Comunicação, Cultura e Desenvolvimento Regional
Recepción: 07 Septiembre 2020
Aprobación: 26 Enero 2021
DOI: https://doi.org/10.17058/redes.v26i0.15747
Resumo: Este artigo discute, teoricamente, as relações entre a participação de agricultores familiares no movimento social de Economia Solidária e a formação da identidade de classe, assim como o papel da mídia na (des) legitimação das identidades. O tema da mobilização, através de uma ação coletiva em um movimento social, permite observar com mais clareza o processo de identificação com a classe social a partir das interações com os meios tradicionais de comunicação e as novas tecnologias. Como eixo teórico, são usados os estudos culturais britânicos e latino-americanos, e é feita uma combinação entre a sociologia da reprodução de Pierre Bourdieu e as mediações comunicativas da cultura, de Jesús-Martín-Barbero: o primeiro, por suas contribuições ao estudo de classe social; o segundo, por tratar a mídia como questão de cultura e de reconhecimento social. Na argumentação teórica, afirma-se que o posicionamento crítico do movimento acerca dos modos de trabalho e consumo na sociedade capitalista tende a resultar em interpretações negociadas das representações da mídia hegemônica acerca da agricultura familiar. O papel da Economia Solidária na manutenção e sobrevivência econômica da agricultura familiar não é suficiente para permitir a conscientização acerca da subalternidade de classe comungada com outras frações da classe trabalhadora rural. O afã de reconhecimento social e midiático aparta a agricultura familiar do reconhecimento com os demais trabalhadores.
Palavras-chave: Agricultura Familiar, Classe Social, Consumo de Mídia, Economia Solidária.
Abstract: This article discusses, theoretically, the relationship between the participation of family farmers in the Solidarity Economy social movement and the formation of class identity, as well as the role of the media in the (de) legitimation of identities. The theme of mobilization, through collective action in a social movement, allows us to observe the identification process with the social class more clearly from the interactions with traditional means of communication and new technologies. As a theoretical axis, British and Latin American cultural studies are used, and a combination is made between the sociology of reproduction by Pierre Bourdieu and the communicative mediations of culture, by Jesús-Martín-Barbero: the first, for his contributions to the study social class; the second, for treating the media as a matter of culture and social recognition. In the theoretical argument, it is stated that the movement's critical positioning on the modes of work and consumption in capitalist society tends to result in negotiated interpretations of the hegemonic media's representations about family farming. The role of the Solidarity Economy in the maintenance and economic survival of family farming is not sufficient to allow awareness of the subalternity of the class communed with other fractions of the rural working class. The desire for social and media recognition separates family agriculture from recognition with other workers.
Keywords: Family agriculture, Social Class, Media Consumption, Solidarity Economy.
Resumen: Este artículo discute, teóricamente, la relación entre la participación de los agricultores familiares en el movimiento social Economía Solidaria y la formación de la identidad de clase, así como el papel de los medios de comunicación en la (des) legitimación de las identidades. El tema de la movilización, a través de la acción colectiva en un movimiento social, permite observar con mayor claridad el proceso de identificación con la clase social a partir de las interacciones con los medios tradicionales de comunicación y las nuevas tecnologías. Como eje teórico se utilizan los estudios culturales británicos y latinoamericanos, y se combina la sociología de la reproducción de Pierre Bourdieu y las mediaciones comunicativas de la cultura, de Jesús-Martín-Barbero: la primera, por sus aportes al estudio clase social; el segundo, por tratar a los medios de comunicación como una cuestión de cultura y reconocimiento social. En el argumento teórico se afirma que el posicionamiento crítico del movimiento sobre los modos de trabajo y consumo en la sociedad capitalista tiende a derivar en interpretaciones negociadas de las representaciones de los medios hegemónicos sobre la agricultura familiar. El papel de la Economía Solidaria en el mantenimiento y la supervivencia económica de la agricultura familiar no es suficiente para permitir la conciencia de la subalternidad de la clase en comunión con otras fracciones de la clase trabajadora rural. El deseo de reconocimiento social y mediático separa la agricultura familiar del reconocimiento con otros trabajadores.
Palabras clave: Agricultura familiar, Clase Social, Consumo de medios de comunicación, Economía solidaria.
1 Introdução
A formação da identidade de classe na luta coletiva possui uma dupla característica: a de vincular as políticas de reconhecimento às de redistribuição (FRASER, 1995). Assim, a ação coletiva permite observar com mais clareza a percepção, positiva ou negativa, que o ator social possui do seu reconhecimento na sociedade e do processo de identificação e desidentificação com a classe social. Por outro lado, o posicionamento crítico do movimento social acerca das esferas do trabalho e do consumo facilita a compreensão das interações com meios de comunicação tradicionais e as novas tecnologias, em um cenário de crescente individualização do consumo na família.
O engajamento de agricultores familiares com o movimento social de Economia Solidária mostra-se relevante a partir de experiências consolidadas na Região Central do Rio Grande do Sul e também pela importância do Movimento, que, segundo o Atlas da Economia Solidária no Brasil, tinha, em 2013, 1.696 empreendimentos de Economia Solidária somente no Rio Grande do Sul. Por isso, busca-se compreender como essa participação se articula com a formação da identidade de classe, e, ainda, entender qual o papel da mídia na (des)legitimação das identidades.
Pensar sobre identidade de classe significa falar de valores em comum para determinado grupo. Apesar das clivagens geracionais e de gênero existentes entre os agricultores, pressupõe-se que certos valores transmitidos pela tradição podem ser preservados em função do modelo adotado de Economia Solidária e do reconhecimento social extraído das práticas com a mídia.
Em relação à temática classe social, Jacks (2017) destaca que é importante apontar a raridade de pesquisas que abordem não só a classe, mas essa somada a outra(s) categoria(s). Desse modo, acredita-se que se mantém o ineditismo e a relevância do tema através desta proposta teórica, ao relacionar a perspectiva do consumo de mídia e a categoria de classe social pela análise de um grupo específico que participa de um movimento social e possui um modo de vida em contradição com a lógica capitalista do mercado.
Essa discussão justifica-se a partir de levantamento prévio realizado em teses e dissertações publicadas nas últimas três décadas, onde se constata a ausência de estudos específicos com famílias de agricultores familiares e a relação estabelecida com os meios de comunicação, a partir da classe social e do modelo de economia solidária. Ausência de estudos também sustentada por outros autores na última década (RONSINI 2012; JACKS 2017, ESCOSTEGUY 2019). Em relação aos estudos sobre o meio rural na área da comunicação, Escosteguy (2019, p. 11) diz que existe uma “desatenção dos pesquisadores” sobre o espaço rural na área da Comunicação, em especial quando se trata de uma pesquisa sobre a presença e os múltiplos usos de tecnologias de informação e comunicação para a adoção de um entendimento de relações mútuas entre tecnologia, cultura e sociedade pela perspectiva barberiana.
Essa discussão se articula a partir de estudos empíricos desenvolvidos nas últimas décadas por autores que buscaram avaliar e observar o grau de participação de indivíduos da classe trabalhadora em um movimento organizado e a forma comoeste faz suas leituras da mídia (BARBIERO, 2018; LINS DA SILVA, 1985).
O eixo teórico para o estudo das relações entre experiência e mídia combina a sociologia da reprodução de Pierre Bourdieu e as mediações comunicativas da cultura de Martín-Barbero: o primeiro, por suas contribuições ao estudo de classe social; o segundo, por tratar a mídia como questão de cultura e de reconhecimento social.
Falar sobre o movimento social de Economia Solidária é destacar as crescentes desigualdades sociais e econômicas que atingem os agricultores desde a década de 1980 e que fazem com que estes articulem suas práticas e seu trabalho a partir deste modelo, como uma alternativa aos valores capitalistas, à crise alimentar, econômica e ambiental. A partir das insatisfações com o modo de produção, a criação das cooperativas foi ligada à luta de classes conduzida pelos sindicatos, o que conferia a essa luta uma radicalidade muito maior (SINGER, 2002). A origem histórica da Economia Solidária está relacionada com o que se pode chamar de cooperativismo revolucionário, e se tornou evidente a ligação essencial da Economia Solidária com a crítica operária e socialista do capitalismo.
No Brasil, de acordo com o Fórum Brasileiro de Economia Solidária, experiências existentes desde a época da colônia podem ser consideradas como de Economia Solidária, como as “dos quilombos, dos movimentos religiosos como o de Canudos ou ainda a criação de experiências associativas no início do século XX.” (FBES, 2008, p.11). No atual modelo, os empreendimentos de Economia Solidária ganham força e ressurgem em 1981 e se fortalecem no final da década. Esse período é considerado, para o Fórum Brasileiro de Economia Solidária, como o final dos anos da Ditadura Militar, o início de um processo de redemocratização do ponto de vista político e, ainda, um período de exclusão do ponto de vista econômico e social. Por isso, "a economia solidária aparece como uma importante estratégia de inclusão socioeconômica criada pelos/as trabalhadores/as em contraposição às estratégias, sempre inventivas do capitalismo de superar suas próprias crises a partir da intensificação do processo de exploração dos trabalhadores/as” (FBES, 2008, p.12).
Tais dificuldades ainda são evidentes no Brasil. Entre tantos estudos e relatórios divulgados todos os anos, destaca-se, apenas para reflexão, o mais recente levantamento do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, divulgado em dezembro de 2020. Conforme o levantamento, o Brasil caiu cinco posições no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano e é o 84º dos 189 países acompanhados em índices como renda, educação e expectativa de vida ao nascer. Desse modo, não se pode ignorar o fato de que as dinâmicas de pertencimento às classes estão relacionadas aos modos como as desigualdades são (re)produzidas.
Nas áreas rurais, as desigualdades sociais e econômicas parecem se acentuar em relação ao meio urbano, mesmo após a institucionalização de Programas e Políticas voltadas para os agricultores familiares principalmente entre 2003 e 2011. Para Grisa e Schneider (2014, s/p), os pequenos agricultores, como eram chamados na década de 1980, sempre estiveram às margens das ações do Estado brasileiro, não raro incrementando sua fragilidade diante das opções de desenvolvimento perseguidas no País.
A desigualdade no meio rural é marcada por interesses e disputas, lutas e reivindicações que envolvem diversos movimentos sociais (FROEHLICH E MARIN, 2019), dentre eles, as ações de trabalhadores rurais em projetos baseados na Economia Solidária. De acordo com Fernandes (1996), a exploração econômica, a exclusão cultural e a dominação política geram conflitos e as mais diversas formas de resistência. Gaiger e Asseburg (2007, p. 500) consideram que, assim como outras iniciativas da década de 1980, no Brasil, a Economia Solidária produziu um movimento social, atuando através da associação voluntária de trabalhadores mediante a partilha dos recursos.
Gohn (2011, p. 335) define que os movimentos sociais consistem em ações coletivas de caráter sociopolítico e cultural que viabilizam formas distintas de a população se organizar e expressar suas demandas. Esses movimentos agem como forma de resistência à exclusão social e buscam a inclusão, criam sujeitos para a atuação em rede, identidades para grupos que antes eram dispersos e desorganizados e, ao realizar tais ações, projetam, em seus participantes, sentimentos de pertencimento social. Gohn (2008; 2011) destaca o movimento das cooperativas populares através da diversidade de empreendimentos heterogêneos que se unem ao redor de estratégias de sobrevivência (trabalho e geração de renda), articulados por ONGs com propostas que se fundam na Economia Solidária, popular e organizados em redes solidárias e autogestionárias.
No contexto capitalista, o mais comum é a desmobilização social através da reprodução estrutural (BOURDIEU, 1990) pela legitimação de um habitus que promove a aceitação das condições fundamentais de existência, uma vez que envolve uma reprodução não consciente – sobre o que é possível, impossível e provável para os indivíduos em suas localizações na ordem social estratificada –, e o ajuste das expectativas dos agentes a suas oportunidades objetivas. Mas o autor considera que algumas situações podem dar origem à mudança. Em contextos de rápida transformação da estrutura de oportunidades, estas deixam de corresponder às expectativas decorrentes da socialização primária, surgindo então o potencial para crises sociais quando as classes dominadas rompem sua aceitação dos valores dominantes: “tudo sugere que uma queda abrupta no objetivo em relação às aspirações subjetivas provavelmente produzirá uma quebra na aceitação tácita que as classes dominadas (…) concederam anteriormente aos objetivos dominantes e, assim, tornar possível inventar ou impor os objetivos de uma ação coletiva genuína” (BOURDIEU, 1984, p. 168).
O campo de conflito de classe é produzido nas práticas sociais em que os atores envolvidos não são predefinidos (na ideia de uma classe em si), mas se constituem como classe por meio de sua ação coletiva no modelo de Economia Solidária em oposição ao sistema e às reproduções sociais, o qual medeia a relação do agricultor familiar com a mídia e a formação da sua identidade de classe.
Os participantes do modelo de Economia Solidária mantêm características dos movimentos sociais tradicionais ligadas, por exemplo, à religião, às questões estruturais e econômicas, mas trazem fortemente parte das pautas dos novos movimentos sociais (Eder, 2002), como a defesa do meio ambiente através de uma produção sustentável, a luta pelos direitos humanos para que todos tenham acesso às políticas públicas, a luta pela paz, pela ordem moral e pela manutenção de valores através da família.
De acordo com o Fórum Brasileiro de Economia Solidária (2007), a ação coletiva do modelo de Economia Solidária funciona quando seguidos alguns aspectos. Por exemplo, em relação à produção, que representa o núcleo gerador de riqueza por meio da transformação de matérias-primas em produtos, “para a Economia Solidária, ao contrário da concepção taylorista-fordista não se pode olhar de forma compartimentada. Existe a necessidade de se dar conta do fluxo produtivo em que está inserido, e saber de toda a cadeia produtiva e que consequências traz para a sociedade, para a saúde e para o meio ambiente” (FBES, 2007 p.20). Em relação à organização da produção, os princípios da Economia Solidária se baseiam na comercialização através do mercado local e/ou no máximo na região em que se está inserido, pois se busca evitar a venda para pequenos e médios atravessadores que revendem para grandes atacadistas. Sendo assim, as feiras locais ou regionais assumem um significado para a identidade dos agricultores, são espaços de trocas, intercâmbios e articulações entre produtores e consumidores. E um último aspecto é em relação ao consumo, que deve ser responsável e solidário. De acordo com o Fórum, "ao falar do consumo solidário, não podemos deixar de refletir a importância de espaços fixos de comercialização, onde nossos produtos possam ser encontrados. Só assim teremos condições de realmente garantir um público consumidor.” (FBES, 2007, p. 22).
A proposta para que a Economia Solidária se efetive está na organização igualitária através dos que se associam a esse modo para produzir, comercializar, consumir ou poupar. Singer (2002, p. 07) afirma que “nessa formação todos têm a mesma parcela do capital e, por decorrência, o mesmo direito de voto em todas as decisões. E não há competição entre os sócios: se a cooperativa progredir, acumular capital, todos ganham por igual”. A Economia Solidária aparece como uma “importante estratégia de inclusão socioeconômica criada pelos/as trabalhadores/as em contraposição às estratégias, sempre inventivas do capitalismo, de superar suas próprias crises a partir da intensificação do processo de exploração dos trabalhadores/as” (FBES, 2008, p.12).
Até aqui, mostrou-se que os agricultores familiares se organizam em uma ação coletiva e são motivados por um movimento social. Ao longo do texto, aponta-se, teoricamente, como os vínculos com a Economia Solidária podem modelar a construção da identidade dos indivíduos em sua relação com a mídia.
Esse artigo se estrutura em cinco seções, a contar com esta introdução. A segunda reflete sobre a construção da identidade social dos agricultores familiares como parte dos processos de identificação e desidentificação com o pertencimento de classe. No terceiro item, a discussão apresenta a conceituação do que é agricultura familiar e o modelo de Economia Solidária. Na parte quatro, o olhar se volta para as relações entre mídia e construção da identidade. Objetiva-se discutir teoricamente como os agricultores familiares fazem a leitura da representação do rural e, ainda, qual o papel da mídia na formação da identidade de classe através da relação entre a mídia, a sociedade e a cultura. Por fim, seguem-se as considerações finais e as contribuições de outros autores que inspiram o aprofundamento da discussão sobre a construção da identidade de classe.
2 A construção da identidade de classe
No exame dos processos identitários entre atores coletivos ou individuais da agricultura familiar, deduz-se, teoricamente, que o sentido atribuído ao pertencimento de classe varia de acordo com clivagens geracionais, de gênero, étnicas, etc. Mas o foco é aprofundar a questão do pertencimento de classe de acordo com os capitais econômicos, culturais, sociais e simbólicos disponíveis. Mesmo que as identidades sejam múltiplas porque são decorrentes de fontes diversas (CASTELLS, 1999), insiste-se na resistência comunal como fomentadora de capital econômico, cultural, social e simbólico.
A compreensão da reprodução do poder na sociedade capitalista exige pensar as relações entre as classes sociais em termos das disputas culturais entre a cultura hegemônica das elites e a cultura popular no estabelecimento desigual das divisões dos capitais disponíveis e na contestação da distribuição deles. A legitimidade de uma classe, portanto, depende da construção de uma identidade como processo de classificação dos grupos em categorias socialmente construídas a partir de elementos culturais (BAUMAN, 2005) valorizados ou desvalorizados socialmente.
Para Bourdieu (1984), a aquisição dos diferentes capitais está relacionada à luta pela manutenção e reconhecimento de uma determinada posição, ou então, para a conquista de novos espaços em relação a outros grupos. Como fonte para a aquisição de capital cultural, o contexto midiático pode levar, conforme Setton (2005, p.88), ao aumento da capacidade reflexiva, "pois oferece uma multiplicidade de saberes, constituindo-se uma nova realidade perceptiva e cognitiva das formações contemporâneas para o indivíduo", ou seja, através da difusão de informação feita pela mídia, pode-se ampliar o escopo do conhecimento cultural. Assim como já observado por Ronsini (2016), em uma pesquisa sobre o consumo de mídia e a recepção das telenovelas com mulheres da classe popular, a incorporação de um capital cultural midiático conforma uma feminilidade de classe na qual as classificações construídas são poderosos mecanismos de reprodução da injustiça social e de gênero tanto quanto de produção de um capital simbólico que legitima valores contrários aos modos de ser e de viver das elites. Assim, "a cultura audiovisual – da televisão e da internet, majoritariamente – compõe um capital cultural que compete com o transmitido pela família e a escola ou pode reforçá-los" (RONSINI, 2016, p. 48).
Em relação à formação identitária, Skeggs (1997) utiliza os termos identificação e desidentificação para discorrer sobre processos de reconhecimento ou não reconhecimento com a classe. Para a autora, o conceito de identidade de classe indica um sentido das diferenças sociais dentro das hierarquias que busca, nas diferenças culturais, formas de se exprimir. Por exemplo, o pertencimento à classe trabalhadora possui um sentido mais positivo entre os homens, ao contrário das mulheres (SKEGGS 1997), o que explica o motivo pelo qual existe uma tendência maior das mulheres se desidentificarem com essa classe. No Brasil, a pesquisa de Salata (2014) com a classe média traz contribuições importantes sobre como os indivíduos se veem em relação ao pertencimento de classe. O autor afirma que, mesmo que as pessoas neguem o pertencimento a uma classe, elas estão participando de disputas classificatórias, maneiras através das quais aquelas pessoas evitam os julgamentos morais presentes na ideia de pertencimento a diferentes classes sociais. “Se, por um lado, identificar-se enquanto Classe Média poderia ser entendido como um sinal de ‘esnobismo’, por outro lado a identificação como ‘classe baixa’, ou ‘classe trabalhadora’ poderia ser compreendido como a aceitação de um status social inferior” (SALATA, 2014, p.72).
Mas qual a importância de tudo isso para a construção da identidade de classe do agricultor familiar? A relação de poder que a mídia assume também no meio rural pode ser explicada através de Bourdieu, ao sugerir que algumas concentrações de poder simbólico são tão grandes, que dominam toda a paisagem social; que parecem tão naturais, que são difíceis de serem percebidas pelas pessoas. Dessa maneira, o poder simbólico atua como poder de construir a realidade social. O campo de poder é o espaço acima e além dos campos específicos onde operam as forças que disputam a influência sobre as interrelações entre os campos: o Estado é o principal ponto de referência. O modo como se experimenta a vida em sociedade deriva de estruturas que regem e norteiam o comportamento humano. Nesse sentido, a escola, a família, a mídia, a religião, etc., desempenham um importante papel no desenvolvimento das estruturas. A construção da identidade do indivíduo depende da constituição de um habitus e dos diversos capitais disponíveis, o que determinará posições e lugares específicos dentro da sociedade.
Essas condições são definidas através de propriedades que pertencem à posição no sistema das condições que é, para Bourdieu (2007, p. 164), “um sistema de diferenças, de posições diferenciais, ou seja, por tudo que a distingue de tudo 0 que ela não é, em particular, de tudo 0 que Ihe é oposto: a identidade social define-se e afirma-se na diferença”. As identidades de classe são consideradas partes do processo através do qual as posições sociais são interpretadas e disputadas. E assim, aos dominados resta manter o que Bourdieu chama de “fidelidade a si e ao grupo” enquanto ideia de retomada coletiva da identidade social no que tange a assimilar o ideal dominante.
Essa disputa, como afirma Norbert Elias (2000), realiza-se entre as posições sociais, quando o grupo que se crê em posição superior destitui o valor do outro, conferindo a si mesmo virtudes que o outro não possui. A ideia de pertencimento a diferentes classes – como constatado empiricamente através de pesquisa com famílias autodeclaradas pertencentes à “classe média brasileira” (SALATA, 2014) – estaria relacionada à percepção de uma distribuição desigual de reconhecimento social. As identidades de classe podem ser interpretadas como reivindicações de pertencimento e reconhecimento a grupos socialmente significativos (BOURDIEU, 1984). Desse modo, a identificação não diz respeito a uma simples escolha sobre com quem se identificar, mas sim, a "um processo tácito de negociação que participaria ativamente na definição dos contornos (práticos e imaginados) que separam – de maneira hierárquica – ‘nós’ e ‘eles’, e que, assim, engendram consequências para a própria reprodução das desigualdades sociais” (SALATA, 2014, p.73).
A identificação de classe é um processo que envolve disputas e negociações que implicam consequências reais para os indivíduos e para a formação de coletividades. Como afirma o filósofo Axel Honneth (2003), a busca pelo reconhecimento social pode despertar ressentimentos e rancores, subjetivamente sentidos por indivíduos pertencentes ao mesmo grupo social que contém pressupostos morais formados por pretensões de reconhecimento, mobilizados, não por acaso, em queixas populares.
No caso dos agricultores familiares, apesar da importância nacional do trabalho que é realizado, uma vez que produzem 50% dos alimentos da cesta básica brasileira (Censo Agrícola 2006), apresentando um faturamento anual que passou de 36 bilhões de reais, em 2006, para 66 bilhões de reais em 2018, a orgulhosa autodenominação “agricultor familiar” (CHALITA, 2006) não significa reconhecimento através de políticas públicas condizentes com o incremento das condições econômicas das famílias. Embora o modelo de gestão da unidade produtiva familiar e a execução do processo produtivo pelos membros da família sejam suficientes para a reversão social do qualificativo negativo atribuído ao trabalho manual e aos sujeitos que o realizam (PICOLOTTO 2008, p. 262), isso não se converte em valorização econômica por parte dos governos.
Logo, conclui-se que as identidades não são abstrações: por um lado, relacionam-se com a aquisição, manutenção ou aumento de capital econômico desigualmente distribuído; por outro, dependem da ação coletiva para converter valores culturais em valorização econômica concreta dos grupos subalternos.
3 A agricultura familiar
Na formação do conceito de agricultura familiar no Brasil, o próprio termo pode ser considerado uma negociação política que costuma gerar polêmicas e questionamentos entre diversos autores. A nomenclatura, nesse caso, é importante principalmente por fatores de identidade e de pertencimento. A agricultura familiar é, na definição de Abramoway (1997, p.3), aquela em que "a gestão, a propriedade e a maior parte do trabalho vêm de indivíduos que mantêm entre si laços de sangue ou de casamento”. Mas o próprio autor reconhece que essa definição não é unânime, pois os diferentes setores sociais e suas representações constroem “categorias científicas que servirão a certas finalidades práticas: a definição de agricultura familiar, para fins de atribuição de crédito, pode não ser exatamente a mesma daquela estabelecida com finalidades de quantificação estatística num estudo acadêmico” (ABRAMOVAY, 1997, p. 3).
Utilizar o termo “agricultura familiar” pode ser considerado por alguns autores como uma “impositiva produção de amnésia social que apaga a presença do campesinato e oculta ou minimiza os movimentos sociais dos camponeses brasileiros, consagrando – com tradição inventada – a noção do caráter cordato e pacífico do homem do campo” (GODOI, MENEZES, MARIN 2009. p. 12). Por isso é tão importante, nesse caso, pensar sobre a identidade de classe.
O termo agricultura familiar foi amplamente utilizado a partir dos anos 1990 com a implementação do Pronaf, Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, “quando a política de crédito a juros reduzidos privilegiou de forma inédita uma faixa de agricultores de menos recursos econômicos, desvinculando-os dos grandes produtores que se haviam beneficiado, desde a modernização conservadora promovida pelo regime militar, de taxas de juros subsidiadas” (GODOI, MENEZES E MARIN, 2009, p. 215). Porém, a criação do PRONAF foi marcada por normas de custeio e investimento com altas taxas de juros, condições aceitas em um primeiro momento, pois marcava sua criação política. Em um segundo momento, vieram negociações, através dos movimentos sociais, articulações realizadas principalmente por pequenos agricultores gaúchos em 1997, quando houve então a criação do Pronafinho, voltado para os agricultores mais pobres do meio rural brasileiro.
Nesse caso, assume-se que o termo agricultura familiar não pode ficar vinculado apenas à política pública, concedida através do Estado, mas foi um marco importante para muitos agricultores como fomento ao crédito. Se for apenas dessa forma, “estaremos diante do mesmo erro e da armadilha de só percebermos agentes sociais quando chegam a ser nomeados pelo Estado. (...) Por que aceitar que apenas o exercício do poder de Estado dotaria um conjunto de indivíduos e agentes econômicos de existência legitimada?” (GODOI, MENEZES E MARIN, 2009, p. 215).
O termo agricultura familiar sintetiza o modo de pertencimento de classe, e o reconhecimento dos próprios participantes do movimento como sendo agricultores familiares lhes confere orgulho de, em família, produzir, comercializar e tentar fazer um outro mundo possível, contrapondo-se aos valores do capitalismo através da economia solidária e da agricultura familiar.
Ao perceberem a desigualdade social, os agricultores familiares tendem a não se identificar com frações da classe trabalhadora rural, um desejo de não serem atrelados aos grupos subalternos do rural, como os pertencentes ao campesinato e aos assentados da reforma agrária. São questões relacionadas às representações e à construção da identidade do indivíduo que perpassam os grupos sociais ao qual pertencem e aqueles com os quais não querem ser identificados. Desidentificação que ocorre, em parte, pelas leituras feitas da mídia pelos agricultores, que tende a criminalizar esses trabalhadores rurais. No caso do Movimento dos Sem-Terra, por exemplo, a grande mídia tradicionalmente tem produzido uma imagem de desqualificação e criminalização sobre esse grupo (OLIVEIRA, 2011). Assim, a imagem do Movimento é normalmente associada a aspectos negativos, fazendo com que os agricultores familiares prefiram manter um distanciamento desses grupos.
Tal conclusão é sustentada também por Skegss (1997), ao afirmar que os indivíduos podem se identificar com as condições de subalternidade, de modo crítico, ou então, recusar a identificação com a classe (desidentificação) na medida em que os valores culturais das classes trabalhadores não são reconhecidos pela economia simbólica dominante. Para a autora, os processos de distinção e diferenciação que ocorrem entre as classes sociais ou entre as frações de classe são atitudes de ordem política e de oposição às arbitrariedades das categorias sociais. Esses processos de valorização ou desvalorização são maneiras pelas quais as formas de cultura se tornam fixas de determinada pessoa ou grupo social.
Importante considerar, dentro desse cenário de lutas e resistências em que os agricultores familiares gaúchos estão inseridos, que “os processos de transformação das formas de ocupação da força de trabalho, atualmente em curso no meio rural, estão trazendo uma complexidade de alterações sociais, culturais e identitárias que vão muito além das mudanças perceptíveis na performance dos mercados de trabalho” (SCHNEIDER, 2003, p. 228). E são essas alterações que têm contribuído para o fortalecimento da agricultura familiar como um todo – tanto na questão sociopolítica quanto na econômica. Essas mudanças implicam modificações nas formas de funcionamento das unidades familiares, fazendo com que apareçam novas estratégias individuais e coletivas que têm como objetivo garantir a reprodução do grupo enquanto uma família. Nesse contexto, “o meio rural passa a ser um espaço constituído por diversas atividades agrícolas e não agrícolas, conferindo dinamismo e assumindo novas funções, como o turismo, lazer, moradia e preservação da natureza” (FROELICH E MARIN 2019, s/p).
Paul Singer (2002), economista e professor brasileiro, afirma que o capitalismo leva à competição e à desigualdade entre os “ganhadores e os perdedores” e
Enquanto os primeiros acumulam capital, galgam posições e avançam nas carreiras, os últimos acumulam dívidas pelas quais devem pagar juros cada vez maiores, são despedidos ou ficam desempregados até que se tornam inempregáveis, o que significa que as derrotas os marcaram tanto que ninguém mais quer empregá-los. Vantagens e desvantagens são legadas de pais para filhos e para netos. Os descendentes dos que acumularam capital ou prestígio profissional, artístico etc., entram na competição econômica com nítida vantagem em relação aos descendentes dos que se arruinaram, empobreceram e foram socialmente excluídos. O que acaba produzindo sociedades profundamente desiguais (SINGER, 2002, p. 07).
É possível concluir teoricamente que os agricultores familiares podem estabelecer variadas estratégias para garantir sua reprodução social, econômica e cultural, que não passam, necessariamente, pela modernização técnico-produtiva de seus sistemas agrícolas e estabelecimentos rurais, o que Schneider (2003) denomina como “Pluriatividade na Agricultura Familiar”. Essas estratégias podem ser entendidas a partir da perspectiva de Bourdieu, através da articulação de um senso prático e do habitus, no qual os indivíduos não constroem as estratégias como desejam, mas como condições cotidianas de sobrevivência, sejam socioculturais, econômicas ou políticas. Assim, atuam como elementos centrais para a compreensão das transformações na dinâmica da agricultura familiar, na qual os agricultores têm conseguido a permanência no campo. Schneider (2003) corrobora com a discussão ao afirmar que os mecanismos e as estratégias têm viabilizado e estimulado as formas familiares no campo.
4 A mídia e as mediações comunicativas da cultura na construção da identidade dos agricultores familiares
Através dos estudos culturais, reconhece-se que os processos comunicativos envolvem sujeitos, instituições, forças políticas, econômicas e culturais, e, assim, os meios de comunicação precisam ser compreendidos como partes integrantes da vida cotidiana e dos sistemas pelos quais ela é organizada. Considerando que a construção da identidade de classe pode ser formada e transformada conforme as representações feitas nos sistemas culturais, é necessário compreender que a identidade se constrói através de questões subjetivas, mas principalmente a partir de imagens externas que circulam na sociedade midiatizada em todas as formas industriais possíveis, como afirma Sodré (1990). De fato, há uma infinidade de representações e construções do rural no universo midiático, mas até que ponto essas representações retratam os contextos que levam a uma identificação, um pertencimento com aquilo que lhes é apresentado? Kellner (2001) debate o poder da mídia em modelar os indivíduos e como as diversas formas da cultura veiculadas pelas diversas mídias influenciam as pessoas a identificarem-se com as ideologias, posições, representações sociais e políticas dominantes. Para ele, a “cultura da mídia também fornece o material com que muitos indivíduos constroem o seu senso de classe, de etnia e raça” (KELLNER, 2001, p. 9).
A relação entre as leituras das representações midiáticas e a construção das identidades é uma preocupação na trajetória dos estudos de recepção há várias décadas. No caso do Brasil, o trabalho pioneiro de Lins da Silva (1985) mostrou como duas comunidades de trabalhadores faziam as apropriações a partir da assistência do telejornal Jornal Nacional da Rede Globo. Para o autor, a cultura popular e as organizações comunitárias são capazes de absorver criticamente aquilo que consomem pela televisão e que o telejornal ajuda a reforçar pontos de vista coerentes e previamente adquiridos pelas pessoas.
Mais recentemente, Barbiero (2018) buscou compreender como as mediações sociopolíticas conformam os usos e sentidos na recepção de uma telenovela. O estudo foi feito com mulheres que participam de uma Associação baseada no modelo de Economia Solidária. A autora mostrou que a participação na associação amplia o capital social das participantes, o que leva ao conhecimento de problemas comuns a outras mulheres e ainda reforça princípios de solidariedade e cooperação. As mulheres pesquisadas também demonstraram uma leitura crítica da telenovela, hábitos de vida cotidianos baseados nos princípios de Economia Solidária e uma ruptura na reprodução de hábitos familiares herdados em relação às divisões do trabalho com o marido, à criação dos filhos e a questões de valorização da mulher.
É notório como os meios de comunicação, tanto os tradicionais quanto as novas tecnologias, têm lugar na construção das identidades de classe. Por isso, apresenta-se ainda outros estudos semelhantes que mostram dados empíricos relevantes para este artigo. Marão (2020) busca compreender as ruralidades camponesas de jovens maranhenses a partir das representações do rural na mídia. De acordo com o autor, foram encontradas relações entre as representações da mídia de massa e a interpretação dos jovens acerca do rural. A leitura feita pelos jovens faz com que eles se desidentifiquem com o que consomem na grande mídia, principalmente por causa das representações do rural como “velho e ultrapassado”.
A pesquisa de Escosteguy (2019), embora não evidencie especificamente a construção da identidade de classe, aborda a formação das novas ruralidades e a relação com a mídia, trazendo dados empíricos importantes sobre o consumo de mídia por agricultores da Região Central do Rio Grande do Sul. Entende-se que as tecnologias da comunicação “podem ser compreendidas tanto como a mídia tradicional que engloba, entre outros meios, os jornais e as revistas impressas, o rádio e a televisão, como a nova mídia, o telefone celular, o computador, os tablets e a própria internet” (ESCOSTEGUY, 2019, p. 17). A autora mostra que a TV e o rádio são os meios favoritos entre as famílias pesquisadas, "ainda que estejam perdendo espaço para o computador e o celular – sempre que possível, conectados à internet – entre os membros mais jovens. Também, são os meios de mais longa apropriação e incorporação no cotidiano das famílias, conforme os relatos coletados" (ESCOSTEGUY, 2019, p. 135).
Para Escosteguy (2019, p. 51), a “aquisição, posse, presença no lar, formas de usos e relação com seus conteúdos interferem na formação do espaço e, portanto, nas relações materiais e simbólicas constituídas pelos sujeitos nesse mesmo espaço” (ESCOSTEGUY, 2019, p. 51). Por isso é importante “compreender uma variedade de maneiras onde os novos meios e os antigos se adaptam uns aos outros e convivem simbioticamente e, também, como vivemos com eles enquanto parte de nossos ‘conjuntos de meios’ pessoais e domésticos” (MORLEY, 2008, p. 123). É possível identificar que o consumo de mídia das famílias do meio rural se dá de maneiras distintas conforme o indivíduo pesquisado e também com maior ou menor engajamento de acordo com a idade e a posição familiar. Escosteguy (2019) afirma que um meio de comunicação, por mais difundido e conhecido que seja, no meio rural pode não ser incorporado. Esse consumo realiza-se ainda de forma variada em relação ao tipo de conteúdo que é buscado, que pode ser ficção, entretenimento e/ou notícias.
Os usos da mídia dizem respeito às práticas sociais formadoras dos indivíduos, através da relação que estabelecem com as instituições como a família, a escola e as instituições econômicas, políticas, religiosas e de lazer. Tais socializações são perpassadas pelas relações de classe, de gênero, pelas questões geracionais e étnicas. Todas as relações surgem da expressão das visões de mundo dos agricultores familiares a partir tanto da constituição de todos os níveis de socialização quanto das condições sociais de reprodução e representações sociais que fornecem elementos para analisar o processo contínuo de negociação entre as classes dominantes e subalternas.
A partir dos insights deste artigo e das categorias de mediação – socialidade, ritualidade – do Mapa das Mediações Comunicativas da Cultura, propõe-se a continuidade das investigações das relações entre mídia e identidade de classe. Acredita-se que esse mapa permite operacionalizar a análise de qualquer fenômeno social que tenha relação com as instâncias da comunicação, cultura e política em que a mediação deve ser entendida como o processo estruturante que configura a lógica dos usos. A ideia é que essa discussão teórica possa servir de embasamento para estudos futuros relacionados à construção da identidade de classe em movimentos sociais e as formas como são feitas as articulações com a mídia.
5 Considerações finais
Pensar na classe social dos indivíduos é compreender o princípio organizador da sociedade capitalista (RONSINI, 2007), o qual determina desigualdades e diferenças profissionais, de renda, de educação, de acesso a bens culturais e a centros de poder. Nesse sentido, a resistência, a luta, a negação ou a reprodução simbólica (BOURDIEU, 2008) ocorrem através da formação da identidade de classe (SKEGGS, 1997).
Os agricultores possuem uma noção intuitiva da identificação simbólica do lugar onde estão inseridos e essa identidade manifesta-se de maneira individual e coletiva, definindo o indivíduo a partir de características que o integram ao todo, com a coletividade. Nesse ambiente, a reprodução do modo de vida pode estar ligada às estratégias por eles adotadas. Como aborda Schneider (2003), essas estratégias, enquanto alternativas de sobrevivência ou resistência, estão presentes no meio rural e, no caso do modelo de economia solidária, ainda é possível ver que elas acontecem de forma organizada, através dos grupos autogestionados.
Voltando às discussões de Martín-Barbero (2003), a partir da perspectiva das mediações, é na classe social dos indivíduos que se tem a estrutura que articula os elementos identitários que expõem as formas de dominação, que determinam a construção do cotidiano das pessoas e, assim, estrutura os aspectos de vida do capitalismo recente. No Brasil, diante das desigualdades sociais que se apresentam, os elementos identitários em relação à classe podem sofrer constantes transformações em sua construção conforme o contexto em que o indivíduo está inserido.
Assim, os elementos identitários assumem diferentes contornos e perspectivas de acordo com as mudanças políticas públicas adotadas no país. Pode-se dizer que, até o ano de 2016, antes da crise econômica, houve um período de crescimento econômico para o agricultor, e, em termos de renda, essa população rural melhorou um pouco as condições de vida em paralelo às melhorias socioeconômicas. Mas, nesse novo cenário, onde as políticas públicas para esse público são escassas, como se modelam as questões de identidade de classe para os agricultores familiares enquanto reconhecimento e pertencimento nesse momento econômico?
Diante dos autores trabalhados neste artigo e das perspectivas que mostram que as relações estabelecidas com a mídia atuam na construção da identidade de classe, considera-se que a mídia tenha sido um forte fator de influência nesse período, em função da discussão estabelecida em torno do agronegócio, por exemplo, em todo país. Se, em relação às representações do rural feitas pela mídia hegemônica, através dos principais canais de comunicação, no caso da televisão, por exemplo, o homem do campo costuma ser representado enquanto uma figura caricata, romantizada, por outro lado, nas publicidades e em telejornais, a tecnologia, a produção, o desenvolvimento são normalmente atrelados ao grande produtor e ao agronegócio. A circulação delas impacta nos modos pelos quais os grupos sociais se autodefinem e definem os demais, mas podem ser mais bem compreendidos quando analisados sob a ótica da identidade de classe.
O debate sobre o poder da mídia em modelar os indivíduos e como as diversas formas da cultura veiculadas pelas mídias levam as pessoas às identificações ou desidentificações precisa ser aprofundado para se compreender essas representações do rural e a construção da identidade de classe a partir da participação no modelo de Economia Solidária. Mesmo que existam estudos relacionados à construção da identidade de classe, estes ainda são escassos no campo da comunicação. Mas pode-se afirmar, de forma teórica, que a mídia tem importante relação com o estabelecimento das diferenças nas leituras negociadas feitas pelos agricultores familiares. Essas diferenças são reforçadas pela mídia hegemônica na medida em que destaca a agricultura, através de seus pontos positivos de desenvolvimento econômico, normalmente vinculados ao agronegócio, e uma criminalização da fração trabalhadora e campesina do rural. São essas diferenças que levam os agricultores familiares a se desidentificar com outras frações da classe trabalhadora rural, por exemplo, sem-terras e assentados da reforma agrária.
Desse modo, pressupõe-se que os participantes do modelo de Economia Solidária fazem uma interpretação negociada das leituras do rural na mídia, posto que a participação no movimento social não significa engajamento em luta política de mobilização e confrontação com as elites agrárias. Para Ronsini (2012), a interpretação negociada se coloca entre a interpretação dominante e a opositiva. O modelo de análise proposto por Hall (2003) é útil para sistematizar as posições interpretativas da audiência. A posição dominante ocorre quando a audiência se apropria, de forma direta e integral, do conteúdo apresentado e decodifica a mensagem conforme o código referencial no qual ela foi codificada, ou seja, o público opera dentro do código dominante. A interpretação negociada é a que combina elementos de adaptação e oposição à codificação dominante. Por fim, a opositiva, manifesta-se quando a audiência decodifica a mensagem de uma maneira contrária, pois contesta as mensagens recebidas pelo código preferencial.
A partir dos modelos propostos e dos eixos teóricos articulados neste trabalho, pode-se afirmar que não existe uma consciência de classe plena entre os agricultores familiares, mas uma identificação ou desidentificação com a classe social. A projeção da identidade, principalmente na elite do rural, não é necessariamente uma vontade de pertencer a outro grupo rural, mas o desejo de conquistar a valorização e o respeito que são atribuídos socialmente a outras frações rurais. A desidentificação mostra-se, aqui, como uma manifestação dos processos históricos que levam à construção da identidade de classe através da afirmação do não se tornar visível através da mídia, em uma disputa por espaço com outros grupos do rural.
A partir da literatura, conclui-se ainda que a valorização da agricultura familiar através de políticas públicas se dá apenas de forma simbólica e cultural. Não existe uma justiça distributiva em relação à agricultura familiar e à economia solidária, seja pela falta de investimentos governamentais, cada vez mais reduzidos nessa área, pelo desinteresse midiático nesse setor ou pela falta de reconhecimento social. Os Empreendimentos de Economia Solidária travam uma luta desigual entre o contexto micro e o macro na luta por reconhecimento e redistribuição. O reconhecimento do valor econômico e cultural da agricultura familiar, através dos movimentos sociais, corrige parcialmente a injustiça distributiva e a simbólica: promove o aumento da renda e um modo digno de autor representação dos trabalhadores e trabalhadoras. A correção não ocorre na totalidade, pois faltam investimentos públicos adequados e uma representação midiática e social condizente com o trabalho e a cultura desse segmento do campesinato.
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