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Projeto Governo Cidadão e o enfoque em Arranjos Produtivos Locais: uma análise dos limites da abordagem no Rio Grande do Norte
Vinícius Rodrigues Vieira Fernandes; Clesio Marcelino de Jesus
Vinícius Rodrigues Vieira Fernandes; Clesio Marcelino de Jesus
Projeto Governo Cidadão e o enfoque em Arranjos Produtivos Locais: uma análise dos limites da abordagem no Rio Grande do Norte
Projeto Governo Cidadão and the approach to clusters: an analysis of the limits of the approach in Rio Grande do Norte
Projeto Governo Cidadão y el enfoque en los Arreglos Productivos Locales: un análisis de los límites del enfoque en Rio Grande do Norte
Redes. Revista do Desenvolvimento Regional, vol. 26, 2021
Universidade de Santa Cruz do Sul
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Resumo: A abordagem de desenvolvimento pautada na constituição de Arranjos Produtivos Locais (APLs) tem, ao longo dos anos, despertado o interesse de diversas instituições, como o Banco Mundial, que vem recomendando a sua adoção no âmbito das políticas públicas. O estado do Rio Grande do Norte passou a adotar este enfoque no Projeto Governo Cidadão. À luz do contexto econômico, social e político de espaços deprimidos, questionam-se os limites que se apresentam para as políticas públicas ao adotarem a abordagem de APL como estratégia para o desenvolvimento territorial. Busca-se discutir os principais problemas de se institucionalizar a ideia de APL como instrumento de política pública no Rio Grande do Norte. A construção teórica respalda-se sobre a noção de APLs, a inserção desta abordagem na agenda de desenvolvimento do Banco Mundial e a apresentação do Projeto Governo Cidadão. Utiliza-se, na análise, dados secundários presentes na literatura, bem como lança-se mão de entrevistas semiestruturadas, grupos focais e observações simples e participante, tomando-se como referência um estudo de caso, o território Açu-Mossoró. Identificam-se importantes aspectos limitantes, dentre os quais, a falta de um conceito aglutinador de APL, a reduzida geração de economias externas e o baixo nível de capital social e governança. Conclui-se que é preciso refletir sobre a relação entre espaços subnacionais e organismos multilaterais. Ademais, o enfoque em APLs exige um processo pautado na participação efetiva do Estado.

Palavras-chave:Arranjos Produtivos LocaisArranjos Produtivos Locais,Desenvolvimento territorial ruralDesenvolvimento territorial rural,Projeto Governo CidadãoProjeto Governo Cidadão,Rio Grande do NorteRio Grande do Norte,Território Açu-MossoróTerritório Açu-Mossoró.

Abstract: The development approach based on the constitution of clusters has, over the years, aroused the interest of several institutions, such as the World Bank, which has been recommending its adoption in the context of public policies. The state of Rio Grande do Norte (Brazil) began to adopt this approach in the Projeto Governo Cidadão. Considering the economic, social and political context of depressed spaces the limits that are presented for public policies when adopting the cluster approach as a strategy for territorial development are questioned. We seek to discuss the main problems of institutionalizing the idea of cluster as an instrument of public policy in the Rio Grande do Norte. The theoretical construction is based on the notion of clusters, the insertion of this approach in the development agenda of the World Bank and the presentation of the Projeto Governo Cidadão. Secondary data present in the literature are used in the analysis, as well as semi-structured interviews, focus groups and simple and participant observations, taking as reference of the Açu-Mossoró territory. Important limiting aspects are identified, among them, the lack of an agglutinative concept of cluster, the low generation of external economies and the low level of social capital and governance. It is concluded that it is necessary to reflect on the relationship between subnational spaces and multilateral organizations. Moreover, the focus on clusters requires a process based on the effective participation of the State.

Keywords: Clusters, Rural territorial development, Projeto Governo Cidadão, Rio Grande do Norte, Açu-Mossoró territory.

Resumen: El enfoque de desarrollo basado en la constitución de los Arreglos Productivos Locales (APLs) ha despertado, a lo largo de los años, el interés de varias instituciones, como el Banco Mundial, que ha estado recomendando su adopción en el contexto de políticas públicas. El estado de Rio Grande do Norte (Brasil) comenzó a adoptar este enfoque en el Projeto Governo Cidadão. A la luz del contexto económico, social y político de los espacios deprimidos, se cuestionan los límites que se presentan para las políticas públicas al adoptar el enfoque APL como estrategia para el desarrollo territorial. Busca discutir los principales problemas de institucionalización de la idea de APL como instrumento de política pública en Rio Grande de Norte. La construcción teórica se basa en la noción de APLs, la inserción de este enfoque en la agenda de desarrollo del Banco Mundial y la presentación del Projeto Governo Cidadão. Los datos secundarios presentes en la literatura se utilizan en el análisis, así como entrevistas semiestructuradas, grupos focales y observaciones simples y participantes, tomando como referencia lo territorio Açu-Mossoró. Se identifican importantes aspectos limitantes, entre los que, la falta de un concepto unificador de APL, la generación reducida de economías externas y el bajo nivel de capital social y gobernanza. Se concluye que es necesario reflexionar sobre la relación entre los espacios subnacionales y las organizaciones multilaterales. Además, el enfoque en APL requiere un proceso basado en la participación efectiva del Estado.

Palabras clave: Arreglos Productivos Locales, Desarrollo territorial rural, Projeto Governo Cidadão, Rio Grande do Norte, Territorio Açu-Mossoró.

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Projeto Governo Cidadão e o enfoque em Arranjos Produtivos Locais: uma análise dos limites da abordagem no Rio Grande do Norte

Projeto Governo Cidadão and the approach to clusters: an analysis of the limits of the approach in Rio Grande do Norte

Projeto Governo Cidadão y el enfoque en los Arreglos Productivos Locales: un análisis de los límites del enfoque en Rio Grande do Norte

Vinícius Rodrigues Vieira Fernandes
UFRR, Brasil
Clesio Marcelino de Jesus
UFU, Brasil
Redes. Revista do Desenvolvimento Regional, vol. 26, 2021
Universidade de Santa Cruz do Sul

Recepción: 28 Abril 2020

Aprobación: 10 Junio 2021

1 Introdução

O fenômeno da concentração de firmas que desempenham atividades correlatas e estabelecem sinergias em um determinado território tem, ao longo dos anos, despertado o interesse acadêmico, político e dos organismos multilaterais. Do ponto de vista acadêmico, Alfred Marshall, já no século XIX, chamava a atenção para o fato de que esta concentração pode gerar importantes economias externas em função da divisão do trabalho e da proximidade geográfica.

No âmbito das políticas públicas, este fenômeno, conhecido no Brasil como Arranjos Produtivos Locais (APLs), vem se constituindo como uma importante estratégia para a construção de um processo de concertação social e promoção do desenvolvimento endógeno.

Observa-se que é no âmbito dos organismos multilaterais, especialmente por meio do Banco Mundial, que o enfoque centrado em APLs adquiriu conotação ainda mais relevante. Fazendo jus ao seu poder ideológico, financeiro e político (PEREIRA, 2009; 2010), o Banco Mundial vem influenciando diretamente a inserção desta abordagem no processo de implementação das políticas de desenvolvimento dos países que dele obtêm financiamento.

Por trás desse discurso, é importante lembrar que a ideia de APL, ou mais especificamente de cluster, emerge na agenda do Banco Mundial, entre as décadas de 1980 e 1990, para dar legitimidade ao modelo local de desenvolvimento, que fazia parte do receituário neoliberal proposto pela instituição aos países que estavam passando por um cenário macroeconômico crítico, sobretudo os da América Latina. Em última instância, sob o argumento do poder das forças locais e do capital social, visava-se reduzir o tamanho do Estado, promovendo assim a descentralização das ações no âmbito das políticas públicas e a desoneração orçamentária.

No Brasil, especialmente na região Nordeste, é importante notar que o Banco Mundial tem financiado boa parte das políticas que utilizam em seu desenho a abordagem de APLs. Uma dessas políticas é o Projeto Integrado de Desenvolvimento Sustentável do Rio Grande do Norte (Projeto Governo Cidadão), instituído em 2013 e ainda em execução, que tem como principal objetivo reduzir as desigualdades territoriais do estado, além de promover a melhoria dos serviços públicos e a modernização da gestão pública (GOVERNO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE, 2013a).

Em que pesem suas vantagens, a ideia de APL apresenta limitações e não pode ser tratada como uma panaceia para o desenvolvimento. A rigor, o Banco Mundial vem promulgando este enfoque e os países e estados clientes da instituição têm incorporado em suas políticas públicas sem que ocorra análise mais profunda das restrições existentes para sua efetiva implementação.

Diante desse cenário, cabe perscrutar, à luz do contexto econômico, social e político de espaços deprimidos, como é o caso do estado do Rio Grande do Norte, os limites que se apresentam para as políticas públicas ao adotarem a abordagem de APL como estratégia para o desenvolvimento territorial. Adota-se a hipótese de que em tais realidades essas condições se tornam restritas, o que dificulta o alcance dos objetivos das políticas territoriais e demanda uma atuação mais efetiva do Estado.

Considerando a adoção da abordagem de APLs no âmbito das ações do Projeto Governo Cidadão, discute-se, neste estudo, os principais problemas da institucionalização deste enfoque enquanto instrumento de política pública no estado do Rio Grande do Norte.

Para atingir o objetivo do trabalho, recorre-se a dados secundários contidos nos trabalhos de Apolinário et al. (2009a; 2009b), os quais trazem um diagnóstico da realidade de APLs no Rio Grande do Norte. Adicionalmente, realiza-se um estudo de caso no território Açu-Mossoró, um dos beneficiados pelas ações do Projeto Governo Cidadão no estado e que reúne APLs apoiados pela política em tela.

A próxima seção descreve e explicita os procedimentos metodológicos deste artigo. Em seguida, discute-se os principais aspectos teóricos que envolvem a abordagem de APL. O item quatro analisa como o enfoque centrado em APL emerge na pauta do Banco Mundial. No quinto, apresenta-se o Projeto Governo Cidadão e como a abordagem de APL está inserida no arcabouço institucional da política. O sexto discute os limites da utilização da abordagem de APLs no Rio Grande do Norte, com destaque para a análise do território Açu-Mossoró. Por fim, têm-se as principais conclusões do estudo.

2 Procedimentos metodológicos

O desenvolvimento deste trabalho está estruturado sob a égide de dois momentos, além de uma breve revisão teórica sobre APLs. No primeiro, priorizam-se os trabalhos de Apolinário et al. (2009a; 2009b), frutos de um projeto de pesquisa, no âmbito do BNDES FEP (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – Fundo de Estruturação de Projetos), com o intuito de disseminar conhecimentos sobre experiências de identificação e mapeamento de APLs e discutir políticas para seu desenvolvimento em 22 estados do Brasil. No caso do Rio Grande do Norte, foram estudados 12 APLs, categorizados em atividades formalizadas, parcialmente formalizadas e não-formalizadas.

Justifica-se a utilização desses estudos pelos seguintes aspectos: (i) destaca a configuração de boa parte dos APLs que foram priorizados no âmbito do Governo Cidadão (apicultura, leite e derivados, agricultura irrigada/fruticultura e ovinocaprinocultura), o que permite aprofundar a análise; e (ii) ainda que seja datado de 2009, ressalte-se sua atualidade, considerando que a realidade dos APLs no Rio Grande do Norte ainda incorre em muitos dos problemas identificados.

A análise é consubstanciada, em um segundo momento, pela realização de uma pesquisa de campo, por meio da experiência do território Açu-Mossoró, cuja indução ocorreu na esteira do Programa Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Territórios Rurais (Pronat), institucionalizado em 2003. A partir de 2008, o território também passou a fazer parte do Programa Territórios da Cidadania (PTC).

Em síntese, no âmbito do Pronat e do PTC buscou-se a constituição de arranjos intermunicipais com o objetivo de reduzir as desigualdades e promover o dinamismo socioeconômico, recortados a partir de critérios que buscavam reunir municípios com características socioeconômicas próximas entre si e articulados pelos Colegiados territoriais, incumbidos, dentre outros aspectos, da elaboração dos Planos Territoriais de Desenvolvimento Rural Sustentável (PTDRS) e da eleição de projetos de infraestrutura, especificamente os Proinfs (Apoio a Projetos de Infraestrutura e Serviços em Territórios Rurais) (FERNANDES; ORTEGA; JESUS, 2018).

O território Açu-Mossoró possui quatorze municípios, são eles: Assú, Pendências, São Rafael, Porto do Mangue, Carnaubais, Itajá, Ipanguaçu, Alto do Rodrigues, Serra do Mel, Areia Branca, Mossoró, Baraúna, Tibau e Grossos. Dentre os territórios potiguares, é considerado um dos mais dinâmicos, apresentando o maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) territorial, maior peso industrial e maior participação no Produto Interno Bruto (PIB) estadual (JESUS; FERNANDES, 2015).

Entrementes, buscou-se extrair elementos relacionados aos seguintes eixos temáticos, os quais são relevantes para um processo de desenvolvimento territorial pautado em APLs: (i) organização e funcionamento dos espaços de concertação social, com destaque para a participação dos atores e o nível de capital social; (ii) o recorte territorial, que pode contribuir com a coesão e facilitar ações coordenadas; e (iii) os desdobramentos das ações das políticas de desenvolvimento territorial rural, com destaque para os projetos de infraestrutura financiados pelo governo federal e o arcabouço institucional do Projeto Governo Cidadão.

Lançou-se mão, entre junho de 2017 e março de 2018, de entrevistas semiestruturadas com atores da sociedade civil (associações, cooperativas, sindicatos rurais, conselhos rurais e Organizações Não Governamentais - ONG’s) e do poder público (secretários, gestores, instituições financeiras, pesquisadores) do território Açu-Mossoró.

A seleção dos entrevistados se deu a partir da lista de composição do Colegiado, pela representatividade dos seus cargos e por indicações. Priorizou-se a seleção de, pelo menos, um ator territorial de cada um dos 14 municípios do Território. Levou-se em consideração, ainda, critérios como tempo, acessibilidade e recursos. Ao todo, foi possível entrevistar 20 lideranças do Açu-Mossoró.

Adicionalmente, recorreu-se ao grupo focal em três ocasiões diferentes, com o objetivo de compreender, nas entrevistas, a visão em conjunto dos atores. Destaque-se, por fim, o uso da observação simples - em três ocasiões – e participante - em três situações -, que ocorreram em reuniões, audiências públicas e seminários voltados para discutir aspectos inerentes ao território Açu-Mossoró e à política territorial no estado.

Com efeito, considerando os dois estágios metodológicos destacados, ressalte-se que o espaço temporal da pesquisa abrange o período 2003-2018, o que envolve a indução do território Açu-Mossoró, os resultados dos estudos sobre os APLs do Rio Grande do Norte (APOLINÁRIO et al., 2009a; 2009b), a implementação do Projeto Governo Cidadão e o processo de seleção dos APLs apoiados e, por fim, a realização da pesquisa de campo.

3 Arranjos Produtivos Locais: breves considerações teóricas

O fenômeno das aglomerações produtivas que estabelecem relações econômicas, sociais e de governança em um determinado espaço apresenta uma profusão de conceitos, tais como distritos industriais marshalianos, clusters e Arranjos Produtivos Locais. Para fins metodológicos deste trabalho, adverte-se que será utilizado o conceito de APL, mais precisamente o conceito empregado pelo Projeto Governo Cidadão, que é o mesmo adotado por Apolinário e Silva (2010, p. 34):

Abrange um conjunto de atores econômicos, políticos e sociais e suas interações, sejam estas tênues ou consolidadas, incluindo: empresas produtoras de bens e serviços finais e fornecedoras de matérias-primas, equipamentos e outros insumos; distribuidoras e comercializadoras; trabalhadores e consumidores; organizações voltadas à formação e treinamento de recursos humanos, informação, pesquisa, desenvolvimento e engenharia; apoio regulação e financiamento; cooperativas, associações, sindicatos e demais órgãos de representação (GOVERNO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE, 2013b, p. 4).

Partindo-se desta definição, é importante destacar que os estudos sobre APLs estão pautados, principalmente, nas contribuições teóricas de Alfred Marshall, que, em fins do século XIX, analisou a concentração de pequenas firmas inglesas em segmentos econômicos específicos, fenômeno doravante denominado de distritos industriais marshallianos (LASTRES; CASSIOLATO, 2003).

Marshall (1996) deixa claro que a concentração de indústrias em determinadas localidades pode proporcionar economias externas, favorecendo assim o desenvolvimento da produção e elevando a competitividade das firmas. Tratam-se, na verdade, de efeitos colaterais positivos gerados pela divisão de trabalho entre as firmas de um território e pela proximidade geográfica.

Sobre este último aspecto, Marshall (1996) dedica uma atenção especial. De acordo com o autor, existem importantes vantagens auferidas com a proximidade geográfica, dentre as quais: (i) aptidão hereditária, que refere-se a capacidade de criação, transmissão e absorção do conhecimento entre as gerações de uma dada localidade; (ii) surgimento de indústrias subsidiárias, que abastecem as indústrias principais com os instrumentos e insumos necessários para o desenvolvimento da produção e do comércio; (iii) uso de maquinário especializado, isto é, “as indústrias subsidiárias, devotando-se cada uma a um pequeno ramo do processo da produção e trabalhando para muitas das grandes fábricas de suas vizinhas, podem empregar continuamente máquinas muito especializadas” (MARSHALL, 1996, p. 320); e (iv) criação de um mercado constante para mão de obra especializada.

À guisa de conclusão do pensamento do autor, vale destacar que tais condicionantes, em consonância com os aspectos intangíveis (cultura, regras sociais, valores, costumes etc.) de um dado território, seriam de suma importância para a criação de uma atmosfera favorável para o desenvolvimento dos negócios naquela região.

Com base nessas contribuições de Marshall, desenvolveram-se outras importantes correntes teóricas, como é o caso dos estudos da Terceira Itália, a partir da década de 1970. De acordo com Becattini (1999), o que fomentava o interesse dos pesquisadores era o fato do Mezzogiorno, como ficou conhecida a região da Terceira Itália, a partir de um conjunto de pequenas e médias empresas, ter conseguido captar importantes fatias de mercado vis-à-vis elevação da margem de lucro e do número de empregos, mesmo operando com uma estrutura precária de comercialização, escala produtiva e de acesso a crédito.

Em última instância, Bagnasco (1999) destaca que esse processo ocorreu sem a indução de políticas públicas. Na verdade, as causas, segundo o autor, residiram na questão cultural, na confiança e reciprocidade, na flexibilização da relação capital-trabalho, no crescimento da demanda mundial por bens de consumo, no progresso tecnológico, na interação rural-urbano etc. Sintetizando esse raciocínio, Putnam (2000) entende que foi a presença do elevado capital social, conceituado pelo autor como o conjunto de características da organização social (confiança, normas e sistemas) que contribuem para aumentar a eficiência da sociedade e facilitar as ações coordenadas, o determinante para o desenvolvimento da Terceira Itália.

Com base em Becattini (1999), pode-se afirmar que o sucesso se deu, dentre outros aspectos, em função da simbiose entre as características socioculturais (valores e instituições) presentes na Terceira Itália e o processo de desenvolvimento próprio das pequenas empresas. Em síntese, a presença desses condicionantes propiciou uma atmosfera favorável para o surgimento de pequenas e médias empresas, culminando na passagem de uma economia agrícola para uma industrialização difusa.

No Brasil, em detrimento do conceito de distritos industriais marshallianos, optou-se por trabalhar com a terminologia de APL. Esse conceito foi adotado pela Rede de Pesquisa em Sistemas e Arranjos Produtivos e Inovativos Locais (RedeSist) no final da década de 1990 e procurou “combinar as contribuições sobre desenvolvimento da escola estruturalista latino-americana com a visão neo-schumpeteriana de sistemas de inovação” (LASTRES, 2007, p. 4). Nesses termos, a RedeSist entende que os APLs constituem “aglomerações territoriais de agentes econômicos, políticos e sociais - com foco em um conjunto específico de atividades econômicas - que apresentam vínculos mesmo que incipientes” (CASSIOLATO; LASTRES, 2003, p. 5).

Por fim, é importante ressaltar que a análise centrada em APLs apresenta vantagens e limitações. Tratando-se das vantagens na perspectiva da RedeSist, Cassiolato e Lastres (2003) destacam que o foco em APL possibilita uma visão que vai além daquela tradicional baseada na firma, setor ou cadeia produtiva, permitindo estabelecer uma ligação entre o território e as atividades econômicas.

Segundo, a abordagem de APLs permite focalizar as diferentes instituições e atividades correlatas que caracterizam qualquer sistema produtivo e inovativo local. Terceiro, os APLs abrangem o espaço onde ocorre o aprendizado, a criação das capacitações produtivas e inovativas e a difusão dos conhecimentos tácitos. Por fim, este enfoque representa um importante desdobramento para as políticas públicas.

Por outro lado, a ideia de APL apresenta limitações quanto ao seu conceito, o que dificulta a real identificação de APLs em um estado. Ademais, o plano local não deve se sobrepor às estratégias de desenvolvimento nacional e estadual (ORTEGA, 2008).

4 A ideia de APL na agenda de desenvolvimento do Banco Mundial

O caráter do Banco Mundial vai além de mero financiador de projetos sociais ou de um órgão que se intitula como motor do desenvolvimento econômico. Trata-se de uma instituição que dissemina suas ideias e suas concepções de mundo nos diversos países que dele obtêm financiamento. O que fazer? Como fazer? Quais são os resultados esperados? Como a política deve se comportar?

Para tantos questionamentos, o Banco Mundial faz jus a sua capacidade de emprestador e poder político para elaborar as respectivas respostas em âmbito internacional. Por trás de todo esse processo, Pereira (2009) destaca que o Banco Mundial utiliza tanto a coerção (constrangimento junto a outros financiadores e bloqueio de empréstimos) como a persuasão (diálogo com governos e assistência técnica) para institucionalizar sua influência nos países credores.

Como veiculador de ideias, é importante notar que o Banco Mundial vem, ao longo dos anos, modificando seu discurso em torno do desenvolvimento e o enfoque teórico das suas recomendações políticas.

O Banco Mundial foi instituído em 1944, durante o Acordo de Bretton Woods, e tinha como principal missão fornecer garantias e empréstimos para a reconstrução dos países-membros afetados pela Segunda Guerra (PEREIRA, 2009). Aqui, vale uma primeira ressalva destacada por Coelho (2002), na qual o Banco foi concebido mais como uma instituição de intermediação financeira do que de ajuda.

Ora, sendo uma instituição essencialmente financeira (e que representava os interesses norte-americanos), o desafio dos primeiros anos de operação do Banco Mundial era buscar a credibilidade necessária e consolidar sua identidade no mundo dos negócios de para a captação de recursos (COELHO, 2002). Isso implicava em nomear presidentes oriundos de Wall Street, bem como adotar regras e condutas próprias do sistema financeiro. Ademais, buscava-se formar um quadro técnico qualificado e doutrinado politicamente e ideologicamente.

Analisando esse período inicial do Banco, sobretudo a partir da gestão de Eugene Black (1949-1962), Pereira (2009) desenvolve importantes considerações. Primeiro, a gestão Black foi marcada por uma política creditícia conservadora e seletiva, isto é, os empréstimos eram destinados para os países considerados elegíveis (leia-se solventes e de renda alta). Além disso, os financiamentos eram voltados, fundamentalmente, para os grandes projetos rentáveis, como geração de energia elétrica, transportes e telecomunicações.

Segundo, o conceito de desenvolvimento econômico para o Banco ainda não estava consolidado. O desenvolvimento era entendido como crescimento do PIB ou do PIB per capita, que deveria ser concebido via industrialização. Nesse contexto, as ideias do Banco sobre desenvolvimento estavam fortemente influenciadas pelas proposições teóricas de Lewis, que preconizavam a transferência dos fatores de produção do setor de baixa produtividade (leia-se agricultura) para o setor de alta produtividade (leia-se urbano-industrial).

No que concerne à distribuição de renda, o Banco entendia, com base em Kuznets, que o crescimento econômico proporcionaria um “efeito derrame”, isto é, uma distribuição de renda nos estágios finais do ciclo econômico, de modo que políticas distributivas não se faziam necessárias e eram vistas até como prejudiciais ao crescimento (KAPUR; LEWIS; WEBB, 1997; STERN; FERREIRA, 1997). De fato, durante toda a gestão Black, o Banco Mundial não financiou qualquer empréstimo para área social ou para a redistribuição de renda.

Paulatinamente, esse processo começou a se modificar no final da gestão Black. Conforme destaca Pereira (2009), as pressões advindas de países emergentes, que desejavam se inserir na carteira de clientes do Banco, e a necessidade de controlar a ascensão do comunismo foram de suma importância para a mudança da política do Banco Mundial na década de 1960, intitulada como a “década do desenvolvimento”.

Em 1963, George Woods assume a presidência do Banco Mundial e traz em seus discursos a intenção de mudar a política da instituição em prol do desenvolvimento. A estratégia foi proporcionar uma suavização das condições de pagamento e promover o aumento dos empréstimos e dos créditos para outras partes do mundo, além da diversificação setorial dos investimentos. Nesse âmbito, vale registrar que a estratégia do Banco em atuar no desenvolvimento também passava por maiores investimentos em setores mais fragilizados, como o espaço rural dos países periféricos, permeado, segundo a própria visão de Woods, por pequenas unidades de produção e infraestrutura social e física deterioradas (KAPUR; LEWIS; WEBB, 1997).

Dessa forma, o desenvolvimento passou a ser entendido como um processo de redução das desigualdades. Apesar dos avanços na gestão Woods, foi com a chegada de Robert McNamara, em 1968, que o Banco Mundial inovou, dinamizou e expandiu suas operações.

Conforme chama atenção Pereira (2009), por trás desse processo de continuidade e crescimento dos investimentos multilaterais e das mudanças geográficas dos empréstimos, existia clara intenção do Banco Mundial e, portanto, dos interesses norte-americanos, de contornar as críticas internas à guerra do Vietnã e ao apoio dos EUA a golpes militares e regimes ditatoriais, de prosseguir com o controle do comunismo e, por fim, de aliviar os custos financeiros da política externa norte-americana.

A gestão McNamara foi marcada pela ideia de que a segurança dos EUA dependia não apenas das armas, mas também da preservação da ordem política via crescimento econômico e redução das desigualdades (PEREIRA, 2010). Nesse contexto, em seus primeiros discursos, o então Presidente deixava claro que, a despeito dos investimentos na década precedente e o crescimento econômico das economias periféricas, a desigualdade de renda no sistema internacional havia aumentado e a maior parte da população permanecia em condições de pobreza.

Conforme destaca Pereira (2010, p. 262), “essa avaliação implicava o reconhecimento de que o estilo de desenvolvimento capitalista dominante havia falhado e que o esperado ‘efeito derrame’ não tinha ocorrido”. Ainda de acordo com o autor, este processo fomentava a necessidade de analisar crescimento econômico e pobreza como duas categorias diferentes.

Nesse contexto, a pobreza deixa de ser uma categoria meramente analítica e passa a ser a principal bandeira ideológica do Banco Mundial, materializado pelo lançamento, no quinquênio 1968-1973, da campanha de redução direta da pobreza. Aqui, a agricultura (leia-se agropecuária) despontaria como o carro chefe dos investimentos do Banco, principalmente em função de constituir-se o motor do crescimento econômico dos países emergentes e por acoplar grande parte da população desses países (PEREIRA, 2010). Os investimentos em infraestrutura social também adquiriram um importante papel nos financiamentos do Banco.

No entanto, o Banco Mundial incorreu em problemas para institucionalizar a pobreza como principal frente de campanha política e ideológica. Não existia “um enfoque que lhe desse suporte e racionalidade e um instrumento operacional que permitisse a sua replicação em larga escala” (PEREIRA, 2010, p. 265). Para tanto, o autor ressalta que a solução desses problemas surgiu apenas entre 1973-1974, a partir da pobreza rural absoluta como alvo principal da intervenção do Banco por meio dos novos projetos de Desenvolvimento Rural Integrado (DRI), e com a publicação do livro “Redistribuição com crescimento”, coordenado por Hollis Chenery, economista-chefe da gestão McNamara.

Esse processo sofre uma reversão nas décadas de 1980 e 1990. Com a crise capitalista nos países periféricos, nos anos 1980, o Banco Mundial passa a reduzir drasticamente seus investimentos e direcionar seus discursos e sua influência intelectual, política e financeira para a necessidade de um ajuste estrutural, principalmente via políticas restritivas e redução do poder do tamanho do Estado (PEREIRA, 2009). Como parte dessa estratégia, o Banco passa a defender e recomendar o protagonismo da sociedade civil como instrumento para a desoneração do orçamento do Estado e promoção de um maior controle social.

Os conselhos do Banco Mundial em prol de um ajuste das economias periféricas têm início na década de 1980, mas é com o Consenso de Washington, na década de 1990, que as prescrições em torno de uma ideologia neoliberal passam a ser amplamente difundidas. Como instituição que se intitula detentora do conhecimento, o Banco Mundial não poderia ficar de fora do debate, tanto é que foi uma das principais organizadoras desse movimento.

De acordo com Pereira (2009), o Banco Mundial fez uso de três estratégias para consolidar o novo aparato liberal, a saber: (i) modelo de aliviamento compensatório da pobreza; (ii) mudança do papel do Estado na economia; e (iii) redefinição da forma pela qual as reformas estruturais deveriam ser governadas. Especialmente na terceira estratégia, Pereira (2009) chama atenção para a difusão da ideia de governança, intimamente associada ao protagonismo da sociedade civil na esfera da elaboração, implementação e avaliação de políticas públicas.

É nesse contexto que emerge a ideia de APL na agenda do Banco Mundial. Em última instância, as agências multilaterais, como o Banco Mundial, passaram a recomendar “a indução de arranjos socioprodutivos locais, que, de maneira autônoma e endógena, deveriam buscar o desenvolvimento, desobrigando o Estado de ações intervencionistas” (ORTEGA, 2007, p. 281). Disto, deduz-se que a noção de APL era a instituição econômica, social e política que faltava para dar legitimidade a uma das principais recomendações do Banco, que era o desenvolvimento local.

Primeiro, a difusão deste conceito tinha um importante aspecto econômico no sentido de movimentar as potencialidades produtivas locais, gerar economias de escala e concentrar esforços na produção de um determinado produto que apresentasse vantagens competitivas. Segundo, a ideia de APL era importante do ponto de vista social, principalmente por estabelecer uma concertação social, fomentar o capital social e as relações entre os indivíduos de um mesmo território, impulsionar a troca de experiências e incentivar a cooperação e a competição. Em suma, esses elementos criariam uma identidade e sentimento de pertencimento, fundamentando o discurso do Banco Mundial em prol do desenvolvimento endógeno. Por fim, no âmbito político, o conceito de APL pressupõe a institucionalização de governança local, algo bem difundido pelo Banco para reduzir a interferência do Estado

Desde então, o Banco Mundial, tem produzido diversos estudos técnicos com o intuito de apresentar as vantagens do foco em APLs. No fundo, tratam-se de verdadeiros guias práticos com recomendações de como se deve implementar e gerir políticas de APLs. Nesse contexto, vale ressaltar que o Banco utiliza o conceito de clustere não de APL, de modo que:

An industrial cluster an agglomeration of companies, suppliers, service providers, and associated institutions in a particular field. Often included are financial providers, educational institutions, and various levels of government. These entities are linked by externalities and complementarities of different types and are usually located near each other (WORLD BANK, 2009, p. 1).

De modo geral, o Banco entende que os clusters, especialmente em função do seu componente de proximidade (geográfica e de atividades), usufruem de importantes externalidades, como o acesso a recursos humanos e fornecedores especializados, difusão de conhecimento e constante pressão por melhorias na eficiência dado o ambiente competitivo em que estão inseridos (WORLD BANK, 2009).

Na visão do Banco, a constituição de clusters pode contribuir com outros aspectos ainda mais importantes, dentre os quais: (i) melhor entendimento e discussão dos esforços para a competitividade nacional; (ii) aumento da produtividade e da eficiência operacional, mediante o envolvimento com diversas instituições; (iii) criação de conhecimento e fomento à inovação tecnológica; e (iv) estímulo a comercialização e a formação de novos negócios.

5 O Projeto Governo Cidadão e o enfoque em APLs

O Projeto Governo Cidadão, instituído em 2013 e ainda em vigor, é a quarta geração de programas de desenvolvimento rural financiados pelo Banco Mundial no estado. Antes, o Banco financiou o Programa de Desenvolvimento Rural do Rio Grande do Norte (RURALNORTE), em 1975, o Programa de Apoio ao Pequeno Produtor (PAPP), em 1985, e o Programa de Combate à Pobreza Rural (PCPR), em 1997.

As estruturas das ações e os componentes do Projeto Governo Cidadão foram orçados em US$ 600 milhões, com 90% dos recursos oriundos do Banco Mundial. O estado do Rio Grande do Norte possui até 30 anos para quitar a dívida, sendo cinco anos de carência.

Segundo o Manual Operativo do Governo Cidadão (GOVERNO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE, 2013a), a ideia é reverter o cenário de baixo dinamismo socioeconômico do estado e apoiar a modernização do setor público. Assim, o documento aponta que o primeiro objetivo deverá ser alcançado, entre outros fatores, por meio de investimentos em inclusão produtiva - com foco no acesso aos mercados por parte dos beneficiados -, ampliação e melhoria da infraestrutura socioeconômica, fortalecimento da governança territorial, melhoria do acesso e da qualidade de serviços básicos (educação, saúde e segurança pública), geração de oportunidades de ocupação e renda no meio rural e urbano. Por sua vez, a modernização do setor público deverá ser orientada por uma gestão baseada em resultados, com melhor alocação dos recursos humanos e financeiros.

Por fim, é importante destacar dois aspectos do Projeto Governo Cidadão. Um é que inova ao deixar claro, em seu desenho político, o enfoque territorial do desenvolvimento rural. Na verdade, apesar do PAPP e do PCPR trazerem algumas características do enfoque territorial, tais como a descentralização das ações e o fomento das relações entre os indivíduos, é somente no Governo Cidadão que o recorte territorial aparece explicitamente na operacionalização do Projeto. Nesse sentido, o Projeto trabalha com os territórios induzidos pelo governo federal no Rio Grande do Norte.

A outra é que o Projeto Governo Cidadão construiu a sua estratégia de desenvolvimento territorial em três eixos principais, contemplando os principais territórios deprimidos do estado e o público alvo das suas ações (agricultores familiares, mulheres e jovens): (i) a recuperação do antigo centro dinâmico da região do Seridó; (ii) o desenvolvimento do cinturão central, caracterizado por um verdadeiro vazio de desenvolvimento; e (iii) o desenvolvimento do Oeste potiguar, caracterizado por um abandono em relação à oferta de serviços públicos e penetração muito restrita da atividade econômica formal.

Para fornecer legitimidade a todo esse enfoque territorial, o Governo Cidadão é o primeiro programa de desenvolvimento rural financiado pelo Banco Mundial no Rio Grande do Norte que incorpora a abordagem de APL em seu arcabouço institucional, isto é, “dada a lógica da proposta de desenvolvimento do Estado, optou-se por trabalhar com o conceito de Arranjos Produtivos Locais (APLs), devido sua amplitude e possibilidade de atingir melhores resultados dentro da estratégia de desenvolvimento” (GOVERNO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE, 2013a, p. 29). Partindo dessa justifica geral, o Governo Cidadão apresenta algumas considerações acerca dos APLs que legitimam a sua utilização:

A estratégia de desenvolvimento para a área produtiva está centrada no conceito de APL. É, portanto, de fundamental importância entender esta abordagem como ferramenta de análise e instrumento de planejamento, que possibilita um olhar diferenciado para impulsionar potencialidades e combater fragilidades econômicas e sociais. A abordagem tem como vantagem a fuga de antigas estratégias que vislumbravam apenas o agente individual como possibilidade de ação política, abrindo assim escopo para uma atuação voltada às aglomerações produtivas. A análise de APL permite compreender as relações em todos os elos da cadeia produtiva, abrangendo fatores como a produção dos insumos, as fontes de financiamento e o processo de comercialização com o consumidor final (GOVERNO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE, 2013b, p. 6).

Com base nesses pressupostos, coube ao Núcleo de Articulação e Planejamento do Projeto desenvolver, em junho de 2013, um estudo de identificação e mapeamento das aglomerações produtivas do estado. Após essa etapa, o estudo procurou discutir e selecionar os APLs potenciais que deveriam ser apoiados, levando-se em conta a estratégia de focalização e o público alvo. A metodologia para a identificação das aglomerações seguiu a mesma proposta do estudo de Crocco et al. (2006), que elabora um indicador capaz de captar quatro características principais de uma aglomeração, são elas: (i) a especificidade de uma atividade dentro de uma região; (ii) o seu peso em relação à estrutura industrial da região; (iii) a importância do setor nacionalmente; e (iv) a escala absoluta da estrutura industrial local.

Nesse contexto, para captar a primeira característica, o Governo Cidadão fez uso do Quociente Locacional (QL). De modo geral, este indicador é utilizado para verificar se uma determinada localidade possui alguma especialização produtiva (CROCCO et al., 2006). Sinteticamente, ele pode ser obtido pela razão entre a economia em estudo e a economia de referência.

Conforme destacam Crocco et al. (2006), não obstante à sua importância, a utilização do QL pode provocar dois problemas centrais: (i) confusão entre o que é diferenciação produtiva e especialização produtiva, o que exige do pesquisador uma análise minuciosa das características da economia de referência; e (ii) para regiões de pequeno porte, o uso do QL pode tanto sobrevalorizar o peso de um determinado setor para a região quanto subvalorizar a importância de certos setores em regiões mais diversificadas.

Dada a existência desses problemas, os autores recomendam a utilização de um segundo indicador com o objetivo de captar a real importância da atividade na estrutura produtiva local. Trata-se do índice de Hirschman-Herfindahl modificado (HHm). Ainda com base em Crocco et al. (2006), o Governo Cidadão fez uso de um terceiro indicador com o intuito de captar a importância do setor da região à nível estadual. Trata-se da Participação Relativa (PR) do setor no emprego total do setor no estado.

Esses três indicadores constituíram a base para a elaboração do Índice de Concentração normalizado (ICn), que possibilita identificar a concentração de uma atividade produtiva dentro de uma região. Nesse ponto, realizou-se uma combinação linear dos três indicadores padronizados e foram estabelecidos pesos específicos de cada um dos insumos em cada um dos setores. Sobre os pesos, vale ressaltar que eles foram calculados a partir do método multivariado da análise de componentes principais.

Além de seguir esta proposta metodológica do trabalho de Crocco et al. (2006), destaque-se uso de mais duas metodologias. A primeira consistiu na mensuração do Peso da Atividade (PA) no PIB do Rio Grande do Norte, calculado pela razão entre o produto total da atividade no estado e o PIB estadual. A segunda consistiu na mensuração do PA no comércio internacional do Rio Grande do Norte.

No que concerne à coleta de dados, vale destacar que o Projeto fez uso das seguintes fontes, tendo como base o ano de 2010 (GOVERNO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE, 2013b): (i) IBGE (Microdados do Censo 2010, Pesquisa Agrícola Municipal, Pesquisa Pecuária Municipal e Contas Regionais); (ii) Secretaria de Tributação do estado do Rio Grande do Norte (SET/RN); e (iii) Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC). Vale salientar que as informações foram organizadas pela Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE Domiciliar 2.0) do IBGE.

Após a análise dos resultados (GOVERNO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE, 2013b), foram priorizados os APLs de agricultura irrigada (fruticultura), piscicultura, apicultura, ovinocaprinocultura, cajucultura e leite e derivados. Com exceção da apicultura, a Figura 1 traz os APLs apoiados pelo Governo Cidadão. Por outro lado, é interessante observar os vazios de APLs no estado, ou seja, municípios que não foram contemplados com ações nesse sentido.


Figura 1
Mapa dos APLs selecionados pelo Projeto Governo Cidadão
Fonte: Nippon Koei (2016, p. 24).

Em seguida, foram elaborados planos estratégicos visando definir os investimentos que cada APL necessitava, além do intuito de alcançar os seguintes objetivos (GOVERNO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE, 2013a, p. 32): (i) motivar e mobilizar os membros do APL no que diz respeito à necessidade de analisar e comparar (benchmark) o desempenho e a capacidade do sistema produtivo local; (ii) desenvolver uma visão e uma estratégia conjunta para melhorar a formação, produtividade e inovação; (iii) formular e implementar um conjunto integrado de políticas e procedimentos para promover a inovação e aprendizagem para fortalecer os sistemas locais de inovação; e (iv) definir os mecanismos pelos quais o monitoramento contínuo será realizado para garantir a implementação dessas estratégias e avaliar o impacto das políticas e procedimentos adotados.

6 Os limites do enfoque baseado em APLs no Rio Grande do Norte
6.1 Uma análise a partir da revisão da literatura

Um primeiro problema para a constituição de APLs no estado é a dificuldade de um consenso conceitual, de sorte que “pode-se afirmar, portanto, que o conceito de APL foi apreendido de forma limitada ou não foi aceito de fato pelas organizações” (APOLINÁRIO et al., 2009a, p. 88). Isso dificulta a própria articulação entre as instituições envolvidas. Conforme destacam Apolinário et al. (2009a), existe uma gama de instituições de fomento aos APLs no estado e, portanto, uma pluralidade de definições, utilizando de forma indistinta os conceitos de cadeia produtiva, APL, cadeia agroindustrial e cluster.

Diante do exposto, o Projeto Governo Cidadão, ao estabelecer as necessárias relações com essas instituições, tem um desafio importante no sentido de direcionar objetivos e ações em torno do conceito trabalhado pela política.

Em segundo lugar, a constituição de APLs pressupõe a existência de indústrias subsidiárias, incumbidas de abastecerem com insumos, máquinas e equipamentos a atividade econômica principal do território. No entanto, a realidade do Rio Grande do Norte é bem diferente. O que ocorre, na verdade, é a grande dependência dos fatores de produção oriundos de outros estados.

No caso da apicultura, o estudo de Apolinário et al. (2009b, p. 66) estimou que 56% dos insumos necessários para a produção de mel foram adquiridos no próprio APL, com destaque para cera (100%), arame (100%), garfo desoperculador (100%), rótulos (100%) e indumentária (10%). Por outro lado, 44% dos insumos necessários para o desenvolvimento da atividade provém de outros estados, como é o caso das colmeias (100% do Ceará e Piauí), coletor de pólen (100% do Ceará, Santa Catarina e Paraná), mesa desoperculadora, centrífuga, decantador e peneira (80% do Piauí e 20% de Santa Catarina), e as indumentárias (70% de Santa Catarina e 20% do Ceará).

Além da elevada parcela de insumos oriundos de outros estados, percebe-se que a produção de mel do Rio Grande do Norte importa aqueles de maior conteúdo tecnológico, evidenciando assim a baixa capacidade inovadora das empresas pertencentes ao APL vis-à-vis aumento dos custos de produção. Ainda com base no estudo, vale destacar que a existência de indústrias subsidiárias fora do APL, mas pertencentes ao estado, configura outro problema. Nesse contexto, até 2009, apenas uma empresa de embalagem de Natal mantinha relações com a produção de mel e mesmo assim não tinha capacidade de fornecer embalagens específicas para a atividade. No caso dos vestuários, o estudo identificou que a produção é realizada por poucas pessoas e de forma artesanal.

No que concerne ao APL de ovinocaprinocultura, Apolinário et al. (2009b) destacam que alguns insumos não industrializados são adquiridos no próprio APL ou no estado do Rio Grande do Norte, tais como milho (80% no APL e 20% de Goiás e Mato Grosso), sorgo (80% no APL e 20% no RN) e algaroba (100% no APL). Por outro lado, insumos industrializados, tais como ração processada, mistura mineral, vacinas, defensivos e medicamentos, são todos adquiridos fora do APL e do estado, especialmente de São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco e Paraná.

A situação é ainda mais preocupante no caso do APL de leites e derivados, sobretudo se este APL for dividido em duas cadeias produtivas principais - bovinocultura de leite e laticínios. Na primeira, o único insumo adquirido em maior quantidade no APL é a raiz da mandioca (80%). No estado, os insumos adquiridos representam uma porcentagem ínfima, como é o caso dos outros 20% da raiz de mandioca e o milho (10%). O restante dos insumos necessários para o desenvolvimento da atividade (mistura mineral, medicamentos, defensivos, ração pronta) é produzido fora do APL e do estado.

Considerando a cadeia da fruticultura, ressalte-se que cerca de 80% das polpas são oriundas de outros estados. Esse percentual elevado é justificado pelos produtores em função da melhor qualidade das frutas. Outro insumo que poderia ser adquirido no próprio APL é a embalagem, entretanto, estima-se que 95% é oriunda da Bahia e de São Paulo. Adicione-se o fato de que a despesa anual com embalagens gira em torno de R$ 300 mil (APOLINÁRIO et al., 2009b), algo que poderia gerar renda localmente caso a produção estivesse internalizada.

Por fim, não é forçoso lembrar que o APL da fruticultura também depende de insumos químicos, fertilizantes, máquinas e equipamentos oriundos de outros estados. Em síntese, percebe-se que, em boa parte dos APLs selecionados pelo Projeto Governo Cidadão, as economias externas marshallianas geradas pela proximidade geográfica são incipientes. De caráter não menos importante, dado esse contexto, o encadeamento para frente e a consequente geração de valor agregado no APL torna-se limitada. Em que pese a justificativa da existência de vantagens competitivas, uma política de APL deve priorizar e fomentar o surgimento de indústrias subsidiárias nos territórios do Rio Grande do Norte, contribuindo assim com o aumento da competitividade das firmas e a maior interação entre elas.

Em terceiro lugar, o conceito de APL pressupõe o envolvimento das firmas com as instituições de ensino e pesquisa, principalmente no âmbito da produção e difusão de conhecimento, tecnologias e inovações. No Rio Grande do Norte, esse processo é incipiente, limitando-se a algumas ações isoladas, como é o caso da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA), que atua junto aos APLs da apicultura e da agricultura irrigada, ou mais a rigor, na fruticultura irrigada, realizando estudos fitossanitários e de produtividade (APOLINÁRIO et al., 2009b).

A situação fica ainda mais crítica ao se considerar as instituições de pesquisa ligadas ao governo do estado. A EMPARN (Pesquisa Agropecuária do Rio Grande do Norte S/A), por exemplo, está ligada ao agronegócio e desempenha suas ações sem levar em conta os princípios do APL (APOLINÁRIO et al., 2009a). Por sua vez, considerando a EMATER (Instituto de Assistência Técnica e Extensão Rural do Rio Grande do Norte), tem-se que a assistência técnica configura um dos principais gargalos para a constituição de APLs, sobretudo aqueles ligados aos produtos agrícolas, foco do Projeto Governo Cidadão.

Sendo assim, o Projeto Governo Cidadão deve dedicar atenção especial ao fomento da ciência e tecnologia nos APLs priorizados, bem como integrar suas ações às instituições de ensino, pesquisa e extensão. Por sua vez, cabe ao Estado reestruturar o quadro profissional e elevar os gastos com as intuições públicas de pesquisa, desenvolvimento e extensão.

6.2 Uma análise a partir da pesquisa de campo

Outro componente que limita a efetividade dos APLs como instrumento de política pública é o baixo capital social presente nos territórios do estado (FERNANDES; ORTEGA; JESUS, 2018). Ao contrário das características identificadas por Putnam (2000) na Terceira Itália, ressalte-se, nos territórios do Rio Grande do Norte, o baixo grau de associativismo e cooperação, bem como um conjunto de regras sociais que dão margens às ações oportunistas e que dificultam o desenvolvimento dos negócios.

O reduzido poder do capital social no Rio Grande do Norte também pode ser verificado dentro da sua agricultura familiar, principal público alvo do Projeto Governo Cidadão e dos APLs a serem apoiados pela política. Essa afirmação pode ser legitimada pelas opiniões de dois representantes da FETARN. Na visão desses atores, os agricultores familiares, sobretudo os da região Nordeste, possuem regras informais que bloqueiam a gestão compartilhada dos recursos. A ideia é que o agricultor familiar enxerga os demais como competidores e não como pessoas que podem contribuir mediante um sistema de cooperação e difusão do conhecimento. A percepção é a de que os agricultores familiares têm uma cultura individualista no que tange ao gerenciamento da sua produção, o que dificulta novamente a geração de economias externas no território.

Some-se, ainda, a questão da governança. De modo geral, o que se observa nos territórios do Rio Grande do Norte é o seu baixo nível, materializado por algumas características que dificultam a implantação dos APLs, tais como a sobreposição de ações, ingerência política, centralização das ações pelos grupos de poder local e existência de assimetrias de informações.

Aqui, é bem verdade que o Projeto Governo Cidadão prevê uma série de ações de sensibilização, capacitação e mobilização dos atores locais com o intuito de elevar o capital social no território e promover uma maior governança. No entanto, as ações ainda estão em um plano muito geral, suscitando uma delimitação mais específica dos objetivos, metas e estratégias de ação.

A partir do estudo de caso do território Açu-Mossoró, verificou-se reduzido envolvimento entre poder público e sociedade civil. No âmbito do colegiado, ainda que avanços possam ser registrados - em especial nos anos iniciais da constituição do território - no que tange ao debate de políticas públicas, implementação de algumas câmaras temáticas (como a de inclusão produtiva) e discussões de projetos a serem deliberados, a maior parte dos entrevistados chama a atenção para a reduzida participação dos atores, representação incompleta dos quatorze municípios e descrença na efetividade das ações públicas.

O envolvimento do poder público, no papel dos gestores municipais, era frágil e se dava pela representação de secretários, geralmente com reduzido poder de decisão. Esse cenário modificava-se quando existia a deliberação de recursos, resultando em maior presença e atuação política do poder público, inclusive com o comparecimento de alguns prefeitos e outros representantes.

Identificou-se a existência de relações de poder nas suas mais variadas formas. Aqui, adquire destaque a formação de núcleos, articulação política para deliberação de projetos, tentativas de reduzir a importância de atores políticos e acadêmicos, entre outros aspectos.

A reprodução dessas relações de poder, aliada aos reduzidos laços de confiança entre sociedade civil e poder público, à insuficiente participação dos atores nos assuntos públicos e ao baixo grau de cooperação, reciprocidade e solidariedade, confere ao território características da organização social que dificultam o alcance do capital social.

O território não conseguiu promover uma concreta inserção dos mais diversos segmentos nas discussões e proposições de alternativas em prol do desenvolvimento, limitando-se, fundamentalmente, aos atores ligados ao rural. Esta situação também pode ser encontrada em outros estudos, como em Jesus (2013), quando analisou o território Noroeste de Minas.

Tanto na composição do Colegiado quanto nas entrevistas, verificou-se a reduzida e/ou, até mesmo, inexistência, de articulação com atores públicos e privados de outras esferas da economia (indústrias, instituições financeiras), aspecto relevante na abordagem de APLs e, em especial, que poderia lançar luz sobre o problema da dependência de insumos, conforme discutido na seção anterior.

Tratando-se do recorte, elemento que reforça a importância da proximidade geográfica e da coesão na constituição dos APLs, constatou-se a presença de subterritórios, com identidades próprias (sobretudo do ponto de vista social) que dificultaram a concertação de interesses.

Some-se a isso a reunião de municípios heterogêneos, com necessidades distintas, o que dificulta ainda mais esse processo de coesão. Destaque-se heterogeneidades no que tange à extensão territorial, população residente no meio rural, nível de pobreza e extrema pobreza e renda per capita. Considerando esta última variável, por exemplo, dados de 2010 do Censo (JESUS; FERNANDES, 2015) possibilitam concluir que a diferença em valores absolutos entre os municípios do território Açu-Mossoró foi superior a R$ 300,00, como pode ser verificado pela relação entre Mossoró e outros municípios, como Porto do Mangue, Baraúna e Ipanguaçu.

As diferenças nesse indicador refletem na própria situação de pobreza no território, à medida que cinco municípios, em 2010, apresentaram percentual de pobreza acima de 30%. Pode-se mencionar os casos de Mossoró, que possuía 12,81% de sua população em situação de pobreza, e Porto do Mangue, com 47,11%. É interessante notar que muitos dos municípios em piores condições socioeconômicas estão inseridos na cadeia do petróleo e/ou fruticultura irrigada. Isso revela que o desenvolvimento ocorre de forma desigual.

No território, o problema no recorte é potencializado pelas dificuldades de logística (deslocamento, diárias, tempo), afetando a dinâmica do Colegiado. Entende-se que essa delimitação, da forma pela qual foi realizada, tomou como principal variável a aglutinação de municípios com uma ideia-guia em comum, sendo a produção de frutas no território Açu-Mossoró.

O território também apresentou problemas no que tange à deliberação, implementação e monitoramento dos projetos de infraestrutura. Antes de avançar, é preciso destacar que muitas reuniões do Colegiado territorial estiveram pautadas no alcance e disputa de recursos, limitando o alcance dos objetivos da política. Informações do SGE/MDA demonstram que o território aprovou doze Proinfs, totalizando R$ 2.597.944,85.

De forma geral, destaque-se a deliberação de poucos projetos, concentrados em poucos municípios, baixo grau de implementação ou, considerando aqueles que foram concluídos, reduzida funcionalidade. Outro aspecto a ser destacado consiste no frágil monitoramento e controle social. Como exemplos desses problemas, pode-se mencionar: (i) o financiamento de uma Miniusina de Beneficiamento de Leite e Derivados no município de Alto do Rodrigues, em 2005, cujo valor total foi orçado em R$ 302.163,59; e (ii) construção, no município de Pendências, de uma Usina de Beneficiamento de Pescados com aquisição de equipamentos, aprovada em 2009, no valor total de R$ 160.632,63.

Na verdade, no Açu-Mossoró, a deliberação de alguns projetos de infraestrutura decididos pelo território aconteceu a partir da articulação entre grupos de interesses, deixando-se de lado análise mais aprofundada da viabilidade desses empreendimentos. Chama a atenção a tentativa do território de implementar projetos inovadores, com abrangência territorial e voltados para o beneficiamento de cadeias produtivas do território, como a de leite e derivados e a de psicultura destacadas acima. Outros investimentos foram direcionados para a apicultura.

Deve-se destacar que alguns atores demonstraram o desconhecimento dos projetos financiados. Uma possível explicação para isso reside no fato de que alguns projetos foram definidos fora do Colegiado, atendendo interesses das prefeituras municipais isoladamente e, em algumas situações, privilegiando a setorialidade.

Além dos problemas estruturais e de organização local para a constituição de APLs no Rio Grande do Norte, o próprio caráter institucional do Projeto Governo Cidadão dificultou o andamento das ações. Merece destacar que, apesar de ter sido instituído em 2013, o Governo Cidadão demorou para concluir os planos estratégicos previstos e necessários para o desenvolvimento dos APLs.

Esse processo é parte de uma questão mais ampla, que envolve as várias amarras institucionais propostas pelo Banco Mundial no Acordo de Empréstimo. Antes de tudo, o Banco Mundial é uma instituição financeira e para a efetiva liberação do empréstimo faz exigências que restringem/limitam a operacionalização das políticas.

Ainda no âmbito do Projeto Governo Cidadão, é preciso tecer comentários sobre o estudo de identificação e mapeamento das aglomerações produtivas do estado. Conforme pode-se apreender, o estudo teve como foco identificar as aglomerações produtivas a partir de critérios econômicos, isto é, sem uma análise mais profunda dos aspectos históricos, sociais e institucionais inerentes ao arranjo, análise essa que seria realizada na próxima fase de priorização dos APLs. Ao considerar apenas esses aspectos, tem-se o risco de beneficiar os arranjos mais fortes e articulados, fomentando as desigualdades.

Ademais, existe uma certa contradição entre as diretrizes do Projeto Governo Cidadão, sobretudo no que concerne ao público alvo da agricultura familiar, e algumas das atividades já escolhidas para apoio. No caso do APL da agricultura irrigada, por exemplo, está inserida a fruticultura irrigada, que contempla uma parcela significativa da agricultura patronal do estado, inclusive no território Açu-Mossoró. Esse fato também pode ser verificado no APL de leite e derivados. Assim, corre-se o risco de que os maiores contemplados com os investimentos sejam os grandes produtores, fugindo da lógica da política.

Seguindo essa linha de raciocínio, ressalte-se a ausência de uma tipologia para classificação do grau de formalização dos APLs. De acordo com o estudo de Apolinário et al. (2009b), levando-se em conta variáveis como as relações de trabalho e a forma de organização do próprio APL, pode-se identificar diferentes graus de formalização dos APLs no Rio Grande do Norte. Entende-se, portanto, que ao estabelecer certas tipologias, a política poderá direcionar melhor suas ações.

7 À guisa de conclusão

Conforme foi demonstrado, o Banco Mundial, desde a sua criação, financiou mais do que recursos, financiou ideias, recomendou seus interesses e condicionou os empréstimos ao seu modo de fazer política. Na verdade, a histórica influência do Banco Mundial sobre os seus clientes é, em parte, reflexo da baixa capacidade de financiamento e planejamento das economias.

No Rio Grande do Norte, que vem se constituindo como um parceiro assíduo ao longo das décadas, a tônica não foi diferente. Desde o primeiro programa financiado, o RURALNORTE, em 1975, culminando no atual Projeto Governo Cidadão, o Banco Mundial vem exercendo seu poder intelectual, financeiro e político no estado.

No âmbito dessas recomendações, a institucionalização do enfoque territorial do desenvolvimento e a constituição de APLs, ambas identificadas no Projeto Governo Cidadão, configuram-se como as mais importantes. Esses dois aspectos, que, em última instância, representam as principais estratégias para a construção de um processo de desenvolvimento pautado nos potenciais endógenos, apresentam importantes contribuições pela possibilidade de se criar um espaço de concertação social, envolvendo a descentralização das ações, as relações sociais e econômicas entre os indivíduos, o sentimento de pertencimento ao local, o modo de produção e a difusão do conhecimento e da inovação.

É preciso relativizar, não obstante, o poder dessas abordagens enquanto instrumentos de políticas públicas, especialmente em contextos deprimidos, com carências de infraestrutura econômica e social. Ao tratar mais especificamente da estrutura dos APLs no Rio Grande do Norte, por exemplo, evidenciaram-se aspectos limitantes. Primeiro, existe uma multiplicidade conceitual por parte das instituições de fomento aos APLs no estado, o que dificulta a maior articulação entre elas e entre as políticas públicas. Segundo, os APLs selecionados pelo Projeto Governo Cidadão estão inseridos em uma realidade com baixa presença de indústrias subsidiárias, o que dificulta a geração das economias externas marshallianas. Some-se a precariedade das instituições de ensino e pesquisa, bem como a fragilidade no processo de interação com as firmas nesses APLs.

Por sua vez, ao trazer a experiência do território Açu-Mossoró, materializada pelo reduzido capital social, existência de outros territórios em um - no sentido de uma deficiente coesão territorial a partir do recorte estabelecido - e problemas intrínsecos à gestão dos projetos financiados, barreiras com a adoção do enfoque territorial e a abordagem de APLs se mostram latentes. Ao mesmo, o Projeto Governo Cidadão, ao priorizar determinadas cadeias produtivas incorre no risco de não contemplar o público alvo, os agricultores familiares.

É preciso, portanto, tratar o enfoque em APLs não como uma panaceia, que emerge apenas da vontade dos atores locais ou da existência do capital social, mas sim como um processo pautado na participação efetiva do Estado, tanto na constituição de uma infraestrutura social e econômica, como no fomento à pesquisa e desenvolvimento e criação de sinergias entre os diversos atores constituintes do APL. Ademais, os objetivos de uma política de APL, ou mais a rigor, de uma política de desenvolvimento territorial, devem estar articulados com uma estratégia de desenvolvimento nacional e estadual, apontamento esse que permite uma agenda de novas pesquisas.

Material suplementario
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Notas

Figura 1
Mapa dos APLs selecionados pelo Projeto Governo Cidadão
Fonte: Nippon Koei (2016, p. 24).
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