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Cartografia dos deslocamentos: Trabalhadores sazonais da maçã em Vacaria
Alberto Bracagioli Neto; Tiago Zilles Fedrizzi
Alberto Bracagioli Neto; Tiago Zilles Fedrizzi
Cartografia dos deslocamentos: Trabalhadores sazonais da maçã em Vacaria
Cartography of displacements: Seasonal apple workers in Vacaria
Cartografia de los desplaziamentos: trabajadores estacionales de manzanas en Vacaria
Redes. Revista do Desenvolvimento Regional, vol. 26, 2021
Universidade de Santa Cruz do Sul
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Resumo: A dinâmica do desenvolvimento capitalista no campo brasileiro tem produzido consequências sociais, econômicas e ambientais. Entre elas, destacamos neste artigo, os fluxos migratórios dos trabalhadores sazonais na colheita da maçã. Este estudo teve como objetivo identificar as trajetórias e as diferentes categorias destes trabalhadores. Foram utilizadas ferramentas qualitativas de caráter etnográfico, contando com entrevistas semidiretivas e observação participante. O referencial teórico esteve baseado em estudos etnográficos de trabalhadores rurais e análise das relações de poder foucaultianas. Como resultado foram identificadas diferentes trajetórias, identificadas como: “ser e estar no trecho”, “que nem formiga” e assentados. A conclusão demonstra o conjunto de assimetrias provocadas pelo processo de desenvolvimento e a itinerância contínua e sazonal destes trabalhadores.

Palavras-chave:Trabalhadores sazonaisTrabalhadores sazonais,Fluxos migratóriosFluxos migratórios,Agricultura familiarAgricultura familiar.

Abstract: The dynamics of capitalist development in the Brazilian field have produced social, economic and environmental consequences. Among them, we highlight in this article, the migratory flows of seasonal workers in the apple harvest. This study aimed to identify the trajectories and the different categories of these workers. Qualitative tools of an ethnographic character were used, with semi-directive interviews and participant observation. The theoretical framework was based on ethnographic studies of rural workers and analysis of foucaultian power relations. As a result, different trajectories were identified, identified as: “to be in the stretch”, “like an ant” and settled. The conclusion demonstrates the set of asymmetries caused by the development process and the continuous and seasonal itinerancy of these workers.

Keywords: Seasonal workers, Migratory flows, Family farming.

Resumen: La dinámica del desarrollo capitalista en el campo brasileño ha producido consecuencias sociales, económicas y ambientales. Entre ellas, destacamos en este artículo, los flujos migratorios de trabajadores estacionales en la cosecha de manzana. Este estudio busca identificar las trayectorias y las diferentes categorías de estos trabajadores. Se utilizaron herramientas cualitativas de carácter etnográfico, con entrevistas semidirigidas y observación participante. El marco teórico se funda en estudios etnográficos de trabajadores rurales y análisis de las relaciones de poder foucaultianas. Como resultado, fueron identificadas diferentes trayectorias, reconocidas como: “ser y estar en el trayecto”, “como una hormiga” y asentados. La conclusión demuestra el conjunto de asimetrías provocadas por el proceso de desarrollo y el tránsito continuo y estacional de estos trabajadores.

Palabras clave: Trabajadores estacionales, Flujos migratórios, Agricultura campesina.

Carátula del artículo

Artigos

Cartografia dos deslocamentos: Trabalhadores sazonais da maçã em Vacaria

Cartography of displacements: Seasonal apple workers in Vacaria

Cartografia de los desplaziamentos: trabajadores estacionales de manzanas en Vacaria

Alberto Bracagioli Neto
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Tiago Zilles Fedrizzi
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Redes. Revista do Desenvolvimento Regional, vol. 26, 2021
Universidade de Santa Cruz do Sul

Recepción: 17 Agosto 2020

Aprobación: 30 Abril 2021

1 Introdução

Existem diversas facetas do mosaico envolvendo as transformações ocasionadas pela modernização agrícola brasileira, mais destacadamente sobre trabalhadores sazonais, safristas ou temporários como são designados onde, no caso em análise, referimos nos aos trabalhadores sazonais da colheita da maçã em Vacaria. A mudança da paisagem agrícola compreendida pela região dos Campos de Cima da Serra, mais especificamente em Vacaria, passou de uma economia tradicionalmente voltada à pecuária extensiva e exploração madeireira para a produção de grãos e a consolidação da fruticultura temperada, representada pela maçã. O grande propulsor destas dinâmicas foram os incentivos fiscais, introduzidos pelo governo federal em 1966 através da Lei n. 5106/1966, estimuladas pela crise econômica que se instalara na época. Através deste mecanismo legal, amparados por um discurso das questões ambientais, pessoas jurídicas passaram a poder descontar até 50% do valor do imposto em florestamento e reflorestamento com essências florestais, árvores frutíferas e árvores de grande porte. Este novo ciclo econômico impulsionou a conversão de 40% da área de campo nativo em outros usos como principalmente a agricultura intensiva com a introdução da soja e também da fruticultura protagonizada pela maçã nas últimas décadas (LOPES et. al, 2010).

Embora a mecanização e a alta tecnologia tenham sido e continuem sendo empregadas intensivamente nos pomares de maçã em Vacaria, a mão de obra necessária não somente durante a colheita, mas também nos diversos manejos necessários ao longo do ano como o raleio de frutos, poda e condução das plantas, aparece como o principal limitante às empresas de maçã, ocasionando uma espécie de saga cada vez mais longa na busca de encontrar a demanda necessária para a mão de obra a ser suprida. Neste sentido, estima-se que, durante a safra, sejam necessários 1200 trabalhadores para cada 1.000 hectares, ou seja, uma proporção de 1,2 homem por /hectare. Dados levantados durante pesquisa exploratória e triangulados com o trabalho de Oliveira (2011) que levanta informações junto ao Ministério do Trabalho de Vacaria, estima-se que, anualmente na época da safra da maçã, 12000 a 15000 trabalhadores migram para a região buscando atender à demanda no trabalho da colheita.

O fato de Vacaria ter apostado no que atualmente está disposto no território, com aproximadamente 4.530 hectares da variedade Gala, corresponde a quase 70% do total da área (ASSOCIAÇÃO GAÚCHA DOS PRODUTORES DE MAÇÃ - AGAPOMI, 2019). Esta característica acaba por gerar uma enorme demanda de mão de obra num período relativamente curto. Isto porque a variedade Gala possui características fisiológicas cujo ponto de maturação ocorre rapidamente, o que acaba por exigir um contingente enorme de trabalhadores entre 30 a 45 dias. Entre outras consequências, cria-se uma força de trabalho circulante, residindo em muitos lugares e vencendo longas distâncias geográficas e culturais (SILVA, 1998). O trabalho temporário faz com que grande parte dos trabalhadores contratados para a safra da Gala sejam demitidos ao final do contrato temporário, visto que existe uma “janela” ociosa sem produção, já que a colheita da variedade Fuji - variedade mais tardia - inicia aproximadamente duas semanas após o fim da Gala e que, do ponto de vista quantitativo, representa pouco mais de 25% da área cultivada, o que demanda uma quantidade de trabalhadores muito menor, suprida em parte pelos trabalhadores fixos.

Dentro deste contexto, o presente artigo tem como objetivo caracterizar as diferentes categorias de trabalhadores sazonais que fazem parte destas dinâmicas migratórias, suas trajetórias e estratégias envolvidas no ato de cruzar estados e regiões nas busca de uma renda complementar ou uma “gordurinha” como também é colocado pelos trabalhadores, com o intuito de viabilizar estratégias de reprodução sociais. Nesta perspectiva, partimos de uma análise macro, traçando os diversos fluxos migratórios e origens observados, buscando ir de encontro ao agrupamento destes trabalhadores em “categorias de atenção”. No que diz respeito às estratégias metodológicas, foram utilizadas ferramentas metodológicas qualitativas de caráter etnográfico, como entrevistas semidiretivas e observação participante, através da vivência no cotidiano de trabalho de três pomares distintos durante a safra de 2019. Nas considerações finais, tratamos de apresentar o cenário analítico e problemático destas migrações sazonais na perspectiva do desenvolvimento.

2 Em busca dos fluxos migratórios

A música nacional possui diversas expressões que remetem aos processos de migração. Neste sentido, as composições tratam das diversas facetas regionais e culturais do deslocamento, algumas demonstrando os contrastes entre hábitos alimentares, entre o rural e o urbano e a massificação deste processo colocado por Gil e Domingos como essa “multidão boiada caminhando a esmo”. O Brasil é um país de dimensão continental e parte da população busca contornar suas assimetrias, reflexo dos projetos desenvolvimentistas implementados, através do deslocamento em busca de melhorias como dizem alguns migrantes: “viemos por precisão”2. No entanto, estes são processos ativos e protagonizados por uma heterogeneidade de atores que cruzam fronteiras geográficas e culturais e traçam resistências e estratégias de reprodução socioeconômica.

A análise destes deslocamentos aqui tratados, parte do pressuposto que as migrações estão para além da linearidade entre origem e destino e de fatos isolados de atração e repulsão, mas que existe uma diversidade de processos envolvendo desde características de determinados sistemas produtivos nos locais de origem até aspectos ecológicos, territoriais e culturais. No caso em estudo, foram elaborados mapas migratórios no sentido de levantar as principais regiões de origem destes trabalhadores e abarcar as diversas estratégias em curso envolvidas nos caminhos e descaminhos desses trabalhadores. Obviamente que, para ser possível um aprofundamento sobre as realidades relativas a determinadas regiões específicas de onde provêem, seria interessante que fosse traçado o caminho de volta, numa tentativa de “cartografia reversa” buscando ir de encontro aos atores a partir de uma análise nos seus locais de origem.

Optou-se por utilizar o banco de dados fornecido pela Delegacia da Polícia Civil de Vacaria, responsável pela Operação Safra, constando a origem destes trabalhadores de acordo com o que consta na cédula de identidade dos mesmos. Segundo a Polícia Civil a Operação foi criada pela demanda do setor da fruticultura e do poder público devido ao grande número de pessoas que se deslocam para a cidade de Vacaria e região para a colheita da maçã e pelo fato de, em anos anteriores, terem ocorrido algumas tragédias em pomares, inclusive com vários incêndios e mortes, fatos que foram diminuindo desde que a Operação foi institucionalizada em 2014. Operacionalmente consiste num aumento contingencial da Polícia Civil e Brigada Militar com ações e fiscalização aos pomares durante a safra. Em contrapartida, as empresas devem fornecer uma relação dos contratados para safra de modo a realizar uma checagem de possíveis pendências com a justiça. O número de presos passou de 72 presos em 2014 a apenas 2 em 2019 (Relatório de Diligências da Polícia Civil de Vacaria, 2019). A partir desta referência, considerou-se um total de 6100 trabalhadores referente ao ano de 2018 para a elaboração de uma cartografia migratória, levantando uma das questões que indagam a pesquisa: de onde vêm estes trabalhadores?

O primeiro dos mapas migratórios (Figura 1) diz respeito ao fluxo dos trabalhadores de acordo com as suas origens por grandes regiões - Sul, Sudeste, Centro-Oeste, Nordeste e Norte. Todas as regiões fornecem - em menor ou maior proporção - mão de obra temporária durante a colheita da maçã. Em menor proporção, a região Norte contabiliza 0,31% das origens dos trabalhadores, seguido do Nordeste e Sudeste com respectivamente, 2,75% e 3,08% da contribuição migrante. Embora não se tenha uma base de dados que permita uma análise comparativa ao longo dos anos, a origem do total dos trabalhadores referentes a estas duas regiões, segundo empreiteiros e gerentes, têm aumentado nos últimos três a quatro anos, principalmente de nordestinos.

Em seguida, a origem dos trabalhadores da região Centro-Oeste é extremamente significativa, com mais de 23% do total dos migrantes, influenciado muito pela organização de frentes de trabalhadores de indígenas, pertencentes principalmente às etnias Terena e Guarani-Kaiowá, provenientes principalmente do estado do Mato Grosso do Sul (MS). Para a safra 2019, aproximadamente 3500 destes indígenas vieram para a colheita da maçã no Rio Grande do Sul e também em Santa Catarina, resultado de uma parceria estabelecida entre órgãos públicos e entidades indígenas.

A responsável pelas contratações é a Fundação do Trabalho de Mato Grosso do Sul (FUNTRAB) fazendo a intermediação com as empresas. A organização social destes trabalhadores, como já colocado, permite um amparo legal do ponto de vista da reivindicação de direitos e na busca de melhorias no ambiente de trabalho. Para a empresa da mesma forma, permite centralizar e tratar questões trabalhistas e de contratação diretamente com a Fundação ao invés de trabalhador a trabalhador.

Dentre as cinco regiões federativas, a região Sul é disparadamente, a principal origem dos trabalhadores temporários em Vacaria com mais de 70% do total, destes, 63% é do próprio estado do Rio Grande do Sul, por questões fundamentais referentes às distâncias percorridas. De acordo com um dos empresários que acompanhou a implantação dos primeiros pomares em Vacaria, a demanda da mão de obra inicialmente utilizada para a colheita vinha da própria região, principalmente de municípios vizinhos. No entanto, com o aumento das áreas de cultivo e intensificação dos manejos, foi necessário buscar em outras regiões essa mão de obra de modo a equilibrar a demanda, fato que até hoje continua ocorrendo, vencendo cada vez mais longas distâncias.


Figura 1
Fluxo de trabalhadores temporários da colheita da maçã em Vacaria - RS por grandes regiões de origem
Elaborado por Ferreira e Fedrizzi (2019) com base nos dados da Operação Safra 2018.

Evidentemente, as linhas retas que representam as origens destes trabalhadores não implicam necessariamente em deslocamentos unidirecionais, mas pelo contrário, na prática o que se evidencia são caminhos sinuosos que se concentram e se espalham no território. Buscamos ilustrar a proporção de trabalhadores provenientes de cada região do país pela espessura das linhas, onde quanto mais espessa maior a representatividade e quanto mais estreita menor.

Especificamente para o estado do Rio Grande do Sul elaboramos um mapa migratório de modo a levantar o percentual dos trabalhadores por município (Figura 2). Destaca-se aqui que os dados utilizados para a elaboração são também referentes à Operação Safra 2018 e que, o município contabilizado diz respeito ao encontrado na cédula de identidade dos formalmente contratados e informados. Vacaria e os municípios limítrofes, Bom Jesus e Lagoa Vermelha constam como sendo a proveniência da maioria dos trabalhadores temporários. Em seguida municípios da região da Campanha do Rio Grande do Sul, localizados na fronteira oeste do estado, principalmente Uruguaiana e Santana do Livramento contribuem com significativa origem dos trabalhadores migrantes, correspondendo à já relatada região de expansão do agronegócio, em maior área a soja. A região das Missões, localizada na porção norte do Rio Grande do Sul, foi identificada também como bastante representativa no que diz respeito às principais origens dos trabalhadores temporários do estado. A região possui o histórico da divisão das propriedades entre os membros da família em porções menores, dificultando as perspectivas de produção em relação ao aspecto fundiário (ANJOS et al., 2006), tendenciando a busca de empregos fora das propriedades.

Alguns interlocutores comentam que os monocultivos de grãos, representado principalmente pela presença e expansão da soja, têm ocupado gradativamente o espaço da paisagem, tirando parte dos empregos, gerando uma migração na busca de algum “serviço fora”. Um senhor natural do município de Redentora (RS) que antes havia trabalhado há mais de dez anos no corte da erva-mate comenta: “Os ervais foram esmagados pelas lavouras, fruto de incentivos do governo e facilidades de comércio”, fazendo referência aos atrativos preços pagos pelo grão e que tem feito muitos produtores trocarem os ervais pela soja.

Dados levantados por Kuplich; Capoane; Costa (2018) demonstram que de 2000 a 2015 a área plantada com soja no estado do Rio Grande do Sul aumentou em 73,7%, onde grande parte desta expansão se deu na metade sul do estado, mais intensamente em municípios da região da Campanha, local de boa parte dos trabalhadores temporários da colheita da maçã em Vacaria. Portanto, não seria mera causalidade que processos estes como o da “sojização” reflitam sobre as formas organizacionais de trabalho de milhares de trabalhadores, a partir do momento em que determinado sistema produtivo descarta a necessidade de grande parte do uso da mão de obra.


Figura 2
Percentual dos trabalhadores temporários da colheita da maçã em Vacaria - RS por município do Rio Grande do Sul
Elaborado por Ferreira e Fedrizzi (2019) com base nos dados da Operação Safra 2018.

Embora tenhamos apresentado dados e mapas de um recorte específico à safra de 2018, a heterogeneidade de origens desses trabalhadores vem se mantendo ao longo dos últimos anos, segundo o discurso de alguns gerentes e proprietários de pomares. O que se apresenta nestes deslocamentos muitas vezes são resultados de políticas nacionais implantadas nas diferentes partes do país, refletindo diretamente nas formas de emprego encontradas. Embora a região sul continue sendo a principal origem dos trabalhadores, a região centro-oeste vem se estabelecendo como relevante parte dos mesmos, principalmente pela organização formal da contratação dos coletivos de etnias indígenas via FUNTRAB.

3 Categorias de deslocamento

A itinerância dos sujeitos acarreta consequentemente uma ressignificação de identidades pelas trocas culturais de um território conhecido para outro desconhecido. Obviamente, sem o intuito de restringir e delimitar a discussão existente na literatura sobre categorias de trabalhadores migrantes buscamos, através de um convívio intenso no trabalho de campo, deixar aflorar o que carregam e quem são estes viventes e ressaltar alguns padrões que permitem que sejam agrupados em “categorias de atenção” de trabalhadores que englobem características semelhantes de trajetórias, estratégias, objetivos e realidades próprias: os trabalhadores “do trecho”, os “formigas” e os “assentados”.

“Ser e estar no trecho”

Por volta dos anos 80, o termo “trecho” passa a ser utilizado em estudos para se referir aos trabalhadores “volantes” no contexto dos grandes projetos desenvolvimentistas que requerem grandes levas de trabalhadores temporários, vinculado a um personagem peculiar que é o “peão do trecho” (GUEDES, 2013a). Segundo o autor, os “trecheiros” passam a ser tratados também enquanto andarilhos e peregrinos do trabalho, que se deslocam a pé, de ônibus, de carona, cortando estados e rodovias.

Os trabalhadores do “trecho” são aqueles que vivem numa espécie de saga errante, que se deslocam continuamente pelo território e que já estão incorporados no seu ethos, mantendo-se através de “bicos” e “biscates” para levantar dinheiro e seguir no trecho. Manuel, trabalhador pernambucano que vive no trecho explica que:

Ser do trecho é cara que não pára aqui, fica aqui, fica acolá, depende do albergue pra se manter, pra morar, pra comer. Às vezes quer trabalhar, às vezes trabalha, às vezes não. É isso, é assim. Esse pessoal tem problema né, às vezes não é aceito em casa, às vezes também não quer ir. É a pessoa que não tem um destino né, que hoje tá aqui, hoje tá acolá. Até mesmo no trabalho, não sei se você já viu aí, várias vezes todo dia vai gente embora. Uns quantos mesmo, segunda-feira foram 8 embora, muitos vão embora. Às vezes não tira nem a despesa, mete o pé. Que geralmente do trecho, não tem despesa né, que eles pegam uma passagem aqui, pega acolá, pega uma carona, muitos vem aqui e não gasta um centavo (Manuel, Garauns - PE, 2019).

Em certos aspectos, o “ser do trecho” é carregado por estigmas, aparecendo como contraponto ao que viria a ser uma concepção tradicional de organização familiar, causando por vezes sofrimentos e angústias pelo fato de arranjarem outras parceiras ou parceiros, ou que mesmo arrumem desavenças nos locais de destino. Os estigmas são construídos a partir da percepção do "outro" como são também os preconceitos.

No entanto, Guedes (2013a) ao estudar a mobilidade gerada pela interrupção da atividade de garimpo pela construção de usinas hidrelétricas no norte de Goiás, retrata por olhos e profundidade etnográfica o fato de que, “estar no trecho” ou “estar no mundo” não é encarado como algo necessariamente ruim ou deletério, mas é também capaz de produzir efeitos educativos e de aprendizagem. O ato de “estar no trecho” é inclusive tratado como um ritual de passagem, permeado de dificuldades, mas de importante amadurecimento quando os interlocutores de Guedes (2013a, p. 220) citam:

Sei hoje que o trecho bate, que a gente sofre, que a gente aprende [...] conheço melhor o que é o mundo, sou uma pessoa melhor”. Ao mesmo tempo que ao ‘correr trecho’ se coloca em perigo, um mundo de possibilidades se abre: ‘Conhecer ou encarar o mundo é cair na realidade, é encarar a vida; e é dar-se conta do que há de contingente e provisório no lar e na família’ (GUEDES, 2013a, p. 222).

Depreende-se um debate de que o “trecho” é também uma escolha, um modo de levar a vida, seja esta opção por um determinado período de tempo mais curto, mais longo ou mesmo de vida inteira. O “ser do trecho” carrega também um sentido positivo para os trabalhadores como o fato de se ter liberdade, não possuírem compromissos e nem responsabilidades a longo prazo. Ao conversar com o trabalhador de São Paulo lhe é perguntado o que traz ele a Vacaria para a colheita e responde: “Não venho pela necessidade de dinheiro, mas porque me faz bem estar em movimento. Há dois anos caí na estrada para sentir a realidade de viver com pouco no trecho”. O fato de se sentir “bem” está atrelado a um conjunto de fatores, dentre eles a necessidade da almejada liberdade, de buscar distância de familiares que muitas vezes fazem “cobranças”, assim como o “movimento” tanto no sentido do trabalho físico como no deslocamento, sem permanecer muito tempo em determinado local. Neste caso, o fator econômico não é o principal objetivo mobilizador até porque o mesmo interlocutor lança a seguinte problematização: “Tu acha que, com R$ 1.200, rapaz aqui atravessa o Brasil e volta com dinheiro pra casa?”.

Os sujeitos “do trecho” em suas vagueações pelo espaço podem também estabelecer vínculos com o local ao permanecer por mais tempo quando existe a oferta de emprego. São assim chamados os “fichados”, que por questões de oportunidade e por demonstrarem dedicação no trabalho, estabelecem um contrato fixo de carteira assinada com a empresa exercendo diversas funções ao longo do ano no pomar. Normalmente esta situação surge a partir de frentes familiares que tiveram protagonismo em iniciar suas vidas no trabalho com a maçã e que, por laços de parentesco, conseguem trabalhos para familiares que permaneceram em seus locais de origem, instalando-se normalmente em bairros periféricos do município.

Neste sentido, parte-se do que Haesbaert (2004) identifica no processo de desterritorialização para uma reterritorialização, ressaltando a importância da análise do território sob a perspectiva dos sujeitos visto que implica identificar e colocar em primeiro plano os sujeitos da des-re-territorialização, ou seja, quem desterritorializa quem ou o que e com que objetivos. Na realidade empírica, esta mobilidade temporária de trabalhadores produz uma sociabilidade cuja construção dos territórios se dá a partir do movimento e onde o local se fundamenta nessas diferenças (BOURDIN, 2001 apud HAESBAERT, 2004).

Os contatos dos migrantes no local de destino desempenham um papel fundamental no que diz respeito a propensões migratórias, seja no nível individual ou familiar. Tendo-se condições similares, normalmente se opta por eleger locais com pessoas conhecidas, ou seja, que se tenham referências. Sahlins (1997) utiliza a ideia de “ampliação de mundo”, ou seja, podendo-se pensar em novas possibilidades - neste caso de renda. Na perspectiva de uma continuidade - e não ruptura com o local de origem - uma população translocal é capaz de habitar e manter relações com os mundos de origem e de destino, como parte interdependente de uma totalidade sociocultural (SAHLINS, 1997; RECHENBERG, 2013).

“Que nem formiga: trabalha no verão pra no inverno se esconder”

Por outro lado, trabalhadores estabelecem um compromisso assíduo no período da safra, deslocando-se anualmente de suas regiões para Vacaria. São estes os “Formigas”, que nas épocas menos propícias em relação a ocupação e prestação de serviços em suas cidades, encontram em Vacaria esta oportunidade de uma “gordurinha” ou mesmo como principal fonte de renda. Um agricultor do interior do estado brinca: “No inverno trabalho na terra tem pouco. Ai o azevém cresce. Tem que trabalhar no verão e comer no inverno. Que nem formiga: trabalha no verão pra no inverno se esconder”. Podemos incluir também neste grupo os trabalhadores nordestinos que atravessam o território brasileiro: de janeiro a abril estão em Vacaria para o trabalho na maçã, de maio a dezembro exercem a profissão de pescadores artesanais ou colhem laranja na região de São Paulo, seguido de alguns dias nas festas de final de ano em seus locais de origem propriamente ditos com suas famílias, antes de tornar novamente à Vacaria. O empresário relata como seu deu o estreitamento do vínculo com a turma:

Fazem 3 anos que estou trazendo gente de Alagoas. Eles (nordestinos) vêm a São Paulo colher laranja. Quando chega em janeiro baixa a colheita e liberam 70% dos trabalhadores. Então eles descobriram a maçã, não fomos nós que fomos atrás. Apareceu um, apareceu outro, avisou amigo, avisou vizinho e começaram a fazer turma. Assim fretam ônibus com a turma toda (Empresário B, Vacaria - RS, 2018).

As redes informais vêm se constituindo como espaço de comunicação eficaz, trocando informações sobre vagas de emprego, condições de pagamento, alojamentos e qualidade da comida oferecida nos pomares (MENEZES, 2002). Normalmente consistem em movimentos com deslocamentos de curta duração, que se repetem, por vezes numa ciclicidade, e sem intenção de que cheguem a constituir mudanças permanentes de residência. Essas redes proveem trocas de informações que reduzem o risco da migração “dar errado”, fornecendo pistas das condições a serem encontradas no destino.

“Assentados”

Outro agrupamento, por assim dizer, refere-se aos trabalhadores que possuem uma trajetória de trabalho com a agricultura, grande parte destes são agricultores familiares ligados anteriormente às frentes de trabalho do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) e que, mesmo após assentados, enxergam no trabalho com a maçã, possibilidades na busca de melhorias nas questões estruturais e produtivas em seus lotes e no próprio assentamento. Este processo perpassa questões estratégicas das famílias, onde parte permanece trabalhando no lote enquanto, normalmente os homens, migram para o trabalho temporário e enviam mensalmente parte do dinheiro recebido para suas famílias (GARCIA JR, 1990).

As famílias e trabalhadores assentados do MST tomam as decisões baseados, dentre outros fatores, na análise de uso do tempo e de custos e benefícios que estão implicadas, optando por determinadas escolhas em detrimento de outras (LONG, 2007; WOORTMANN, 1990). Não são todos os integrantes que migram, nem são todos os anos que isto acontece. Woortmann (1990) destaca também que as migrações cíclicas e sazonais não são resultados apenas de diferença de trabalho entre os vários momentos do ciclo agrícola, mas que dois aspectos importantes devem ser considerados: a periodicidade pela alternância entre pouco e muito trabalho nos roçados e também a disponibilidade de produtos para consumo ou para venda, dependendo do ano ter sido bom ou fraco, ter tido bons períodos de chuva ou perdas pela estiagem, períodos de fartura e períodos de “precisão”.

As características sazonais dos sistemas agrícolas produtivos, tanto no local de origem quanto de destino destes agricultores, permitem uma janela de oportunidade de trabalho num período “ocioso”, impulsionando o potencial migrante. A busca por uma fonte de renda complementar capaz de suprir as necessidades básicas de produção e reprodução dos trabalhadores e suas famílias faz com que os mesmos apliquem de maneira diversa seus recursos e força de trabalho na atividade agrícola propriamente dita e em atividades não agrícolas dentro ou fora da propriedade ou mesmo nos trabalhos temporários. Isto pode não implicar necessariamente no abandono da atividade agrícola, da propriedade rural ou mesmo o trabalho no espaço urbano. As atividades e estratégias podem ser combinadas de tal forma que proporcionem diferentes possibilidades de geração de renda às famílias. No entanto, quando questionada sobre a possibilidade de viver somente do lote, a agricultora assentada da reforma agrária coloca:

Com certeza, eu não peguei projeto até agora, mas se tivesse como viver só de lá seria muito melhor. Pra dar uma "deslanchada" porque se o cara for se acomodar vai ficar sempre na mesma ou dependendo do governo pra tudo. É uma maneira da pessoa viver com as próprias pernas porque ganhar um lote de terra e ficar esperando que o governo dê tudo, não vai acontecer nunca. Vai que dá um ano ruim, uma enchente, uma seca, vai ficar fazendo o que? (Trabalhadora Q, São Gabriel - RS, 2019).

São questões de estratégia tanto individuais como coletivas do Movimento, com o objetivo de ser menos dependente de créditos via projetos governamentais e tentar viver com “as próprias pernas”, na busca de uma maior autonomia. Tendo em vista a lógica implementada em muitos dos assentamentos de reforma agrária foi uma lógica de engenharia que ignorou os atores sociais, suas trajetórias, suas aptidões. Portanto, novos vínculos que acabam por ser estabelecidos em contextos extremamente desfavoráveis do ponto de vista estrutural para as famílias acampadas e em processo de regularização fundiária dos assentamentos. Dadas as particularidades, uma condição é um assentamento localizado na região metropolitana de Porto Alegre com maior possibilidade de acesso a mercados. Outra, em realidades geograficamente afastadas dos principais centros de comercialização, como por exemplo, no interior da região da campanha, fato pelo qual, segundo empreiteiro, os municípios de São Gabriel e Santana do Livramento se colocam como as principais procedências dos trabalhadores assentados. Em relação ao trabalho na maçã, uma das lideranças do Movimento relembra como se deu a parceria entre a maior empresa de maçã brasileira e o MST e o quanto foi fundamental para estruturação dos assentamentos:

[...] em 94 quando viemos pra cá fomos correndo nas empresas arrumar serviço, mas quando nós falávamos que era do Movimento, todo mundo saltava. Algumas empresas nem receberam nós. A única empresa que recebeu foi a Maçã Ltda 2, o gerente dele do pomar. Nós tínhamos que abrir o jogo, somos do Movimento, somos muita gente, não tem trabalho nas regiões, temos que vir aqui. Na semana seguinte ele ligou: ‘Oh precisamos de 30 pessoas para nós experimentar’. Tinha um acampamento lá em Júlio de Castilhos, fomos lá e escolhemos só os bons colhedores. Viemos aqui e não deu 4-5 dias e disseram pra trazer mais um ônibus, 40 pessoas. Ai tomamos conta do pomar. Temos muitas famílias assentadas que conseguiram melhorar as estruturas de casa, graças às frentes de trabalho, e muitos se mantiveram nos acampamentos graças ao trabalho. Eles mesmos diziam: ‘nós conseguimos chegar até o assentamento por causa das frentes, conseguia sair pra trabalhar e manter nossa família debaixo da lona’. Hoje ainda várias famílias que eu conheço e sei, continuam vindo trabalhar na maçã (Empreiteiro C, Tupanciretã - RS, 2019).

E destaca também três características que os tornam diferenciados dos demais trabalhadores:

O nosso pessoal do Movimento sempre com destaque, ele (proprietário do pomar) dizia: o pessoal de vocês tem 3 vantagens: uma pela organização de vocês que vocês se organizam diferente, a frente de trabalho vem com as equipes certa, os caras que são responsáveis; a disciplina do pessoal de vocês, que desde a época do acampamento a gente tem um sistema disciplinar diferente; e o rendimento no trabalho, o pessoal de vocês é muito mais trabalhador do que qualquer outro (Empreiteiro C, Tupanciretã - RS, 2019, grifos nossos).

A discussão das estratégias das famílias de agricultores perpassa processos migratórios que buscam contornar conflitos diretos, colocando-se característico às condições produtivas e reprodutivas dos mesmos. Conforme colocado por Woortmann estes deslocamentos não são “[...] apenas consequência da inviabilização de suas condições de existência, mas é parte integrante de suas próprias práticas de reprodução. Migrar, de fato, pode ser condição para a permanência [...]” das famílias (WOORTMANN, 1990, p. 37), e não necessariamente ser levado à proletarização pela inserção em atividades assalariadas (MENEZES, 2002).

Outro fator que atualmente tem modificado as dinâmicas para os assentados são as “parcerias” feitas para o plantio de soja em pequenas áreas que aumentam, desta maneira a disponibilidade do fator mão de obra e que tendem a aumentar o potencial migrante, visto que a época do cultivo da soja coincide com o da colheita da maçã. Cabe ressaltar que o Movimento encara outros dilemas sobre como se sustentar economicamente e politicamente, enfrentando questões inerentes à própria ideologia, numa certa ambiguidade às condições objetivas do mesmo como o caso da oferta da força de trabalho para um setor colocado até então como explorador, problematizado por um dos protagonistas desde a formação das frentes em 1994:

Nós enfrentamos algumas restrições como: vamos trabalhar pros caras ricos do agronegócio? Por mais que seja um cara que tenha mais de 3500 hectares de maçã, 5000 hectares de lavoura, tem quase 5000 hectares pra gado, a necessidade é nossa. Mas nós tínhamos que fazer as luta também né? A marcha pela terra. Então nós tínhamos que ter um volume alto de pessoas aqui na maçã, mas também lá não podia abandonar as peleia né? E nós conseguíamos sempre conciliar o trabalho com as luta. Até hoje nós temos organizado as frentes de trabalho, claro que bem diferente de quando começou (Empreiteiro C, Tupanciretã - RS, 2019).

Tem-se aí um elemento interessante agregado, além da disponibilidade da mão de obra e da produção de alimentos, que é o movimento de luta pela terra. A força simbólica dessa metamorfose está no que Saffioti e Almeida (1995) denominaram como um processo de des-re-construção e as multifacetas dos sujeitos, como no exemplo de uma trabalhadora podendo ser agricultora, migrante e mulher ao mesmo tempo, carregando todas as identidades, sem uma hierarquização entre elas (SILVA, 1998). Portanto, deixando de purismos, aparecem complementaridades entre setores colocados até então como inconexos, o agronegócio e a agricultura familiar.

Embora se tenha proposto o agrupamento em três diferentes “categorias de atenção”, não significa que não exista uma sobreposição de categorias e um hibridismo entre estas diferentes categorias, mas que permite desta maneira, enxergar particularidades. Por exemplo, um assentado pode muito bem assumir uma trajetória dos “formigas”, possuindo uma regularidade migratória ao longo dos anos. A própria migração temporária pode se tornar permanente e vice-versa. As consequências destes deslocamentos podem, por um lado, acarretar em desestruturações, gerando um efeito contrário ao previamente planejado, por outro alcançar objetivos que viabilizem concretizar estratégias socioeconômicas e de vida das famílias (WOORTMANN, 1990).

Galizoni e Ribeiro (2019) exemplificam, através da obra de Antônio Cândido, a mobilidade e suas consequências para as famílias de agricultores caipiras na obra “Os parceiros do Rio Bonito”. Segundo os autores, existem dois lados da mesma moeda com a questão migratória, com situações que assumem sentidos diversos: por um lado, permite criar condições necessárias para a reprodução da família pelo recebimento de um salário; por outro, instabiliza as relações pela dispersão, preocupação e o temor de diversas ordens como traição, instabilidade familiar, não presença do pai na criação dos filhos (GALIZONI; RIBEIRO, 2019; GUEDES, 2012b). Um caso relatado por um trabalhador me comoveu. “Nosso colega de trabalho, o Zé, durante a safra passada começou a desconfiar que a esposa estava tendo caso com outro homem. Largou o serviço aqui e chegou de surpresa. Quando viu a mulher com o homem, acabou matando a mulher”

Por outro lado, jovens filhos de agricultores que buscam a autonomia financeira em relação aos pais encontram no trabalho temporário a possibilidade de acumular recursos, gastando o mínimo e poupando o máximo, o que possibilitará alcançar os objetivos estabelecidos como a construção da nova casa, fazer a festa de casamento, fazer a compra de animais ou mesmo de uma propriedade para trabalhar na agricultura. Ocorre uma espécie de ritual de passagem, um amadurecimento para a fase adulta, onde a migração marca sobretudo uma distinção entre homens e rapazes (WOORTMANN, 1990).

Galizoni e Ribeiro (2019) colocam também que no local de destino desses migrantes as novas relações eram reformuladas nos termos do universo comunitário e passavam por adaptação às novas formas de vida: os locais de destino de migrações e os tipos de trabalho desenvolvidos eram instrumentos para compreender a história migratória de um determinado grupo social, e poderiam ser lidos como permanências, oportunidades e, no limite, recursos mobilizáveis.

4 Concluindo o trecho

Ao longo dos fluxos migratórios aqui registrados é possível observar aspectos peculiares e distintivos da materialização da modernização agrícola numa região específica e, particularmente, com trabalhadores sazonais que buscam “no trecho” e, em outras estratégias de deslocamento, seus espaços de reprodução social nas entranhas do capitalismo agrário brasileiro. As características particulares deste processo demonstram uma série de facetas que envolvem aspectos locais e territoriais, mas também ambiguidades oriundas de políticas públicas e de fatores históricos e produtivos de determinadas regiões brasileiras.

As assimetrias socioeconômicas não produzem apenas ambiguidades em nível local, geram também deslocamentos, migrações sazonais ou permanentes influenciados por aspectos econômicos, produtivos, ecológicos e sazonais. Isto traz, por um lado, o fato de que os trabalhadores não são apenas personagens passivos da dinâmica do rural, mas sim ativos produtores de estratégias de reprodução social, por vezes migrando para gerar renda e dar continuidade ao seu sistema produtivo em “janelas” de oportunidade em épocas de pouca demanda de força de trabalho nos locais de origem. Da mesma forma, são pressionados por alterações do sistema produtivo locais, sendo que no Rio Grande do Sul o processo de sojização da agricultura que avançou em grande medida sobre o bioma Pampa (Litre, 2010), alavancados pelos preços internacionais das commodities, desenvolveu uma agricultura “sem agricultores” e consequentemente um excedente de mão de obra. Em outros casos, a inexistência de trabalho e renda nos locais de origem também promove deslocamentos temporários ou permanentes como busca de “melhorias de vida” ou como expresso por alguns trabalhadores,“por precisão”.

Um aspecto que podemos constatar entre os depoimentos e com os dados coletados na pesquisa é que a oposição dicotômica entre agricultura familiar e agronegócio não contempla a complexidade dos processos agrários contemporâneos. Dentro deste grande mosaico preenchido por diferentes realidades, ressalta-se a importância de políticas e ações diferenciadas, que contemplem as diversidades dos determinados contextos existentes, bem como as complementaridades sazonais relacionadas aos sistemas produtivos e que estabelecem pontes. Relacionado a isso, existe um tema que não entrou no escopo de análise que demonstra a possível precariedade e falta de assistência na continuidade e estabelecimento de alguns Assentamentos de Reforma Agrária na Região da Campanha gaúcha que, pela expressão das suas “frentes de trabalho”, demonstram não terem estabelecido um sistema de produção suficiente para geração de renda familiar e que na precarização atual do INCRA e das políticas agrárias existentes pode agravar mais a sustentação destas famílias.

O desenvolvimento da fruticultura, mais especificamente da maçã, teve importante impacto econômico na região Sul, passando o Brasil de importador na década de 1960 para ser atualmente exportador da fruta. O cultivo comercial foi estabelecido por meio de grandes empresas atraídas por incentivos de políticas públicas dentro da Região Sul representando hoje 90% da produção nacional.

A análise dos incentivos fiscais não foi o centro do estudo desenvolvido, porém é possível perceber que ocasionou grande impacto na dinâmica econômica e produtiva da pomicultura na Região Sul. A reflexão que fica pendente é sobre o sistema tributário brasileiro e as formas de aprimorar a tributação, buscando gerar dinâmicas de desenvolvimento com equidade e competitividade. Os incentivos fiscais promovem uma desoneração de determinadas pessoas jurídicas em prol do incentivo a determinado objetivo econômico, sendo que no caso da maçã parte dos incentivos foram utilizados por empresas do setor metalúrgico como forma de diversificação de renda num período de crises. Estes mecanismos fazem com que determinadas empresas se tornem mais competitivas que outras, criando um ambiente artificial de mercado e gerando impactos negativos em outros setores econômicos. Apesar das inúmeras reformas tributárias feitas no Brasil o sistema permanece tendo ainda grande ineficiência, onde uma empresa dentro do estado deve cumprir com mais de 3512 normas tributárias (SACHSIDA, 2017). Pela complexidade das reformas necessárias têm sido feitas apenas mudanças pontuais, por vezes, por pressão de setores econômicos em busca de benefícios específicos e nem sempre para a população em geral. As reformas pontuais, sob pressão e interesse, são as que têm sido mais protagonizadas por serem mais viáveis na arena política, porém o ônus recai sobre toda a sociedade estabelecendo uma associação entre a estrutura tributária e os índices de extrema desigualdade que se verificam no Brasil (VIANNA, 2000).

As categorias registradas anteriormente demonstram também as idas e vindas dos trabalhadores sazonais, alguns que percorrem grandes distâncias em busca de melhorias. Percebemos que o Brasil mesmo sendo uma unidade federativa, possui uma grande diversidade de realidades socioeconômicas e ambientais onde “estar no trecho” pode ser o espaço de esperança para trabalhadores que não encontram oportunidade de trabalho e emprego no seu local de origem. Esta itinerância pode ser percebida em categorias de atenção como: ser e estar no trecho, que nem formiga e assentados. Como foi ressaltado não são as únicas categorias existentes, mas que nos permitem analisar questões específicas que em certo ponto se conjugam, abrindo espaço para novas discussões.

O “ser e estar no trecho” destaca uma forma de itinerância continua e como o depoimento afirma “é cara que não para aqui, fica aqui, fica acolá” sendo que as motivações para esse contínuo movimento não são apenas de caráter econômico. Relações familiares, aprendizados, amadurecimento entre outras motivações levam a este permanente movimento. Pelos depoimentos, parece que melhores condições de trabalho não seriam o suficiente para o estabelecimento permanente desses trabalhadores indicando uma espécie itinerância continua pelo país onde um dos elementos que fazem parte do seu modo de vida é a liberdade de locomoção. Como salienta Martins (1981, p.131) “Frequentemente, tenho ouvido pessoas discutindo a problemática das novas regiões em termos estritamente da terra porque, de fato, a pedra de toque está na terra, mas há este outro elemento, ideológico, que marca muito a existência e os movimentos dos posseiros que é o problema da sua liberdade, a sua liberdade de trabalho familiar, a sua liberdade de trabalho autônomo, a sua liberdade de locomoção, a sua liberdade de decisão”. Grande parte da literatura clássica do campesinato (SHANIN, 2012) fala de um camponês arraigado à terra, com fortes memórias culturais construídas ao longo de diversas gerações, porém o camponês brasileiro estabelece outros vínculos pela sua história de itinerâncias e perambulações. Essas características da história agrária brasileira certamente influem no comportamento destes trabalhadores sazonais do pouco apego a locais e ocupações conforme foi relatado anteriormente. Uma análise sociológica deste processo necessitaria uma sociologia do movimento e da perambulação como parte constitutiva da nossa história agrária.

Material suplementario
REFERÊNCIAS
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GALIZONI, Flávia Maria; RIBEIRO, Eduardo Magalhães. Ouvindo silêncios: Daniel Hogan, o mundo rural e a natureza. Revista Brasileira de Estudos de População, São Paulo, v. 36, Jun, 2019. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-30982019000100250 Acesso em: 10 dez. 2019.
GARCIA JÚNIOR, Afrânio Raul. O Sul: caminho do roçado: estratégias de reprodução camponesa e transformação social. São Paulo: Marco Zero; Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília: MCT - CNPq, 1990.
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GUEDES, André Dumans. Abrir no mundo, rasgando o trecho: mobilidade popular, família e grandes projetos de desenvolvimento. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 21, n. 21, p. 137-152, 2012b. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/53916. Acesso em: 23 set.2019.
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Notas
Notas
1 Este artigo é baseado na dissertação de mestrado (FEDRIZZI, 2020).
2 O termo “precisão” é utilizado por diversos interlocutores como linguagem coloquial e que remete ao termo “precisar”, de ter necessidade. Já outros falam em manter a “sobrevivência” com o dinheiro da maçã.

Figura 1
Fluxo de trabalhadores temporários da colheita da maçã em Vacaria - RS por grandes regiões de origem
Elaborado por Ferreira e Fedrizzi (2019) com base nos dados da Operação Safra 2018.

Figura 2
Percentual dos trabalhadores temporários da colheita da maçã em Vacaria - RS por município do Rio Grande do Sul
Elaborado por Ferreira e Fedrizzi (2019) com base nos dados da Operação Safra 2018.
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