, ao mesmo tempo, começam a se desenvolver demandas específicas que questionam a exclusão de gênero (Mattus 2009, 1). Dentro dessas exclusões, será refletido sobre a ideia do que fazer da mulher mapuche a partir da interpelação que a lamgnen (irmã) Ana Llao desenvolveu no trawün (reunião) de Temucuicui.
Em 14 de novembro de 2018, na comunidade de Temucuicui, setor rural da província de Malleco, na atualmente chamada região da Araucanía (Chile) — Wallmapu[2] para o povo mapuche —, ocorre o assassinato do líder mapuche, lamgnen (irmão) Camilo Catrillanca Marín; ele tinha 24 anos e sua vida passou a engrossar a longa lista de mapuches mortos pelas mãos de agentes do Estado chileno. Agudizando a conjuntura crítica dada por esse assassinato, ocorre o encobrimento por parte de diversos agentes do Estado das reais condições em que ele é alvejado, gerando massivas reações de profundo repúdio tanto na sociedade mapuche quanto na sociedade chilena[3].
Em decorrência desse evento, forma-se o Fvta Trawün de Temucuicui (Grande Reunião de Temucuicui), como uma instância deliberativa onde representantes de diversas comunidades mapuche, líderes e dirigentes mapuche de Puel Mapu (atual Argentina) e Ngulumapu (atual Chile) decidem se reunir para determinar quais devem ser os passos a seguir em relação às lutas do povo mapuche, em relação à justiça para o irmão assassinado, em relação à autonomia, autodeterminação, recuperação, controle territorial, entre outros temas prioritários[4].
No desenvolvimento dos trawün, observam-se normas e solenidades relacionadas ao desenvolvimento destes, «O trawün não serve apenas para resolver questões pontuais, mas em si mesmo é uma oportunidade de construir confianças, de se olhar nos olhos, de se encontrar, pelo puro prazer de fazê-lo» (Jeria 2016), alianças são construídas, planos de trabalho são determinados, valores, princípios e ideias são reafirmados, e uma história comum mapuche é compartilhada; a palavra flui sem tempo. No protocolo, todos os presentes se apresentam, para posteriormente dar lugar às intervenções dos representantes políticos dos diversos territórios; é uma instituição política viva e um exemplo de democracia direta na estrutura sociopolítica mapuche. Poderia-se afirmar que esses espaços reforçam «A construção de uma identidade nacional (...) onde o todo prevalece sobre as parcialidades, sobre as divisões» (Ansaldi 2014, 72). São instituições que permitem observar as formas e os fundamentos que operam na organização da nação mapuche, reforçando, entre outros conceitos, aqueles associados à complementaridade como princípio de vida, equilíbrio, energia.
Essa nação, como delineia García Mingo (Epulef et al. 2017), são espaços que não são alheios aos contextos históricos e sociais nos quais se desenvolvem, e é por isso que se faz necessário relatar os sucessivos processos de colonização e colonialidade que o povo mapuche sofreu e experimentou, sendo anterior à formação dos Estados chileno e argentino, vivenciando processos sistemáticos de desapropriação, guerra interna e empobrecimento; mudanças que modificaram os territórios e suas estruturas econômicas, políticas e sociais. Onde se originaram «combinações, alianças, cumplicidades entre colonizadores e homens indígenas originários» (Paredes e Guzmán 2014, 83), que incidiram na transformação de papéis históricos entre homens e mulheres.
El patriarcado, o patriarcado arraigado, como as «combinações, alianças, cumplicidades entre colonizadores e homens indígenas originários» (Idem), desempenhou um papel ativo na definição atual das relações dentro das comunidades, assim como na relação entre a sociedade chilena e a sociedade mapuche.
Dessa forma, na história espanhola, inicialmente, e chilena posteriormente, os processos de luta e representação ao longo da história são refletidos com ênfase na figura dos homens, no weichafe (guerreiro). É assim que nos processos deste trawün, observa-se que, em sua maioria, são homens que tomam a palavra, e em sua maioria, são mulheres que desempenham os papéis de alimentação e serviço na reunião.
Pode-se entender como complementaridade, ou uma forma de equilíbrio, a distribuição de tarefas para o funcionamento desta reunião. No entanto, neste cenário, nem todos os atores têm um script que permita alocução pública ou intervenção direta. As mulheres, domo mapuche, atrizes com uma voz invisibilizada, foram fundamentais nos processos de resistência e luta mapuche dos diferentes territórios presentes na reunião. Geralmente, não eram elas que atuavam como representantes ou werken (porta-voz em mapudugun), mas sim homens, wentrü, que moderavam e carregavam a palavra no debate.
Diante da multidimensionalidade e multicausalidade deste patriarcado interno, a lamgnen (irmã) Ana Llao, mulher mapuche, líder histórica, werken da organização mapuche Ad Mapu, membro do Trawün de Temucuicui, na reunião que ocorreu um mês após o assassinato de Camilo Catrillanca, afirmou: «Nos trawun e nas organizações, há mulheres dispostas a liderar as lutas do povo mapuche. Há muitas mulheres jovens envolvidas nisso, não podemos ser apenas as que estão fritando as sopaipillas» (Llao 2019).
Diante dessa declaração, não houve manifestações de apoio por parte dos presentes, nem dos cinquenta lonkos na reunião. Essa afirmação causou uma forte comoção em todos os presentes, bem como no mundo mapuche que não estava presente, mas que se sentiu interpelado por elas, dividindo as opiniões entre aqueles que apoiavam essas afirmações e aqueles que não concordavam com elas. A partir da interpelação feita nas palavras de Ana Llao, são visibilizados espaços mapuche de conversas, sentimentos e questionamentos que as mulheres mapuche vinham desenvolvendo em busca de uma igualdade cosmológica, mas enfrentando diferenças materiais.
Dessa forma, as mulheres mapuche enfrentam o desafio de reconhecer e visibilizar demandas próprias e comuns dentro de um contexto de luta cruzado e tensionado pelo colonialismo interno, patriarcado, capitalismo e questionamentos por parte de setores da comunidade em relação à adoção de ideologias estrangeiras, como o feminismo, onde «a equidade é um conceito muito ambivalente e um objetivo quase impossível de alcançar de modo que todos e cada um dos atores se sintam respeitados em seus interesses de maneira equitativa» (Nohlen 2008, 38).
A autocrítica aos costumes permite refletir sobre como a complementaridade pode se tornar «uma “obrigação” de serviços por parte das mulheres para os homens indígenas, cobrindo-se com discursos de hábitos e costumes ancestrais» (Ahumada Pailahueque 2019, 105), o que reforça o patriarcado arraigado e, portanto, a opressão das mulheres mapuche. Se um corpo ganha sentido a partir do contexto cultural, os corpos das mulheres mapuche foram marcados pelo patriarcado arraigado de um povo em situação de opressão colonial e colonialidade, onde esses «contextos permitem perceber não apenas a consubstancialidade das relações sociais em questão, mas também as possibilidades que os agentes sociais têm de estender ou reduzir uma faceta específica de sua identidade, da qual precisam dar conta em um contexto determinado» (Viveros Vigoya 2016, 12).
O movimento mapuche se intensifica após o assassinato de Camilo Catrillanca. A necessidade de justiça diante de um crime claramente cometido com premeditação e com a posterior encoberta do Estado gera a união das comunidades, manifestada em um Eluwun (funeral mapuche) multitudinário e na formação do Fvta Trawün (Grande reunião). No entanto, no meio deste novo capítulo da resistência mapuche, este chamado de atenção para a situação de subalternidade que as mulheres mapuche enfrentam ao assumir a liderança na luta mapuche é percebido como uma autocrítica desnecessária e pejorativa em relação à valorização da tradição e ao papel da mulher no trekan (caminhar em mapudugun) da luta mapuche. Desta forma, as mulheres da comunidade de Temuicuicui, onde está localizada a mãe de Camilo, a parceira e suas duas filhas, levantam suas vozes através de um comunicado público que manifestava a rejeição e não representação em relação a tais declarações da werken, considerando a alta valorização do espaço do fogo do kütral, da cozinha como espaço de luta histórica, onde também destacam o papel das mulheres do lof na alimentação da família na luta, na clandestinidade, na visita à prisão, concluindo «O que diria a mãe de Quilapan de Lautaro de Caupolicán, que foram os grandes defensores do Wallmapu, que diria essa mãe que os criou e lhes ensinou a lutar pelo território, teriam tido ideias feministas?» (Mulheres de Temucuicui 2019).
Asim é como surge um levante no meio de outro, levantando a questão pública sobre as mulheres e os espaços de poder tradicionais na institucionalidade dos trawün, «não deixando nada como antes; fecham-se épocas e abrem-se outras novas»[5], dando assim apoio a grupos de mulheres que refletiam sobre a possibilidade de um feminismo mapuche, ou de questionar as tarefas tradicionais[6].
A capacidade de agência das mulheres mapuche ao adotar o discurso da lamgnen (irmã) Ana Llao e começar a divulgá-lo, refleti-lo, questioná-lo ou apoiá-lo, levou a novas críticas internas, provocando assim uma mudança na estrutura social simbólica das reuniões. Isso não significa necessariamente que espaço seja dado à voz das mulheres em partes iguais. Questiona-se a ausência de vozes femininas quando não estão presentes, não apenas pelas próprias mulheres, mas também pelos homens participantes, pois uma situação de opressão e a possibilidade de sua libertação, pelo menos parcialmente, foram visibilizadas —o vespeiro foi mexido—.
Essas mudanças gerais interpretaram a mobilização de grupos de mulheres que ousam questionar seu lugar dentro da luta. Em muitas ocasiões, destacou-se a importância das mulheres nos processos de encarceramento dos lamgnen (irmãos em mapudugun) presos políticos e observou-se as mulheres como perpetuadoras da cultura, da língua, da gastronomia, entre outros, mas alheias à determinação dos objetivos centrais na reivindicação de direitos mapuche e na direção política que o povo tomará. Essas vozes estão presentes nos espaços íntimos da ruka (casa), da kuni (ramada realizada para cerimônias coletivas) ou do kütral (fogo da cozinha), mas raramente na discussão, na deliberação, no acordo que pode ser alcançado em uma instância como um parlamento.
Embora o levante da sopaipilla (massa de farinha frita sem abóbora) —ou ñiwin kofke em mapudugun— não esteja dentro das revoluções pela definição tradicional em relação ao uso direto ou físico da violência, há corpos-territórios de mulheres que contribuem para encarnar esse questionamento. É interessante questionar por que houve essa ressonância, essa revolução, que abre caminho para o questionamento público do papel de serviço e não de interlocutor válido em contextos de reuniões públicas, no meio da deliberação como nação. Fica claro que a cozinha é valorizada como um espaço de resistência antissistêmica e anticapitalista (através da alimentação consciente e das guardiãs de sementes, entre outros), mas ao mesmo tempo há uma demanda por maior incidência no debate de ideias públicas, pois elas nos afetam diretamente como parte do povo. Ou seja, pede-se a despatriarcalização da política e a descolonização da panela.
Essa ruptura simbólica, ao reivindicar um espaço para as mulheres dentro da luta mapuche, é algo que não havia ocorrido anteriormente e menos em uma situação como a mencionada. Ninguém poderia prever o que a dirigente no Trawün de Temucuicui diria, porque, além disso, essa revolução não é dirigida contra governantes no sentido clássico da palavra, mas sim contra a tradição e aqueles que a representam em sua versão patriarcal moderna como werkenes (porta-vozes) ou lonkos (chefes da comunidade), sendo difícil encontrar nos campos que ocupam esses cargos políticos de werken ou lonko sejam mulheres. Aqui parece legítimo perguntar, ao serem os cargos políticos mencionados anteriormente, herdados ou autoatribuídos, mas também, desde a cosmogonia mapuche, manifestações de pülli (espíritos) antigos que expressam kimûn (sabedoria) para o desenvolvimento das funções; por que nesses tempos esses espíritos se manifestariam basicamente em corporeidades masculinas ou o que aconteceu com as histórias, papéis e funções das mulheres mapuche que acompanharam os processos de resistência históricos além da necessária atividade reprodutiva.
A diminuição na realidade sociopolítica das instituições políticas mapuche como resultado dos processos colonialistas vivenciados pelo capitalismo, pelo patriarcado, redundou na possibilidade de que o colonialismo interno faça entalhe naqueles que são nossos interlocutores validamente reconhecidos.
A palavra é poder e desempenha um papel protagonista não ser gente/pessoa — não ser che, mapuche—, assim, as palavras da língua mapuche em um contexto de deliberação política permitem «compreender como pensamos e por que parecemos obrigados a pensar de determinadas formas» (Somers 1996, 32), e evidenciar as tensões que surgem diante dos contextos micro e macro sociais, onde nas gerações jovens há um «aumento de estudantes mapuche no ensino superior (que) leva à geração de novos processos políticos e sociais que repercutirão indiretamente na configuração do movimento mapuche atual» (Flores Silva 2011, 248), principalmente de mulheres que se atrevem «nos processos de empoderamento de seus corpos, seus territórios e suas organizações têm reinterpretado as relações de gênero e revisado os elementos de suas tradições que podem ter um papel opressor da mulher, reafirmando aqueles elementos tradicionais que consideram potencialmente emancipadores» (Painemal Morales e Alvarez Díaz 2016, 77), questionando-se em busca do küme mongen (bom viver).
Sem considerar o discurso de Ana Llao como uma declaração de algum tipo de feminismo mapuche, permite compreender como a participação da mulher mapuche em atividades político-sociais está relacionada à negação da existência de nações preexistentes (nação mapuche), gerando um contexto de nações diminuídas (Gargallo Celentani 2018, 70), grupos sociais sem poder e, portanto, sem cidadania, o que dificulta ser cidadãs mulheres mapuche. Assim, o questionamento interno possibilita mudanças e pronunciamentos, não apenas de grupos de mulheres mapuche que se declaram feministas, mas de todos que se autoidentificam como parte do povo mapuche. Dessa forma, a lamgnen Llao se transforma em werken das mulheres que falam e que não falam, que cozinham ou não.
Existe a crença na fragilidade dos movimentos emancipatórios, razão pela qual muitas vezes se considera desnecessária a possibilidade de interpelar as experiências das mulheres tanto dentro quanto fora dos povos indígenas, alegando que esses questionamentos podem ser prejudiciais e enfraquecer os processos de resistência. Pelo contrário, para existir, para o bem viver, para o equilíbrio, é necessário a possibilidade de nos interpelarmos e nos autodefinirmos a partir de margens acordadas coletivamente de maneira descolonizada, despatriarcalizada e anticapitalista.
A fala das mulheres mapuche, domo züngü, como atoras sociais, «envolvidas na fala ou ação (...), intérpretes de cultura que estão ao mesmo tempo constrangidas e capacitadas por esses códigos de signos e por suas relações internas» (Somers 1996, 61), faz parte de seu povo, permitindo dinamismo e reelaboração de conceitos novos e antigos em primeira pessoa a partir do estar e do habitar nossos territórios, questionando as essencialidades que definem o que se ., derrubando o estereótipo criado para um espaço que foi atravessado pelas diversas violências e opressões que permeiam Abya Yala; mulheres vítimas da colonialidade do poder e, inseparavelmente, da colonialidade de gênero, em direção às mulheres.
Um lugar inexistente dentro do que é conceitualizado estereotipadamente como mulher mapuche indica um vazio, criado a partir de processos de colonialidade externa e interna, um espaço interseccional do ponto de vista de María Lugones, mas também dinâmico, disputando não apenas a ideia e significado de ser mulher mapuche, um lugar e um momento de libertação.

Referências
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Biodata
Sandra Salamanca Ríos
Domo mapuche, docente na Escola de Serviço Social da Universidade do Bío-Bío (Chile). Assistente Social, graduada em Serviço Social pela Universidade da Frontera (Chile) e mestre em Direitos da Criança e da Mulher pelo Instituto de Estudos Globais. Candidata a doutora em Estudos Sociais na América Latina na Universidade Nacional de Córdoba (Argentina). Realizou uma diplomação universitária em Filosofia da Libertação na Universidade San Isidro (Argentina) e um diploma em Direitos Humanos, Povos Indígenas e Políticas Públicas na América Latina e no Caribe na Fundação Henry Dunant. Suas linhas de pesquisa incluem mulheres, mapuche e estudantes universitárias.
Notas