Resumo: O objetivo deste artigo é explorar as tendências e padrões de pesquisa sobre o tema governança com ênfase na gestão das águas no Brasil nos últimos 20 anos e discutir como a gestão eficiente dos recursos hídricos pode contribuir com o desenvolvimento regional. A análise centrou-se em identificar as principais referências teóricas e as temáticas fundamentais abordadas nos estudos selecionados. A partir da análise dos artigos publicados com essa temática, busca-se compreender o papel da governança no que tange à gestão dos recursos hídricos no Brasil e o papel da sociedade civil nesse processo. A metodologia caracteriza-se por uma pesquisa bibliométrica tendo em vista a leitura do comportamento científico da área para a formação de um diagnóstico sobre as publicações relacionadas ao tema da gestão e governança da água. Os resultados encontrados demonstram que existe um alto interesse da comunidade científica nesta área, sinalizando uma busca pelo aprofundamento dos conhecimentos e da base conceitual sobre o tema. Desse modo, este trabalho busca fornecer um direcionamento sobre as oportunidades de pesquisa neste campo de estudos.
Palavras-chave:Gestão e Governança da águaGestão e Governança da água,Pesquisa bibliométricaPesquisa bibliométrica,Desenvolvimento regionalDesenvolvimento regional,Participação socialParticipação social,Políticas públicasPolíticas públicas.
Abstract: The purpose of this article is to explore trends and research patterns on the theme of governance with an emphasis on water management in Brazil over the past 20 years and to discuss how efficient water resource management can contribute to regional development. The analysis focused on identifying the main theoretical references and the fundamental themes addressed in the selected studies. We seek to understand the role of governance in relation to the management of water resources in Brazil, and the role of civil society in this process based on the analysis of selected articles. The methodology is characterized by a bibliometric research that identifies the scientific behavior of the area in order to form a diagnostic about what are the main publications related to the theme of water management and governance. The results founded identified that there is a high interest of the scientific community in this field of study. It highlights that there is a need for deepening of knowledge and conceptual base on this subject. Therefore, this work helps to provide guidance for research opportunities in this field of studies.
Keywords: Water management and governance, Bibliometric research, Regional development, Social participation, Public policy.
Resumen: El propósito de este artículo es explorar tendencias y patrones de investigación sobre el tema de la gobernanza con énfasis en la gestión del agua en Brasil durante los últimos 20 años y analizar cómo la gestión eficiente de los recursos hídricos puede contribuir al desarrollo regional. El análisis se centró en identificar las principales referencias teóricas y los temas fundamentales abordados en los estudios seleccionados. Con base en el análisis de los artículos publicados sobre este tema, buscamos comprender el papel de la gobernanza en relación con la gestión de los recursos hídricos en Brasil y el papel de la sociedad civil en este proceso. La metodología se caracteriza por una investigación bibliométrica con miras a leer el comportamiento científico del área para formar un diagnóstico sobre publicaciones relacionadas con el tema de la gestión y gobernanza del agua. Los resultados encontrados demuestran que existe un gran interés de la comunidad científica en este area, lo que indica una búsqueda de la profundización del conocimiento y la base conceptual sobre el tema. Por lo tanto, este trabajo busca proporcionar orientación sobre oportunidades de investigación en este campo de estudios.
Palabras clave: Gestión y gobernanza del agua, Investigación bibliométrica, Desarrollo regional, Participación social, Políticas públicas.
Gestão das águas e governança: panorama da produção científica brasileira de 1999 a 2019
Water management and governance: overview of Brazilian scientific production from 1999 to 2019
Gestión y gobernanza del agua: resumen de la producción científica brasileña de 1999 a 2019
Recepción: 27 Mayo 2020
Aprobación: 27 Julio 2020
O debate acerca do tema socioambiental e sobre a gestão de recursos hídricos tem se intensificado nos últimos anos (CASTRO, 2007). No Brasil é perceptível um complexo processo de reforma institucional no que se refere à gestão e governança das águas, envolvendo atores municipais, estaduais e nacionais, privados e públicos, organizações governamentais e não governamentais que ocorreram nos últimos vinte anos (ABERS e JORGE, 2005). Em 2010, a Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou importantes resoluções, dentre elas “assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todas e todos” (ONU, 2015). Tais resoluções fazem parte dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e estão diretamente relacionadas às estratégias de promoção à saúde e qualidade de vida dignas para todos a serem alcançadas até o ano de 2030.
Existem diversos fatores que afetam a qualidade de vida e a disponibilidade desses recursos, como o crescimento da população, o processo de urbanização e as políticas de segurança alimentar e energética (ONU, 2010). Tais fatores devem ser avaliados dentro de uma gestão hídrica plena e eficiente. Neste sentido é importante integrar políticas públicas e processos de gestão hídrica que administrem de forma correta e equitativa a sua disponibilidade. A água, além de ser um recurso natural limitado, é de extrema importância para a sociedade e os ecossistemas, uma vez que
A escassez e o desperdício da água doce representam sérias e crescentes ameaças ao desenvolvimento sustentável e à proteção ao meio ambiente. A saúde e o bem-estar do Homem, a garantia de alimentos, o desenvolvimento industrial e o equilíbrio do ecossistema estarão sob risco se a gestão da água e do solo não se tornarem realidade na presente década, de forma bem mais efetiva do que tem sido no passado (ANA, 2002, p. 21).
Dessa forma, a má gestão destes recursos pode ser decisiva para definir a disponibilidade e a escassez da água, o abastecimento desigual, a desigualdade social e a falta de serviços de saneamento (PICCOLI et al., 2016). Não há como garantir o direito à água se ela também não for segura para consumo. Para garantir quantidade e qualidade de água apropriadas para consumo, são necessárias medidas de saneamento que devem ser tomadas para que as condições sanitárias da água sejam efetivamente seguras para o consumo humano. Diante deste contexto é necessário reconhecer que negar às pessoas o direito à água potável é negar-lhes o direito à vida (ZORZI et al., 2016).
Há necessidade de reconhecer que a distribuição de água no país também atua de forma desigual. A água doce equivale a menos de 3% de toda a água do mundo, o restante é constituído por água do mar e não potável (ANA, 2009). No Brasil, a concentração da água doce está em torno de 12% deste total mundial. Analisando essa distribuição, verifica-se que 80% da disponibilidade de água está localizada na Região Norte, onde habitam 5% da população brasileira; 6% na Região Sudeste onde moram 42,63% do total da população; 3,3% está na Região Nordeste que abriga 28,91% da população. Portanto, apenas 30% dos recursos hídricos brasileiros estão disponíveis para 93% da população (ANA, 2009), evocando assim, a preocupação quanto à gestão destes recursos hídricos para a satisfação das necessidades básicas e o bem-estar de toda a população.
No entanto, as perdas de água são consideradas inerentes a qualquer sistema de distribuição. Estima-se que 40% a 60% de água tratada são desperdiçadas no percurso entre a captação e as moradias, em razão de tubulações antigas, vazamentos, desvios clandestinos e tecnologias obsoletas (PICOLLI et al., 2016). É neste sentido que o controle e o gerenciamento apropriados dos recursos hídricos, por meio de ações estruturantes e programas de avaliação, controle e redução de perdas contínuos e efetivos (SNIS, 2019), devem ter caráter mais efetivo a fim de minimizar essas perdas. Portanto, é necessário compreender a importância da governança e a participação da população nesse processo, principalmente no âmbito do desenvolvimento regional, para que uma gestão integrada aconteça e cumpra sua função dentro do campo da gestão das águas no Brasil.
Nesse contexto, o objetivo deste artigo foi explorar as tendências e padrões de pesquisa sobre o tema governança com ênfase na gestão das águas no Brasil nos últimos 20 anos e discutir como a gestão eficiente dos recursos hídricos pode contribuir com o desenvolvimento regional. Por meio de uma análise bibliométrica buscou-se compreender o papel e importância destes conceitos na comunidade científica. O estudo também buscou fornecer indicadores de como esse campo de pesquisa se desenvolveu nas últimas décadas tendo em vista os seguintes objetivos específicos: 1) identificar as principais referências metodológicas e teóricas utilizadas na pesquisa sobre governança e gestão das águas; 2) classificar os temas principais discutidos na comunidade científica sobre governança e gestão das águas; 3) Analisar, com base nos resultados obtidos, a importância e o papel da governança no desenvolvimento regional com ênfase na gestão das águas no Brasil. A partir desses resultados, são tiradas conclusões sobre tendências e padrões acerca do papel da governança e gestão das águas no Brasil. Dessa forma, esta pesquisa busca fornecer pistas sobre as oportunidades e direções para as próximas décadas de pesquisa neste campo particular de estudos.
Foi realizado um levantamento bibliométrico no banco de dados do Portal de Periódicos CAPES. Utilizou-se a ferramenta como principal fonte de busca e informação pois, por meio de sua utilização, foi possível levar em conta critérios de seleção específicos, como credibilidade e visibilidade dos autores e artigos publicados na comunidade acadêmica. Essa ferramenta tem como característica a leitura do comportamento científico da área. Procedeu-se a busca utilizando-se as palavras-chave “gestão da água” AND “governança”. Tendo em vista que o foco deste estudo é analisar a abordagem da gestão de recursos hídricos no Brasil a partir de publicações, foram utilizados os seguintes critérios de seleção: textos completos em idioma português, publicados em revistas acadêmicas, analisados por especialistas e com data de publicação entre 1999 e 2019 (Quadro 1).
A pesquisa encontrou 234 trabalhos publicados e, a partir deles, realizou-se uma análise de conteúdo baseada na leitura de seus resumos. Assim, identificou-se que os temas abordados nesses artigos estavam relacionados às áreas de estudo diversas como saúde, meio ambiente, políticas públicas e gestão da água. No entanto, nem todos os artigos analisados resultaram em significativos para a análise, sendo necessário realizar um refinamento da busca a partir de uma segunda seleção dos artigos por meio de uma análise específica do conteúdo de cada um. Deste modo, foi possível destacar 48 artigos que estavam mais alinhados com a proposta da pesquisa, tendo maior relevância quanto a abordagem dos conceitos relacionados à gestão da água e governança.
Dentre os 48 artigos selecionados, dois artigos foram retirados do refinamento manual por estarem repetidos na busca. Além destes, seis artigos também foram excluídos por não estarem disponíveis para acesso no Portal de Periódicos da CAPES. Ao final do processo, definiu-se, então, 40 artigos que serviram de base para a análise. A partir dos dados levantados, foi elaborada uma planilha utilizando-se o software Microsoft Excel, estruturada com os seguintes campos: autor, título, ano, revista científica, palavras-chave, referências e principais temáticas abordadas. Esta planilha serviu de base para o fichamento e análise de conteúdo dos 40 artigos, resultando nos dados que serão apresentados a seguir (Gráfico 1).
Para complementar a análise, verificou-se a recorrência dos temas discutidos nos artigos, a quantidade de vezes que um autor é citado nos principais meios acadêmicos de publicação do tema, para então demonstrar a relevância e importância desse tema para o meio acadêmico.
Uma primeira categoria de análise dos resultados visa identificar as revistas com maior número de artigos publicados dentro do período analisado, dessa forma, foi possível verificar que a revista com o maior número de artigos publicados sobre o tema foi a revista Ambiente & Sociedade com 9 artigos publicados, seguido da Revista Ambiente & Água com 6 artigos publicados. Por meio dessa análise também foi possível obter uma categorização acerca dos assuntos dos artigos analisados. Essa categorização permite identificar os temas mais debatidos e os que se encontram em destaque atualmente no meio acadêmico.
Os debates acerca do tema governança e gestão das águas concentraram-se nas seguintes categorias: a) participação social nos processos de gestão das águas e governança (JACOBI, 2010; EMPINOTTI, 2011; LORENZETTI e CARRION, 2012; FRACALANZA et al., 2013; WOLKMER e PIMMEL, 2013; MARTINS, 2015; PIZELLA, 2015; EMPINOTTI, 2016; FADUL et al., 2017; FERREIRA et al., 2017; SOUZA, 2017); b) análise do funcionamento e eficiência dos comitês de bacias hidrográficas e atuais sistemas de gestão hídrica no Brasil (CAMPOS e FRACALANZA, 2010, CARNEIRO et al., 2010; MITJAVILA e GRAH, 2011; RIBEIRO, 2011; JACOBI E SINISGALLI, 2012; FRACALANZA et al., 2013; MATOS e DIAS, 2012; CHIODI et al, 2013; SOUZA et al., 2014; FISCHER, 2016; LIBANIO, 2016; MOURA, 2016; PIRES DO RIO et al., 2016; SILVA et al., 2016; SOUZA e SILVEIRA, 2016; ZORZI et al 2016; JUNIOR et al., 2017; TUGOZ et al., 2017; ROSSI e SANTOS, 2018); c) serviços de distribuição e acesso ao saneamento nas cidades (JUNIOR, 2009; RIBEIRO, 2011; PALUDO e BORBA, 2013; SOUZA e COSTA, 2013; JACOBI et al., 2015; JACOBI et al., 2015; ARRUDA et al., 2016 SOUZA e SILVEIRA, 2016; SOUZA, 2017) e d) educação ambiental como prevenção de riscos para a gestão de recursos hídricos (SAITO, 2011; PICOLLI et al., 2016).
A maior proporção de artigos publicados sobre governança e gestão das águas durante o período analisado, basearam-se em estudos de caso (CARNEIRO et al., 2010; EMPINOTTI, 2011; RIBEIRO, 2011; MATOS e DIAS, 2012; CHIODI et al., 2013; SOUZA et al., 2014; ALMEIDA et al., 2015; DEMAJOROVIC et al., 2015; JACOBI et al., 2015; PIRES DO RIO et al., 2016; ARRUDA et al., 2016; SOUZA e SILVEIRA, 2016; FADUL et al., 2017; JUNIOR et al., 2017; FERREIRA et al., 2017), seguidos por estudos de construção de modelos teóricos (JUNIOR, 2009; CAMPOS e FRACALANZA, 2010; SAITO, 2011; LORENZETTI e CARRION, 2012; JACOBI e SINISGALLI, 2012; SOUZA e COSTA, 2013; PIZELLA, 2015; EMPINOTTI et al., 2016; LIBANIO, 2016; PICOLLI et al., 2016; TUGOZ et al., 2017), revisão de literatura (JACOBI, 2010; MITJAVILA e GRAH, 2011; FRACALANZA et al., 2013; MARTINS, 2015; ZORZI et al., 2016; SOUZA, 2017; FISCHER, 2016; MOURA, 2016) e estudos de caso comparativo (PALUDO; BORBA, 2013).
A análise do conteúdo dos artigos selecionados permitiu identificar os autores que obtiveram o maior número de citações dentre as publicações. Nesta categoria, considerou-se os autores citados pelo menos 3 vezes na busca bibliométrica, além dos autores com maior número de publicações, observando-se, assim, aqueles autores com maior relevância no meio científico e acadêmico por terem sido citados em diversas publicações sobre o assunto analisado, conforme demonstrado no gráfico a seguir.
O gráfico 1 demonstra a relação entre os autores mais citados e a quantidade de vezes em que foram citados nas publicações analisadas. Do lado esquerdo, na vertical, destaca-se o nome dos pesquisadores mais citados dentre os artigos publicados e analisados a partir da busca efetuada no Portal de Periódicos da Capes. A seguir, na horizontal, observa-se a quantidade de citações que determinado pesquisador obteve nos artigos selecionados.
A partir dessa análise, verifica-se que o pesquisador com o maior número de citações foi Jacobi, PR. O resultado observado, aliado ao número de citações, é um indicativo que atua como complemento, porém, essencial no que tange a mensuração e visibilidade que autores e artigos apresentam a partir das citações que recebem. Dentro disso coube avaliar o que cada autor pondera sobre os conceitos de gestão da água e governança, considerando que as múltiplas perspectivas e opiniões existentes possibilitam a construção de um entendimento mais sólido sobre o tema.
Analisando a construção política em torno da gestão da água no Brasil, percebe-se que a política da água teve início com as novas relações entre governo e sociedade, fundadas a partir da Constituição Federal de 1988, tendo como princípios a descentralização do poder e a participação popular (JACOBI, 2010). A partir daí, importantes avanços relacionados a gestão dos recursos hídricos surgiram, principalmente a partir da Lei Federal n. 9.433, de 8 de janeiro de 1997 e da criação da Agência Nacional de Águas (ANA), que modificaram a gestão institucionalmente fragmentada para uma legislação integrada e descentralizada (JACOBI; BARBI, 2007), tornando a gestão hídrica no Brasil, não mais uma questão apenas de governo, mas sim de governança.
Mas, o que significa governança neste contexto? Para alguns, a governança é um instrumento, um meio para alcançar certos fins, um conjunto de ferramentas administrativas e técnicas que podem ser usados em diferentes contextos para alcançar um determinado objetivo, como a aplicação de uma determinada política. Para outros, a governança é um processo que envolve não a implementação de decisões tomadas por especialistas e poderosos, mas sim, o debate de projetos alternativos, muitas vezes rivais de desenvolvimento societário, e a definição dos fins e meios que devem ser perseguidos pela sociedade, através de um processo de participação democrática substantiva (CASTRO, 2007).
Desde 2012, algumas regiões do Brasil vêm apresentando um cenário de escassez hídrica, resultante da redução de chuvas ao longo das últimas décadas, em contrapartida, outras regiões vêm apresentando um cenário de inundações e cheias (VASCONCELOS et al., 2016). Considerando que há também conflitos de disponibilidade, qualidade da água e com o ecossistema, diretrizes voltadas aos problemas relacionados à água devem ser resolvidas mediante um processo de negociação política e social que envolva diferentes níveis de governo e, principalmente, os atores sociais (CAMPOS; FRACALANZA, 2010). Por outro lado, a população não cresce na mesma proporção que a demanda por água, tornando-se necessário avaliar a eficiência do sistema de gestão das águas no Brasil. (JACOBI et al., 2005).
De acordo com Vasconcelos et al. (2016), a nova governança da água passou a interrogar a maneira como era gerenciado seu uso, abastecimentos, o foco das políticas de água e os atores incluídos neste processo. Dessa forma, a gestão por meio dos Comitês de Bacias Hidrográficas tem um papel importante no processo de governança, uma vez que parte da premissa que o interesse coletivo deve prevalecer sobre o individual. O artigo 225 da Constituição Brasileira também assegura a todos os brasileiros o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e direciona ao poder público o dever de defendê-lo em favor da coletividade e preservação dos recursos naturais para as gerações futuras. Como forma de regulação dessa atuação diversificada a Resolução do Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH) n. 98 de 2009, apresenta os pilares que orientam hábitos, valores e atitudes que devem mediar o diálogo acerca da gestão e controle social da água.
Neste sentido é importante também compreender que o processo de gestão das águas, de uma forma geral, deve ser orientado pela participação coletiva. A água não pode ser vista somente como um recurso estratégico e de mercado para a produção capitalista, incentivando o setor privado em detrimento do serviço público e comunitário. O processo de inclusão da sociedade civil no sistema de gestão, pode não ser efetivo do ponto de vista da inclusão de seus interesses (CAMPOS; FRACALANZA, 2010), por este motivo, há a necessidade de estabelecer um controle social efetivo sobre a água e a biodiversidade. É neste sentido que alguns instrumentos de caráter normativo podem ser apresentados para a consolidação deste processo, e o Estado atua como um elemento importante neste cenário (PICCOLI et al., 2016).
Todavia, deve-se reconhecer que há aspectos que mitificam a participação social e estes vão desde a origem da participação, a noção de igualdade entre os segmentos participantes do processo até o caráter do produto obtido pelos processos participativos, já que podem influenciar os processos decisórios e pouco favorecer a efetiva participação social. Somente a participação desde a formulação, com a definição conjunta dos pressupostos, paradigmas e objetivos pode assegurar um efetivo processo participativo da sociedade (SAITO; SANTOS, 2006). Ademais, verifica-se que há uma certa ambiguidade na legislação que, por um lado, abre os espaços para a participação da sociedade civil, e por outro supõe um certo acesso a informações técnicas. Observa-se que, apesar dos avanços, a Lei Federal n. 9.433/97 coloca em primeiro plano a importância do corpo técnico-científico e do conhecimento produzido por ele nas relações de força no interior dos espaços decisórios da bacia, o que limita o envolvimento da comunidade nas atividades dos Comitês. Assim, de fato, o poder decisório é mantido entre os que detêm o conhecimento técnico-científico (MARTINS, 2012).
O conceito de governança não pode ser entendido, apenas, como uma construção ideológica, mas como um exercício de liberado e contínuo de desenvolvimento e práticas cujo foco analítico está na noção de poder social que media as relações entre estado, sociedade civil e agentes econômicos e que podem ampliar os mecanismos de democracia participativa na medida em que as práticas oriundas das mediações poderão provocar e promover espaços antes inexistentes da participação social (EMPINOTTI et al., 2016, pág. 64).
Nessa perspectiva, cabe avaliar a importância da participação social para criar espaços que promovam a efetiva integração da sociedade para o fortalecimento da governança relacionada à gestão dos recursos hídricos. A participação social contribui para o fortalecimento da representatividade dos diversos setores sociais existentes (JACOBI, 2010). Porém, o desafio desta participação social consiste na transparência das informações quanto à gestão das águas. As informações acerca das decisões políticas que interferem diretamente na governança deste recurso, muitas vezes são repassadas de forma ineficiente e precária, fazendo com que a presença social, muitas vezes, se dê somente como comprovação de participação. Diante desse cenário, torna-se um desafio estimular uma participação pública realmente efetiva.
A participação popular é um referencial de ampliação de possibilidades de acesso dos setores populares dentro de uma perspectiva de desenvolvimento da sociedade civil e de fortalecimento dos mecanismos democráticos (JACOBI, 2010). A busca por um aperfeiçoamento da gestão da água ocorre através da compreensão de que há inúmeras situações que tornam esse processo complexo e desigual. Nesta perspectiva, o conceito de aprendizagem social torna-se importante para o entendimento dos conflitos reais que ocorrem dentro da sociedade. Essa compreensão favorece políticas públicas mais sólidas e menos conflituosas. Afinal, leis que integram os interesses da sociedade perduram por muito mais tempo.
No contexto da gestão e governança das águas no Brasil, é necessário compreender a complexidade que envolve essa questão dentro do desenvolvimento regional. Isso implica em um sentido próprio à dimensão territorial nele contida e nesta a expressão contextualizada da politicidade da vida humana associada. Um dos problemas mais importantes é que a literatura sobre a política da água (ou de águas) atual tende ainda a apresentar uma compreensão despolitizada da governança, embora esta seja, essencialmente, um processo político espacial e contextualmente localizado. Denominaríamos esta condição de uma falsa premissa fundamental. Falsa por tratar a ação como se qualquer direcionamento político não contasse com indissociáveis imperativos objetivos e subjetivos. E fundamental porque não assumir esta questão implica em profundar o hiato fato e ação administrativa (Ramos, 1989), como se o segundo não buscasse no primeiro a politicidade dos fenômenos que os constituem. Há, portanto, uma ainda presente despolitização no campo dos estudos sobre a governança das águas, e o seu principal mecanismo é a exclusão, no debate, da necessária correlação entre fins e valores, reduzindo-o a mera instrumentalidade mecanomórfica, tecnicidade supostamente neutra. De acordo com Araújo (2002), a governança é entendida como a capacidade que um determinado governo tem para formular e implementar as suas políticas. Destaca-se aqui o termo “capacidade”. Correlato a potencialidade e “poder”, fenômeno sobre o qual se fará digressões a não ser ao dimensionamento político do tema. Emerge este estudo, como reflexão, a proposição de um sentido para governança como subfenômeno da correlação inexorável entre “a política” e “o político”. Dele se desdobra o administrativo enquanto, indissociavelmente nexo, sentido ou intenção e ação pretendida. Em síntese, quando a temática é a governança das águas, é também fundamental que se compreenda por governança, padrões de articulação plural e cooperação entre atores sociais e políticos e arranjos institucionais que coordenam e regulam transações dentro e através das fronteiras de um sistema, não apenas econômico, porém multidimensional. Nesta perspectiva, o fenômeno da globalização impulsionou a discussão sobre os novos meios e padrões de articulação entre indivíduos, organizações, empresas e o próprio Estado, deixando clara a importância da governança em todos os níveis (GONÇALVES, 2005), principalmente nas relações entre sociedade e Estado. Nas palavras de Mantovaneli Jr. e Frey (2015):
Os méritos da democracia, na condução do interesse público, revelam, por conseguinte, a necessidade da qualificação das formas de governo, e a governança que lhe confere governabilidade e capacidade de lidar com riscos e potencialidades. Não no sentido tecnicamente circunscrito do termo, mas na interface com as dinâmicas entre o homem e o ambiente que lhe sustenta a existência. Os termos, governabilidade ambiental, ou governança passam a expressar os sentidos necessários à requalificação da agenda do desenvolvimento, desde seus atributos processuais, ou relativos ao ciclo das políticas em questão na dinâmica administrativa do desenvolvimento (p. 6-7).
Para Ribeiro, Mendes e Filho (2008), a eterna preocupação com a manutenção dos recursos naturais para a própria perpetuação das espécies é um fator que estimula calorosos debates na sociedade contemporânea, por conta de solução difícil de ser conseguida sem o envolvimento dos governos e dos próprios cidadãos. Neste sentido, é preciso entender que o desenvolvimento regional não é apenas um processo localizado de crescimento econômico e mudança social, que tem por objetivo a melhoria da qualidade de vida de uma comunidade, mas deve ser compreendido na escala regional como um processo de desenvolvimento socialmente equitativo e ecologicamente prudente, apoiado na democratização em todas as escalas, com a participação ativa da cidadania na definição de seu paradigma social e na completa soberania dos sujeitos na escolha de seu futuro.
Atualmente, a gestão de recursos hídricos do Brasil está baseada na Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH). A PNRH prevê que a gestão da água não deve dissociar aspectos de quantidade e qualidade e deve considerar a diversidade geográfica e socioeconômica das diferentes regiões do País, o planejamento dos setores usuários e os planejamentos regionais, estaduais e nacional, além da integração com a gestão ambiental, do uso do solo, sistemas estuarinos e zonas costeiras (ANA, 2017). Considerando que região é um espaço socioeconômico, configurado e reconfigurado permanentemente por relações de poder entre indivíduos, grupos e classes sociais, a PNRH busca estruturar, orientar e modernizar a gestão dos recursos hídricos no Brasil com base em seis fundamentos: (1) a água é um bem público; (2) é um recurso natural limitado e com valor econômico; (3) deve-se garantir os usos múltiplos da água; (4) em caso de escassez, os usos prioritários são o abastecimento público e a dessedentação animal; (5) a bacia hidrográfica é a unidade de gestão de recursos hídricos e, (6) a gestão dos recursos hídricos deve ocorrer de maneira descentralizada (ANA, 2017).
A partir da implementação da PNRH, a lei rompe com as tradicionais fronteiras físico-políticas dos estados, exigindo uma integração entre os poderes municipais, estaduais e federal, especialmente quando se trata de uma bacia com rios federalizados. Enfatiza a prática de planejamento do uso e conservação dos recursos hídricos, determinando a elaboração de planos de bacia hidrográfica e de um plano nacional que os consolide. O Plano Nacional de Recursos Hídricos é um documento programático para o setor, atualizando e consolidando os chamados planos diretores de recursos hídricos, que são elaborados por bacia ou conjunto de bacias hidrográficas.
No entanto, uma questão importante no que diz respeito à governança que é o “não acontecimento” quando se trata de direcionar as decisões aos sujeitos sociais em práticas participativas. Ou seja, o “não acontecimento” passa a ser compreendido como fenômeno socialmente produzido, e o “não acontecimento” de uma política regional está situado no contexto da formulação de políticas (RANDOLPH, 2017), conforme nos antecipava Dye (2009) quanto a “não decisão”. Mesmo que o processo de inclusão da sociedade civil no sistema de gestão privilegie a participação dos atores sociais na tomada de decisões, este pode não ser efetivo do ponto de vista da inclusão de seus interesses enquanto alvo e objeto das políticas de gestão das águas, principalmente quando os interesses da sociedade não vão ao encontro dos interesses políticos. E esta distensão possui um sutil limiar de razoabilidade quando o projeto em questão é a democracia.
Quando se fala em interesses políticos, Mouffe (2003) propõe um caminho onde compreender o campo do dissenso em sociedades democráticas é fundamental à sua estabilidade política. Como elemento de compreensão sugere a distinção entre “o político” e “política”, enquanto chave capaz de nos libertar dos riscos da falácia do consenso, em questões estruturantes e fundamentais. “O político” refere-se à dimensão do antagonismo que é inerente a todas as sociedades humanas, pode assumir formas distintas e emergir em relações sociais diversas. Já a “política” refere-se ao conjunto de práticas, discursos e instituições que procura estabelecer uma certa ordem e organizar a coexistência humana em condições que são sempre potencialmente conflituosas, pois são afetadas pela dimensão do “político” (MOUFFE, 2003). A problemática posta por Mouffe se exemplifica empiricamente ante a observações presentes que colocam a questão ambiental como eminente campo de controvérsias. A título de exemplo, no Brasil, cita-se a falta de compromisso federal com a agenda hoje denominada pelo termo “objetivos de desenvolvimento sustentável”, desprestigiando consensos históricos edificados por décadas de tratativas diplomáticas e governança global. A anulação do político pela política e a desconstrução do antagonismo inerente a qualquer projeto democrático, vem desconstituindo arenas fundamentais. O que recoloca, como parte da agenda acadêmica a necessidade de uma abordagem não ingênua na compreensão do fenômeno da governança, tomando-a não como parcela inexorável da ação administrativa mas, indissociavelmente, dos fatos que a determinam. Em suma, governança democrática e sustentável é determinante substantivo da ação social com relação a fins sustentabilistas quando é compreendida enquanto fenômeno total, portanto em sentido indissociavelmente instrumental e ético. A convergência de interesses políticos, em decisões para o bem-estar da sociedade como um todo, não pode ser fruto da sublimação social que produz consensos monistas estendidos interminavelmente. Devem sim refletir a revisão legitimada, no espaço, pela ponderação dialética entre a política e o político. Só assim teremos uma gestão eficiente, das águas como expressão política do desenvolvimento regional. Como diria Figueiredo e Figueiredo (1986), é necessário estabelecer critérios de avaliação que nos permitam dizer se e porque uma política é preferível à outra, uma vez que envolvem a concepção de bem-estar humano e as prioridades observadas entre eles.
Ao pensar em sistemas políticos, a tendência é a abstração do mundo real numa tentativa de simplificar, esclarecer e entender o que é realmente importante em política (DYE, 2009). Ademais, nas palavras de Dye (2009), talvez todos prefiram viver em um sistema político em que todos tenham voz igual na formulação de políticas, em que muitos interesses distintos proponham soluções para os problemas públicos, em que a discussão, o debate e as decisões sejam abertos e acessíveis a todos. De fato, a realidade é bem mais controversa do que se imagina e os propósitos e prioridades em políticas nem sempre seguem um consenso, tornando todo o processo uma forma de legitimar decisões que, muitas vezes, não sugerem uma boa governança.
A partir da avaliação bibliométrica realizada neste artigo, foi possível observar que o tema acerca da governança e da gestão das águas no Brasil obteve avanço considerável no meio acadêmico nas últimas décadas. Revelou-se uma preocupação quanto a efetiva participação da sociedade nos processos decisórios em comitês de bacias, das informações repassadas à sociedade e o papel do governo nesse processo. Os artigos analisados obtiveram uma quantidade considerável de citações por parte dos pesquisadores que contribuíram muito, principalmente em conteúdo, para a compreensão da importância do assunto no âmbito das publicações. Além disso, visando as tendências e padrões de discussão relacionadas ao tema é possível traçar perspectivas futuras para esse campo de estudo. Em termos gerais foi possível identificar que existe alto interesse da comunidade científica quanto à gestão e os processos decisórios relacionados à água, sinalizando busca pelo aprofundamento dos conhecimentos e da base conceitual sobre o tema.
Nesta perspectiva, foi possível perceber a importância da atuação descentralizada do Estado nas questões relacionadas ao gerenciamento de políticas públicas voltadas à gestão da água, a fim de consolidar a justiça e a participação social. O desafio maior é trazer para o debate a verdadeira governança. Aquela em que os interesses e a participação dos setores da sociedade são ouvidos e expressam salutar conflito democrático entre interesses políticos. A participação da sociedade civil na gestão pública introduz mudança qualitativa na medida em que incorpora outros níveis de poder além do Estado, ao desenho institucional das políticas públicas relativas à água e à temática maior que a contém, o campo conflitivo da sustentabilidade. É preciso abrir espaço para a participação da sociedade nas decisões, principalmente quanto à gestão dos recursos hídricos, de forma a complementar e incentivar a ampla participação de novos atores no processo de tomada de decisão em políticas públicas, favorecendo assim, o bem-estar de todos.
Apesar do avanço nos processos de governança a partir do envolvimento da sociedade civil, os espaços de formulação de políticas públicas relacionadas à gestão e governança da água, quando intencionalmente destinados à sustentabilidade, precisam assumir seus antagonismos fundamentais e tornar a participação da sociedade mais efetiva nos processos decisórios. O conhecimento técnico é tão fundamental quanto a participação popular, pois são nessas dinâmicas político-territoriais que os procedimentos (discussão, negociação e voto) são tratados de forma legítima.
Assim, conclui-se que os processos que envolvem a gestão hídrica, de forma geral, devem ser baseados na participação coletiva. Há necessidade de promover a descentralização e uma maior participação da sociedade na arena político-administrativa brasileira junto aos processos de discussão de políticas governamentais que se baseiam nas preocupações em escalas locais a respeito da gestão da água, com a intenção de transformar este cenário. A capacidade de alterar leis e diretrizes públicas relacionadas à gestão de recursos hídricos está diretamente relacionada às demandas que se estruturam na sociedade, portanto a esfera pública representa a construção dessa viabilidade.
A partir dos resultados deste estudo, sugere-se que pesquisas futuras examinem, além das questões relacionadas às políticas públicas dirigidas ao tema da gestão da água, também, de forma mais abrangente, as questões ambientais que se relacionam com o processo sob a perspectiva do desenvolvimento regional, tais como a proteção ambiental, mudanças climáticas, resiliência socioambiental e a ampliação da participação social nos processos de decisões públicas ambientais. Outras contribuições poderiam colaborar para expandir a compreensão sobre o risco da escassez de água, o consumo seguro e outros possíveis problemas ocasionados pelo gerenciamento incorreto deste recurso, reforçando a preparação com base na colaboração efetiva entre as partes interessadas (principalmente a nível local e regional), objetivando melhorar a resiliência em todo o processo.
Os autores agradecem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico que por meio da chamada UNIVERSAL/MCTIC CNPQ/ 2018 (vigente) viabilizou o projeto “ARENAS, DISPUTAS E DESAFIOS NOS MULTIPLOS ARRANJOS DE GESTÃO DAS ÁGUAS” no qual este artigo está vinculado. Da mesma forma, os autores agradecem a concessão das bolsas de extensão no país (Projeto Universal citado) à Camila Cristina Rosa (2019-2020) e à Patrícia Dornelles de Aguiar (2020-2021). Os autores agradecem a Universidade Regional de Blumenau (FURB) pelo apoio institucional e às Universidade Estadual da Paraíba e Universidade Federal do Rio de Janeiro que definiram a equipe de pesquisa do projeto. Outrossim, os autores Cristiane Mansur de Moraes Souza e Oklinger Mantovaneli Junior agradecem ao CNPq pelas suas bolsas produtividade em pesquisa.