Territórios e transições para a sustentabilidade
O valor da floresta: trajetória histórica dos Paiter Suruí no uso dos recursos florestais na Terra Indígena Sete de Setembro
The Forest Value: Historical Path of the Paiter Suruí People on the Use of Forest Resources in Sete de Setembro Indigenous Territory
El valor del bosque: trayectoria histórica de los Paiter Suruí en el uso de los recursos forestales en la Tierra Indígena Sete de Setembro
O valor da floresta: trajetória histórica dos Paiter Suruí no uso dos recursos florestais na Terra Indígena Sete de Setembro
Redes. Revista do Desenvolvimento Regional, vol. 26, 2021
Universidade de Santa Cruz do Sul
Recepción: 30 Junio 2021
Aprobación: 08 Noviembre 2021
Resumo: A expansão da fronteira agrícola brasileira na Amazônia gerou profundas mudanças nos modos de vida de povos e comunidades tradicionais e em suas relações com os recursos naturais. Os grandes projetos de infraestrutura implementados na Amazônia, na esteira do desenvolvimentismo, promoveram usos desiguais e insustentáveis do solo, tornando vulneráveis as populações indígenas e seus territórios. Neste artigo buscamos analisar as transformações na concepção e uso dos recursos florestais pelo povo indígena Paiter Suruí, na Terra Indígena Sete de Setembro. O estudo baseou-se no método documental e as análises foram conduzidas com base no Ecossocialismo (LÖWY, 2013; 2014). Os resultados apontam para uma compreensão crescente, por parte do povo Paiter Suruí, do valor da floresta em “pé” para geração de renda, principalmente por meio do uso da biomassa florestal para sequestro de carbono; indicam também a introdução dessa etnia no debate internacional sobre a crise ambiental e o aquecimento global.
Palavras-chave: Fronteira, Desenvolvimento, Recursos, Sustentabilidade.
Abstract: The Brazilian agricultural border expansion across the Amazon has triggered profound changes in the traditional people and communities’ lives and in their relationships with natural resources. Large infrastructure projects have been implemented in the Amazon under the heading of developmentalism promote unequal and unsustainable land uses, making indigenous populations and their territories vulnerable. In this paper we aim at analyzing transformations in the conception and use of forest resources by the Paiter Suruí indigenous people, in Sete de Setembro Indigenous Territory. The study was based on the documentary method and the analyses was carried out on the basis of Ecosocialism (LÖWY, 2013; 2014). The results point to a growing understanding, by the Paiter Suruí people, of the “standing” forest value for income generation, especially through the use of forest biomass for carbon sequestration; they also indicate the ethnic group introduction into the international debate on the environmental crisis and global warming.
Keywords: Frontera, Desarrollo, Recursos, Sustentabilidad, Border, Development, Resources, Sustainability.
Resumen: La expansión de la frontera agrícola brasileña en la Amazonía ha generado profundos cambios en las formas de vida de los pueblos y comunidades tradicionales y en su relación con los recursos naturales. Los grandes proyectos de infraestructura implementados en la Amazonía, a raíz del desarrollismo, promovieron usos de la tierra desiguales e insostenibles, volviendo vulnerables a las poblaciones indígenas y sus territorios. En este artículo buscamos analizar las transformaciones en la concepción y uso de los recursos forestales por parte del pueblo indígena Paiter Suruí, en la Tierra Indígena Sete de Setembro. El estudio se basó en el método documental y los análisis se realizaron en base al Ecosocialismo (LÖWY, 2013; 2014). Los resultados apuntan a una comprensión cada vez mayor, por parte del pueblo Paiter Suruí, del valor del bosque “en pie” para la generación de ingresos, principalmente a través del uso de biomasa forestal para la captura de carbono; también indican la introducción de esta etnia en el debate internacional sobre la crisis ambiental y el calentamiento global.
1 Introdução
Mudanças climáticas de perfil antropogênico constituem uma das pautas mais prementes da agenda ambiental contemporânea, conforme a Convenção das Partes de 2015, que resultou no chamado “Acordo de Paris”. Tais mudanças representam uma ameaça urgente e potencialmente irreversível para as sociedades humanas e para o planeta, demandando efetiva responsabilidade e colaboração dos Estados, em uma governança global, para a redução das emissões de gases de efeito estufa (VEIGA, 2017). Medidas mitigatórias/redutoras do aquecimento global são necessárias, sem prejuízo de mudanças estruturais na política, na economia e nos estilos de vida.
Ao olhar para o cenário nacional, eivado de contradições, avanços e entraves, Favareto (2019) adverte que para que a ideia de transição ecológica possa ser aplicada é necessário ir além da reedição de medidas tomadas anteriormente. “É preciso, discutir a posição desse tema nos marcos mais gerais das estratégias e prioridades do modelo de desenvolvimento brasileiro que, para ser verdadeiramente novo, precisará superar os termos da experiência já vivida” (FAVARETO, 2019, p. 52). Assim, é imprescindível pensar um novo modelo de desenvolvimento socioeconômico e reconfigurar as relações de produção e consumo. Nesse processo, as boas práticas dos povos e comunidades tradicionais expressas territorialmente podem ser uma baliza tanto para a reflexão quanto para a ação.
Em face de desafios dessa ordem, almejamos comunicar, neste texto, aspectos da experiência do povo indígena Paiter Suruí (também conhecido como suruí e suruí de Rondônia) em relação à gestão e uso dos recursos florestais disponíveis na Terra Indígena (TI) que habitam.
Os suruí residem na Terra Indígena Sete de Setembro, um território de 248.146ha, localizado em áreas dos Estados de Rondônia e Mato Grosso, na Amazônia Legal/Brasil. Estão distribuídos por 28 aldeias, cada qual liderada por um cacique. Possuem um parlamento próprio e um cacique que exerce liderança política sobre os demais. Comunicam-se, em sua maioria, em Língua Portuguesa e na língua nativa conhecida como suruí de Rondônia, língua esta do grupo Tupi e da família linguística Mondé.
O contato dessa etnia com a sociedade nacional brasileira passou a ocorrer a partir dos anos 1960, no contexto da expansão da fronteira agrícola do país e da nova geopolítica para a Amazônia, estabelecida pelos governos militares que tomaram o poder em 1964.
Naquele período foram direcionados vários projetos desenvolvimentistas para a Amazônia brasileira, dentre os quais o Polamazônia, em 1974, o Polonoroeste, em 1981 e, no ínterim dos dois, a abertura da rodovia BR-364. Tais projetos impulsionaram o deslocamento populacional de grande contingente de camponeses do centro-sul do país para a porção da floresta amazônica que corresponde, atualmente, ao Estado de Rondônia, dando início, desse modo, às relações interétnicas marcadas por conflitos, negociações e influências múltiplas.
Nesse processo, a demanda por solos agricultáveis na Amazônia se multiplicou, ao passo que a estrutura do INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária permaneceu incapaz de efetivar a totalidade dos assentamentos requeridos e de subsidiá-los. Ademais, a baixa presença do Estado (ou sua atitude omissa) favoreceu a invasão dos territórios tradicionalmente habitados pelos indígenas. A partir da dominação desses territórios, esses camponeses provenientes do centro-sul do país empreenderam atividades econômicas de médio e alto impacto socioambiental nos territórios tradicionais indígenas, dentre as quais a agricultura, a pecuária e o comércio de madeiras. A maioria dessas atividades foi realizada sem orientação técnica, configurando-se alheias aos parâmetros de sustentabilidade.
Desterritorializados, os suruí recuaram cada vez mais na floresta e só foram contatados pela FUNAI no dia sete de setembro de 1969, sob comando do sertanista Francisco Meireles (MINDLIN, 1985). A assistência da FUNAI, ainda que precária, foi fundamental para evitar a dizimação desse povo indígena, pois, no contato com os migrantes, grande quantidade de indígenas faleceu em função de endemias como sarampo, gripe e pneumonia, ou em função do poder destrutivo das armas de fogo portadas pelos forasteiros. A população suruí sofreu drástica redução demográfica, passando de aproximadamente cinco mil pessoas para pouco mais de 250, conforme dados do professor Gasodá Suruí (informação oral).
Um dos pontos mais críticos desse processo, pelo prisma da etnia aqui considerada, foi a perda de território, uma vez que este representa para os povos e comunidades tradicionais o suporte material para a reprodução da vida e da cultura (VILLARES, 2013), o que transcende seu valor econômico. Para esses indígenas a terra possui valor simbólico especial porque é dela que retiram os alimentos que nutrem o grupo; os frutos trazidos pelas estações são celebrados e compartilhados. Os trabalhos com a terra e com a floresta organizam a vida do grupo em seus variados ritos e gestos cotidianos. A terra já não é simplesmente solo, espaço, mas território dimensionado: físico-territorial, socioeconômico, político-organizativo e simbólico-cultural (SURUI, 2018; MUNDURUKU, 2018; KOLLING, SILVESTRI, 2019).
Ao serem alijados desse território e se tornarem peões em fazendas de gado e café muitos indígenas sucumbiram, pois já não dispunham dos elementos que sustentavam a sensível teia da sua existência. E mesmo quando os conflitos interétnicos se minimizaram, a partir de 1983, quando houve a homologação da TI Sete de Setembro, os suruí encontraram dificuldade em retomar o crescimento demográfico, em razão de doenças e carências nutricionais ocasionadas, sobretudo, pelos novos hábitos de consumo adquiridos a partir da experiência do contato com a sociedade não indígena.
Mesmo com a demarcação da TI, os desafios permanecem intensos, seja em função das transformações culturais ocorridas com o processo interétnico, seja pela falta de segurança social e jurídica vivenciada pelos indígenas – expressões recorrentes do colonialismo que marcou e ainda marca as relações entre povos indígenas e a sociedade hegemônica e da agenda neoliberal sobre a Amazônia, atualmente apoiada pelo próprio Ministério do Meio Ambiente, que atua como um dos agentes dos interesses de madeireiros e garimpeiros.
Em seus processos de resistência, enfrentamento, adaptação e rearranjos sociais na esteira do capitalismo, o povo Paiter Suruí tem se aberto a novos coletivos (LATOUR, 2004) e a novas experiências socioeconômicas e ambientais, como demonstra o projeto “Carbono Florestal Suruí”.
O projeto Carbono Florestal Suruí rendeu à etnia o pioneirismo indígena no uso de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), pautado na Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD). Trata-se de projeto de sequestro de carbono realizado por meio de reflorestamento e descontinuidade das práticas de comércio ilegal de madeira, que vinham ocorrendo em função das pressões econômicas vivenciadas pelos indígenas e das limitadas alternativas de sobrevivência que lhes restaram.
2 Materiais e Métodos
Esta pesquisa foi desenvolvida em abordagem qualitativa. Classifica-se, quanto à natureza, como Pesquisa Básica; quanto aos objetivos, como Pesquisa Exploratória; e em relação aos procedimentos utilizados, configura-se como Pesquisa Documental. No que se refere ao campo do conhecimento, este estudo situa-se nos domínios da História do Tempo Presente, campo desafiador dos estudos historiográficos na medida em que é a “história de um passado que não está morto, de um passado que ainda se serve da palavra e da experiência de indivíduos vivos” (ROUSSO, 1998, p. 63).
Quanto ao conceito de “tempo presente” é pertinente notar que
O conceito remete em sua acepção extensiva ao que é do passado e nos é ainda contemporâneo, ou ainda, apresenta um sentido para nós do contemporâneo não contemporâneo. A noção de ‘tempo presente’ se torna nesse contexto um meio de revisitação do passado e de suas possíveis certezas, como também as possíveis incertezas (DOSSE, 2012, p. 11).
Ainda segundo o autor, a história do tempo presente é campo do conhecimento cuja singularidade reside “na contemporaneidade do não contemporâneo, na espessura temporal do espaço de experiência e no presente do passado incorporado” (DOSSE, 2012, p. 6). Dentre os principais desafios que lhe permeiam podem-se citar: (1) a existência de testemunhas vivas que podem contestar a versão elaborada pelo historiador; (2) documentos ainda não hierarquizados, muitas vezes inéditos e “sensíveis”, que interagem com emoções e, (3) não permite destacar regularidades, continuidades e desdobramentos; (4) inevitavelmente deixa transparecer o lugar de fala do historiador, suas adesões políticas e ideológicas e (5) o fato de o contexto da elaboração da narrativa ser o mesmo contexto social, político e econômico em que se passa o fenômeno. Esses desafios impõem novas exigências à operação historiográfica, a qual deve contribuir para a formação da consciência histórica e para a construção de uma cultura comum, dialógica e pluricultural.
A noção de documento que embasou o estudo foi a defendida pela Escola dos Annales, que o concebe em perspectiva ampliada: como todo e qualquer vestígio de atividade humana, podendo ser escrito, imagético, sonoro e ocupar suportes variados. Entende-se que o documento é produto de uma escolha efetuada, seja pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo, seja pelos próprios historiadores (LE GOFF, 1996).
A crise ambiental, categoria central deste este estudo, foi abordada como problema do tempo presente capaz de comprometer a reprodução da vida em suas variadas formas. Enquanto problema do tempo presente insere-se na esfera política de maneira urgente, demandando novas práticas, pois,
Há alguns anos, quando se falava dos perigos de catástrofes ecológicas, os autores se referiam ao futuro dos nossos netos ou bisnetos, a algo que estaria num futuro longínquo, dentro de cem anos. Agora, porém, o processo de devastação da natureza, de deterioração do meio ambiente e de mudança climática se acelerou a tal ponto que não estamos mais discutindo um futuro a longo prazo. Estamos discutindo processos que já estão em curso – a catástrofe já começa, esta é a realidade (LÖWY, 2013, p. 80).
E ao contrário do que os negacionistas possam afirmar não se trata de alarmismo ou mera retórica, mas de evidência científica (UNMÜBIG, 2016).
O corpus documental do estudo foi composto pelo Plano de gestão etnoambiental da Terra Indígena Sete de Setembro (ECAM, 2008), que apresenta o Programa Paiterey, o projeto Carbono Florestal Suruí (IDESAN, 2011), o relatório de pesquisa “Reflorestamento da Terra Indígena Sete de Setembro: uma mudança da percepção e da conduta do povo Paiter Suruí de Rondônia?” (SURUÍ, 2013), o Protocolo de Kyoto à convenção sobre mudanças do clima (UNFCCC, 1997), o Acordo de Paris (UNFCCC, 2015) e o documento “Transformando Nosso Mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável” (ONU, 2015).
A aquisição dos dados foi procedida eletronicamente a partir do buscador Google e no acervo da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, em Porto Velho.
As análises dos dados coletados foram efetuadas à luz das críticas propiciadas pelo Ecossocialismo (LÖWY, 2014), o qual vislumbra fornecer uma alternativa de civilização pautada em uma política econômica que coloca em primeiro plano as necessidades sociais e o imperativo de restabelecer o equilíbrio ecológico, promovendo a superação do capitalismo com vistas a uma sociedade mais equânime, solidária e sustentável em suas ações.
3 Resultados e Discussão
A Ditadura Militar implantada no Brasil em 1964 iniciou uma nova fase de expansão das fronteiras geográficas e econômicas do país. Sob a égide da doutrina de segurança nacional, do desenvolvimentismo e do slogan “integrar para não entregar” projetos de amplo impacto socioambiental foram implantados na Amazônia brasileira, como o POLAMAZÔNIA, o POLONOROESTE e a construção da BR-364. Esses projetos, sob o mote de promover a integração e o desenvolvimento econômico do país resultaram em controvérsias e degradação ambiental, promovendo um desenvolvimento excludente e prejudicial à cultura dos povos e comunidades tradicionais que habitavam a região desde tempos remotos.
Esses macro-projetos oportunizaram o deslocamento de milhares de pessoas do centro-sul do país para onde se localiza atualmente o Estado de Rondônia. Só a rodovia BR-364 em 1968, abriu cerca de 240.000 km. de terras em Rondônia e iniciou um processo migratório que trouxe cerca de 65.000 pessoas por ano entre 1980-1983, subindo para mais de 160.000 migrantes anualmente no período entre 1984-1986 (MAHAR, 1989).
Nesse contexto, ocorreram os primeiros contatos do povo Paiter Suruí com a sociedade não indígena, na década de 1960, acarretando em invasão de seus territórios, perda de biodiversidade e estabelecimento de relações interculturais complexas e muitas vezes conflituosas. A invasão de seus territórios tradicionais ocasionou impactos diretos sobre o meio ambiente e sobre sua cultura, afetando desde sua forma mais básica de organização social, “o sistema de metades”, até o desenvolvimento de novas racionalidades econômicas, como atesta o projeto Carbono Florestal Suruí, na esteira da chamada “economia verde”.
A sociedade Paiter Suruí é dividida em duas metades, a da roça (íwai) e a do mato (metare). Os integrantes de cada metade possuem obrigações internas próprias, além de colaborar com a outra metade, conforme as demandas por ela apresentada. Os íwai são os responsáveis pela agricultura, pelas colheitas e pela preparação de alimentos e bebidas. Os representantes dos ideais de organização são os que ficam na aldeia, caracterizando-se por um perfil mais sedentário em relação à sua outra metade, os metare. Os metare atuam como caçadores e coletores, celebrando a vida nômade na floresta. A eles se ligam ideias de movimento, aventura e adaptabilidade.
Os dois grupos se encontram uma vez ao ano, em uma festa chamada mapimaí, e então os que estavam como íwai vão para a floreta atuar como metare, e quem estava como metare assume o lugar dos íwai até o próximo mapimaí. Esta rotação cultural é estruturante da vida dos Paiter Suruí, no entanto, a partir do contato com a sociedade não indígena essa forma de organização foi abalada. Primeiramente, a floresta foi destruída pela ação de madeireiros, de modo a tornar impraticável a permanência do grupo metare em seu ambiente de destino.
Com a floresta comprometida já não era mais possível extrair os alimentos suficientes para a sobrevivência e nem os recursos naturais para os presentes (os artesanatos com os quais deveriam presentear os que ficaram na aldeia). Por outro lado, os íwai, ao observarem os colonos em seu território ou em áreas próximas, aprenderam que é possível produzir determinados gêneros agrícolas de valor comercial significativo, comercializá-los e com o dinheiro comprar os bens de consumo que desejarem. Nesse processo intercultural, a reciprocidade, o cuidado em receber os metare e festejar o mapimaí cedeu espaço para preocupações de ordem individualista e capitalista. A dádiva e o cuidado do outro foram, ao menos em parte, suplantados pelo poder do capital, exigindo dessa etnia novas dinâmicas de conservação e adaptação. Conforme Silva e Ferreira Neto (2015), não se pode dizer que se trata de um processo unilateral em que o mercado avança sobre a cultura indígena, pois também é possível notar certos movimentos de aproximação da parte deles. Os suruí, desse modo, têm acionado tanto mecanismos de mudança quanto de estabilidade e resistência cultural.
Nesse meio século de contato eles se monetarizaram, aprenderam as técnicas de agricultura e pecuária ocidentais e, nesse processo, a derrubada de árvores e o comércio ilícito de madeiras - atividade prévia à formação de pastagens e campos de cultivo - mostraram-se vantajosos do ponto de econômico. O dinheiro obtido com o comércio madeireiro simbolizava, além de conforto material, possibilidades de inclusão e aceitação social na sociedade do entorno. Com dinheiro no bolso e caminhonetes caras, os indígenas acreditavam ser possível vencer o racismo estrutural à sociedade brasileira e serem mais bem aceitos na sociedade local.
As três primeiras décadas posteriores ao contato dos suruí com a sociedade não indígena foram marcadas por exploração exacerbada dos recursos naturais. Exploração realizada, em grande medida, com a conivência dos próprios indígenas, que pautados por uma visão utilitarista e centrada na satisfação de interesses e necessidades pessoais, relativizou o valor simbólico da floresta, sua importância para a manutenção da vida e da cultura suruí e do ecossistema amazônico.
Escolhas individuais e coletivas e pressões diversas (não só econômicas, mas também políticas), assim como a violência e coerção de madeireiros, fazendeiros e pistoleiros moldaram usos insustentáveis dos recursos ambientais da TI Sete de Setembro, usos esses que posteriormente seriam repensados.
Nos anos 2000 os indígenas suruí iniciaram uma avaliação sistemática de seu modo de vida, promovendo reflexões críticas sobre sua cultura, sociedade e o ambiente em que vivem (SURUI, 2018). A relação estabelecida com o meio ambiente e a perda de recursos naturais ocorrida nesse processo passaram a ser percebidas como fatores desencadeantes de desigualdades socioeconômicas internas ao grupo, além de conflito e maximização da violência. Essa experiência reflexiva culminou, em 2003, com o Projeto Pamine, que consistiu em uma ação coletiva de reflorestamento efetuado pelos Suruí, com vistas a recompor o ambiente da TI, degradado por ações antrópicas. Conforme Chicoepab Suruí:
O Projeto Pamine teve início em 2003 com o objetivo de reflorestar áreas degradadas e enriquecer áreas de floresta nativa da Terra Indígena Sete de Setembro, na fronteira dos estados de Rondônia e Mato Grosso. Pamine significa, na língua Paiter Suruí, renascer, o ato de refazer algo pela ação do homem. O nome foi escolhido para representar o processo de renascimento da floresta com a ajuda humana. Um renascimento não só das árvores plantadas pelo projeto, mas também da caça, das frutas, do meio ambiente, como era conhecido pelos Paiter Suruí, antes do desmatamento.
Subjaz ao projeto Pamine uma visão ecológica, que entende a vida suruí como dependente dos recursos florestais: sem floresta não há caça, os peixes escasseiam, não há frutos, não há os elementos que possibilitam a confecção de artesanatos, ou seja, a cultura suruí como um todo fica inviabilizada.
O projeto Pamine foi idealizado pelo clã Gamep, que buscou financiamento junto à Associação Metareilá e à Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé. Essas associações contribuíram com a doação de mudas de fruteiras e espécies vegetais como mogno, cerejeira, copaíba e tucumã, para o plantio. O plantio foi realizado em sistema de mutirão, envolvendo homens, mulheres e crianças nas aldeias Lapetanha, Tikãn, Mawira, Rio Quente, Nova, Linha 09 e Linha 10. Organizações não-governamentais como a Aquaverde, da Suíça, apoiaram o projeto, fornecendo assessoria de engenheiros florestais, bem como subsidiando a implantação de um viveiro no local.
O projeto Pamine é um marco na trajetória dos suruí que indica novos rumos de sua gestão territorial e novos usos dos recursos florestais. Com ele fica claro que a floresta tem mais valor em pé do que quando derrubada e convertida em toras de madeira. O valor da floresta, nessa perspectiva, transcende o monetário: é o valor da conservação da vida, da reprodução sociocultural, da harmonização dos homens com os espíritos que habitam o lugar.
Ao perceberem uma existência partilhada, conectada e interdependente dos múltiplos elementos da natureza, os suruí compreenderam ser necessário elaborar seu “plano de vida”, expresso no Plano de Gestão Etnoambiental da Terra Indígena Sete de Setembro, também denominado de “Programa Paiterey”. O Programa Paiterey é um documento expressivo e norteador desse movimento que, a nosso ver, toca numa questão central à nossa sobrevivência como espécie: a correção de nosso relacionamento com a terra.
Há entre os suruí o entendimento de que não só a vida de sua etnia está ameaçada, como também a vida no planeta, se não houver reversão da forma predatória pela qual temos nos apropriado da natureza. Reconhece-se que,
Passaram-se bilhões de anos de construção meticulosa da Natureza para se chegar a toda a complexidade, variedade e esplendor dos seres vivos que hoje povoam a Terra. Foi uma trajetória acidentada, cheia de rupturas e retomadas. Foi a dança da evolução das espécies configurando a biosfera no bojo da geosfera, ao longo do processo de amadurecimento geológico do planeta. [...] Quanto a nós, humanos, tendo começado a emergir do seio da biosfera há cerca de um milhão de anos, chegamos até aqui – àquilo que chamamos de civilização atual – construindo, desfazendo e reconstruindo modos e estilos de vida (HARDING, 2008, p. 11).
O Plano de Gestão Etnoambiental da Terra Indígena Sete de Setembro foi uma estratégia dos indígenas para o enfrentamento dos desafios relacionados ao etnodesenvolvimento, à saúde, à identidade e à cultura. Desde sua implantação, resultados positivos vêm sendo alcançados, como atesta o próprio crescimento demográfico do grupo, que hoje conta com duas mil pessoas, conforme censo efetuado pela própria etnia. O documento expressa o desejo de um modelo de desenvolvimento socioeconômico mais justo, democrático e equitativo. Nele transparece, contudo, certa tensão entre o desejo de vantagem econômica e o de sustentabilidade, como pode ser visto em um dos projetos desenvolvidos sob a égide do referido plano/programa:
Na linha 14 [referência a aldeia localizada na estrada rural 14] vem sendo desenvolvido um projeto onde foi recentemente implantado um cafezal com 100 mil pés. Esse projeto encontra-se em fase de implantação, estando no momento com dificuldades relativas à irrigação, sendo que para o seu plantio a terra foi preparada com mecanização e foram utilizados adubos químicos, seguindo a regra geral para plantios comerciais convencionais. Nesse projeto da linha 14, não há consórcio com outras culturas, nem se seguiu recomendações básicas sobre conservação de solos (ECAM, 2008, p. 22). [Colchetes das autoras].
Ao se basear em agricultura convencional, mais do que contradição, o cafezal supramencionado informa sobre os desafios de se efetivar projetos sustentáveis do ponto de vista ambiental e que sejam capazes, simultaneamente, de gerar rendimento econômico para além das necessidades de subsistência. O desafio em pauta é o de harmonizar a expansão econômica, a justiça social e a conservação ambiental. Conforme Sachs (2002), somente observando estes três eixos pode-se tocar o conceito estabelecido para o desenvolvimento sustentável, “pois o equilíbrio ecológico para o referido desenvolvimento só se sustenta com a base inafastável do social, econômico e ambiental” (SACHS, 2002, p. 35).
A contradição experimentada pelos suruí e exemplificada acima se insere em um contexto mais amplo de ambiguidades. De acordo com Favareto, é pertinente notar que
Durante a primeira década e meia do século 21, ocorreu uma situação ambígua. Houve, inegavelmente, redução no ritmo do desmatamento; mais inovação no aparato regulatório, nas políticas públicas e programas setoriais; e mais ações de controle de abusos e crimes ambientais. Ao mesmo tempo, houve o fortalecimento dos setores produtivos intensivos em recursos naturais; uma agenda de grandes obras de infraestrutura, muitas delas com considerável impacto sobre populações tradicionais e natureza; e um aumento da dependência das fontes fósseis e poluentes de energia (FAVARETO, 2019, p. 51-52).
Para além de seus desafios práticos, a sustentabilidade é um termo polissêmico, cujo significado ainda não é ponto pacífico. Trata-se, contudo, de um horizonte a ser perseguido, de uma utopia necessária (VEIGA, 2017).
Os suruí têm clareza de que diversas sociedades indígenas têm procurado implementar etnodesenvolvimento baseados em processos regionais de curto prazo, meramente econômicos, onde a questão etnotecnológica e o uso dos recursos naturais são desvinculados de preocupações com o impacto ambiental por ele gerado (ECAM, 2008).
É possível perceber que os suruí têm buscado desenvolver atividades econômicas que respeitam o meio ambiente, o que não quer dizer que o conjunto de suas práticas esteja livre de contradições e eventuais equívocos. Um dos pontos polêmicos concernentes às escolhas econômicas do grupo se refere ao “Projeto Carbono Florestal Suruí”, que marca a terceira e atual fase da trajetória do povo paiter suruí quanto ao uso dos recursos florestais.
O projeto Paminee o programa Paiterey foram basilares para o Projeto Carbono Florestal Suruí, o qual se apresenta como qualificado para efetuar a Redução de Emissões de Gases de Efeito Estufa por Desmatamento e Degradação (REDD). A REDD é um instrumento do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) e uma ferramenta prevista no Protocolo de Kyoto para o Desenvolvimento Sustentável.
A ideia expressa pelo Protocolo de Kyoto à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima é que há uma responsabilidade comum pelas alterações climáticas, ou seja: todos os países devem se comprometer na redução da emissão de Gases de Efeito Estufa (GEE), cabendo aos países desenvolvidos uma responsabilidade diferenciada (obrigação de reduzir a emissão de GEE), tendo em vista serem os principais responsáveis pelo aquecimento global, em função de seu desenvolvimento industrial e uso exacerbado de combustíveis fósseis.
O Protocolo de Kyoto manifesta a intenção de conter a emissão de gases causadores do efeito estufa - os principais responsáveis pelo aquecimento. Dentre os gases capazes de contribuir para a elevação das temperaturas no Planeta estão o dióxido de carbono (CO.), o metano (CH.), o óxido nitroso (N.O), clorofluorcarbonos (CFCs) e o ozônio (O.). Em vigor desde 16 de fevereiro de 2005 após ratificação pela Rússia, em 2004, o acordo estabelece meios de converter em dinheiro os benefícios ambientais da redução de tais gases, possibilitando a transferência de recursos aos países em desenvolvimento.
O MDL previsto no Protocolo de Kyoto possibilita que países desenvolvidos cumpram suas metas de limitação e redução de emissões e que países em desenvolvimento recebam investimentos para que se desenvolvam de modo sustentável. Por meio desse mecanismo, espera-se gerar benefícios socioambientais concretos por meio de ativos financeiros negociáveis.
Sabbag esclarece ainda que o MDL tem como pilares: 1) participação voluntária aprovada por cada parte envolvida; 2) benefícios reais, mensuráveis e de longo prazo relacionados com a mitigação da mudança do clima; 3) reduções de emissões que sejam adicionais às que ocorreriam na ausência da atividade certificada de projetos, onde deve ser considerado os tipos de projetos aceitos (SABBAG, 2008).
É importante considerar os limites do instrumento. Se de um lado ele pode ser atrativo para países em desenvolvimento, em razão das possibilidades econômicas que apresenta, por outro ângulo gera a possibilidade de que países desenvolvidos mantenham seus processos produtivos sem efetiva redução de GEE, apenas transferindo recursos aos países de capitalismo periférico para compensar suas práticas ambientalmente incorretas. Esse é um dos principais pontos de crítica ao documento, que nessa perspectiva contribuiria para a manutenção do quadro de dependência e colonialismo que os países do terceiro mundo já enfrentam desde longa data, além de não alterar de fato o modelo de produção, desenvolvimento e consumo, que estão na raiz do problema.
É reconhecido que o problema do aquecimento global é, sobretudo, de causa antrópica e remonta às primeiras experiências de produção de mercadorias de forma tecnificada e em larga escala (Revolução Industrial). Com o desenvolvimento e a utilização de meios de transporte e maquinários que operam mediante combustíveis fósseis, ampliou-se a liberação de GEE na atmosfera, ocasionando o aumento na temperatura terrestre (KERR, 2011).
Os suruí enxergaram no Protocolo de Kyoto a oportunidade de auferir renda por meio do sequestro de carbono. Passaram, então, a coibir de forma rigorosa o comércio madeireiro dentro da TI e a intensificar o trabalho de reflorestamento, com vistas a ampliar a biomassa florestal. As Reduções Certificadas de Emissões (RCEs) de CO. passam a ser contabilizadas como ativo financeiro/crédito, à semelhança de uma moeda que possibilita transações no mercado financeiro.
Com o projeto Carbono Florestal Suruí o povo Paiter Suruí parece ter iniciado uma nova fase de sua política de gestão do patrimônio ambiental, configurando um uso moderno dos recursos florestais, a partir da captação e estocagem de carbono no próprio ecossistema florestal onde estão inseridos. O projeto apresentou-se como alternativa à atividade de exploração madeireira ilícita, na expectativa de que fornecesse recursos para uma existência sustentável, capaz de contribuir com o alcance dos objetivos do Plano de Gestão Etnoambiental da Terra Indígena Sete de Setembro. O principal desafio do projeto foi o combate ao desflorestamento (base para o comércio ilegal de madeiras), ao qual se ligam demandas econômicas e de segurança.
A demanda econômica reporta à necessidade de alternativas de obtenção de renda, considerando uma comunidade que tradicionalmente vive do extrativismo, que não possui indústria, nem escolaridade e formação técnica que lhes permita obter trabalho e renda de maneira sustentável do ponto de vista ambiental e cultural. Pelo prisma da segurança, o desafio consiste em garantir a soberania do povo suruí no domínio de seu território, coibindo as intrusões de madeireiros, garimpeiros e colonos. Diante de tais reptos, o projeto Carbono Florestal Suruí baseou-se em quatro eixos de ação: (1) fiscalização e Meio Ambiente; (2) segurança alimentar e produção sustentável; (3) fortalecimento institucional e desenvolvimento e (4) implantação de um mecanismo financeiro – Fundo Suruí (IDESAM, 2011).
O projeto tem o objetivo de evitar que 13.575,3 hectares de florestas sejam desmatados dentro da TI Sete de Setembro até o ano de 2038, contendo a emissão de 7.258.352,3t de CO.e (Dióxido de Carbono Equivalente) para a atmosfera, contribuindo ainda para a preservação da cultura do povo Paiter Suruí (IDESAM, 2011, p. 6). O projeto estimou um recorte temporal de 30 anos, tendo iniciado oficialmente em nove de junho de 2009. A proposição é da Associação Metareilá do Povo Indígena Suruí, a qual contou com o apoio técnico da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, da Equipe de Conservação da Amazônia (ACT – Brasil), da Forest Trends, do Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas (IDESAM) e do Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (FUNBIO).
Em estudo realizado por Lima (2018), a avaliação do projeto foi positiva:
Os resultados indicam que a captação de carbono em Terras Indígenas proporciona sustentabilidade e traz benefícios socioeconômicos e socioambientais à comunidade indígena, além de ser instrumento para um novo modelo de gestão ambiental de preservação do meio ambiente a partir da Proteção Territorial das Terras Indígenas, que contribui para uma gestão pública mais ecoeficiente de conservação da floresta amazônica.
O projeto Carbono Florestal Suruí tem inspirado outros povos indígenas a desenvolverem ações congêneres e a iniciativa rendeu ao cacique Almir Suruí, idealizador do projeto, o prêmio “Herói da Floresta”, conferido pela ONU em 2013.
É notável o potencial do referido projeto em contribuir para o reflorestamento (mais de 150 mil árvores foram plantadas na esteira do projeto). Todavia, não se pode esperar que ele ou que outros do tipo minimizem de fato o aquecimento global. O que eles minimizam é o desconforto de grandes empresas que não abrem mão de poluir.
A crise ambiental em que nos encontramos se expressa de maneira especial pelo signo do aquecimento global, e é resultado do processo de acumulação do capital – é conjuntural ao sistema capitalista de produção e consumo, de modo que demanda medidas radicais para seu enfrentamento. Para Löwy,
As tentativas de soluções moderadas se revelam completamente incapazes de enfrentar esse processo catastrófico. O chamado Tratado de Kioto está muito aquém, quase infinitamente aquém, do que seria o necessário. O Tratado de Kioto, na realidade, propõe resolver o problema das emissões de gases que causam o efeito estufa por meio do assim chamado “mercado dos direitos de poluir”. As empresas que emitem mais CO2 vão comprar de outras, que poluem menos, direitos de emissão. Isto seria “a solução” do problema para o efeito estufa! Obviamente, as soluções que aceitam as regras do jogo capitalista, que se adaptam às regras do mercado, que aceitam a lógica de expansão infinita do capital, não são soluções, e são incapazes de enfrentar a crise ambiental – uma crise que se transforma, devido à mudança climática, numa crise de sobrevivência da espécie humana (LÖWY, 2013, p. 81).
Nesse sentido, colorir o capitalismo com outras cores, revesti-lo de “boas intenções”, “ecologizá-lo” por meio de uma “economia verde” não será suficiente para superar a crise ambiental em que nos encontramos. Sem prejuízo desta compreensão, é preciso valorizar os esforços dos indígenas e demais povos e comunidades tradicionais em proteger as florestas e os rios. Mais do que nunca, é preciso estar ao lado deles na luta pela defesa dos seus territórios e modos de vida, pois se perdermos suas experiências e epistemologias, estaremos ainda mais distantes da possibilidade de uma vida mais harmônica e justa do ponto de vista de uma ética ambiental.
4 Considerações Finais
A reprodução do capital na fronteira amazônica produziu novas temporalidades e reconfigurou os espaços, imprimindo sobre eles as marcas da contradição: conflitos de ideias, interesses divergentes, temporalidades desencontradas e realidades socioeconômicas díspares. Marcas que evidenciam a violência física e simbólica da expansão do capital por meio da política desenvolvimentista nacional.
No processo de expansão da fronteira agrícola do Brasil, a pressão por terras efetuadas pelos migrantes do centro-sul e as limitações do Estado em provê-la resultaram na invasão do território dos Paiter Suruí e em inúmeros conflitos que se desdobraram nas vertentes agrária, étnica, cultural e econômica. A violência legou saldo negativo para ambos os grupos étnicos (suruí e sociedade nacional não indígena) e resultou, para os primeiros, em urbanização dos modos de vida, desestruturação social e inserção precária no sistema de comércio. O contato interétnico desencadeou mudanças profundas no modo de vida suruí e em suas formas de relação com a natureza, convergindo para práticas exploratórias insustentáveis dos recursos florestais disponíveis na Terra Indígena Sete de Setembro, práticas estas que vêm sendo revistas desde os anos 2000 e se expressam no Programa Paiterey e em projetos econômicos de baixo carbono.
Em análise da trajetória histórica do Povo Paiter suruí quanto ao uso dos recursos florestais notam-se três momentos distintos: o primeiro, que compreende as três primeiras décadas posteriores ao contato (1969-1999) é marcado pela abertura dos suruí ao comércio ilegal de madeiras. Essa prática ocasionou importantes alterações na cobertura vegetal e nos usos do solo (formação de pastagens e organização de agricultura comercial), desestabilizou a vida social da etnia, intensificou as desigualdades socioeconômicas internas ao grupo e restringiu sua cultura, embora tenha gerado riquezas e oportunidades urbanas a uns poucos, que puderam comprar casa na cidade, automóveis, frequentar escolas não-indígenas, viajar etc.
Na quarta década posterior ao contato, nota-se um movimento dos indígenas rumo a uma reflexão crítica sobre os desafios que o novo modo de vida e as novas práticas econômicas ocasionaram em sua cultura. As dificuldades de obter caça, amêndoas e frutos em razão da destruição da floresta tornaram-se fator de incômodo, levando o clã suruí Gamep a apresentar um projeto de reflorestamento, o projeto Pamine, que passou a ser implementado em 2003.
Ao lado do projeto Pamine, discussões sobre a necessidade de desenvolver um projeto de gestão etnoambiental do território ganharam intensidade, levando-os a elaborar em 2008 o Plano de Gestão Etnoambiental da Terra Indígena Sete de Setembro. Esse planejamento, nomeado por eles como “plano de vida” e “programa Paiterey” previu ações para um lapso temporal futuro de 50 anos. Preocupações com a conservação dos recursos ambientais, a segurança alimentar, o controle do patrimônio genético e a geração de renda de forma sustentável passam a figurar no plano e nas lutas políticas do grupo.
Em 2009 os suruí iniciaram o protagonismo de modernas ações, que a nosso ver configuram uma nova fase de sua política de gestão dos recursos ambientais. Nela se destaca o projeto Carbono Florestal Suruí, por meio do qual demonstram incorporar em sua cultura novas racionalidades e estratégias econômicas. Com esse projeto os suruí almejam contribuir para a preservação ambiental e a redução do aquecimento global, bem como assegurar a manutenção de seu modo tradicional de vida e obter renda, praticando o comércio da biomassa florestal convertida em créditos de carbono, na dinâmica da economia verde.
Embora a economia verde seja controversa e o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo previsto no Protocolo de Kyoto seja contestável tanto do ponto de vista ético quanto de sua eficácia para a contenção do aquecimento global, a atitude política dos suruí - de se colocarem em diálogo com diferentes atores sociais, repensarem a gestão de seu território e retomarem o cuidado da floresta - é positiva para uma cultura de transição para a sustentabilidade. Cultura essa que um dia poderá realizar as transformações estruturais necessárias no sistema produtivo para de fato estabelecer uma nova lógica e um novo sistema de convivência ecológica.
Desse modo, as experiências dos Paiter Suruí aqui apresentadas, sobretudo as que se referem à sua inserção no mercado de créditos de carbono, são relevantes para o debate sobre o tema da transição para a sustentabilidade, na medida em que apontam para a construção de uma nova agenda de práticas sociais concernentes ao uso dos recursos naturais, e que podem ser apropriadas e adaptadas por outros povos e comunidades tradicionais, em seus territórios, como forma de geração de renda e de recomposição florestal.
Embora os povos e comunidades tradicionais se destaquem pela conservação dos recursos da biodiversidade, sabe-se que muitos desses territórios são atravessados por agentes que conduzem práticas insustentáveis, voltadas ao lucro imediato. Assim, apresentar-lhes boas práticas já efetivadas, bem como possibilidades de desenvolvimento socioeconômico sustentável é um passo necessário para a transição rumo à sustentabilidade global e a concretização dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS).
No caso estudado, a redefinição das práticas econômicas foi possível devido à avaliação sistemática dos recursos disponíveis, realizada com o apoio de parceiros nacionais e internacionais, o que possibilitou também a avaliação dos impactos sociais causados pelo comércio ilegal de madeiras e a definição de um “projeto de vida”, no qual subjaz a noção da sustentabilidade e a preocupação com o bem comum. Percebe-se, portanto, alinhamento à Agenda 2030 e aos objetivos do desenvolvimento sustentável, em especial aos objetivos de número 7 – Energia limpa e acessível; 10 – Redução das desigualdades; 13 – Ação contra a mudança global do clima; 15- Vida terrestre; e 17 –Parcerias e meios de implementação.
Nesse sentido a Terra Indígena Sete de Setembro pode ser identificada como território em transição para a sustentabilidade. Como movimento, processo, essa transição é marcada pela dialética. Desafios de ordens diversas atravessam seu cotidiano, como a desconfiança nas lideranças, as urgências materiais do presente e as incertezas derivadas da crise gerada pela COVID-19. Por outro lado, práticas sustentáveis já se fazem notar em diversos aspectos da vida daquela comunidade e os recursos provenientes das ações desenvolvidas no rol da nova agenda já se materializam em benefícios da comunidade, como o Centro Cultural e outras melhorias na infraestrutura das aldeias, a redução da pobreza e das desigualdades sociais e o ressurgimento de espécies de animais e pássaros que haviam desaparecido, por força do desflorestamento, e que agora passam a ser avistados novamente nas aldeias e em seu entorno.
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