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A produção de alimentos para o autoconsumo em famílias de agricultores da região oeste do Estado de Santa Catarina
Food production for self-consumption in the western region of the Brazilian State of Santa Catarina
La producción de alimentos para autoconsumo en la región oeste del estado brasileño de Santa Catarina
Redes. Revista do Desenvolvimento Regional, vol. 25, núm. Esp.2, pp. 2060-2085, 2020
Universidade de Santa Cruz do Sul


Recepción: 28 Diciembre 2019

Aprobación: 12 Julio 2020

DOI: https://doi.org/10.17058/redes.v25i0.14645

Resumo: A produção de alimentos para o autoconsumo até recentemente era associada ao atraso e à agricultura de subsistência, que tenderia a desaparecer. Entretanto, questões relacionadas às transformações no sistema agroalimentar e à emergência de críticas à excessiva industrialização da agricultura e suas consequências sociais e ambientais, dão novo significado ao tema, que passa a ser objeto de pesquisas. Assim, este artigo relata pesquisa que enfocou uma caracterização da produção de alimentos para o autoconsumo na região Oeste de Santa Catarina, levantando tipos e quantidades desses alimentos e identificando as razões pelas quais agricultores deixaram de produzir algumas espécies antes cultivadas. Além disso, foi avaliada a importância econômica dos produtos para o autoconsumo, pelo valor que seria despendido se os mesmos fossem adquiridos no mercado. Trata-se de pesquisa de caráter quantitativo e exploratório, com a aplicação de 381 questionários junto a agricultores de 112 municípios da região. Como resultado, observou-se que a produção para o autoconsumo está presente em todas as propriedades, mesmo nas integradas, fornecedoras de matérias-primas para a agroindústria. Essa produção caracteriza-se pela diversificação e contribui decisivamente para a segurança alimentar das famílias no meio rural. Observaram-se diferenças na distribuição espacial regional, relacionada à quantidade e a variedade desses produtos.

Palavras-chave: Autoconsumo, Segurança alimentar, Agricultura familiar, Oeste catarinense.

Abstract: Food production for self-consumption in Brazil until recently was associated with backwardness and subsistence agriculture, which would tend to disappear. However, issues related to changes in the agri-food system and the emergence of criticism of the excessive industrialization of agriculture and its social and environmental consequences give new meaning to the subject, which is now subject of research. Given the scarce knowledge produced on the subject, this article aims to characterize the food production for self-consumption in the western region of Santa Catarina (Brazil), surveying ways and quantities of this production and identifying the reasons why farmers stopped producing some products, besides verifying the economic importance of production for self-consumption. This is a quantitative research covering 112 municipalities, with the application of 381 questionnaires to family farmers in the western region of Santa Catarina. As a result, it was observed that production for self-consumption is present in all properties, even those producing raw materials for large agri-food companies. This production is characterized by its diversification and contributes decisively to the food and nutritional security of farmers in the region. Differences in spatial distribution related to the quantity and variety of what is produced for household consumption were also noted, and the main causes that led farmers to stop producing some products were raised. It was also observed the economic importance of production for self-consumption, because the interviewees reported saving a good part of monthly income, not having to buy the food produced in the family farm in the grocery stores.

Keywords: Self-consumption, Food safety, Family farming, Western region of Santa Catarina.

Resumen: La producción de alimentos para el autoconsumo en Brasil estuve asociada con el atraso y la agricultura de subsistencia, que tenderían a desaparecer. Sin embargo, los problemas relacionados con los cambios en el sistema agroalimentario y la aparición de críticas a la industrialización excesiva de la agricultura y sus consecuencias sociales y ambientales dan un nuevo significado al tema, que ahora es objeto de investigación. Este artículo caracteriza la producción de alimentos para autoconsumo en la región oeste de Santa Catarina, examinando los tipos y cantidades de esta producción, identificando las razones por las cuales los agricultores dejaron de producir algunos productos y verificando la importancia económica de la producción para autoconsumo. Esta es una investigación cuantitativa que abarca 112 municipios, con la aplicación de 381 cuestionarios a agricultores familiares. Como resultado, se observó que la producción para el autoconsumo está presente en todas las propiedades, incluso en aquellas que producen materias primas para grandes empresas agroalimentarias. Esta producción se caracteriza por su diversificación y contribuye decisivamente a la seguridad alimentaria y nutricional de los agricultores. También se observaron diferencias en la distribución espacial relacionadas con la cantidad y variedad de lo que se produce para el consumo familiar, y se plantearon las principales causas que llevaron a los agricultores a dejar de producir algunos productos. También se observó la importancia económica de la producción para el autoconsumo, porque los entrevistados informaron que ahorraron una buena parte de los ingresos mensuales, sin tener que comprar en los alimentos que producen.

Palabras clave: Autoconsumo, Seguridad alimentaria, Agricultura familiar, Región Oeste de Santa Catarina.

1 Introdução

A região Oeste Catarinense é conhecida nacionalmente como produtora de alimentos de origem animal. Esse reconhecimento resulta da presença de grandes agroindústrias, processadoras de carnes de aves e de suínos, players globais na produção de proteína animal. Nas últimas décadas, ocorreu a rápida expansão da Bovinocultura de Leite que, atualmente, constitui a principal atividade socioeconômica agrícola.

A agroindústria tem sua base produtiva assentada em uma agricultura familiar dinâmica, que representa 84,1% dos estabelecimentos agrícolas da região, cuja área média é de 16 hectares (IBGE, 2017). A diversificação produtiva é uma característica dessa agricultura. A policultura fez parte, historicamente, dos sistemas agrícolas da região, associando lavouras e criações. A consolidação do grande parque agroalimentar regional implicou na introdução massiva de tecnologias e de mudanças organizacionais, em especial, dos contratos de integração entre indústrias agroalimentares e agricultores, tendo como uma das características a restrição da autonomia técnica e econômica destes últimos.

Ao mesmo tempo, a agricultura de base familiar do Oeste de Santa Catarina é rica em conhecimentos tradicionais na produção e processamento artesanal de alimentos. Embora essa agricultura seja predominantemente voltada ao mercado, a produção mercantil coexiste com a de alimentos para autoconsumo. Porém, pesquisas realizadas na região (DORIGON, 2008; DORIGON, RENK; 2011; DORIGON et al., 2015) constatam que as transformações recentes no meio rural têm reduzido a produção para o autoconsumo. Dentre as causas dessas mudanças destacam-se a redução do tamanho das famílias; o envelhecimento da população rural, consequência do êxodo rural dos jovens; o aumento de escalas na produção de commodities, que resulta em pouco tempo disponível para outras atividades produtivas e; a renda da aposentadoria rural, que permite a compra de alimentos, anteriormente produzidos nos próprios estabelecimentos. E, naqueles estabelecimentos rurais com avicultura industrial, há a restrição na criação de aves caipiras, devido a alegação de problemas sanitários por parte da grande indústria agroalimentar.

Entretanto, a crescente relevância acadêmica do tema da segurança alimentar e nutricional, do combate à pobreza rural, dos circuitos curtos de comercialização, da crescente preocupação com a questão ambiental e com a agrobiodiversidade, recoloca na agenda dos estudos rurais a produção de alimentos para o autoconsumo. Além disso, há também a questão de gênero, pois na região analisada a produção para autoconsumo é tida como atividade típica das mulheres e denominada de produção de “miudezas”, considerada de pouca relevância econômica quando comparada às atividades de importância comercial, como a avicultura industrial, a suinocultura, a produção de leite e de grãos.

Como resultado, quase não há estudos regionais a respeito da produção de alimentos para autoconsumo. Buscando preencher parcialmente essa lacuna, este texto apresenta e analisa os resultados de pesquisa cujo objetivo consiste em caracterizar a produção de alimentos para o autoconsumo nas unidades familiares da região Oeste de Santa Catarina1. O texto é dividido em duas partes, primeiro analisa-se a bibliografia disponível sobre o tema, discutindo-se as diferentes definições e funções da produção para o autoconsumo. Na segunda parte são apresentados e analisados os dados primários da pesquisa.

2 A produção para autoconsumo: definições e funções

Correntemente são utilizadas diversas denominações para a produção para o autoconsumo: produção para a subsistência, para o autoabastecimento, produção para o consumo familiar, produção de miudezas, produção “pro gasto”, entre outras. No meio acadêmico o termo mais adotado é o de autoconsumo, definido por autores como Grisa, Gazolla e Sheneider (2010) como sendo:

Toda a produção realizada pela família cujos produtos são destinados ao seu próprio consumo. Diz respeito ao cultivo de alimentos para o consumo familiar (horta, pomar, criação de animais, etc.) e dos animais presentes no estabelecimento, à fabricação de ferramentas e à produção de insumos para o processo produtivo (GRISA, GAZOLLA e SCHNEIDER, 2010, p. 66).

Para Garcia Jr (1999), o autoconsumo compreende a produção a ser consumida pela família, tal como alimentos, instrumentos domésticos, artesanato, lenha, materiais para construção ou para a fabricação de objetos de uso da família, plantas medicinais, dentre outros. Já autores como Leite (2004) definem autoconsumo como a fração de produção agropecuária (agrícola, pecuária, extrativista e aquela resultante de produtos primários beneficiados) produzida em um estabelecimento familiar e destinada ao consumo da família, dos responsáveis, à alimentação animal e outros usos da atividade produtiva. Maluf (2003) define produção para o autoconsumo como aquela destinada à alimentação da família, dos animais e a produção de lenha. Sacco Dos Anjos e Schneider (2003) delimitam o autoconsumo à produção alimentar e o definem como parte da produção animal, vegetal e transformação caseira produzida pela família e consumida por esta. Lovisolo (1989), por sua vez, salienta que não são as características ou as quantidades que definem o autoconsumo, mas sim a lógica que orienta a produção. Portanto, a definição do que se entende por produção para o autoconsumo depende do recorte definido pelo pesquisador. Assim, neste texto analisa-se a produção destinada ao autoconsumo alimentar das famílias de agricultores, conforme definida por Sacco Dos Anjos e Schneider (2003), inclusive as plantas medicinais e aromáticas.

Em nível internacional, os primeiros estudos sobre produção para o autoconsumo datam do início do século XX, em unidades de produção familiar russas, observadas por Alexander Chayanov (1974). Esse autor estudou em um contexto mais microeconômico nas unidades camponesas, buscando compreender como a família trabalhava para atender às necessidades fundamentais dos seus membros e, em um segundo plano, para acumular capital.

Trazendo esta discussão para o Brasil, Grisa (2007) observa que a produção destinada ao autoconsumo não é tema de muitos estudos. Isso se dá, segundo a autora, pelo fato desta prática estar destinada ao esquecimento, além de um preconceito existente, por simbolizar uma cultura que vai no ciclo contrário ao da modernização. Ao analisar os dados do censo do IBGE de 2006, Grisa, Scheneider e Conterato (2013) observam as condições econômicas, sociais e produtivas dos estabelecimentos familiares, suas diferentes estratégias de reprodução social e as diferenças regionais a respeito do tema. Os autores argumentam que até recentemente a produção para o autoconsumo era entendida, no campo institucional e político, como o resíduo do passado, associado ao atraso, ou de práticas avessas à modernização.

Entretanto, segundo Grisa, Scheneider e Conterato (2013), a partir do início dos anos 2000, alguns pesquisadores brasileiros retomaram o tema do autoconsumo na perspectiva de uma tradição recontextualizada, a qual poderia cumprir vários papéis e funções no meio rural contemporâneo:

Tornou-se particularmente importante a vinculação das análises sobre o potencial desta produção no acesso à alimentação, oferta de alimentos saudáveis, estabilidade monetária, sociabilidade e identidade das famílias rurais, vindo a constituir uma referência importante nas estratégias e ações de segurança alimentar e nutricional que se desenham nesta época no Brasil. (GRISA, SCHENEIDER E CONTERATO, 2013, p. 10).

Grisa, Scheneider e Conterato (2013) destacam também seis funções da produção para o autoconsumo: i) manter a alimentação sob o controle da unidade familiar, o que contribui para a segurança alimentar; ii) diversificar os meios de vida; iii) economizar recursos e potencializar o uso de força de trabalho e da terra; iv) restabelecer a coprodução entre homem, trabalho e natureza; v) promover a sociabilidade; vi) contribuir com a identidade social.

Vários estudos, como os de Maluf, Rezende e Marques (2001), Gazolla (2004), Maluf e Menezes (2007), Grisa (2007), Menasche (2007); Zanetti e Menasche (2007), Grisa, Gazolla e Schneider (2010), Grisa, Schneider e Conterato (2013) também apontam a relevância do autoconsumo para a segurança alimentar e nutricional2. Segundo Maluf e Menezes (2007), três princípios fundamentais norteiam a segurança alimentar e nutricional, quais sejam, a qualidade nutricional dos alimentos e a ausência de componentes químicos que possam lesar a saúde orgânica; os hábitos e cultura alimentar específicos de cada comunidade, de cada grupo social e a sustentabilidade do sistema agroalimentar.

Grisa (2007) descreve uma série de atributos relativos ao autoconsumo, dentre eles, a diminuição da dependência da família às relações de mercado e a segurança alimentar. Relacionados aos dois primeiros, estão a diminuição da vulnerabilidade e a melhor utilização e potencialização dos recursos da propriedade. A autora também destaca a importância sociocultural da produção “pro gasto” pela sociabilidade promovida, que beneficia a coesão da estrutura social e a identidade dos agricultores, a legitimação e o reconhecimento. Haverroth (2012) observou, a partir da produção para o autoconsumo, diversas manifestações de reciprocidade, como a troca de produtos, sementes e serviços entre os vizinhos.

A produção para o autoconsumo tem também uma importante interface com a questão ambiental e a de gênero. Ao analisar o papel desempenhado pelas agricultoras na segurança alimentar de 18 famílias numa comunidade rural do município de Encantado no Rio Grande do Sul, Zanetti e Menasche (2007) constataram que nenhuma das agricultoras entrevistadas faziam uso de agrotóxico na obtenção de alimentos para o autoconsumo. Observaram também a grande variedade e quantidade de alimentos disponíveis ao longo das diferentes estações do ano e verificaram que na maior parte das famílias estudadas as refeições são preparadas predominantemente a partir dos alimentos produzidos na propriedade ou obtidos na troca com vizinhos. Constatam também que a produção de alimentos para o autoconsumo está enraizada na história das famílias e da comunidade, garantindo a diversidade, a qualidade e a disponibilidade durante o ano todo. Assim, segundo Zanetti e Menasche (2007), a produção de alimentos para o autoconsumo das famílias estudadas tende a assegurar a segurança alimentar das mesmas, segundo a definição e princípios propostos por Maluf e Menezes (2004).

Outra contribuição do autoconsumo está relacionada à manutenção da biodiversidade doméstica. Digard (2012) define a biodiversidade doméstica como o processo de domesticação de animais pelo homem, transformando-os e diversificando, dando origem a novas espécies e – no interior das espécies – a novas raças. A promoção da biodiversidade doméstica ocorre, segundo Digard (2012) sobretudo via especiação, racialização, mestiçagem e hibridação. Segundo esse autor, a biodiversidade doméstica é fundamental à humanidade e, ao não preservá-la, há o perigo do empobrecimento do patrimônio genético, risco de penúrias alimentares e fragilidades face às epizootias:

A diversidade doméstica é também uma necessidade vital para o Homem. Antes de mais nada, ela contribui para a satisfação de suas necessidades energéticas (trabalho animal), alimentares (carne, leite, ovo, mel...), indumentárias (lã, pele, couro, seda...) e outras. Além disso, uma biodiversidade doméstica rica e equilibrada constitui um insubstituível instrumento de gestão ambiental – ela permite conter ou reduzir a proliferação de espécies indesejadas – e significa a preservação sanitária, isto é, a manutenção de uma diversidade racial significativa representa uma garantia contra a catástrofe sanitária, e alimentar que poderia provocar uma epizootia sobre espécies domésticas com um número muito pequeno de raças dominantes. (Digard, 2012, p. 9/10).

Embora esse autor analise apenas a biodiversidade doméstica animal, esse mesmo raciocínio vale para as espécies e cultivares vegetais.

No contexto brasileiro, Menasche et al. (2007) analisam que a produção para a autoconsumo, além de ser livre de agrotóxicos e adubos químicos sintéticos, há também a preocupação dos agricultores com o material genético adaptado ao ambiente, o que resulta na existência de um banco vivo de germoplasma nos quintais, hortas e lavouras normalmente desconsiderado pela pesquisa agropecuária. Em consonância com esta produção, as famílias cultivam valores como a solidariedade e o saber local, via troca de sementes e conhecimentos entre agricultores.

Dorigon, Renk e Silva (2012), ao analisar a produção e processamento artesanal de alimentos pelos agricultores familiares da região Oeste Catarinense, denominados de produtos coloniais, destacam que ao longo da experiência percorrida pelos imigrantes e seus descendentes, as práticas e disposições coletivas dessas famílias de agricultores, acumuladas na interface entre as gerações, consagraram esses alimentos como patrimônio alimentar.

Embora produtos coloniais e produção para autoconsumo não sejam exatamente sinônimos, há entre esses dois conceitos importantes interfaces. O que diferencia, basicamente, a produção para o autoconsumo dos produtos coloniais é o componente étnico desses últimos – produzidos por colonos, agricultores descendentes de italianos, alemães e poloneses (DORIGON, 2008; DORIGON et al., 2015), enquanto que a produção para o autoconsumo é mais genérica e ampla. Outra diferença relevante é a importância que os produtos coloniais vêm ganhando em termos de relação com o mercado. Para o entendimento dessa “importância viva” do patrimônio alimentar, Dorigon, Renk e Silva (2012), remetem à reflexão de Narotzky (2004, p. 246-248), para quem as relações sociais contêm, ao mesmo tempo, os elementos imateriais que dizem respeito à reprodução dos coletivos sociais (ideologia, cultura, identidade) e a instância material da função econômica: a produção. Assim, Dorigon, Renk e Silva (2012) argumentam que o alimento colonial é um patrimônio imaterial e com a finalidade também de atender a uma necessidade básica, isto é, permitir a manutenção e reprodução biológica dos indivíduos sociais. Portanto, segundo Dorigon, Renk e Silva (2012), o consumo material do alimento seria o ato final, invariável e indispensável à continuidade da família.

Em síntese, é possível observar que a produção para o autoconsumo é multifuncional. Esta contribui não apenas com reprodução econômica das famílias, mas também social e cultural.

3 Procedimentos metodológicos

A seguir apresentam-se e analisam-se os dados resultantes da pesquisa “Caracterização da produção de alimentos para autoconsumo na região oeste catarinense”. A referida pesquisa abrangeu 112 municípios, e a fonte de dados é a aplicação de questionário junto a 381 famílias de agricultores. A pesquisa restringe-se apenas à produção para autoconsumo alimentar, definida como parte da produção animal, vegetal e transformação caseira produzida pela família e consumida por esta, incluindo-se também a produção de plantas medicinais e condimentares.

em que N é o número total de famílias de agricultores atendidas pela Epagri na região Oeste de Santa Catarina, p é a proporção de resultados favoráveis da variável na população (neste caso, o número suposto de famílias que produzem para autoconsumo); q é a proporção de resultados desfavoráveis na população (número de famílias que não produzem para autoconsumo), em que p e q foram considerados como 50% neste estudo (q = 1 − p); z é o valor crítico da distribuição normal para a confiança de 95% (neste caso 1,96); e é o erro padrão da média, definido como 5% neste estudo. Trata-se de uma amostra aleatória estratificada proporcional, em que os estratos são os municípios e a subamostra é proporcional ao número de famílias atendidas no município (tamanho do estrato) pelo serviço de extensão rural da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri). As famílias entrevistadas foram sorteadas a partir do banco de dados da Epagri e cadastradas no Sistema Epagri de Assistência Técnica, Extensão Rural e Difusão Tecnológica - SEATER (AYRES et al., 2015), que contava no momento de definição da amostra com 128.900 famílias cadastradas. Fizeram parte do universo da pesquisa todas as famílias cadastradas como agricultoras, independente do tipo de agricultura realizada. Entretanto, como já mencionado anteriormente, 84,1% dos estabelecimentos rurais são de propriedade de agricultores familiares e, por fazer parte da base cadastral da Epagri, presume-se que o número famílias de agricultores familiares entrevistado deva ser maior que o percentual de agricultores de base familiar existente na região.

Estes 381 questionários foram aplicados pelos extensionistas dos escritórios municipais da Epagri da região abrangida pela pesquisa nos meses de maio e junho de 2018, sempre com prévio agendamento com as famílias, entrevistando-se o componente familiar que se dispusesse a responder as perguntas. O questionário é composto por questões objetivas e de múltiplas escolhas, perguntadas e anotadas pelo entrevistador. Destaca-se que em relação às perguntas que envolviam valoração monetária foram anotadas as percepções dos agricultores com relação a estes valores.

No que se referem às espécies vegetais cultivadas, os agricultores declararam o nome comum das espécies, sem se preocupar com a distinção entre as variedades. Posteriormente, alguns nomes foram agrupados, como por exemplo, vergamotas, mexiricas, poncan e tangerinas foram agrupadas todas como tangerinas. Com os dados classificados em hortaliças, frutíferas, grãos e medicinais/aromáticas/condimentares, calculou-se o índice de diversidade de Shannon (H):

em que s é o número total de espécies; p. é a proporção da espécie no município (p. = n. /N); n. é o número de indivíduos da espécie; N é o número total de indivíduos na amostra. Altos valores de H indicam grande diversidade de espécies. Com os índices estimados e as coordenadas geográficas centrais de cada município, os parâmetros do modelo linear Gaussiano foram estimados pela maximização do logaritmo da função de verossimilhança para a análise geoestatística realizada de acordo com Ribeiro Jr e Diggle (2018). Após o ajuste do modelo, realizou-se a predição espacial (krigagem) com uma malha de predição de 90.000 pontos, utilizando o modelo ajustado e os índices calculados (H) nos pontos distribuídos na região. Com os resultados das predições elaboraram-se mapas para identificar zonas diferenciadas do índice de diversidade. As análises foram realizadas com o ambiente (R CORE TEAM, 2017).

4 Resultados e discussão

Antes de analisar os dados relativos a caracterização da produção para o autoconsumo, julga-se relevante apresentar alguns números referentes às questões fundiárias e às atividades geradoras de renda das famílias entrevistadas.

Quanto a estrutura fundiária (Tabela 1), 90,2% dos estabelecimentos rurais pesquisados possuem até 50 hectares, sendo que destes 62,2% possuem área de até 20 hectares. Observa-se também um expressivo número de estabelecimentos rurais com pouca área - 9,7% das famílias entrevistadas têm menos que 5 hectares e 28% possuem até 10 hectares.

Tabela 1
Estrutura fundiária dos estabelecimentos rurais por estrato de área nas famílias rurais entrevistadas em 112 municípios da região Oeste de Santa Catarina/Brasil

Fonte: elaborada pelos autores a partir dos dados coletados no questionário.

Portanto, são propriedades com pouca área de terra3 cuja produção para o autoconsumo é considerada importante para a reprodução econômica das famílias, porque o que é produzido na unidade agrícola não necessita ser adquirido no mercado.

Em relação às atividades desenvolvidas, observa-se que a bovinocultura de leite está presente em 55,1% dos estabelecimentos e representa, segundo a percepção dos agricultores, 30% da renda líquida obtida (Tabela 2)4. A aposentadoria rural é a segunda fonte de renda mais presente, estando em 54% das famílias entrevistadas, e representa, segundo a percepção dos agricultores, 24,1% da renda líquida destes estabelecimentos.

Tabela 2
Atividades que geram renda (segundo a percepção dos agricultores), número de estabelecimentos (n) com as atividades, percentual em relação ao total de estabelecimentos e porcentagem da renda nas famílias rurais entrevistadas em 112 municípios da região Oeste de Santa Catarina/Brasil

Fonte: elaborada pelos autores a partir dos dados coletados no questionário.

Outro dado que chama a atenção é a importância da bovinocultura de corte, atividade historicamente pouco expressiva na região em relação ao número de unidades de produção que desenvolviam esta atividade e da importância para a geração de renda, mas já presente em 27% das famílias entrevistadas, e que representa 24% da renda líquida total, mesmo valor da aposentadoria. Embora não houvesse no questionário uma pergunta específica sobre a pecuária de corte, pode-se levantar como hipótese para o crescimento da importância econômica desta atividade a reconversão produtiva de produtores de leite ou de grãos para a produção de gado de corte naquelas propriedades rurais sem sucessores e com agricultores de mais idade ou já aposentados. Assim, os agricultores aproveitam a estrutura produtiva já existente (terras, pastagens, instalações, máquinas e equipamentos) e passam a produzir gado de corte. Embora a pecuária de corte seja atividade de baixa densidade econômica, demanda menos mão de obra que as atividades tradicionalmente desenvolvidas na região e complementa a renda da aposentadoria rural.

Em relação às demais atividades produtivas, a produção de milho representa 4,6% da renda obtida e está presente em 26,2% das famílias. Logo depois vem a atividade assalariada5, presente em 18,1% das famílias entrevistadas, e representa 6,7% da renda destas famílias. A seguir vem a produção de soja, presente em 15,7% dos estabelecimentos e com renda de 4,5%; suínos, em 12% dos estabelecimentos e renda de 4,6%; avicultura industrial presente em 9,4% e responsável por 3,9% da renda gerada.

Em diálogo com a teoria, observa-se que as unidades de produção analisadas estão altamente inseridas aos mercados. Destacam-se a bovinocultura de leite, aves, suínos e fumo, sendo os agricultores apenas um elo da cadeia produtiva. Gazolla e Schneider (2017) observam que o “limite da modernização agrícola” se deu na medida em que os custos de produção (tecnologia, regras, normas mais rígidas) aumentaram, enquanto os agricultores foram pressionados a comercializar seus produtos por um preço cada vez menor.

Para além da produção para o mercado, alguns autores, dentre eles Diaz-Méndez e Garcia-Espejo (2016) destacam o papel social dos pequenos agricultores. Baseado na ideia de resistência do pequeno agricultor, estes se colocam no papel não apenas de meros produtores de alimentos, mas também como protetor do espaço rural.

Nesta lógica está a produção para o autoconsumo, presente em 100% das famílias participantes desta pesquisa. A produção para o autoconsumo pode ser vista como uma forma de enfrentar a exclusão de parcela significativa dos agricultores familiares da região pelo grande mercado agroalimentar, especialmente na suinocultura e avicultura industrial, resultado do aumento da escala e concentração da produção, pois o autoconsumo gera autonomia, cria oportunidades para a inserção em circuitos curtos de comercialização e contribui para a segurança alimentar e nutricional das famílias de agricultores.

Ao serem questionados sobre quem é o principal responsável pela produção para o autoconsumo (Tabela 3), 32,81% dos entrevistados responderam que são as mulheres. Entretanto, 18,11% responderam que os homens assumem a responsabilidade principal para produzir para o autoconsumo, em 26,5% dos casos a responsabilidade é compartilhada pelo casal e em 11,29% dos casos pela família.

Pesquisas realizadas por Zanetti e Menasche (2007), observaram que, embora nem sempre as atividades realizadas pelas mulheres sejam consideradas trabalho, são elas que produzem a maior parte dos alimentos consumidos por suas respectivas famílias. Entretanto, no caso do Oeste Catarinense os dados da tabela 3, embora indiquem que mulheres sejam as principais responsáveis pela produção de alimentos para o autoconsumo, há também uma expressiva participação dos homens. Porém, o questionário não permitiu captar as razões desta maior participação masculina na produção para o autoconsumo: se essa atividade está atualmente sendo mais valorizada pelos homens do que há algumas décadas ou se parte das mulheres passou a se dedicar a outras atividades.

Tabela 3
Principal responsável pela produção para autoconsumo nas famílias rurais entrevistadas em 112 municípios da região Oeste de Santa Catarina/Brasil.

Fonte: elaborada pelos autores a partir dos dados coletados no questionário.

Outra hipótese é que, com a diminuição do tamanho das famílias e consequente restrição da mão de obra, há um maior trabalho conjunto tanto nas atividades de interesse comercial - produção de suínos, aves, leite e grãos -, como nas atividades para a produção de alimentos para o autoconsumo. Entretanto, salienta-se que não se levantaram as quantidades de tempo que homens e mulheres destinam à produção de alimentos para o autoconsumo nem como é feita a divisão de responsabilidades entre as diferentes tarefas.

Em relação à produção para autoconsumo propriamente dita, foram levantados dados sobre a produção de hortaliças, frutas, grãos, plantas medicinais, carnes e alimentos processados, cujos resultados são apresentados seguir.

Ao analisar-se a produção de hortaliças para o autoconsumo, uma primeira informação levantada diz respeito à diversidade de espécies cultivadas. A alface está presente em praticamente todos os estabelecimentos rurais, seguida pela mandioca, cebolinha, chuchu, moranga, pepino, batata doce, salsa, repolho, beterraba, cenoura, cebola, pimentão, radite, vagem, tomate e couve folha, presente em 60% ou mais das propriedades rurais (Figura 1). Outro dado relevante diz respeito à distribuição espacial da produção dessas hortaliças: a diversidade na produção de hortaliças para o autoconsumo medida pelo índice de Shanonn aumenta em direção aos municípios localizados mais ao oeste do estado (Figura 1 B). Embora não se tenha informações a respeito das causas destas diferenças na distribuição territorial, podemos levantar algumas hipóteses, como diferenças em termos de clima, solo e de estrutura fundiária.

Outro fator que pode influenciar na menor diversidade é a maior presença das indústrias agroalimentares no meio oeste (Campos Novos, Capinzal), Alto Uruguai (Concórdia e Seara), oeste (Chapecó, Maravilha), que os municípios do extremo oeste do estado. Outra explicação ainda estaria relacionada às prioridades da atuação da extensão rural. Enquanto que no meio oeste e oeste do estado a extensão rural priorizou atividades de interesse comercial, em especial a atividade leiteira, na região do extremo oeste o serviço de extensão rural desenvolveu trabalhos com as famílias de agricultores e suas organizações para se obter uma produção mais diversificada, incluindo aí a produção de alimentos para o autoconsumo6.

Dos que declararam não mais produzir algumas espécies de hortaliças, 71,9% informaram que pararam devido a problemas de pragas e doenças, 21% devido à falta de mão de obra, 14,2% porque deixaram de consumir e 10% porque perderam a sementes ou mudas.


Figura 1
Produção para o autoconsumo (A) e dispersão espacial do índice de diversidade de Shanonn (B) para as hortaliças produzidas nas famílias rurais entrevistadas em 112 municípios da região Oeste de Santa Catarina/Brasil
Fonte: elaborada pelos autores a partir dos dados coletados no questionário.

Quanto a produção de frutas (Figura 2), também se observa uma expressiva diversidade, com destaque para os citros – laranjas, tangerinas (bergamotas) e limões, presentes em praticamente todas as propriedades rurais, sendo que 60% delas têm 10 diferentes espécies de frutas. Assim como na produção de hortaliças, a diversidade de espécies de frutas aumenta do meio oeste em direção ao extremo oeste.


Figura 2
Produção para o autoconsumo (A) e dispersão espacial do índice de diversidade de Shanonn (B) para as frutas produzidas nas famílias rurais entrevistadas em 112 municípios da região Oeste de Santa Catarina/Brasil
Fonte: elaborada pelos autores a partir dos dados coletados no questionário.

Em relação aos que pararam de produzir alguma espécie de fruta, 44,6% informaram como causa pragas e doenças, 15,5% porque perderam sementes e mudas, 8,4% devido à falta de mão de obra e 4,2% porque deixaram de consumir.

Com relação aos grãos, observa-se um menor número de agricultores que os cultivam, bem como uma menor diversidade de espécies (Figura 3). Aproximadamente 15% dos estabelecimentos rurais não cultivam grãos para o autoconsumo. O feijão é o mais cultivado, seguido pelo milho, milho pipoca, amendoim e ervilha. O arroz, cereal até bem pouco tempo cultivado na absoluta maioria dos estabelecimentos rurais, está deixando de ser produzido.

Diferente da produção de hortaliças e frutas, não há diferenças regionais na diversidade da produção de grãos, como podemos observar na Figura 3 B. Dos que pararam de plantar, 73,5% informaram como motivo principal a falta de mão de obra, 27,6% devido à pragas e doenças, 16,5% porque perderam sementes e 10% porque deixaram de consumir e 34,7% devido a outros motivos.


Figura 3
Produção para o autoconsumo (A) e dispersão espacial do índice de diversidade de Shanonn (B) para os grãos produzidos para autoconsumo nas famílias rurais entrevistadas em 112 municípios da região Oeste de Santa Catarina/Brasil
Fonte: elaborada pelos autores a partir dos dados coletados no questionário.

Quanto ao cultivo de plantas medicinais e aromáticas (Figura 4), também se observa uma expressiva diversidade, com 18 espécies em mais de 40% dos estabelecimentos rurais. 67,5% das famílias que declararam não mais produzir alguma espécie de planta medicinal alegaram terem perdido as sementes/mudas, 10,5% pararam de plantar por problemas fitossanitários e 7,6% porque deixaram de consumir.


Figura 4
Produção para o autoconsumo (A) e dispersão espacial do índice de diversidade de Shanonn (B) para as plantas medicinais e aromáticas produzidas nas famílias rurais entrevistadas em 112 municípios da região Oeste de Santa Catarina/Brasil
Fonte: elaborada pelos autores a partir dos dados coletados no questionário.

Quanto aos produtos de origem animal não processados, observa-se também uma importante diversidade (tabela 4).

Tabelas 4
Estimativas de quantidades de produtos de origem animal produzidos para autoconsumo nas famílias rurais entrevistadas em 112 municípios da região Oeste de Santa Catarina/Brasil

Fonte: elaborada pelos autores a partir dos dados coletados no questionário.

A carne bovina é produzida em 89,7% dos estabelecimentos rurais e uma quantidade média mensal produzida de 39,7 kg por família. Em seguida estão as carnes de aves, produzidas em 88,9% dos estabelecimentos rurais com 15,2 kg por família; a carne suína, produzida em 82,1% dos estabelecimentos, com produção média mensal de 27,2 kg; produção de ovos, presente em 78,5% dos estabelecimentos rurais, com produção média de 13,1 dúzias mensais; leite, em 73,2% dos estabelecimentos rurais, média de produção de 50 litros por mês. Embora com menos expressão, aparecem também a produção de peixes, mel, carne de ovelhas/cabras, dentre outras. A falta de mão de obra é a principal razão apontada pelos que declararam deixar de produzir algum tipo de carne (23,9%), seguido por falta de área (13,1%), e deixou de consumir (5,8%).

Já em relação às atividades de processamento de alimentos, 92% das famílias mantêm a tradição de produção de pães e cucas, com uma média de produção mensal de 14,4 kg, seguidos de bolachas - 71,6% das propriedades e 5 kg mensal em média, e massas – 71,9% das propriedades rurais e 5,6 kg mensais. Em seguida destacam-se os derivados de carne suína – 75,3% das propriedades rurais declararam produzir banha, e uma produção média mensal de 8,5 kg e salame – 59,6% das famílias continuam a produzir esse embutido, produzindo 8,7 kg mensais em média. Em relação ao queijo, 51,2% das famílias declararam produzi-lo, com uma média mensal de 12,7 kg por família.

Há ainda um número expressivo de famílias que produzem chimias7 (65,3%), conservas e compotas (50,4%), melado de cana (29,1%), açúcar mascavo (21,5%), vinho (14,4%), cachaça (1,8%). 17,3% das famílias entrevistadas declararam ainda processar outros produtos. 48,6% dos agricultores que declararam que deixaram de beneficiar alguns tipos de alimentos nas propriedades por falta de mão de obra, 36,2% por falta de matéria prima e 13,4% porque deixaram de consumir.

Estes dados permitem concluir que mesmo havendo diminuição de alguns itens da produção para o autoconsumo ao longo do tempo, há ainda uma grande diversidade e quantidade destes alimentos produzidos pelas famílias de agricultores do Oeste Catarinense, o que confirma a relevância social e econômica dessa atividade. Em termos de importância econômica desta produção, quando questionados se fossem comprar os alimentos produzidos para o autoconsumo, quanto os entrevistados gastariam mensalmente, os valores médios informados foram: R$ 178,17 com hortaliças, R$ 157,93 com frutas, R$ 30,98 com plantas medicinais, R$ 563,09 com produtos de origem animal e R$ 316,26 com produtos beneficiados. Quando somados os valores médios que os agricultores estimam economizar com a produção para o autoconsumo, segundo a percepção deles, obtém-se a cifra de R$ 1.351,99 mensais, valor superior, portanto, a de um salário mínimo (R$ 954,00 em valores de 2018). Salienta-se também que, em geral, os agricultores entrevistados tendem a subestimar os valores que economizam com a produção de alimentos para o autoconsumo porque não costumam contabilizar quanto economizam com a produção de alimentos consumidos pelas famílias. Ao final da aplicação do questionário, quando já haviam estimado os valores representados pela produção para autoconsumo, a maioria demonstrava surpresa com a importância dos valores desta produção de alimentos para o consumo familiar.

Já se encaminhando para o fechamento das discussões referentes aos resultados, conclui-se que a produção para o autoconsumo é significativa em termos de quantidade e diversidade e contribui significativamente para a segurança alimentar e nutricional das famílias entrevistadas. Diaz-Méndez e Garcia-Espejo (2016) observam que o tema da alimentação nos anos 90 tem como motor de análise a crescente problematização de uma agricultura que se industrializa e se globaliza. Afirmam ainda que os reflexos da intensificação e exportação dos alimentos pioram e diminuem a dieta alimentar dos que produzem. Nesta lógica, continuar produzindo alimentos para o consumo da família significa garantir sua segurança alimentar e nutricional.

5 Considerações finais

Os dados aqui analisados sobre a produção de alimentos para o autoconsumo numa das regiões brasileiras de predominância da agricultura de base familiar fortemente vinculada aos mercados, cuja base produtiva deu origem a um dos principais polos agroindustriais de derivados de carnes de suínos e aves demonstra claramente que esta produção de alimentos para o consumo familiar não pode ser confundida com agricultura de subsistência. E, diferentemente da hipótese inicial, a produção para o autoconsumo continua expressiva, estando presente em 100% das 381 famílias entrevistadas. A relevância de tal produção destaca-se pela quantidade, pela diversidade e pela importância dos valores monetários que os agricultores declararam economizar. Assim, a produção para o autoconsumo tem grande importância para a segurança alimentar e nutricional dos agricultores, garantindo o acesso a uma alimentação diversificada e de qualidade ao longo do ano. Destaca-se também que a obtenção desses alimentos é feita praticamente sem o uso de agrotóxicos.

Além dos valores monetários economizados, chama a atenção também a expressiva variedade e quantidades produzidas de hortaliças, frutas, plantas medicinais, produtos de origem animal e processamento de alimentos em nível de estabelecimento rural. A exceção é a produção de grãos, presente num número menor de estabelecimentos e com menor diversidade de espécies e cultivares. O mais cultivado é o feijão, presente em aproximadamente 80% dos estabelecimentos rurais, seguido pelo milho e milho pipoca e alguns outros grãos. O arroz, por exemplo, cereal até bem pouco tempo cultivado na absoluta maioria dos estabelecimentos rurais, está deixando de ser produzido. O quase desaparecimento do meio rural dos moinhos coloniais, nos quais se fazia a farinha de milho para a polenta, a canjica e se descascava o arroz, pode ser a principal explicação do quase abandono do cultivo deste cereal, aliada à pouca mão de obra disponível para o cultivo destas lavouras. Também é expressivo o número de famílias que produzem produtos de origem animal, com destaque para carne bovina, suína, de aves, ovos e leite. O número de famílias que ainda processam as matérias primas produzidas em seus estabelecimentos rurais também é significativo. A diversidade de espécies e raças animais e de cultivares de vegetais produzidos para autoconsumo representa um importante reservatório para a biodiversidade doméstica que, aliado aos conhecimentos tradicionais dos agricultores para o cultivo e processamento de alimentos, constitui-se num importante potencial para a produção de alimentos de qualidade diversificada, como produtos coloniais, agroecológicos/orgânicos. Tais produções e conhecimentos tradicionais podem servir de base produtiva para desenvolver projetos para a produção de alimentos para comercialização em circuitos curtos, como, aliás, já ocorre, movimento sintonizado com as mudanças dos consumidores rumo a ambientalização do consumo.

Outro dado que chama a atenção é a participação dos homens na produção para o autoconsumo. O homem é o principal responsável por esta produção em 18% das propriedades rurais pesquisadas, e em 26,5% o casal compartilha esta responsabilidade. Estes números apontam uma maior participação masculina nestas atividades do que o levantado em pesquisas anteriores que afirmaram que a produção para o autoconsumo era atividade, sobretudo, de responsabilidade feminina.

A produção destes alimentos desempenha também importante papel na sociabilidade dos agricultores e no fortalecimento da vida comunitária, de grande relevância para a região. Isso porque estes alimentos são preparados e servidos em encontros familiares entre vizinhos e em festas comunitárias.

E, finalmente, salienta-se que os dados de pesquisa aqui apresentados restringiram-se ao objetivo de se fazer um estudo exploratório da produção de alimentos para o autoconsumo nas unidades familiares da região Oeste de Santa Catarina, via aplicação de um questionário fechado, com recorte eminentemente quantitativo. Este aspecto não tornou a pesquisa menos importante, pois se observou que a produção para o autoconsumo na região é expressiva e demanda mais olhares dos pesquisadores para esta questão. Para verificar algumas das hipóteses levantadas e complementar as análises aqui apresentadas será necessário desenvolver uma nova pesquisa, com enfoque qualitativo, a ser realizada futuramente.

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Notas

1 O projeto denomina-se “Caracterização da produção de alimentos para autoconsumo na região Oeste Catarinense”, cuja equipe é composta por pesquisadores e extensionistas da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri) e professores pesquisadores da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó). A pesquisa de campo foi realizada nos meses de maio e junho de 2018.
2 Segundo o CONSEA “Segurança Alimentar e Nutricional é a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam social, econômica e ambientalmente sustentáveis (CONSEA, 2004)”.
3 Para a região oeste de Santa Catarina, o tamanho unitário do Módulo Fiscal é de aproximadamente 20 hectares. Disponível em: http://www.incra.gov.br/sites/default/files/uploads/estrutura-fundiaria/regularizacao-fundiaria/indices-cadastrais/indices_basicos_2013_por_municipio.pdf. Acesso em maio de 2020.
4 Os resultados dos valores econômicos informados estão de acordo com a percepção dos agricultores. Não decorrem, portanto, de cálculo econômico.
5 Sob a denominação de “salário” estão agrupadas as rendas obtidas com venda de mão de obra em trabalho agrícola temporário a vizinhos, trabalhos de carpinteiro, pedreiro, dentre outras ou assalariamento urbano de algum membro da família.
6 Informação obtida com extensionistas sociais da Epagri da região. Um dos trabalhos conduzidos no extremo oeste do estado foi a montagem de kits de sementes para troca entre os agricultores. Este trabalho foi sintetizado por Canci, Alves e Guadagnin (2010)
7 “Chimia” é um termo derivado do alemão “schimier” e designa doce em pasta, geralmente produzido a partir de caldo de cana-de-açúcar e frutas (“chimia de tacho”) ou com açúcar mascavo.


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