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Transformações demográficas e nas estratégias de trabalho: uma abordagem longitudinal da agricultura familiar em Salvador das Missões – Rio Grande do Sul
Demographic transformations and work strategies: a longitudinal approach of family farming in Salvador das Missões - Rio Grande do Sul
Transformaciones demográficas y en las estrategias de trabajo: un estudio longitudinal de la agricultura familiar en Salvador das Missões - Rio Grande do Sul
Redes. Revista do Desenvolvimento Regional, vol. 26, 2021
Universidade de Santa Cruz do Sul

Artigos


Recepción: 30 Mayo 2021

Aprobación: 15 Julio 2021

DOI: https://doi.org/10.17058/redes.v26i0.16819

Resumo: O presente estudo tem como objetivo identificar variações na disponibilidade de mão de obra familiar e analisar as estratégias de alocação de trabalho dos agricultores familiares. Para tal, além de revisão de literatura, foram coletados dados primários através de pesquisa de campo junto as mesmas famílias, no ano de 2003 e 2018, no município de Salvador das Missões – Rio Grande do Sul. A amostra foi do tipo sistemática por comunidade e as famílias, no primeiro ano da pesquisa, foram escolhidas através de sorteio. Os dados revelam que ocorreu redução do número médio de integrantes e envelhecimento das famílias agricultoras, o que implicou na redução da sua capacidade de trabalho. Frente a isso as famílias diminuem o volume de trabalho alocado em atividades agrícolas e ampliam a alocação de trabalho familiar em atividades não agrícolas. Além disso, observou-se que a contratação do trabalho de terceiros e a alocação de trabalho familiar em atividades agrícolas fora dos estabelecimentos familiares mostraram-se pouco expressivas nos anos estudados.

Palavras-chave: Agricultura familiar, Trabalho, Agrarização, Desagrarização.

Abstract: This study aims to identify variations in the availability of family labor and analyze the work allocation strategies of family farmers. For that, besides to a literature review, primary data were collected through a field research with the same families, in 2003 and 2018, in Salvador das Missões city - Rio Grande do Sul (Brasil). The sample was systematically by community and families, in the first year of the study, were chosen by drawing. The data showed that there was a reduction in the average number of members and an aging of farming families, which implied a reduction in their work capacity. In front of it, families reduce the volume of work allocated to agricultural activities and expand the allocation of family work to non-agricultural activities. Besides, it was observed that the hiring of others works and the allocation of family work in agricultural activities outside of family establishments showed a little significant in the studied years.

Keywords: Family farming, Work, Agrarianization, Desagrarianization.

Resumen: Este estudio tiene como objetivo identificar variaciones en la disponibilidad de la mano de obra familiar y analizar las estrategias de asignación del trabajo de los agricultores familiares. Para ello, además de una revisión de literatura, se recolectaron datos primarios mediante trabajo de campo con las mismas familias, en 2003 y 2018, en la ciudad de Salvador das Missões - Rio Grande do Sul. La muestra fue del tipo sistemática por comunidad y las familias, en el primer año de la investigación, fueron elegidas por sorteo. Los resultados revelan que hubo una reducción en el número promedio de afiliados y un envejecimiento de las familias campesinas, lo que implicó una reducción en su capacidad de trabajo. Ante esto, las familias redujeron el volumen de trabajo destinado a las actividades agrícolas y ampliaron la asignación del trabajo familiar a actividades no agrícolas. Además, se observó que la contratación de trabajo tercerizado y la asignación del trabajo familiar en actividades agrícolas fuera de los establecimientos familiares mostró poca trascendencia en los años estudiados

Palabras clave: Agricultura familiar, Trabajo, Agrarización, Desagrarización.

1 Introdução

O presente estudo aborda as implicações que as mudanças demográficas no espaço rural geram na disponibilidade de mão de obra e também discute as estratégias relacionadas a alocação do trabalho familiar que são desenvolvidas por agricultores familiares. Pretende-se, com isso, fornecer informações atualizadas aos diversos atores envolvidos nas dinâmicas de desenvolvimento rural, sobretudo subsidiando os processos de planejamento rural.

A agricultura familiar é compreendida como uma categoria social que, em geral, trabalha em pequenas áreas de terra e utiliza, predominantemente, mão de obra familiar, por meio da qual gera produção agrícola que é destinada tanto para o autoconsumo como para a comercialização. Os agricultores familiares se caracterizam por uma forma específica de trabalho e produção, onde a interação familiar, estabelecida por laços de parentesco e a interação comunitária, estabelecida com outras famílias, são bastante intensas e de alto valor simbólico (SCHNEIDER, 2016).

Essa categoria social tem densa presença nos espaços rurais brasileiros, como atestam os dados do último Censo Agropecuário, que apontou que a agricultura familiar representa 76,82% dos estabelecimentos agrícolas no Brasil e 80,50% no Rio Grande do Sul (IBGE, 2017). Nesse sentido, tanto na formulação e execução das ações de planejamento como para a compreensão das dinâmicas de desenvolvimento rural, destacadamente nos territórios onde a agricultura familiar se faz presente de forma mais densa, é fundamental considerar esses sujeitos sociais.

As narrativas sobre o desenvolvimento brasileiro, ao longo do século XX, foram fortemente marcadas pelo viés da industrialização e urbanização, secundarizando a importância dos espaços e das dinâmicas rurais. Todavia, desde o final do referido século, observa-se a aproximação entre as narrativas de desenvolvimento territorial e rural, o que promoveu o entendimento que desenvolvimento rural e territorial são dimensões que dialogam fortemente entre si e que a noção de território não pode prescindir da discussão sobre as transformações históricas e contemporâneas nos espaços rurais (FAVARETO; BERDEGUÉ, 2018; LEITE, 2020).

A relevância do planejamento nos espaços rurais ganha destaque entre as narrativas que sustentam a necessidade da reconfiguração dos sistemas alimentares para o desenvolvimento sustentável (CARON et al., 2020). O planejamento deve ser compreendido como parte fundamental do processo de desenvolvimento rural, especialmente frente ao contexto das mudanças climáticas e dos desafios societários cristalizados nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, que apontam a importância de transformar os modos de produção, consumo, processamento, armazenamento, reciclagem e descarte de recursos biológicos, na perspectiva da ecoeconomia e da produção de lugares sustentáveis (MARSDEN; FARIOLI, 2020).

É nesse contexto que deve-se localizar contemporaneamente o desafio do planejamento das áreas rurais, levando em consideração suas conexões com os espaços não rurais em sociedades crescentemente urbanizadas (PREISS; SCHNEIDER, 2020). O planejamento deve contemplar desde as dinâmicas globais de produção e distribuição de alimentos, até os processos produtivos desenvolvidos no âmbito das unidades de produção agrícola. Trata-se de uma ação realizada por distintos agentes, públicos e privados, que atuam em diferentes escalas espaciais, seja em âmbito global, como os impérios alimentares (PLOEG, 2008), ou local, como os agricultores familiares em suas unidades de produção. Assim, em termos globais, aponta-se a necessidade de políticas que impulsionem a transição para a sustentabilidade e promovam a reconfiguração dos conglomerados agrícola-alimentares (FAVARETO, 2019). Além disso, em termos mais locais e regionais, deve-se buscar fortalecer a resiliência dos sistemas produtivos e das comunidades rurais e promover a soberania alimentar, bem como, os mercados territoriais e a transição agroecológica dos modelos agrícolas (PLOEG, 2020; ANDERSON et al., 2021).

As ações de planejamento, compreendido como processo contínuo e sistemático em que se define antecipadamente as ações a serem realizadas e se projetam os recursos necessários e forma de mobilizá-los para alcançar determinados objetivos (CHIAVENATO, 1995), são desenvolvidas nos mais diversos contextos territoriais, onde se configuram campos de força em que interagem diferentes atores, sendo necessário considerar as desigualdades sociais e econômicas, bem como superar a visão corrente de conceber e planejar os territórios simplesmente como espaços político administrativos, ou como meros receptáculos sociais e econômicos (FREITAS et al., 2020). Nesse sentido, uma das tarefas fundamentais dos processos de planejamento dos espaços rurais é identificar os diversos atores sociais e suas peculiaridades, bem como as dinâmicas que devem ser ponderadas nos processos de planejamento, dentre as quais se destaca a dinâmica populacional.

A dinâmica populacional brasileira, em especial da população rural, é marcada pelo contundente processo de êxodo rural observado no século XX e, de forma recorrente, são destacadas as implicações do processo de modernização conservadora da agricultura, associado ao processo de industrialização da economia, como fatores explicativos desse fenômeno. A literatura também destaca que nas últimas duas décadas esse processo de êxodo rural tem se arrefecido, todavia segue em curso, sendo marcado recentemente por um processo mais seletivo, cujo perfil dos migrantes tem deixado de ser constituído por famílias rurais completas para ser composto, especialmente, pela população rural mais jovem e feminina (CAMARANO; ABRAMOVAY, 1999; ANJOS; CALDAS, 2005; FROELICH et al., 2011).

Além do processo de migração dos mais jovens, o processo de envelhecimento da população rural está associado a um duplo movimento, que envolve a redução histórica das taxas de fecundidade e o aumento da esperança de vida dos brasileiros, tanto no âmbito rural como no urbano. Com isso, ocorre a redução do número total de pessoas nos estratos de idade de 0 a 14 anos e no estrato de idade mais elevada, que aumenta, passa a predominar a presença masculina, constituindo o processo de envelhecimento e masculinização do campo, considerando também o fato das mulheres serem mais longevas que os homens (ANJOS; CALDAS, 2005; ALVES; CAVENAGHI, 2012).

Diversos autores têm se debruçado sobre a dinâmica populacional brasileira, destacando o processo de envelhecimento e masculinização do campo (CAMARANO; ABRAMOVAY, 1999; ANJOS; CALDAS, 2005; FROELICH et al., 2011; ALVES; CAVENAGHI, 2012; MAIA, 2014; ANJOS et al., 2014; COSTA et al., 2015; HEIN; SILVA, 2019; MARZULO et al., 2020), todavia nenhum deles discute as implicações dessas alterações na disponibilidade de força de trabalho das famílias agricultoras e as estratégias relacionadas a alocação do trabalho das famílias rurais.

Nessa perspectiva, o objetivo deste estudo é identificar as transformações ocorridas no perfil demográfico e na disponibilidade de mão de obra e analisar as estratégias de alocação de trabalho de agricultores familiares na região Noroeste do Rio Grande do Sul. Através de estudo longitudinal foram coletados dados junto as mesmas famílias, no ano de 2003 e 2018, o que possibilitou a comparação de dados em painel, para responder as seguintes perguntas: quais mudanças ocorreram no perfil das famílias? Que variações ocorreram na disponibilidade de mão de obra e nas estratégias de alocação do trabalho familiar? Quais as implicações dessas mudanças para as práticas de planejamento dos espaços rurais?

Além de contribuir com a compreensão das dinâmicas contemporâneas de transformação dos espaços rurais, pretende-se fornecer subsídios para o poder público, para entidades do terceiro setor, para as organizações dos agricultores e demais instituições de interesse nas temáticas rurais. Acredita-se que tais subsídios permitam qualificar os processos de planejamento, a partir da compreensão das transformações recentes nas dinâmicas e estratégias relacionadas a dimensão do trabalho na agricultura familiar.

Esse artigo é composto por quatro seções, além desta introdução. Na sequência destaca-se os traços principais do cenário demográfico e das mudanças recentes nas dinâmicas de trabalho na agricultura brasileira. Depois disso trata-se de apresentar o contexto estudado e a metodologia utilizada na coleta e tratamento dos dados. Em seguida são apresentados e discutidos os resultados do estudo e, por fim, as considerações finais.

2 O cenário rural brasileiro e as mudanças demográficas

Conforme destacam Anjos e Caldas (2005), ao considerar a dinâmica populacional do Sul do Brasil, um dos traços marcantes da dinâmica populacional que implica diretamente as dinâmicas de planejamento e de desenvolvimento rural contemporâneas é o processo de envelhecimento e a masculinização do campo. Nessa mesma perspectiva, em estudo sobre a dinâmica da população na região Central gaúcha, Froelich et al. (2011) também apontam o processo de envelhecimento da população rural entre 1996 e 2007, onde se destaca a redução do número de residentes rurais mais jovens e aumento dos mais velhos.

Esse processo de envelhecimento rural, conforme destaca Maia (2014), também ocorre em nível nacional, pois o número médio de aposentados por domicílio rural aumentou gradativamente entre os anos considerados nos últimos três Censos Demográficos, tendo passado de 0,25 em 1991, para 0,36 em 2000 e chega 0,46 em 2010, ou seja, quase dobrou nesse período. Decorrente desse processo de envelhecimento da população rural, especialmente desde o marco legal da Constituição Federal de 1988, que alterou o regime de previdência rural, ampliando e assegurando o direito à aposentadoria rural para mulheres e homens no valor de um salário mínimo mensal, ocorre o aumento da importância da renda obtida através de aposentadoria entre as famílias rurais.

Ao analisar as mudanças no mercado de trabalho agrícola brasileiro, no período de 2004 a 2015, Silveira (2017) também destaca o aumento da idade média da população ocupada, apontando que nesse período ocorreu forte expansão da área cultivada e da produção, todavia ocorreu a redução de um quarto da população ocupada na agricultura (cerca de 5 milhões de postos de trabalho a menos), o que pode ser tributado à intensificação do capital na agricultura. Além disso, em relação ao mercado de trabalho agrícola, o referido autor observa que ocorreu diminuição de menor envergadura no número de trabalhadores por conta própria (onde predomina a agricultura familiar) e aumento das ocupações voltadas para o autoconsumo, desde onde pode-se apontar a resiliência da agricultura familiar no cenário de boom do agronegócio e de redução da demanda por mão de obra.

Alargando a perspectiva histórica, pode-se apontar que nas décadas de 60 e 80 do século XX ocorreu o auge da modernização conservadora. Esse processo demarcou não somente alterações na base técnica da produção agrícola, mas se configurou como um dos mais importantes vetores da mudança social que, num quadro de crescente liberalização dos mercados e da internacionalização da produção e do comércio agropecuário, reduziu drasticamente o caráter rural da sociedade brasileira. Uma das evidências desse processo tem sido a crescente importância das atividades não agrícolas entre a população rural, onde a agricultura, como atividade produtiva, não deixa de integrar o mundo rural, mas, em algumas regiões, ocorre diminuição de sua importância na geração de emprego e ocupação (SCHNEIDER, 2003). Conforme Sakamoto et al. (2016), considerando a situação nacional, desde os dados da PNAD 2001 a 2013, apesar de ocorrer melhora no emprego e na renda agrícola ao longo dos anos 2000, manteve-se o ritmo histórico de redução das famílias com atividade exclusivamente agrícola.

Os dados compilados Escher et al. (2014) não deixam dúvidas quanto à importância do fenômeno da pluriatividade no Brasil, dado que 37% do número total dos estabelecimentos rurais eram pluriativos, sendo que, dos estabelecimentos familiares 34,1% eram pluriativos e entre os estabelecimentos não familiares essa cifra alcançava 51,9%. Ou seja, em um terço dos estabelecimentos rurais familiares e pouco mais de metade dos estabelecimentos rurais não familiares, se recorria ao desenvolvimento de atividades não agrícolas para a obtenção de rendas, evidenciando a grande magnitude deste fenômeno. Hoffmann (2011), considerando os dados PNAD de 2009, aponta que 44,7% das pessoas ocupadas residentes na área rural do Brasil tinham uma atividade não agrícola como sua principal atividade. Cabe destacar que a pluriatividade não ocorre apenas no Brasil, tratando-se de um fenômeno com magnitude internacional (SCHNEIDER, 2003).

A pluriatividade é entendida como uma estratégia de reprodução social levada a cabo por agricultores familiares em contextos onde sua inserção na divisão social do trabalho permite o desenvolvimento combinado de atividades agrícolas e atividades não agrícolas, não estando restritas ao setor agrícola e nem ao espaço rural, representando uma forma social de organização do trabalho e da produção com características variadas, mas fundada nessa combinação entre o trabalho agrícola e não agrícola. Não se trata apenas da análise isolada de rendas não agrícolas auferidas por indivíduos, mas de um enfoque sobre as dinâmicas e atividades rurais, onde se toma a família dos agricultores e suas estratégias como unidade de análise (SCHNEIDER, 2001; 2003).

No caso brasileiro, considerando os anos 1980 e 1990, Graziano (1997) já apontava que o rural brasileiro não poderia mais se definir como especificamente agrícola, destacando as atividades não agrícolas como parte das dinâmicas do desenvolvimento rural. Trabalhos mais recentes, como o de Lui (2013), que em estudo longitudinal com agricultores da região norte do Brasil, constatam que é crescente a diversificação e desconexão entre as formas de vida dos agricultores com a execução das atividades agrícolas, ou seja, a delimitação do que é uma família agricultora não pode mais ser circunscrita especificamente ao espaço e às dinâmicas puramente agrícolas. Os trabalhos de Villwock (2015; 2018) no sudoeste do Paraná corroboram essa perspectiva, apontando a realização de atividades não agrícolas como um dos elementos presentes nas estratégias de reprodução dos agricultores.

No caso do Rio Grande do Sul, os trabalhos de Schneider et al. (2006) e Anjos e Caldas (2007) destacam a importância da pluriatividade nas distintas dinâmicas territoriais de desenvolvimento em quatro regiões gaúchas, entre elas a região Noroeste. Em que pese as diferenças regionais, os estudos apontam a importância das rendas não agrícolas e da pluriatividade entre as famílias pesquisadas, destacando que as explorações agrícolas que desenvolviam atividades não agrícolas tendiam a apresentar indicadores socioeconômicos superiores às exclusivamente agrícolas, estando a pluriatividade associada ao tamanho das famílias, escolaridade e acesso aos recursos produtivos.

3 O espaço estudado e o método de pesquisa

Os dados que sustentam a presente pesquisa foram coletados no município de Salvador das Missões, que foi fundado em março de 1992 e localiza-se na microrregião de Cerro Largo, no noroeste do Rio Grande do Sul (RS), como se observa na Figura 1.

A dinâmica populacional de Salvador das Missões é marcada pela estabilidade da população total entre 2000 e 2010, que passou de 2.665 para 2.669 pessoas. Contudo, em termos proporcionais as mudanças são expressivas, pois nesse mesmo período a população rural do município caiu de 68,11% para 59,01%. Em termos microrregionais a população total mostrou decréscimo absoluto (passou de 140 mil para 132 mil) e também caiu a participação relativa da população rural (de 54,17% para 48,07%) (IBGE, 2000; 2010).


Figura 1
Localização do município de Salvador das Missões no Estado do Rio Grande do Sul
Fonte: elaboração própria.

Em Salvador das Missões a agricultura familiar tem densa presença, pois representa 86,19% dos estabelecimentos agrícolas, ocupa 75,16% das áreas rurais e responde por 75,29% do valor produzido pela agricultura municipal (IBGE, 2017). A produção de soja e leite é recorrente entre os agricultores familiares no sul do Brasil, sendo que, no caso da soja, no RS 84,7% dos estabelecimentos produtores são da agricultura familiar e respondem por 35,7% da produção total, além de serem responsáveis por 84,7% da produção gaúcha de leite (GRANDO, 2012). Soja e leite são as principais atividades agrícolas de Salvador das Missões, contando com expressiva participação da agricultura familiar nestas atividades produtivas (LIMA et al., 2012).

Isso evidencia a representatividade de Salvador das Missões, tanto em termos da densidade da presença da agricultura familiar, como da configuração dos sistemas produtivos e da dinâmica populacional, o que justifica sua escolha para a realização do estudo.

A pesquisa teve caráter indutivo e combinou o método histórico e o comparativo, pois tratou de compreender as dinâmicas do presente através da análise histórica dos fenômenos e, ao mesmo tempo, considerou as similitudes e diferenças entre grupos sociais para explicar a diferenciação de suas configurações ao longo do tempo (MARCONI; LAKATOS, 2010). Nesse sentido, buscou-se compreender as mudanças ocorridas no perfil e nas dinâmicas familiares desde uma perspectiva longitudinal (PLOEG, 2018).

Além de revisão de literatura e consulta em fontes de dados secundários, o presente estudo é sustentado por dados primários obtidos em pesquisa de campo. A pesquisa de campo foi realizada junto a 58 famílias agricultoras do município de Salvador das Missões, sendo importante ressaltar que os dados foram coletados com as mesmas famílias, no ano de 2003 e de 20181 e referem-se, respectivamente, aos anos agrícolas 2002 e 2017.

Para a coleta de informações foram adotados os mesmos procedimentos nos dois anos de coleta de dados, utilizando-se questionário semiestruturado, com diversas questões quantitativas e qualitativas. O questionário foi montado a partir de uma matriz composta por sete eixos temáticos, quais sejam: caracterização da família, dos fatores de produção terra, capital e trabalho, dos processos de produção, informações sobre o valor gerado, caracterização do território e do ambiente social e econômico local, além dos aspectos gerais sobre as relações com o Estado e as políticas públicas. No presente trabalho considerar-se-á especialmente as informações relacionadas ao primeiro eixo.

A amostra foi do tipo sistemática por comunidade e as famílias foram definidas através de sorteio. Definiu-se por uma amostragem de 10% das propriedades rurais do município, o que resultou no número de famílias consultadas. Todas as famílias pesquisadas em 2003 foram encontradas e participaram da pesquisa em 2018, embora parte delas tenha transferido o domicílio para outros municípios. Após a organização das informações coletadas os dados foram analisados através da comparação de painéis (GIL, 2008) e com uso de estatística descritiva.

A força de trabalho foi medida em Unidades de Trabalho Homem (UTH) considerando as recomendações de Lima et al. (1995), onde se define que uma UTH equivale a 300 dias de trabalho de oito horas. Essa variável mede a quantidade de trabalho (mão de obra) disponível em cada família, sendo calculada considerando-se a idade e o tempo de cada indivíduo que é dedicado às atividades produtivas. Quanto à idade, considerou-se: 1,0 UTH (idade de 18 a 59 anos); 0,75 UTH (idade de 14 a 17 anos, ou mais de 60 anos); 0,5 UTH (idade de 7 a 13 anos); em caso de algum membro da família estudar um turno, contabilizou-se somente 50% desses valores.

O cálculo das variáveis econômicas renda e capital também seguiu os procedimentos metodológicos recomendados por Lima et al. (1995). É importante destacar que todos os valores monetários coletados em 2003 foram atualizados para 2018, através do Índice Geral de Preços do Mercado (IGPM) da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

4 Mudanças no perfil das famílias

O número total de pessoas que integram as 58 famílias passou de 250, em 2002, para 181, em 2017. Com isso, o número médio de pessoas por família passou de 4,31 para 3,12. A idade média do conjunto dos residentes passou de 37,1 para 49,33 anos. Em outras palavras, no período considerado, em termos médios, observa-se o envelhecimento e a redução do tamanho das famílias estudadas, como tem se destacado em outros trabalhos de pesquisa (MAIA, 2014; ANJOS et al., 2014).

A redução no tamanho das famílias pesquisadas pode ser observada de forma mais detalhada na Tabela 1. Em 2002, não havia nenhuma família com apenas um integrante e, em 2017, haviam sete famílias com esse tamanho. Outros dois estratos de tamanho de famílias apresentaram crescimento, sendo os com dois e três integrantes, evidenciando que aumentou a frequência de famílias com até três integrantes. Por outro lado, em termos relativos, o número de famílias com quatro integrantes caiu de 29,31% para 18,97%. Nesse período, as famílias com cinco integrantes tiveram pequena redução, ficando, em ambos os anos, em cerca de 16%. Por sua vez, as famílias com seis e sete integrantes tiveram redução mais expressiva, evidenciando a diminuição da frequência de famílias maiores.

Tabela 1
Distribuição das famílias pesquisadas, em 2002 e 2017, segundo estratos do número total de integrantes

Fonte: Pesquisa AFDLP (UFRGS; UFPel; CNPq, 2003) e pesquisa de campo 2018.

Sob outro ângulo de análise, ao separar-se os estratos de tamanho de famílias que aumentaram daqueles que diminuíram tem-se que, de 2002 para 2017, aumentou o número de famílias com até três integrantes e diminuiu o número de famílias com quatro ou mais integrantes. Com base nos dados coletados, ao ser somado o número de famílias que possuíam de um a três integrantes no primeiro ano da pesquisa, resulta um total de 20 famílias e, no segundo ano pesquisado, de 35 famílias. Nesse mesmo período, a soma do número de casos com quatro ou mais integrantes passou de 38 para 23 famílias.

A Taxa de Envelhecimento (TE)2 de toda população de Salvador das Missões variou de 7,24% para 9,27% e depois para 12,7%, entre os anos de 1991, 2000 e 2010, expressando crescente processo de envelhecimento da população do município. A TE do grupo estudado variou de 13,6% para 25,97% revelando envelhecimento mais intenso desse grupo de famílias em relação à população do município.

Já a Razão de Dependência (RD)3 apresentou leve redução entre o grupo pesquisado, passando de 53,37% para 50,83%, ou seja, para cada 10 pessoas ativas economicamente, no primeiro ano da pesquisa, havia 5,34 inativas e 5,08 no segundo ano. Apesar da leve redução na RD do grupo estudado, entre 2002 e 2017, mantêm-se elevada proporção de sujeitos inativos sobre os ativos quando comparado com o RD do conjunto do município, onde ocorreu redução mais expressiva, tendo passado de 50,82% para 39,59%, entre 2000 e 2010. Ou seja, em termos municipais, considerada a variável etária, observa-se expressiva melhoria na proporção entre ativos-inativos, enquanto no grupo estudado essa proporção se manteve mais elevada ao longo do tempo.

O número de residentes por faixa etária pode ser observado na Tabela 2. Nela pode-se perceber que nos estratos de menor idade ocorreu redução do número total de residentes, entre 2002 e 2017, sendo essa redução bastante expressiva no grupo de até 15 anos de idade. No grupo de 15 a 30 anos observou-se redução de menor magnitude, mas ocorreu redução bastante intensa no grupo de 31 a 45 anos de idade. A partir desta faixa etária a tendência se inverte, observando-se aumento bastante intenso no número total de residentes e na participação relativa nos estratos de idade mais elevadas.

Tabela 2
Valor absoluto e relativo do número de componentes das famílias pesquisadas por estrato de idade, em 2002 e 2017

Fonte: Pesquisa AFDLP (UFRGS; UFPel; CNPq, 2003) e pesquisa de campo 2018.

Ao considerar-se a composição de gênero das famílias observa-se que, entre 2002 e 2017, o número total de mulheres reduziu de 116 para 93 e o número de homens de 129 para 88. Tanto para homens como para mulheres ocorreu diminuição no número absoluto dos integrantes, todavia entre os homens essa redução foi mais intensa, dado que, em termos relativos, os homens eram 52,65% no primeiro ano da pesquisa e passaram para 48,62% no segundo ano. Com isso, ocorre uma tendência de feminização do grupo pesquisado, pois em termos relativos as mulheres passaram de 47,35% para 51,38% do número total de integrantes das famílias.

O processo de feminização identificado diverge dos resultados dos estudos que apontam tendência de masculinização do campo (ANJOS; CALDAS, 2005; FROELICH et al., 2011; MAIA, 2014; ANJOS et al., 2014), sendo esse um importante resultado da pesquisa. Isso decorre da trajetória de forte desagrarização (THIES, 2020) que foi seguida por sete famílias, todas elas compostas apenas por mulheres viúvas de elevada idade média (71 anos). Na ausência de sucessores e em função da idade avançada, essas mulheres optam por urbanizar-se, vendem ou arrendam suas terras e distanciam-se fortemente das atividades agrícolas, passando a viver basicamente dos recursos oriundos da aposentadoria. Assim, dado o elevado grau de desagrarização, pode-se dizer que trata-se de famílias que descontinuaram seus vínculos com a agricultura.

Descontado esse grupo de mulheres desagrarizadas das demais famílias pesquisadas, resulta que, no segundo ano da pesquisa, haveria predomínio masculino entre as famílias - homens representariam 50,57% do grupo. Apesar disso, é importante sublinhar que esse processo de masculinização do campo, que é determinado pelo processo de migração de mulheres idosas, é um resultado inédito da pesquisa, que precisa ser observado em outros estudos sobre a dinâmica demográfica rural, para verificar seu alcance em outras regiões, pois até então o processo de masculinização do campo era atribuído especialmente a migração das mulheres mais jovens.

No Gráfico 1 observa-se a distribuição relativa dos integrantes das famílias pesquisadas, por faixa etária e separadas por gênero. Na faixa etária mais baixa, tanto para homens como para mulheres, ocorreu redução expressiva, evidenciando forte diminuição proporcional da presença de crianças e adolescentes, especialmente no caso dos homens. Essa mesma intensidade de redução foi observada na faixa de 31 a 45 anos, todavia, nesse caso ela é mais intensa para as mulheres. Nas faixas etárias de 46 a 60 anos e acima de 60 anos ocorreu forte aumento, tanto para homens como mulheres. A faixa etária que apresentou menor oscilação relativa, em ambos os sexos, foi a de 15 a 30 anos.

Somando-se a participação relativa das faixas etárias acima de 46 anos tem-se que, no segundo ano da pesquisa, cerca de 70% das mulheres e 62% dos homens possuíam mais que 46 anos de idade e menos de 10% das mulheres e dos homens tinham idade inferior a quinze anos. Esse envelhecimento da população implicou no aumento da importância dos recursos de aposentadoria na composição da renda total das famílias, sendo que, entre os anos pesquisados, em termos relativos, a aposentadoria passou de 16,18% para 19,36% da renda total auferida pelo grupo de famílias.


Gráfico 1
Distribuição relativa por gênero dos integrantes das famílias pesquisadas, em 2002 e 2017, segundo estratos de idade
Fonte: Pesquisa AFDLP (UFRGS; UFPel; CNPq, 2003) e pesquisa de campo 2018.

Ao observar-se a composição etária e o tamanho das famílias, confrontando os dados de 2002 e 2017, pode-se afirmar, em síntese, que ocorreu forte redução do tamanho das famílias e significativo processo de envelhecimento. As duas tendências observadas são bastante claras, pois, por um lado, ocorreu redução da quantidade de pessoas nos estratos de idade mais jovens e do número de famílias com maior número de componentes. Por outro lado e em sentido oposto, ocorreu aumento do número de pessoas nos estratos de idade mais altos e do número de famílias com menos componentes.

O processo de envelhecimento e aumento da importância dos recursos de aposentadoria entre o grupo estudado corrobora os resultados dos trabalhos de Maia (2014) e Delgado (2015), que atestam a crescente importância dos recursos previdenciários para a população rural brasileira. Na seção que segue discute-se as implicações que as mudanças no perfil demográfico geraram na capacidade de trabalho das famílias e analisa-se as estratégias por elas desenvolvidas.

5 Disponibilidade de mão de obra e estratégias de alocação do trabalho familiar

Como evidenciado na seção anterior, observou-se o envelhecimento e à redução numérica das famílias estudadas, o que implicou na diminuição da sua capacidade de trabalho. No primeiro ano da pesquisa o conjunto das famílias dispunha de 171,84 UTHs e, no segundo ano, esse número baixou para 121,8 UTHs, representando redução de 29,12% na disponibilidade total de mão de obra familiar, como se observa na Tabela 3.

Trata-se de uma mudança de grande envergadura para os processos de planejamento e também para a dinâmica rural, pois o trabalho é um dos elementos fundamentais em qualquer processo produtivo. No caso da agricultura, a redução da capacidade de trabalho familiar cobra das famílias a reconfiguração de suas estratégias. Em termos teóricos essa redução pode ser compensada pela contratação de força de trabalho extra familiar, ou pelo investimento em novas tecnologias, para elevar a produtividade do trabalho familiar ainda disponível. Essas duas estratégias implicam a elevação dos custos de produção. Além disso, no primeiro caso, será necessário encontrar mão de obra qualificada disponível no mercado local e, no segundo, será necessário dispor de capital próprio para realizar os investimentos, ou terá que buscar empréstimos no sistema financeiro. Ou seja, não são caminhos fáceis de percorrer e deverão ser escolhidos mediante diagnóstico e planejamento de longo prazo da unidade de produção, o que fortalece ainda mais a importância dos agricultores terem acesso a ferramentas e serviços de apoio ao planejamento rural.

Nos casos pesquisados, frente a redução da sua força de trabalho, as famílias diminuíram expressivamente a quantidade de trabalho alocada em atividades agrícolas, o que revela uma das estratégias adotadas, qual seja: frente a redução da sua capacidade de trabalho as famílias optam por diminuir o volume de trabalho familiar alocado em atividades agrícolas. Na Tabela 3, pode-se ver os valores absolutos da redução do trabalho familiar alocado em atividades agrícolas (em termos relativos a redução foi de 37,63%). Já em relação as atividades não agrícolas, a estratégia das famílias foi inversa, pois como pode-se observar na referida tabela, houve aumento (em termos relativos de 23,79%) no volume de trabalho familiar alocado nesse tipo de atividade. Ou seja, frente a redução na capacidade total de trabalho das famílias, elas optam estrategicamente em aumentar a proporção de trabalho alocado em atividades não agrícolas e reduzir a proporção de trabalho alocado em atividades agrícolas.

Em relação ao investimento em capital e ao uso de crédito bancário observou-se um movimento de duplo sentido entre as famílias pesquisadas. Cerca de 55% delas (32 famílias) desenvolveram uma estratégia de ampliação da agrarização (THIES, 2020), mantendo e intensificando as atividades agrícolas, elevando o valor do capital mobilizado nessas atividades (passou, em média, de aproximadamente R$ 84 mil para R$ 164 mil/família) e também cresceu o valor médio tomado de empréstimo junto aos bancos (passou, em média, de cerca R$ 40 mil para R$ 102 mil/família). No caso dessas famílias observa-se a priorização da alocação do trabalho familiar em atividades agrícolas (atividades não agrícolas absorveram cerca de 18% da força de trabalho familiar no segundo ano da pesquisa). As principais fontes de renda dessas famílias são: renda agrícola (71%), renda não agrícola (15%) e renda de aposentadoria (11%).

O outro grupo, formado por 26 famílias, desenvolveu uma estratégia de desagrarização (THIES, 2020), distanciando-se das atividades agrícolas, através da redução do capital mobilizado na agricultura (passou, em média, de aproximadamente R$ 35 mil para 9 mil/família), da descontinuidade da tomada de financiamento agrícola e da alocação de uma fatia bem mais expressiva da capacidade de trabalho familiar em atividades não agrícolas (absorveram cerca de 36% da força de trabalho familiar no segundo ano da pesquisa). As principais fontes de renda dessas famílias são: renda de aposentadoria (57%), renda não agrícola (22%), renda de arrendamento de terras (11%) e renda agrícola (8%).

Já contratação de força de trabalho, que também poderia ser uma estratégia acionada para suprir a redução da disponibilidade de trabalho das famílias, não foi ativamente utilizada. Em 2002, foram 34 famílias que contrataram 5,87 UTHs (média de 0,17 UTH/família) e, em 2017, foram 32 famílias que contrataram 8,54 UTHs (média de 0,27 UTH/família). Isso representa aumento no número total e na quantidade média por família de UTHs contratadas mas, em termos absolutos, esse aumento não foi equivalente a redução da força de trabalho das famílias que era anteriormente alocado em atividades agrícolas. Com isso, entre os anos pesquisados, a força de trabalho agrícola total caiu expressivamente (cerca de um terço), como se observa na Tabela 3.

Tabela 3
Quantificação das diferentes modalidades de trabalho das famílias pesquisadas, em 2002 e 2017

Fonte: Pesquisa AFDLP (UFRGS; UFPel; CNPq, 2003) e pesquisa de campo 2018.

A alocação de força de trabalho familiar em atividades agrícolas fora da unidade de produção familiar apresentou pequena variação (passou de 2,63 para 2,74 UTHs), sendo que essa modalidade de trabalho tem participação periférica, nos dois anos da pesquisa, em termos da capacidade total de trabalho das famílias.

6 Considerações finais

As mudanças demográficas afetaram o conjunto das famílias, reduzindo sensivelmente a capacidade de trabalho familiar, em decorrência da redução do número médio de integrantes e do aumento da idade média dos integrantes das famílias. Essas mudanças confirmam o processo de envelhecimento da população rural e de redução do tamanho das famílias agricultoras, o que afeta diretamente os processos de planejamento, que deve ser realizado considerando essas alterações no perfil das famílias, pois elas reconfiguram, ao longo dos anos, uma variável determinante das dinâmicas rurais, que é a disponibilidade de trabalho entre os agricultores familiares.

No caso estudado, como um dos aportes da pesquisa que merece aprofundamento em novos estudos, destaca-se o processo de abandono da agricultura e do espaço rural realizado por grupo expressivo de mulheres viúvas, de elevada idade média. Na ausência de sucessores essas mulheres migram de espaços rurais para urbanos, contribuindo para o processo de masculinização do campo, donde se destaca que esse processo é impulsionado pela migração não apenas de jovens mulheres, mas também de mulheres idosas.

Ao considerar-se a trajetória do conjunto das famílias, observa-se que as estratégias de contratação de força de trabalho e de alocação de força de trabalho familiar em atividades agrícolas fora da unidade familiar de produção tiveram pequeno incremento. Todavia, têm-se número levemente menor de famílias que investem nessas duas modalidades de trabalho e, em termos relativos, elas foram, nos dois anos pesquisados, bastante secundárias nas estratégias de alocação do trabalho das famílias. Isso implica que, nas práticas de planejamento dos espaços rurais relacionados especificamente aos agricultores familiares, tanto a alocação do trabalho familiar em atividades agrícolas fora do estabelecimento produtivo das famílias, como a contratação de força de trabalho para trabalhar em atividades agrícolas nas unidades familiares de produção, não se constituíram como estratégias muito atrativas para os agricultores pesquisados, o que permite apontar que esses não são caminhos muito relevantes, em termos estratégicos, no planejamento do desenvolvimento rural.

Os processos de planejamento dos espaços rurais devem levar em conta que, em termos de estratégia de alocação do trabalho familiar, as duas modalidades de trabalho mais importantes para os agricultores familiares estudados, nos dois anos considerados, são o trabalho agrícola e o não agrícola.

Frente a redução da disponibilidade de trabalho familiar o grupo pesquisado diferenciou-se substantivamente nas estratégias de alocação do trabalho e de investimento de capital. Parte das famílias opta por uma estratégia agrarizante, com forte viés agrícola, ampliando o capital mobilizado nessa atividade e também o volume de financiamento agrícola tomado nos bancos, além de priorizar a alocação do trabalho familiar em atividades agrícolas no próprio estabelecimento. O outro grupo segue trajetória inversa, adotando estratégia desagrarizante, reduzindo o valor do capital mobilizado em atividades agrícolas, cessando o uso do crédito agrícola e investindo parte expressiva da capacidade de trabalho familiar em atividades não agrícolas fora do estabelecimento. Nesse segundo grupo ganha força a produção agrícola destinada somente para o autoconsumo e o arrendamento das terras para terceiros. Além disso, as rendas de aposentadoria e não agrícola passam a predominar, tornando a renda agrícola bastante secundária.

Assim, as práticas de planejamento rural devem considerar que as famílias dos agricultores familiares tornaram-se menores e mais velhas, o que gerou a redução de sua capacidade de trabalho. Frente a isso é fundamental entender a diferenciação das famílias agricultoras, pois parte delas segue trajetória de agrarização, com forte viés agrícola em sua perspectiva de futuro, enquanto outro grupo segue caminho inverso, desenvolvendo trajetória de desagrarização, com perspectiva de futuro que mantém vínculos rurais, mas as afasta das atividades agrícolas.

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Notas

1 Cabe registrar que, em 2003, os dados foram coletados como parte do projeto de pesquisa Agricultura Familiar Desenvolvimento Local e Pluriatividade no RS e referiram-se ao ano agrícola 2002. Esse projeto foi executado em parceria entre a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e a Universidade Federal de Pelotas (UFPel). A coleta de dados, em 2018, foi realizada através de parceria entre a UFRGS e a Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS – Cerro Largo) e refere-se ao ano agrícola 2017. Atente-se o leitor que os resultados aqui discutidos farão referência aos anos agrícolas de 2002 e 2017 e não ao ano de coleta dos dados.
2 A taxa de envelhecimento é dada pela relação entre a população de 65 anos ou mais e a população total, sendo um sinalizador da capacidade de reprodução do conjunto da sociedade, através da consideração da proporção de idosos no conjunto da população, onde valores elevados indicam populações mais envelhecidas.
3 Conforme o IBGE (2019), a RD é definida como sendo a relação entre a população considerada economicamente dependente (0 a 14 anos - Pop 0 a 14 e também aqueles com 65 anos e mais de idade – Pop 65) e a população potencialmente ativa (15 a 64 anos de idade – Pop 15 a 64), sendo RD = (Pop 0 a 14 + Pop 65) / Pop 15 a 64 * 100. Registre-se que o IBGE e outros órgãos de pesquisa utilizam faixas etárias com algumas variações para esse enquadramento. De toda forma, esse indicador sinaliza “a carga” econômica exercida por crianças e idosos sobre os segmentos produtivos do grupo social, em que valores elevados indicam que a população ativa deve sustentar uma grande proporção de dependentes.


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