Resumo: O artigo analisa a persistência da ação coletiva na Cooperativa Agroleiteira da Transamazônica (Coopetra), no Oeste do Estado do Pará, e as estratégias adotadas pelos agricultores familiares para manter a agroindústria e a cooperação que viabilizam o seu modo de vida. Os métodos de pesquisa foram observação direta e participante, entrevistas com o uso de questionários estruturados e semi-estruturados e pesquisa documental. As observações foram feitas nas assembleias gerais e nas reuniões do Conselho de Administração da Cooperativa. As entrevistas foram realizadas nos estabelecimentos rurais dos agricultores, no período de 2013 a 2014. A categoria central deste artigo é a ação coletiva. Para compreender a ação coletiva dos atores, que resulta na persistência da cooperação, apoiamo-nos na teoria da sociologia das organizações, com foco na construção da autogestão, nas formas de participação e nas relações de poder no interior da organização. Concluímos que a participação dos atores – os associados – nos espaços de decisão da cooperativa, a confiança e a relação de poder equilibrada facilitam a persistência do empreendimento.
Palavras-chave: Ação coletiva, Cooperação, Organização, Participação.
Abstract: The article analyzes the persistence of collective action in the Transamazon Agricultural Cooperative (Coopetra), Western Pará State, and the strategies adopted by peasants to maintain the agroindustry and the cooperation that enable their way of life. The research methods were direct and participant observation, interviews using structured and semi-structured questionnaires, and documentary research. Observations were made at the general meetings and meetings of the cooperative's administrative council. Interviews were conducted in farmers' rural establishments between 2013 and 2014. The central category of this article is collective action. To understand the collective action of the actors that results in the persistence of cooperation we rely on the theory of sociology of organizations, focusing on the construction of self-management, forms of participation and power relations within the organization. We conclude that the participation of the actors – the associates – in the cooperative's decision spaces, the trust and the balanced power relationship facilitates the persistence of the enterprise.
Keywords: Collective action, Cooperation, Organization, Participation.
Resumen: El artículo analiza la persistencia de la acción colectiva en la Cooperativa Agrícola de la Transamazônica (Coopetra), Estado de Pará Occidental y las estrategias adoptadas por los agricultores familiares para mantener la agroindustria y la cooperación que les permitan su forma de vida. Los métodos de investigación fueron la observación directa y participante, las entrevistas mediante cuestionarios estructurados y semiestructurados y la investigación documental. Se hicieron observaciones en las reuniones generales y las reuniones de la junta directiva de la cooperativa. Las entrevistas se realizaron en los establecimientos rurales de los agricultores entre 2013 y 2014. La categoría central de este artículo es la acción colectiva. Para comprender la acción colectiva de los actores que resulta en la persistencia de la cooperación, confiamos en la teoría de la sociología de las organizaciones, enfocándonos en la construcción de autogestión, formas de participación y relaciones de poder dentro de la organización. Concluimos que la participación de los actores – los asociados – en los espacios de decisión de la cooperativa, la confianza y la relación de poder equilibrada facilitan la persistencia de la organización.
Palabras clave: Acción colectiva, Cooperación, Organización, Participación.
Artigos
Cooperação e persistência: um estudo da ação coletiva de agricultores familiares no Oeste do Pará, Amazônia
Cooperation and persistence: a study of the collective action of peasants in Western Pará, Amazonia
Cooperación y persistencia: un estudio de la acción colectiva de los agricultores familiares en el oeste de Pará, Amazonia
Recepción: 14 Abril 2020
Aprobación: 03 Septiembre 2021
O artigo busca compreender por que a Cooperativa Agroleiteira da Transamazônica (Coopetra) resiste à “tragédia dos comuns” (HARDIN, 1968) e investigar os motivos que sustentam sua persistência, dado o grande número de experiências associativas negativas no Pará (MANESCHY; CONCEIÇÃO; MAIA, 2010; REIS, 2002). As experiências de ação coletiva dos agricultores familiares datam do início da colonização dirigida da região, a partir da abertura da Rodovia Transamazônica (BR-230) e resultam de várias influências, como a “ideologia da fraternidade”, ensinada pelas Igrejas Católica e Luterana1. Há ação coletiva em “[...] todas as ocasiões em que grupos de pessoas mobilizam recursos, incluindo seus próprios esforços, para alcançar objetivos comuns” (TILLY, 1981, p. 17)2.
A abertura da rodovia é apenas um dos capítulos da saga de milhares de agricultores que se deslocaram para a região da Amazônia nas décadas de 70 e 80 do século XX, atraídos pela promessa do governo de “integrar para não entregar”.
As dificuldades enfrentadas pelos agricultores nos primeiros anos da colonização, principalmente pelo fato de terem de cultivar num ecossistema totalmente diferente do seu ambiente originário no Nordeste ou no Sul do país, eram amenizadas com formas simples de cooperação, como as “trocas de diárias”, os mutirões, os “adjuntos” (VEIGA; ALBALADEJO, 2002) e a comercialização coletiva de produtos por meio das revendas. O aprendizado dos agricultores na organização de ações coletivas simples permite posteriormente a criação de formas mais complexas de cooperação como observaram Lacerda e Malagodi (2007) entre assentados rurais na Paraíba e Rios e Carvalho (2007) entre agricultores familiares em Pernambuco.
As lutas por melhorias nas condições de produção e de infraestrutura originaram o principal movimento da região, o Movimento pela Sobrevivência na Transamazônica (MPST), na década de 803. No decorrer do tempo, foram criadas formas mais complexas de cooperação, como as associações e as cooperativas, que se tornaram a base da organização dos agricultores para garantir a sua sobrevivência que dependia de infraestrutura, regularização fundiária, assistência técnica e crédito.
Às associações, coube a tarefa de animar e de organizar a mobilização dos agricultores para as lutas políticas, enquanto as cooperativas tiveram a função de promover a organização e a transformação da produção. Nesse contexto, a Coopetra, como as outras cooperativas, compuseram a estratégia do desenvolvimento regional a partir da agenda política do MPST, com foco na economia regional e na possibilidade de agregar valor à produção. Tanto as cooperativas como as associações tiveram papel fundamental nessa estratégia, como também a conquista do crédito para a agricultura familiar pelo Fundo Constitucional de Financiamento do Norte (FNO). Mas, a cada ciclo, as cooperativas enfrentavam mais problemas, em particular, na gestão dos equipamentos coletivos de uso comum.
Somente a partir da publicação do livro The logic of collective action, de Olson (1965), e do artigo The tragedy of the commons, de Hardin (1968), os dilemas da cooperação para alcançar objetivos comuns tornaram-se um problema acadêmico. De acordo com a hipótese de Olson, conforme Schmitz, Mota e Sousa (2017, p. 202), “[...] mesmo que pudessem viver numa situação melhor quando os objetivos fossem alcançados”, os interessados não se engajariam da mesma forma como em um projeto que eles poderiam realizar sozinhos. Com efeito, projetos que precisam de um número maior de pessoas para serem concretizados sofrem com o fato de que os interessados podem beneficiar-se dos resultados do esforço comum sem participar da ação coletiva. O comportamento do free rider, como Olson (1965) denomina o aproveitador, o carona, afeta a cooperação necessária para a gestão de bens comuns. As cooperativas e associações frequentemente são atingidas pela passividade dos participantes, como analisam Maneschy, Conceição e Maia (2010) no Pará, o que se alia à baixa experiência com a gestão desses empreendimentos coletivos.
Outros autores (FEENY et al., 2001; OSTROM, 1990) relativizam os dilemas e analisam experiências bem-sucedidas com potencial para fundar e manter a ação coletiva. Porém, para estimular a cooperação, são necessárias relações geradoras de solidariedade e de reciprocidade, como mostram Axelrod (1984), Caillé (2002), Godbout (1998), Ostrom (2010), Sabourin (2009) e Temple (2003). A reciprocidade fundamenta e justifica a manutenção das experiências de troca entre os agricultores, em especial no espaço rural brasileiro (SCHMITZ; MOTA; SOUSA, 2017).
A escola francesa da sociologia das organizações, criada por Crozier e Friedberg (1993), oferece um arcabouço teórico para a análise de organizações com estruturas pouco formalizadas, como é o caso das cooperativas. Friedberg (1995, p. 406) propõe “[...] que a distinção entre uma organização formalizada e estruturas de ação coletiva mais difusas deixe de ser uma distinção de natureza, mas apenas de grau”. Segundo Crozier e Friedberg (1993), o poder deve ser considerado como uma força estruturante necessária para conseguir a cooperação dos membros da organização, que têm interesses nem sempre convergentes. Uma autogestão equilibrada e compartilhada entre a coordenação e os grupos de participantes pode influenciar a opção pela cooperação e não pela deserção (SCHMITZ; MOTA; PRADO, 2007).
Diante dessa problemática, o objetivo do artigo é analisar as relações sociais que caracterizam a ação dos atores nos espaços de decisão e identificar os fatores que facilitam a persistência da cooperativa em estudo.
O tema do artigo é a persistência da cooperação na Coopetra, cooperativa de agricultores familiares localizada no município de Rurópolis, Oeste do Estado do Pará. Rurópolis é um município com cerca de 51.500 habitantes, localizado no cruzamento da BR-230 (rodovia Transamazônica) e da BR-163 (rodovia Santarém–Cuiabá). A proposta da criação de uma cooperativa de beneficiamento e comercialização de derivados do leite nasceu em 1990, quando não havia nenhuma iniciativa ligada ao laticínio na região, com exceção de uma queijaria artesanal. Nessa época, apareceu a possibilidade de um financiamento pela Igreja Luterana da Dinamarca, mediado pela sede central da Igreja Luterana em Porto Alegre e mobilizado localmente pelos pastores Lauri e Nilo, coordenadores dessa igreja em Rurópolis, junto com o presidente da paróquia luterana, Cooperado 14. Porém, a Igreja da Dinamarca rejeitou o financiamento por receio de promover o desmatamento na Amazônia. Uma vez esclarecida a ideia, outras instituições financeiras – a Fundação Luterana Mundial e o Banco da Amazônia S. A. (Basa) – disponibilizaram os recursos para a construção da primeira fábrica de laticínios na região e o fornecimento da infraestrutura necessária (o equivalente a 255 US$, na época).
Em março de 1993, o projeto foi liberado e atendia as exigências do Sistema de Inspeção Federal (SIF). Gerenciadas pela cooperativa, foram desenvolvidas as seguintes atividades: organização do processo de produção, beneficiamento e comercialização do produto final. Em 23 de janeiro de 1996, começou a produção de queijo, atividade sob a responsabilidade do primeiro queijeiro da região, Sr. Danilo. Para essa produção, foram fornecidos 185 litros de leite por agricultores familiares afiliados, de Rurópolis. O principal produto foi o queijo muçarela, mas também foram produzidos manteiga e outros derivados. Em 2002, com a saída dos pastores membros do Conselho Consultivo da Coopetra, o projeto liberou-se da “tutela” da Igreja Luterana e, a partir de 2003, a cooperativa já andava “com as próprias pernas”.
Para compreender a persistência da cooperação na Coopetra, este artigo mescla elementos da pesquisa qualitativa e quantitativa, dados primários e secundários. Os dados quantitativos foram coletados na Secretaria da Receita Federal, regional Xingu, e na Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater/PA). Os dados qualitativos foram obtidos nas entrevistas e observações, realizadas diretamente nos estabelecimentos rurais, na sede da Cooperativa e nas reuniões ordinárias da cooperativa. Nossa presença foi previamente acordada com os agricultores participantes. Não interferir nem influir nas decisões foi acertado com o grupo, de modo a assegurar a isenção do pesquisador em relação ao objeto pesquisado (CRUZ NETO, 1994).
A pesquisa baseia-se em um estudo de caso, método que permite aprofundar as particularidades, seja de instituições, seja de indivíduos, suas interações, seus comportamentos e seus valores (ANDRÉ, 2005). O estudo de caso mostra-se adequado para aprofundar os conhecimentos sobre a persistência de uma organização de agricultores (cooperativa), enquanto unidade que congrega múltiplas interações sociais: grupos, organização para produção e comercialização, associação de pessoas.
Foram utilizadas três técnicas de coleta de dados: a observação do comportamento e das falas dos agricultores nos espaços de decisões coletivas (reuniões, assembleias e encontros), a entrevista e a análise documental. A utilização de diferentes métodos amplia a confiabilidade do estudo e oferece diferentes olhares sobre os fenômenos estudados.
Com a observação, buscamos registrar os momentos e as motivações que norteiam as decisões do grupo de associados. A observação “[...] se realiza através do contato direto do pesquisador com o fenômeno observado para obter informações sobre a realidade dos atores sociais em seus próprios contextos” (CRUZ NETO, 1994, p. 59). Além da observação direta, adotamos a observação participante, que se caracteriza pela participação nos eventos, com um diálogo prévio sobre os objetivos da participação do observador.
Segundo Cruz Neto (1994, p. 57), “a entrevista é o procedimento mais usual no trabalho de campo. Através dela, o pesquisador busca obter informes contidos na fala dos atores sociais” (CRUZ NETO, 1994, p. 57). Foram entrevistados vinte (20) associados, do total de setenta e dois (72). Optamos por entrevistar os sócios fundadores e os diretores sócios, na tentativa de resgatar a história da organização. Para esse grupo foi utilizado um questionário semiestruturado aplicado diretamente nos estabelecimentos rurais. Foram entrevistados oito (8) dos dez (10) funcionários contratados da cooperativa. As entrevistas foram indiretas, com questionários entregues no local de trabalho e recolhidos no dia seguinte. Para a contextualização do histórico da cooperativa e da relação com as questões regionais e com a agenda política do MPST, foram entrevistadas quatro (4) lideranças regionais por meio de entrevista direta com um questionário semi-estruturado.
As atas das Assembleias Gerais, do Conselho de Administração e do Conselho Fiscal foram os documentos consultados para proceder à análise documental. Acompanhamos duas assembleias gerais ordinárias da Cooperativa e uma reunião do Conselho de Administração.
Finalmente, a análise e a interpretação passam pela triangulação dos dados coletados.
Buscamos compreender as relações que estruturam a cooperação entre os associados. Discutimos a ação dos atores na gestão da Cooperativa Agroleiteira da Transamazônica (Coopetra), as regras que regulam os comportamentos e a persistência da organização.
As cooperativas podem ser consideradas como construções ideais, institucionalizadas a partir de um corpo abstrato jurídico, mas a sua compreensão somente é possível com a perspectiva de um “sistema de ação concreto”, que envolve múltiplos interesses individuais e coletivos. Sua sustentação depende do equilíbrio das ações, que se concretizam nos jogos de interesse e das negociações internas e externas à organização (CROZIER; FRIEDBERG, 1993).
Para Williams (1988, p. 7) “dois agentes cooperamquando eles se engajam em um empreendimento comum para cujo resultado as ações de cada um são necessárias, e onde a ação necessária de pelo menos um deles não está sob o controle imediato do outro”.
A tipologia das organizações associativas (RECH, 1995; SCHMITZ; MOTA; PRADO, 2007; SINGER, 2002b) permite identificar uma expressiva variedade dos tipos de cooperativas no espaço rural.
No Pará, existem 210 cooperativas cadastradas no Sistema OCB5 distribuídas em onze ramos de atividades econômicas: agropecuária, consumo, crédito, educacional, infraestrutura, mineral, produção, saúde, trabalho, transporte e turismo e lazer. Destacam-se os ramos transporte alternativo de pessoas, com 83 cooperativas (40%), e agropecuária, com 57 cooperativas (27%) (SISTEMA OCB/PA, 2020). O diagnóstico e o censo, realizados em 2018, indicam que o cooperativismo é um setor economicamente importante no Pará, que conta com 93.547 cooperados e 3.854 empregados (SISTEMA OCB/PA, 2019).
Em 2013, na região da Transamazônica e do Xingu, existiam 109 cooperativas, das quais vinte (20) ou 18,3% foram declaradas inativas pela Receita Federal porque há mais de três anos não prestaram nenhum tipo de informação ao órgão. Já em 2019, o número de cooperativas inativas subiu para trinta e sete (37) ou 26,1% das 142 cooperativas registradas. Quando somamos os inativos às quarenta (40) que foram baixadas, esse número sobe para setenta e sete (77) ou 54,2%. Isso mostra que, em 2019, mais da metade das cooperativas não tiveram nenhuma atividade econômica declarada na Receita Federal (ver Quadro 1).
Embora em 2019 tenha sido registrado um número de cooperativas (142) maior do que em 2013 (109), os dados mostram que, em 2019, as “ativas” apresentam uma redução de 27,0% em comparação a 2013, ou seja, caíram de 89 para 65.
A Coopetra desenvolve várias atividades desde sua fundação no início da década de 90 do século XX: organização do processo de produção, o beneficiamento e a comercialização do produto final. A regularidade e o desempenho da produção dependem dos agricultores associados, responsáveis pelo fornecimento do leite que alimenta a agroindústria.
Segundo Schmitz, Mota e Prado (2007, p. 5), as cooperativas de comercialização têm os seguintes objetivos:
[...] facilitar a comercialização oferecendo um volume de produtos maior com mais regularidade, abrir canais de comercialização alternativos, aumentar o poder de negociação e, frequentemente, beneficiar os produtos (verticalização). Pode dispor de uma infra-estrutura de máquinas, veículos, armazéns, etc. (bens comuns). Muitas vezes, a principal função é a quebra de um monopólio. Os beneficiados são os sócios, em geral no meio rural, agricultores autônomos. Tem tanto interesse em aumentar os membros para ter um maior movimento, quanto, ao contrário, em diminuir o número dos mesmos para reservar as vantagens para poucos, mas com uma produção maior.
Em geral, as cooperativas mesclam suas ações como estratégia de sobrevivência no mercado competitivo, por isso é comum funcionarem também como instância de mediação, em particular, nas agências de desenvolvimento do Estado, nas quais existem possibilidades de prestação de serviços e negócios.
Rech (1995, p. 44) ratifica que “[...] atualmente a maioria das cooperativas existentes no meio rural é mista”, mas destaca a importância da comercialização, que em muitos casos funciona com setores de beneficiamento e de industrialização.
No caso estudado não é diferente: a Cooperativa também funciona como uma associação de mediação, pois avaliza os cooperados e faz a intermediação política com os governos e os agentes financeiros para captar recursos e projetos com o objetivo de atender às atividades-fim dos seus sócios. Os projetos, em geral, têm a finalidade de introduzir novas tecnologias – com foco na qualificação da produção – e renovar máquinas e equipamentos.
Os depoimentos revelam que o cooperado sabe da sua responsabilidade e reconhece que o sucesso do empreendimento depende da sua ação individual e da ação coletiva do grupo, mas também de outros atores envolvidos no processo de produção, como os funcionários da fábrica:
Os funcionários têm a ver com a qualidade do produto. Não quer dizer que eles não se entendam. A questão é o produto que exige uma qualidade. É a questão da especialidade do produto. O exemplo é que eu tenho minhas tarefas. Os sócios não têm como assumir essa tarefa, porque já têm suas próprias atividades que têm que dar conta na sua propriedade. Tenho que tirar o leite, roçar o pasto, e, se não faço isso, fica tudo bagunçado, daí a ideia de contratar pessoas com experiência profissional para dar conta daquele produto. É mais interessante para a cooperativa, restando ao cooperado a tarefa de fornecer o leite com a qualidade necessária (Cooperado 2).
Assim como os associados reconhecem a necessidade de pessoas qualificadas para fazer funcionar a agroindústria, entendem que precisam manter relações com os agentes “intermediários”, como o MPST, movimento que, além de alinhar o grupo ao projeto de desenvolvimento regional, reúne força política para negociar recursos nas agências de fomento do setor público e privado.
Essa articulação foi reconhecida pelos associados na assembleia de 1994, quando se pronunciou o seu presidente6: “[...] de igual forma agradecer a contribuição do Movimento pela Sobrevivência na Transamazônica, especialmente em relação à viabilização da vinda da equipe da UFPA”. A parceria com a Universidade Federal do Pará (UFPA) foi apenas uma das várias parcerias efetivadas pela cooperativa ao longo das décadas, em particular, com foco na transferência de tecnologias e na captação de recursos e projetos.
Os órgãos sociais da Cooperativa são os espaços de decisão, mas também de controle: a Assembleia Geral, o Conselho de Administração, o Conselho Fiscal e o Conselho Consultivo. Esse arranjo organizacional da cooperativa – o controle, a transparência e a autogestão – facilita a construção de uma relação de confiança entre os associados e goza de credibilidade.
O Conselho Consultivo funciona como “salvaguarda”, uma espécie de conselho guardião dos bons costumes e da ética moral, conforme o capítulo VIII, artigos 58 e 59, do Estatuto Social (COOPETRA, 1993), que trata da participação da Paróquia Evangélica de Rurópolis na Cooperativa e estabelece o que será feito em caso de dissolução.
O Conselho Consultivo foi a forma encontrada pelo grupo para encaixar os dois pastores da Igreja Luterana, Lauri e Nilo, na estrutura de decisão da Cooperativa. Mesmo não sendo associados, são os principais incentivadores. Cooperado 3 relata a importância dos pastores na vida da cooperativa:
A cooperativa teve crises desde o início, mas, enquanto os pastores Nilo e Lauri estiveram por aqui, eles conseguiram impor [...] algumas ideias que serviram como guia e freio. E também [ensinaram] como transformar a cooperativa [...] em uma organização e não apenas uma empresa (Cooperado 3).
A Assembleia Geral, como em outras organizações de mesma natureza, é o órgão supremo da Cooperativa conforme o Estatuto Social. A administração da sociedade é realizada pelo Conselho de Administração, cujos membros respondem solidariamente pelos prejuízos resultantes dos seus atos, se agirem com culpa ou dolo.
O Conselho de Administração pode contratar um gerente que, entre outras atribuições, assessora esse conselho nas questões relativas ao planejamento e à organização das atividades da Cooperativa, bem como opina e sugere as mudanças que julgar adequadas ao bom desempenho e ao cumprimento dos objetivos da Cooperativa. Na ausência do gerente, assume essas funções a Diretoria Executiva do Conselho de Administração, que é coordenada pelo presidente.
Apenas uma vez na história da Cooperativa, a gestão administrativa ficou sob a responsabilidade de um gerente, Cooperado 17, associado da cooperativa. O gerente teve dificuldades para executar as ações deliberadas pelo Conselho de Administração. O cargo de gerente não tinha poder. O poder está diretamente associado a quem gerencia os recursos disponíveis na organização. Nesse caso, a Assembleia Geral outorga ao presidente a função da gestão dos recursos, ele é “gerente”.
As análises indicam que, nesse tipo de estrutura administrativa, num grupo pequeno com relativo equilíbrio de poder entre as estruturas de decisão, a função de gerente fica deslocada se não se encaixar no planejamento. As deliberações são da assembleia geral, como parte integrante da gestão.
Na Cooperativa, as atividades-fim são decididas pelo Conselho de Administração e pelo presidente. A Cooperativa não tem uma cultura de planejamento estratégico, com objetivos claros e com divisão de tarefas. Apesar dos apelos do presidente, que reivindica uma participação maior dos associados, a estrutura não permite distribuir o poder:
Na maioria das vezes, os sócios não se comportam como dono da cooperativa. Tudo é devidamente discutido e aprovado em Assembleia Geral, mas na hora da execução é um problema. Mesmo as dificuldades de recursos, que caberia a cada um dos participantes no projeto [...] (Cooperado 4, presidente da Cooperativa).
Uma situação semelhante foi observada também por Olson (1965) em sindicatos norte-americanos: os membros desejavam que o nível de engajamento fosse elevado, mas individualmente não possuíam motivação para participar ativamente. Olson entendeu perfeitamente que a maioria dos líderes sindicais indicava a apatia dos membros como um dos maiores problemas.
Em relação aos direitos e deveres dos associados, existem duas outras situações que chamam a atenção. Na alínea “a” do item do Estatuto Social que trata do “dever e da obrigação do associado”, está expresso que faz parte dos deveres e das obrigações dos associados “[...] entregar a sua produção à cooperativa e realizar com ela as demais operações que constituam seus objetivos econômicos e sociais [...]” (COOPETRA, 1993, p. 16).
O artigo 53 do Estatuto Social traz uma situação curiosa, que expressa, a nosso ver, o caráter autoritário das regras: o associado será eliminado da sociedade caso “deixar de entregar sua produção à cooperativa [...]” (COOPETRA, 1993, p. 16).
Ressalte-se que a elaboração dos estatutos das sociedades cooperativas seguia a legislação da época, portanto, os estatutos eram carregados de conteúdo e de expressões autoritárias. Na opinião de um dos sócios fundadores, desde o início existiam dificuldades no trabalho comum:
Isso é uma coisa complicada, por questões regionais, a coisa é assim. Não adianta fugir disso, mas, como a Igreja Luterana tem, na sua maioria, descendentes de europeus, para não dizer sulistas. Então quem fazia parte da Paróquia eram só descendentes de europeus, ou sulistas. E esse grupo tem um entendimento; é como outros grupos formados por cearenses ou maranhenses, por exemplo, eles fecham mais fácil numa proposta, por isso na época nós fizemos parte desse grupo e esse grupo foi quem decidiu tudo em relação ao projeto da cooperativa e do destino dos recursos (Cooperado 1, primeiro presidente da cooperativa).
Quando questionados sobre a importância do grupo sulista como fator de facilitação da cooperação, os associados não atribuem a persistência da cooperativa a esse fato, como podemos observar nesta fala:
O que parece é que o pessoal que não é do Sul está fornecendo mais leite do que o pessoal do Sul, ou seja, quem sustenta mais ela [a Cooperativa] é aquele fornecedor mais forte, porque as pernas dele é o leite. Na fundação, sim, teve uma participação maior do pessoal do Sul, teve uma maior influência, mas depois não (Cooperado 5).
Para a maioria dos cooperados, a Igreja Luterana foi importante no processo de fundação da cooperativa. Ajudou a conseguir os recursos para financiar a construção da fábrica (laticínio) e ajudou a preparar o grupo para a gestão equilibrada. Reforçou a educação baseada nos princípios da religião e treinou o grupo para a gestão dos bens coletivos. A Igreja Católica também teve sua influência no processo de organização dos agricultores da região, em particular a partir das Comunidades Eclesiais de Base (CEB):
A igreja funcionava como um fiscal e tinha um compromisso com a cooperativa, afinal foi a igreja um dos maiores incentivadores e devia, de certa maneira, uma justificativa do seu bom funcionamento. Existia um compromisso “moral” com o exterior em relação ao sucesso do projeto por ela animado e financiado (Cooperado 3).
Os pastores da Igreja Luterana participaram ativamente das reuniões do Conselho de Administração, e um deles chegou a assumir a função de vice-presidente da Cooperativa, porém aos poucos foram se retirando da gestão da Cooperativa e outros atores assumiram suas tarefas. Para os cooperados, as igrejas tiveram um papel importante no aprendizado dos agricultores na fase inicial, em particular, na organização das ações coletivas, como mutirões e outras ações.
Na Cooperativa, a colaboração recíproca entre os cooperados facilita o cumprimento dos objetivos, dentre os quais se destacam a organização coletiva da produção e a qualificação do produto, a fim de aumentar a competitividade no mercado e o valor agregado (COOPETRA, 1993). Porém, a manutenção dos grupos coletivos de cooperação, inclusive a sobrevivência da Cooperativa, dependeria de fatores internos e externos ao grupo.
Observamos que a Cooperativa foi beneficiada com projetos visando aumentar a qualidade do seu principal produto, o queijo muçarela, e consequentemente melhorar o desempenho no mercado consumidor. De acordo com o presidente da Cooperativa, uma parte dos projetos não foi bem-sucedida. Os motivos são variados, inclusive, insuficiência de mão de obra disponível para novas frentes de trabalho no estabelecimento.
Os cooperados apresentaram muitas dificuldades na gestão do projeto “Manejo de Pastagens e Melhoramento Genético”, revelando velhos problemas na agricultura familiar em relação à adoção de novas práticas. Dos quinze cooperados selecionados para participar do projeto de implantação da capineira8, de melhoramento nas instalações de coleta do leite e de introdução de inseminação artificial, apenas três conseguiram colocar em prática as ações previstas no projeto.
As dificuldades apontadas têm relação estrita com as práticas tradicionais dos agricultores familiares, que historicamente tomam suas decisões de forma autônoma, considerando a disponibilidade dos recursos nos estabelecimentos, em particular, a força de trabalho.
Esse tipo de dificuldade pode ter contribuído para o “fracasso” de muitas associações e cooperativas no Pará e na região de estudo. Mas a Coopetra resistiu por duas décadas e enfrentou vários ciclos de crises. As crises quase sempre estavam associadas à comercialização da produção e à gestão. Em várias situações, a cooperativa teve o queijo apreendido porque não tinha autorização para comercialização fora do município de origem. Nesse caso, fatores externos, como as exigências da vigilância sanitária, são um desafio para os agricultores familiares.
A confiança e a união são temas recorrentes nas falas dos associados. A construção dessa relação pode ter explicação no tamanho do grupo, setenta e duas famílias (72). Quando se perguntou a que atribuem a persistência da Cooperativa em meio a tantos fracassos e com um histórico de crises econômicas desde a fundação, os cooperados destacaram que “é a união do pessoal. Muita união, quando tinha os problemas, se debatia os problemas, as pessoas se uniam e resolviam os problemas” (Cooperado 6).
União e confiança foram construídas ao longo de duas décadas de experiências vividas pelos associados, em uma relação concreta, facilitada, em nossa opinião, pelo tamanho do grupo e pela possibilidade da cooperação direta. Os cooperados conseguem conhecer com quem se relacionam, seu endereço e sua reputação.
Axelrod (1984) destaca que a cooperação não precisa de palavras, porque as obras dos cooperados falam por eles. Da mesma forma, não há necessidade de confiança entre os jogadores: a reciprocidade pode ser suficiente para decidir a deserção ou a cooperação: tit for tat (olho por olho). Mas o fato de o grupo ser relativamente pequeno favorece as interações contínuas entre os membros e, segundo esse autor, “[...] torna possível uma cooperação baseada na reciprocidade” (AXELROD, 1984, p. 125).
As decisões tomadas de forma direta olhando um para o outro nos espaços legítimos da cooperativa facilitam a construção de relações de respeito e de confiança entre os associados. As rodas de conversas, as reuniões sindicais9, os churrascos e as festividades religiosas são espaços privilegiados de comunhão do grupo.
Para Crúzio (1999), um dos problemas enfrentados pelas cooperativas refere-se ao paradoxo da superposição dos poderes deliberativo e executivo. Afirma o autor: “Os problemas relacionados com a dimensão da estrutura cooperativa começam com os paradoxos das superposições dos poderes deliberativo e executor em relação ao poder máximo da ʻAssembléia-Geral de Sóciosʼ” (CRÚZIO, 1999, p. 22).
Na Coopetra, essa sobreposição existe, mas é equilibrada pelas regras do Estatuto e pelas regras consuetudinárias construídas no cotidiano. O poder deliberativo do Conselho de Administração estende-se até a aplicação dos recursos disponíveis na organização, como podemos ver no objetivo: “programar as operações e serviços, estabelecendo qualidade e fixando quantidades, valores, prazos, taxas, encargos e demais condições necessárias à sua efetivação” (COOPETRA, 1993, p. 8).
Em outro parágrafo, é possível constatar que existe uma concentração de poder no Conselho de Administração da organização, que é autorizado a “contrair obrigações, realizar transações, adquirir, alienar e onerar os demais bens móveis, ceder direitos e constituir mandatários” (COOPETRA, 1993, p. 9).
O “[...] Conselho termina ultrapassando o limite da função deliberativa. Ou melhor, em vez de executar as determinações da ʻAssembleia-Geral de Sóciosʼ, o Conselho acaba decidindo sobre os fins dos recursos gerais da cooperativa” (CRÚZIO, 1999, p. 22). Embora a democracia nas cooperativas seja um ponto forte, há limites em função do mercado, que impõe decisões cotidianas à gestão dos compromissos assumidos. Por isso, o Conselho Administrativo, composto por um grupo menor de associados, é o espaço mais usado para as decisões.
Schneider (2003, p. 182), ao tratar das causas da crise na democracia cooperativa, ressalta que “há a tendência, com a expansão das cooperativas, da transferência do poder das mãos dos coproprietários [associados] para as mãos de executivos de elevada qualificação [...]”.
Não é o caso da cooperativa em estudo. Embora seus funcionários possuam qualificação para o processo de produção do queijo, constatamos que todos eles possuem também algum grau de parentesco com o grupo de associados, ou seja, são coproprietários – são filhos, sobrinhos ou esposas – que cuidam da fábrica. Por conseguinte, possuem alto grau de interesse pela manutenção da organização.
A participação dos associados caracteriza-se como indireta e delegada, e a Assembleia Geral é seu maior espaço de participação, nem sempre soberana nas decisões. Segundo alguns autores, a participação dos associados na Assembleia Geral é um problema para a democracia cooperativa (CRÚZIO, 1999; SCHNEIDER, 2003); na nossa pesquisa, porém, isso não aparece como problema da Coopetra, ao contrário, o arranjo político entre as estruturas de decisão e de poder ajuda a equilibrar os limites econômicos dos associados.
O Conselho de Administração e a Diretoria Executiva são compostos pelo “presidente, o vice-presidente e o secretário” (COOPETRA, 1993, p. 6). O presidente exerce o maior poder nas decisões, principalmente porque ao presidente competem várias tarefas, inclusive a de negociar politicamente benefícios destinados aos cooperados, embora isso não conste no Estatuto Social. O bom negociador legitima o poder que lhe é conferido.
As observações indicam que não é fácil ser presidente nesse tipo de organização, principalmente porque é difícil mobilizar recursos capazes de cobrir despesas, o que pode explicar o desânimo na disputa pelo cargo. Foi possível constatar que os associados, em geral, não têm interesse em assumir a função de gestor da cooperativa. Os motivos alegados são os conflitos com os afazeres na unidade de produção e o pouco tempo para cuidar da cooperativa. Para um associado, “não é uma vida fácil, tem que ser pau pra toda obra” (Cooperado 2).
É uma grande responsabilidade, como revela o presidente: “Na hora que falta um funcionário, como hoje que faltou o motorista, tem que dar um jeito de recolher o leite, porque os fornecedores (sócios e não sócios) têm seus compromissos, e a cooperativa é parte importante na vida dessas pessoas” (Cooperado 4, presidente da cooperativa).
O presidente legitima seu poder por seus feitos e pelas soluções dadas aos problemas apresentados pela organização. Quando o presidente reclama do acúmulo das tarefas desempenhadas, por um lado, sua função parece exigir um sacrifício, por outro, garante sua própria sobrevivência enquanto liderança.
Lazzaretti (2007, p. 78), ao analisar os fatores inibidores e facilitadores da ação coletiva em um assentamento rural do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), concluiu que “o sucesso desses empreendimentos depende muito da presença das lideranças, que são geralmente experientes politicamente e possuem capacidades de organização”. A presença de lideranças na gestão da cooperativa desde a fundação parece encaixar-se bem nessa tese.
Um dos fundadores da Cooperativa, membro da Igreja Luterana que participou da elaboração da proposta da cooperativa e de sua fundação, revela como os feitos do presidente constroem seu reconhecimento enquanto liderança capaz de manter a coesão necessária à manutenção do grupo:
No meu entender, depois que o [Cooperado 4] assumiu, deu uma melhorada, mas eu mesmo achava que ia piorar com a gestão dele. Ele já pertenceu a outras associações e lá não deu muito certo, por isso fiquei desconfiado. Mas acho que por ter errado em outras experiências também está aprendendo. Ele é um bom presidente (Cooperado 2).
O tamanho do grupo – setenta e duas famílias (72) – pode explicar por que a confiança e a solidariedade aparecem como valores que estão na base da cooperação. Para um dos entrevistados, aproximadamente “90% dos associados têm entre si algum tipo de relação. A amizade é a mais comum, o que facilitou cada um conhecer o outro e estabelecer a confiança ou desconfiança” (Cooperado 7).
Para Sabourin (2009), toda ligação entre dois agricultores é marcada, ao longo do tempo ou em um dado momento, por vários tipos de relações; é essa combinação heteróclita e, em certa medida, contingente que nos parece poder melhor explicar e caracterizar a natureza do “vínculo de proximidade”.
Esse vínculo pode explicar a aparente ausência de conflitos nas Assembleias Gerais e nas reuniões dos Conselhos de Administração e Fiscal. Os conflitos podem estar disfarçados ou diluídos nas opiniões divergentes sobre determinados temas. Por exemplo, sobre os critérios que regulam quem participa dos benefícios ou dos projetos conseguidos pela cooperativa. “Passamos por situações onde os ânimos já foram bem alterados no meu primeiro mandato como presidente, mas agora, começando o terceiro, as coisas estão bem diferentes” (Cooperado 4, presidente da cooperativa).
O presidente revelou que não havia consenso sobre o seu nome para a presidência da Cooperativa em seu primeiro mandato, 2006. Mas a decisão foi influenciada pela chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) ao governo do Estado porque a filiação do presidente ao partido poderia ajudar a solucionar alguns problemas enfrentados pela cooperativa naquele momento, inclusive o registro no Sistema de Inspeção do Estado (SIE).
A vida concreta da cooperativa é resultado de um constante processo de negociações com diversos atores, incluindo as agências de desenvolvimento do Estado, agentes financeiros e outros. Para Ramírez e Berdegué (2003), as ações coletivas no meio rural dão-se num novo cenário, que exige a capacidade de negociar com outros atores da comunidade e do território em prol do desenvolvimento.
Desde a sua fundação em 17 de janeiro de 1993, a Cooperativa busca desenvolver e ajustar a organização às regras de mercado, tentando nele inserir o produto de que dispõe. Mas seu limite está associado ao processo de produção, que é realizado de forma autônoma pelos agricultores.
A autonomia dos agricultores é relevante para o sucesso ou o fracasso da ação coletiva. A fábrica depende única e exclusivamente do desempenho da produção dos agricultores, que mudam de estratégias sempre que percebem ameaças à sua reprodução, deixando o projeto coletivo em segundo plano, a exemplo de um dos melhores produtores de leite e sócio fundador da cooperativa. Ele largou a atividade quando se viu sozinho, depois que os dois filhos resolveram deixar a propriedade.
O presidente investiu esforços para o sucesso do projeto coletivo. Abandonou sua propriedade e foi morar nas dependências da Cooperativa para dar conta das tarefas como presidente. Para ele, “A organização tem que produzir renda para se manter e fazer a diferença junto aos associados. Muitas entidades não vão para frente porque, ao invés de produzir renda, vive pedindo ajuda aos associados” (Cooperado 4, presidente da Cooperativa).
Os benefícios, financeiros e de serviços, resultantes da cooperação do grupo, são a principal motivação para a sustentação da organização. Os resultados financeiros são obtidos com a comercialização dos produtos, e muitos serviços e projetos são conquistados graças a negociações entre as lideranças e as agências do Estado.
Cooperada 8, sócia fundadora, revela sua satisfação com os resultados econômicos da organização, embora reconheça as limitações: “[...] o que faz essa cooperativa estar ainda é o empenho de todos, a vontade de se manter funcionando e também a renda, que é gerada com esse dinheirinho do leite. A gente está fazendo esforço. Se ela acabar vai acabar o dinheirinho de muitas famílias [...]” (Cooperada 8).
A distribuição dos benefícios, em especial dos valores integralizados com a venda do leite, é destacada pelos associados como um dos fatores mais importantes para explicar a persistência da organização. Todo final de mês, a cooperativa realiza os pagamentos aos cooperados, de acordo com o que cada um tem integralizado na Cooperativa.
O “dinheirinho” citado, na prática, é parte dos recursos gerados na cadeia produtiva do leite, que, transformado em queijo, é comercializado na região e no Estado do Pará para voltar ao associado. A cooperação do grupo começa com a decisão de participar do projeto coletivo, passa pela organização da produção no estabelecimento rural e conclui-se com o produto final na fábrica.
As agroindústrias de base familiar sempre enfrentaram dificuldades com os fornecedores da matéria-prima. Um dos motivos são as regras rígidas da vigilância sanitária, que não se adaptam às dinâmicas da agricultura familiar, em particular as dificuldades na adoção de novas tecnologias.
Santos et al. (2010, p. 13) constataram a resistência dos agricultores à adoção de novas tecnologias, o que provoca impactos negativos no desempenho econômico da atividade: “[...] a baixa adoção de tecnologias termina tendo impactos negativos para o desenvolvimento da pecuária leiteira no Estado do Pará, com consequências diretas sobre a competitividade do leite e seus derivados produzidos na região [...]”.
Estudos realizados sobre as agroindústrias familiares rurais por Guimarães e Silveira (2007) mostram a heterogeneidade de situações que envolvem o processo de produção, comercialização e agregação de valores. Os autores questionam as políticas públicas voltadas para esse público, que possui suas especificidades, e afirmam que a agroindústria familiar rural não pode estar submetida às mesmas regras da grande indústria transformadora de matéria-prima:
A falta de distinção entre as diferentes situações técnico-econômicas e sócio culturais envolvendo o processamento de alimentos de origem vegetal ou animal, inadvertidamente agrupadas sob a terminologia agroindústria familiar rural, tem influenciado negativamente as políticas públicas de estímulo à agregação de valor aos produtos da agricultura familiar em sua concepção e implantação. Tais políticas, influenciadas pela falta de clareza conceitual de qual público pretendem atingir, resultam em ações do poder público e comportamento dos serviços de apoio técnico ou gerencial que tratam como homogêneo um universo heterogêneo com efeitos sociais e econômicos diferentes dos pretendidos (GUIMARÃES; SILVEIRA, 2007, p. 1).
As agências de fomento do Estado, como o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), o Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Agropecuário e da Pesca (Sedap) do Pará, sempre apoiaram iniciativas de produção coletivas, em particular, as associações e cooperativas. Existem iniciativas que contribuem para a organização das cooperativas com treinamentos em gestão, cursos sobre planejamento estratégico, contabilidade financeira e outros.
A Coopetra, associada a outras organizações, ao longo dos anos, sempre treinou seu quadro de lideranças, principalmente, em negociação política. Essa formação tem garantido a participação da organização nas rodadas de negócios com as agências. Os associados reconhecem o esforço dos parceiros, mas também sabem que muito depende da decisão deles mesmos:
O governo ajudou muito a cooperativa. O [Cooperado 4] correu muito, muito atrás. O Sebrae e Sagri. Todos ajudaram a cooperativa, um pouquinho de cada e não foi nada perdido. Quem aproveitou sabe que ajudou muito. Eu mesmo tive muito proveito dessa ajuda. Eu participei de muitos cursos que ajudaram muito: cerca elétrica, inseminação artificial, manejo de pastagens, limpeza de pasto e outros [...]. Sempre tem aqueles que não aproveitam, acham que é besteira, não põem em prática o que aprendem (Cooperada 8).
O presidente tem liderança política e habilidades para negociar no contexto externo da organização. Os associados escolheram-no, em 2006, entendendo os desafios da gestão e o novo momento da Cooperativa, em particular, com a chegada da esquerda ao governo do Estado do Pará. É uma liderança capaz de articular diferentes atores e negociar com eles, focado nos objetivos do projeto coletivo e da organização.
Lembramos que o poder deve ser considerado como uma força estruturante necessária para conseguir a cooperação dos membros da organização que têm interesses nem sempre convergentes (CROZIER; FRIEDBERG, 1993). Num apêndice da edição de 1971, Olson (1998, p. 159) também destaca “[...] a importância do papel do entrepreneur ou do dirigente como auxílio capital na organização de esforços conjuntos para a conquista de um bem coletivo [...]”.
O artigo analisa a persistência da ação coletiva na Cooperativa Agroleiteira da Transamazônica (Coopetra), em Rurópolis, no Oeste do Estado do Pará, e as estratégias adotadas pelos agricultores familiares para manter a agroindústria e a cooperação que viabilizam o seu modo de vida.
As “trocas de diárias”, os mutirões e as revendas de produtos coletivos permitiram, na fase inicial, fazer experiências de ação coletiva e passar pela aprendizagem da participação. As revendas foram as primeiras formas de comercialização, que possibilitaram aos agricultores conhecer as regras de mercado e sua dinâmica.
A Coopetra persistiu porque é o resultado de construções concretas, estruturadas com base em uma rede de relações de interesses individuais e coletivos e na negociação entre diferentes atores. Mas também é uma organização de pessoas que buscam, em bases democráticas, atender as necessidades econômicas dos seus membros (PINHO, 1982).
A manutenção da ação coletiva foi possível, porque os agentes cooperaram, engajaram-se no empreendimento comum, sabendo que o resultado seria a contribuição da ação de cada um, mesmo com regras pouco flexíveis, mas democráticas e participativas.
As lideranças são militantes formados na ideologia da solidariedade e da fraternidade, estando dispostas a “correr riscos”’ e a abrir mão de projetos pessoais. Cooperado 1 ajudou a fundar a Cooperativa e nela trabalhou nove (9) anos como presidente. Cooperado 4 optou por mudar-se para o terreno da cooperativa, para dedicar-se de perto às atividades da agroindústria. Abandonou seu projeto pessoal em função do projeto coletivo.
A Coopetra, desde sua fundação, teve sempre uma liderança como presidente, todos com experiência política, bons negociadores e organizados. Esse perfil facilitou a estruturação das relações de poder com as demais organizações e, ao mesmo tempo, garantiu benefícios do setor público e privado. O crédito rural e a captação de recursos de fomento contribuíram para a persistência da Coopetra na região. Desde sua fundação, a Cooperativa sempre recebeu incentivos externos, muitos deles sem obrigação de devolução, como os recursos para a construção da fábrica de laticínios.
Embora Axelrod (1984) tenha demonstrado em seu estudo que a reciprocidade pode gerar a cooperação sem a necessidade de confiança, não é o que se observou neste estudo de caso. Ao contrário, os entrevistados destacam a importância da confiança na manutenção da cooperação. A confiança mútua não atrapalha o funcionamento normativo da cooperativa, que a cada ano renova dois terços dos membros do Conselho Fiscal, o principal órgão de controle da cooperativa.
A cooperativa pratica a autogestão e promove a democracia. Embora os trabalhadores contratados não sejam sócios – o que, segundo Singer (2002a), descaracteriza uma organização de economia solidária –, na Coopetra, todos os funcionários têm alguma relação de parentesco com os associados: são filhos, esposa, genro e outros. Possuem contrato de trabalho com a organização, mas estão motivados e interessados no sucesso do empreendimento. Nas crises, dispõem-se a fazer algum tipo de sacrifício para manter a cooperação funcionando.
Ainda que não participem das decisões, os funcionários são sempre consultados quando o assunto é a fábrica. Os funcionários declaram confiar na gestão e avaliam como positiva a maneira como os gestores conduzem a organização. O comando da fábrica dá-se de forma integrada, e cada funcionário conhece bem suas tarefas, tem ciência da disciplina e da hierarquia. Os funcionários sabem que a manutenção do empreendimento depende do esforço pessoal e do bom desempenho das tarefas.
A cooperação é resultado da participação direta dos associados, dos diretores e dos funcionários. A produção autônoma, o beneficiamento e a gestão da agroindústria dependem de cada ator envolvido na cadeia produtiva. Todos, funcionários e cooperados, dependem do bom funcionamento e da regularidade dessa cadeia, o que garante a distribuição dos benefícios gerados e a manutenção do grupo como organização.
A Coopetra, como outras organizações associativas com fins econômicos, foi fundada com o propósito de resolver problemas concretos dos agricultores, entre os quais a comercialização dos produtos e a geração de renda. Na Coopetra, a organização da produção, o beneficiamento e a transformação principalmente do leite em queijo foram os resultados alcançados.
A participação, um problema de ontem e de sempre para as cooperativas com autogestão (SCHNEIDER, 2003), pode ser caracterizada como ativa na Coopetra. Os associados definem a participação como “forte”, porque acreditam nas instâncias de decisão da cooperativa – Assembleia Geral, Conselho Administrativo e Conselho Fiscal – como espaços comuns, onde se decide sobre a vida da organização de forma democrática.
As observações sugerem que o grupo compreende o jogo das relações de poder entre associados, diretores e funcionários no interior da cooperativa, distinguem interesses individuais e coletivos e esforçam-se para manter distância das disputas políticas partidárias. Os temas de interesse político são filtrados pelos diretores e não entram na agenda formal da organização, mas podem ser discutidos nos espaços informais: rodas de conversas, nas horas do almoço comum e nas “prosas” antes da agenda formal. Os conflitos entre associados e diretores não são abertos, embora existam.
A gestão administrativa de todos os contratos da cooperativa é da responsabilidade do Conselho de Administração, que coordena as atividades administrativas de compras, a comercialização e os pagamentos. Nesse espaço, a participação das lideranças é indispensável para a realização dos ajustes necessários e para o equilíbrio da gestão.
Por fim, os fatores que influenciam diretamente a persistência da cooperativa são: a distribuição dos benefícios, em especial os valores integralizados com a venda do leite; a confiança construída no grupo; as diferentes formas de ajuda mútua mantidas pelos associados; as relações de poder equilibradas em função da participação direta e ativa dos associados nas instâncias de decisão; a experiência política das lideranças em negociar e filtrar as pressões do contexto, interno e externo à organização, garantindo assim os ganhos diretos e indiretos. Concluímos que o conjunto desses fatores inibiu a atuação do free rider, ou seja, do oportunismo no interior da cooperativa.