Territórios e transições para a sustentabilidade

Uma leitura territorialmente situada dos processos de transição agroecológica: ecologia de projetos na Região Serrana Fluminense

A territorially situated reading of agroecological transition processes: ecology of projects in the Sierra Fluminense Region

Una lectura territorialmente situada sobre los procesos de transición agroecológica: ecología de proyectos en la Region Serrana Fluminense

Juliano Luís Palm
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Brasil
Claudia Job Schmitt
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Brasil
Claire Lamine
l’Institut National de Recherche pour l’Agriculture, Francia

Uma leitura territorialmente situada dos processos de transição agroecológica: ecologia de projetos na Região Serrana Fluminense

Redes. Revista do Desenvolvimento Regional, vol. 26, 2021

Universidade de Santa Cruz do Sul

Recepción: 30 Julio 2021

Aprobación: 26 Octubre 2021

Resumo: Este artigo busca analisar, sob uma perspectiva diacrônica, um conjunto diversificado de iniciativas de ambientalização/ecologização da agricultura e do sistema agroalimentar, contextualizadas na Região Serrana do Rio de Janeiro, particularmente nos municípios de Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo. As reflexões aqui apresentadas buscam dialogar com um emergente campo de estudos, de caráter interdisciplinar, que toma como objeto de investigação os processos de transição para a sustentabilidade. A pesquisa busca integrar uma abordagem de natureza sistêmica ao estudo das práticas e das experiências dos atores sociais, incorporando, também, contribuições advindas da geografia crítica brasileira e da sociologia francesa. O trabalho teve por base um conjunto diversificado de metodologias, incluindo análise documental, entrevistas semiestruturadas e observação participante. Os resultados alcançados colocam em evidência os efeitos gerados por um conjunto diversificado de contenções territoriais, que impõem limites à incorporação de princípios de sustentabilidade ao sistema agri-alimentar em nível territorial. Chamam atenção, ao mesmo tempo, para a capacidade de agência demonstrada pelos atores sociais na construção de projetos coletivos e individuais, possibilitando a emergência, ao longo do tempo, de um campo compartilhado de relações, quadros interpretativos e controvérsias, descrito pela pesquisa como uma ecologia de projetos.

Palavras-chave: Transições para a sustentabilidade, Sistemas agri-alimentares territoriais, Rio de Janeiro, Território, Ecologia de projetos.

Abstract: This article seeks to analyze, from a diachronic perspective, a diversified set of initiatives of environmentalization/ecologization in agriculture and the agri-food system, contextualized in the Serrana Region of Rio de Janeiro, particularly in the municipalities of Petrópolis, Teresópolis and Nova Friburgo. The reflections here presented seek to dialogue with an emerging field of studies, of an interdisciplinary nature, which takes as its object of investigation the processes of transition to sustainability. The research seeks to integrate a systemic approach to the study of practices and experiences of social actors, also incorporating contributions from Brazilian critical geography and French sociology. The work was based on a diverse set of methodologies including document analysis, semi-structured interviews, and participant observation. The results achieved highlight the effects generated by a diversified set of territorial restrictions, which impose limits to the incorporation of sustainability principles into the agri-food system at the territorial level. At the same time, they draw attention to the capacity for agency demonstrated by social actors in the construction of collective and individual projects, enabling the emergence, over time, of a shared field of relations, interpretative frameworks, and controversies, described in this research as an ecology of projects.

Keywords: Transitions to sustainability, Territorial agri-food systems, Rio de Janeiro, Territory, Ecology of projects.

Resumen: Este artículo busca analizar, desde una perspectiva diacrónica, un conjunto diversificado de iniciativas de ambientalización/ecologización de la agricultura y del sistema agroalimentario, contextualizadas en la Región Serrana de Río de Janeiro, particularmente en los municipios de Petrópolis, Teresópolis y Nova Friburgo. Las reflexiones aquí presentadas buscan dialogar con un campo de estudios emergente, de carácter interdisciplinario, que toma como objeto de investigación los procesos de transición hacia la sostenibilidad. La investigación busca integrar un enfoque sistémico al estudio de las prácticas y experiencias de los actores sociales, incorporando también contribuciones de la geografía crítica brasileña y la sociología francesa. El trabajo se basó en un conjunto diverso de metodologías que incluyen análisis de documentos, entrevistas semiestructuradas y observación participante. Los resultados alcanzados destacan los efectos generados por un conjunto diversificado de contenciones territoriales, que imponen límites a las posibilidades de incorporar principios de sostenibilidad al sistema agri-alimentario en nivel territorial. Al mismo tiempo, llaman la atención sobre la capacidad de agencia demostrada por los actores sociales en la construcción de proyectos colectivos e individuales, posibilitando el surgimiento, en el tiempo, de un campo compartido de relaciones, marcos interpretativos y controversias descrito por la investigación como una ecología de proyectos.

Palabras clave: Transiciones a la sostenibilidad, Sistemas agri-alimentarios territoriales, Rio de Janeiro, Territorio, Ecología de proyectos.

1 Introdução

Ao longo das últimas décadas, os processos de transição para a sustentabilidade, voltados à estruturação de um sistema agroalimentar socialmente justo e ambientalmente sustentável, passaram a se constituir como um campo interdisciplinar de reflexão, mobilizando um conjunto diversificado de esforços de pesquisa e teorização. Ainda que partindo de enfoques um pouco diferentes, diversos autores chamam atenção para o caráter multilinear e, em certa medida, contingente dessas trajetórias de mudança, envolvendo mecanismos de coordenação e formas de governança que atravessam diferentes domínios e escalas de intervenção.

Do ponto de vista sociológico, diversas abordagens têm sido acionadas pela literatura, buscando dar conta das múltiplas dimensões envolvidas nesses processos de transição. Cabe mencionar, entre elas: a teoria dos regimes alimentares; os estudos voltados à análise das transições sociotécnicas - com destaque para a Perspectiva Multinível (PMN); as investigações focalizando a resiliência dos sistemas socioecológicos; a Perspectiva Orientada aos Atores (POA); os debates envolvendo as dimensões sociais subjacentes aos processos de transição orientados por um enfoque agroecológico - além de abordagens de inspiração pragmatista, que incluem trabalhos inspirados na Teoria do Ator-Rede, entre outras vertentes filiadas a uma sociologia das práticas1.

Não é nosso objetivo neste trabalho apresentar uma revisão sistemática dos distintos quadros de interpretação utilizados no estudo destas trajetórias de mudança socioecológica na agricultura e no sistema agroalimentar. Vale a pena destacar, no entanto, que a definição dos atores relevantes, princípios orientadores e dos níveis sistêmicos a serem considerados no estudo dos processos de transição rumo a um sistema mais justo e sustentável de produção, distribuição e consumo de alimentos, têm sido foco de debates e controvérsias. É importante também reforçar que, como observa Hinrichs (2014), esse esforço intensivo de reflexão sobre as transições, guarda uma estreita relação com intensos questionamentos no que diz respeito à sustentabilidade do atual sistema agroalimentar, sendo impulsionado, também, por um amplo conjunto de políticas, projetos e iniciativas, desenvolvidas em diferentes partes do mundo, e que têm servido como “contexto, eventualmente como contraponto e às vezes como objetos empíricos, para um campo de pesquisas voltado às transições para a sustentabilidade”, que hoje se encontra em pleno desenvolvimento (HINRICHS, 2014, p. 145).

A definição que serve de inspiração, pelo menos para uma parte desta literatura, sobretudo para os estudos centrados nos processos de inovação tecnológica, compreende as transições sociotécnicas como um conjunto inter-relacionado e continuado de mudanças, em múltiplas dimensões (tecnológicas, materiais, econômicas, institucionais, políticas), protagonizadas por diferentes atores e capazes de produzir alterações significativas na estruturação dos sistemas sociotécnicos (GEELS, 2019). No caso específico da Perspectiva Multinível, as transformações analisadas são percebidas como resultado de inter-relações que se estabelecem em três níveis distintos, de valor eminentemente heurístico: o regime sociotécnico - que abarca um amplo conjunto de atores, relações, regras e normas, padrões cognitivos e materialidades, que contribuem para a estabilização de determinadas trajetórias tecnológicas; os nichos de inovação, entendidos como redes de atores que operam como locus de inovações radicais; a paisagem sociotécnica, compreendida como um ambiente exógeno, situado para além da influência direta tanto do nicho como do regime, mas que sob determinadas circunstância pode exercer pressão sobre os mesmos (GEELS, 2019).

A Perspectiva Multinível propõe que as transições sociotécnicas, definidas como mudanças de regime, são resultado das interações que se estabelecem entre esses três níveis, mas é importante considerar que, como observa Geels (2010), “as transições não acontecem facilmente pois os regimes existentes são caracterizados por bloqueios (lock-in) e dependências de trajetória, estando orientados na direção de inovações incrementais, através de percursos previsíveis” (GEELS, 2010, p. 495). As formulações propostas pela Perspectiva Multinível têm sido amplamente debatidas, sofrendo, também, algumas críticas no que diz respeito às articulações estabelecidas entre os diferentes níveis de análise, ao tratamento dispensado às relações de poder e à agência humana, à ausência de formulações capazes de contemplar as dimensões socioespaciais, entre outras2.

Estabelecendo um diálogo com a Perspectiva Multinível, mas abarcando, também, outros referenciais de análise, autores como Anderson et al (2021), Lamine (2020), Hinrichs (2014), entre outros, colocam em relevo o papel da agência humana nos processos de transição-transformação da agricultura e do sistema agroalimentar, chamando atenção para a necessidade de um olhar mais atento às redes, atores e práticas que se articulam nos diferentes contextos analisados, lançando luz sobre os efeitos gerados por esses agenciamentos sobre as dinâmicas de estabilidade e mudança no âmbito do sistema agroalimentar. Anderson et al (2021, p. 31) sugerem, inclusive, que as transformações em larga escala dos sistemas direta ou indiretamente relacionados à produção e consumo de alimentos, são compostas por “muitas transformações”, em um movimento no qual “mudanças políticas, lutas e redes que deveriam estar alinhadas, nem sempre estão”, chamando também atenção para a centralidade das relações de poder como elemento explicativo no estudo das dinâmicas do sistema agroalimentar, em sua transformação ao longo do tempo, envolvendo processos inter-relacionados de mudança, com modificações que se estabelecem em diferentes domínios.

Buscando interagir com esse debate sobre as transições, a partir de um contexto territorial específico, o presente artigo tem por objetivo analisar, sob uma perspectiva diacrônica, um conjunto diversificado de iniciativas de ambientalização/ecologização da agricultura e do sistema agroalimentar, tomando como referência territorial a Região Serrana do Rio de Janeiro, particularmente os municípios de Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo. A pesquisa tem como marco inicial a segunda metade da década de 1970, momento em que as experiências de agricultura alternativa davam seus primeiros passos neste território, estendendo seu olhar até os dias atuais. O enfoque adotado pelo trabalho busca articular as transformações sociais e ecológicas em curso nas últimas quatro décadas nos municípios analisados, focalizando, ao mesmo tempo, as práticas e experiências desses atores sociais na construção de um conjunto variado de arranjos socioprodutivos, que têm como ponto em comum o fato de se dedicarem à produção, processamento e comercialização de alimentos oriundos de uma agricultura de base ecológica. Utilizamos, no entanto, em diferentes momentos no decorrer do trabalho, a noção de transição agroecológica, entendendo que esta conceituação carrega consigo uma série de princípios que contribuem para qualificar a perspectiva de análise adotada pela pesquisa no que diz respeito a essas transformações3. Procuramos nos distanciar, no entanto, de qualquer intuito no sentido de impor aos atores um determinado “modelo de transição”, entendendo que os processos analisados, em sua historicidade, não devem ser reduzidos a uma lógica classificatória.

O quadro de interpretação que orienta a pesquisa procura lançar mão da noção de sistemas agri-alimentares territoriais4, desenvolvida no contexto da sociologia francesa como uma ferramenta analítica (LAMINE, 2020; LAMINE, 2017). Este conceito busca abarcar não apenas os elementos comumente considerados como parte integrante do sistema agroalimentar - ou seja, as relações envolvidas na estruturação das cadeias agroalimentares, da produção ao consumo – incorporando também as políticas públicas, as instituições que atuam no campo da assessoria técnica, extensão rural, pesquisa e desenvolvimento, as interações estabelecidas no contexto das organizações da sociedade civil, entre outras dimensões (LAMINE, 2017).

Esses diferentes níveis sistêmicos são tratados como espaços de interação atravessados por laços de interdependência, sistemas de prescrição (CHATEAURAYNAUD, 2015), debates e controvérsias. Nesses ambientes são fabricados projetos individuais e coletivos de ambientalização/ecologização, sendo que o principal desafio consiste em tomar os processos analisados em seu conjunto, descrevendo de forma detalhada as operações postas em prática pelos atores, em seu esforço por reorientar ou modificar suas estratégias ao longo do tempo. Trata-se, aqui, de romper com as grandes narrativas teleológicas, buscando a maneira como os próprios atores experimentam as bifurcações históricas. Tomando como referência a noção de sistema agri-alimentar territorial, buscamos decifrar, ao mesmo tempo, sem abrir mão de uma visão sistêmica, as interdependências e o emaranhado de visões, de relações e normas com as quais os atores envolvidos nestes processos interagem em seu cotidiano (LAMINE, 2017: 17).

O trabalho busca, também, estabelecer um diálogo com a geografia crítica brasileira, particularmente com os trabalhos desenvolvidos pelo geógrafo Rogério Haesbaert, em suas formulações acerca dos processos de des/re/territorialização em curso na contemporaneidade. Destacam-se, aqui, os esforços de teorização desenvolvidos pelo autor na análise de um conjunto de dinâmicas interpretadas a partir da noção de contenção territorial (HAESBAERT, 2009). A escolha deste termo, como aponta Haesbaert (2009, p. 115), deve-se a sua capacidade de exprimir o “caráter sempre parcial, provisório e paliativo dos ‘fechamentos’, ou melhor, do efeito-barragem criado através das tentativas de contenção dos fluxos”. Ao mesmo tempo, a ideia de contenção parece ter a vantagem de contribuir para explicitar as ações e os jogos de força que buscam inibir a proliferação de determinadas dinâmicas, ou provocar seu desaceleramento, deixando sempre em aberto a possibilidade de que elas venham a se recompor sob outros ritmos.

Importante salientar, no entanto, que a noção de contenção territorial, na maneira como foi utilizada nesse artigo, acaba tomando um rumo um tanto distinto da forma como Haesbaert (2016) mobiliza o conceito em suas pesquisas, contextualizadas, empiricamente, sobretudo nas periferias das metrópoles brasileiras. O autor analisa, principalmente, os efeitos gerados pelos muros e dispositivos de segurança que visam conter os fluxos de populações subalternizadas. Em nosso trabalho, no entanto, a ideia de contenção será mobilizada de forma ampla, visando abarcar as múltiplas maneiras através das quais determinados fluxos, que poderiam atuar no sentido de impulsionar os processos de transição para a sustentabilidade na escala dos territórios, podem ser impedidos e/ou dificultados, seja por meio de restrições de ordem física, seja por dispositivos legais, ou mesmo por contenções de natureza simbólica. A análise busca, ao mesmo tempo, observar como diferentes atores, mesmo diante de restrições contextuais, procuram dinamizar processos de transição territorialmente situados, partindo da hipótese de que estes processos podem ser potencializados a partir de ações articuladas em diferentes dimensões e arenas do sistema agri-alimentar.

Lançamos também como hipótese a ideia de que os processos de transição territorialmente situados vão se desdobrando, ao longo do tempo, a partir de uma ecologia de projetos, mobilizando atores e organizações com perfis e horizontes de atuação bastante heterogêneos, mas que podem, em maior ou menor medida, estabelecer sinergias que acabam por fortalecer esses processos na escala do território.

A noção de ecologia de projetos, aqui sugerida, é resultado de um esforço de tradução de formulações construídas por outros autores, a partir de um diálogo com as análises desenvolvidas no campo da ecologia organizacional, tendo por base as formulações originárias de Hannan e Freeman (2005). A ecologia organizacional tem como um de seus princípios analisar, de forma integrada, as relações que se estabelecem no tempo e no espaço entre organizações com perfis e padrões de comportamento semelhantes, ao invés de analisá-las de forma individualizada. Este enfoque busca compreender os ciclos através dos quais as empresas vão evoluindo relacionalmente no ambiente em que estão inseridas, observando os condicionantes que permitem que determinados perfis organizacionais possam predominar em um dado período. Transformações ocorridas em seu ambiente, podem contribuir para que determinadas populações de organizações sejam extintas e substituídas por outras. É importante dizer que nosso contato com esta literatura foi fortemente influenciado pelas formulações desenvolvidas por Lavalle e Von Büllow (2014) tendo como foco os processos de intermediação institucionalizada desenvolvidos no contexto da sociedade civil latino-americana. Os autores se propõem a estudar determinados conglomerados associativos a partir de uma “ecologia organizacional ampliada”, abarcando em sua análise “populações diversificadas de organizações da sociedade civil que criam formas organizacionais especializadas para lidar com sua interdependência dentro de ambientes compartilhados” (LAVALLE e VON BÜLLOW, 2014, p. 128).

Já a noção de projeto foi diretamente influenciada pelas formulações de Boltanski e Chiapello (2009), que concebem os projetos como oportunidades e pretextos para a construção de conexões. Em torno de um determinado projeto, reúne-se um conjunto diverso de pessoas, por um período maior ou menor de tempo, sendo que este passa a se configurar como um “segmento de rede fortemente ativado” nesse interregno temporal, possibilitando, também, a criação de laços mais duradouros, que podem permanecer adormecidos mas que, em maior ou menor medida, estão sempre disponíveis. Os projetos se constituem, dessa forma, como “um bolsão de acumulação temporário que, sendo criador de valor, dá fundamento à exigência de ampliar a rede, favorecendo conexões”. (Boltanski e Chiapello, 2009: 135).

Não se trata, de maneira alguma, de conceber esses projetos com base em uma perspectiva evolutiva, tendo em vista que, enquanto projetos (Boltanski e Chiapello, 2009), são sempre constituídos a partir de conexões que podem ou não ser reativadas. Além disso, estes distintos projetos podem entrar, a qualquer momento, em contradição. Nessa direção, as noções de exclusão e adaptação, utilizadas pelos autores vinculados à ecologia organizacional, contribuem para chamar atenção, tanto para os desenvolvimentos não lineares que marcam a evolução desse tecido reticular de organizações e projetos, como para o componente agonístico presente nessas interações.

Os resultados aqui apresentados têm relação com um trabalho de pesquisa, de longa duração, associado à elaboração de uma Tese de Doutorado5. A investigação envolveu uma estreita aproximação com os atores do território, através da utilização de diferentes metodologias de investigação, incluindo a realização de entrevistas semiestruturadas com agricultores vinculados aos arranjos socioprodutivos analisados, observação participante (tanto nas feiras como em diferentes eventos organizados pelas associações e cooperativas) e a sistematização de informações referentes a 101 Planos de Manejo de produtores orgânicos certificados pela Associação de Produtores Biológicos do Rio de Janeiro (em Nova Friburgo, Teresópolis e Petrópolis), referentes ao período 2017 e 2018.

O artigo foi organizado em quatro seções, incluindo a introdução. A seção 2, busca reconstituir a trajetória histórica de especialização da Região Serrana Fluminense como um espaço geográfico voltado à produção de hortaliças, em sistema convencional, tendo como principal canal de escoamento a Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Segue-se a isso uma análise diacrônica e multi-situada do processo de estruturação, em diferentes partes do território, de um conjunto diversificado de organizações e arranjos socioprodutivos, inspirados, originalmente, pelos princípios de uma agricultura alternativa (natural, biológica, ecológica). Nas últimas duas décadas, esses arranjos passam a se identificar como experiências em agricultura orgânica. A seção 4, que tem como objetivo apresentar as considerações finais, sistematiza uma série de apontamentos sobre os casos analisados, dialogando com os quadros de interpretação mobilizados pela pesquisa.

2 Modernização e especialização na trajetória da Região Serrana Fluminense: produção convencional de hortaliças e contenções territoriais aos processos de transição agroecológica

As práticas e arranjos impulsionados a partir do processo de modernização da agricultura fizeram com que a produção de hortaliças em sistema convencional6 se tornasse uma das atividades predominantes entre os agricultores familiares da Região Serrana Fluminense. Três contextos sociopolíticos distintos influenciaram na emergência desta configuração. Entre as décadas de 1960 e 1980, a agricultura da região vivenciou os efeitos das políticas que buscaram articular industrialização, urbanização e modernização conservadora da agricultura, com destaque para a criação dos arranjos de comercialização articulados em torno das unidades das Centrais Estaduais de Abastecimento – CEASAs, implantadas a partir da primeira metade da década de 1970. Nas décadas de 1980 e 1990, verifica-se a ascensão de atores do setor privado nos arranjos construídos em torno da agricultura especializada na produção de hortaliças em sistema convencional no território, com destaque para a expansão dos serviços privados de assistência técnica e a estruturação de circuitos de comercialização liderados pelos atravessadores. Por fim, o processo de reconhecimento político e institucional da agricultura familiar, a partir de meados da década de 1990, fortaleceu a agricultura convencional na região, com políticas públicas e arranjos de governança específicos que acabaram, em grande medida, sendo liderados por atores vinculados à chamada agricultura convencional.

Ao longo do tempo, a produção especializada de hortaliças através de tecnologias convencionais foi impondo um conjunto de contenções aos processos de transição agroecológica. Estas contenções incorporam uma dimensão socioespacial, relacionada ao direcionamento das terras e das fontes de água de forma a garantir a estruturação e funcionamento deste tipo de produção, envolvendo, também, diferentes sistemas de prescrição que acabam por impor aos agricultores um esforço de adequação a determinados objetivos e convenções de qualidade.

O Mapa 1, abaixo7, possibilita a visualização dos três municípios analisados8, indicando zonas com significativa concentração de agricultores que produzem olerícolas em sistema convencional. Esta representação cartográfica evidencia, também, a presença, no contexto da Região Serrana Fluminense, de áreas não agricultáveis, dedicadas às áreas de preservação ambiental em função de sua alta declividade. Esta configuração territorial parece resultar da culminância de diferentes fatores, entre eles a topografia e seus efeitos no que diz respeito às variações de temperatura.

Imagem aérea dos municípios de Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo, indicando zonas com significativa concentração de sistemas convencionais de produção hortícola
Figura 1
Imagem aérea dos municípios de Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo, indicando zonas com significativa concentração de sistemas convencionais de produção hortícola
Fonte: produzido a partir de observações de campo e identificação de áreas de interesse em imagens aéreas

Refletindo, ainda, sobre as contenções à promoção de uma agricultura de base ecológica que se manifestam em escala territorial, nos parece importante chamar atenção para a implantação, nos municípios da Região Serrana, de toda uma rede de lojas de insumos, cujo funcionamento encontra-se estreitamente associado aos recursos disponibilizados pelos programas de crédito direcionados à agricultura familiar9. Merecem destaque, no que diz respeito às hortaliças, dois formatos distintos de comercialização. O primeiro deles está organizado em torno das unidades da CEASA, instaladas na Região Serrana e na Região Metropolitana do estado. O outro, estrutura-se em torno de unidades de beneficiamento e comercialização privadas, localmente conhecidas como galpões. Em ambos, é central o papel desenvolvido por intermediários ou atravessadores, responsáveis pelo transporte da produção.

No arranjo que envolve a articulação entre unidades da CEASA, os intermediários trabalham com um número restrito de produtos pelo fato de que as cargas dos caminhões são sempre compostas por um conjunto selecionado de cultivos, com pouca diversidade. Já no arranjo estruturado em torno dos galpões, a produção é recolhida diretamente na unidade produtiva dos agricultores, em pequenas caminhonetes, que realizam o transporte até os espaços de higienização e embalagem. A partir do galpão, a produção é escoada em caminhões maiores até às redes de supermercado. As caminhonetes que vão até as unidades dos agricultores são adaptadas para recolher tipos específicos de hortaliças, sendo que os agentes de mercado subdividem este trabalho por comunidades rurais, o que lhes permite organizar melhor as cargas nos veículos. O modus operandi adotado pelos atravessadores envolve a formação de grupos específicos de agricultores especializados na produção de alface, agrião, couve, e assim por diante.

Essa simplificação dos sistemas produtivos no que diz respeito à diversidade de espécies cultivadas é reforçada, ainda, em função da cobrança desses intermediários no sentido de que os agricultores mantenham um certo volume de entrega, não sendo viável para os produtores vincular-se a esse mercado ofertando uma grande diversidade de produtos em pequena quantidade, o que tornaria mais onerosos os custos de transporte. Como observou um de nossos entrevistados, que trabalha “só com agrião, direto mesmo, tem 18 anos”: “se você não caprichar na mercadoria, você não tem cliente (...) Então se a gente não manter o padrão, você não mantém o freguês”.

Por suas características estéticas, algumas variedades foram sendo privilegiadas pelos agricultores em detrimento de sua viabilidade produtiva. O exemplo das variedades de couve-flor com flores mais claras, que foram crescentemente sendo introduzidas no território, é sintomático. Este padrão de qualidade foi sendo crescentemente demandado pelos atravessadores, devido a sua melhor aceitação entre consumidores. No entanto, segundo os agricultores, estas variedades são significativamente mais suscetíveis a problemas fitossanitários.

Os tensionamentos impostos pela especialização produtiva parecem ser reforçados, também, pelas condições inerentes a uma agricultura de montanha, com disponibilidade restrita de áreas para cultivo. Na Região Serrana do Rio de Janeiro, a produção agrícola foi se estendendo, principalmente, nos vales. Desta forma, nas comunidades rurais em que predomina a agricultura especializada na produção de hortaliças, os vales são densamente ocupados, havendo uma interligação entre os espaços cultivados por diferentes agricultores, como se fossem áreas produtivas contíguas.

Esta configuração territorial acaba colocando diversos entraves aos processos de transição agroecológica, muitas vezes contendo sua emergência e disseminação em escala territorial. O uso de caldas e outros insumos biológicos, por exemplo, pode ser comprometido pela utilização de agrotóxicos por agricultores vizinhos. Como aponta uma agricultora da comunidade de Teresópolis, que iniciou seu processo de transição para a agricultura orgânica a partir de 2011: “vizinhos me perguntam se não podem usar algumas coisas que eu uso (...) mas olha a área dele ali, fica no meio dos outros irmãos, é difícil, porque todos sulfatam [utilizam agrotóxicos] direto”.

Comunidade rural Vieira – Teresópolis-RJ
Figura 2
Comunidade rural Vieira – Teresópolis-RJ
Fonte: Registro fotográfico realizado durante o trabalho de campo (Juliano Palm)

As limitações inerentes às unidades produtivas – considerando não apenas sua área total, mas também a área cultivável - fazem com que a estruturação de barreiras visando proteger os cultivos ecologicamente manejados das derivas de agrotóxicos provenientes das explorações agrícolas vizinhas, não seja viável para boa parte dos agricultores.

Comunidade de São Lourenço – Terceiro Distrito de Nova Friburgo
Figura 3
Comunidade de São Lourenço – Terceiro Distrito de Nova Friburgo
Fonte: Registro fotográfico realizado durante o trabalho de campo (Juliano Palm)

Importante observar que este problema atinge agricultores de forma bastante distinta. Aqueles que possuem maior disponibilidade de área e são proprietários de suas unidades produtivas conseguem, na maioria das vezes, estabelecer arranjos produtivos ecológica e economicamente viáveis, incorporando práticas de rotação de culturas ou utilizando o pousio como ferramenta de controle fitossanitário.

No outro extremo, agricultores arrendatários de pequenas áreas produtivas, além de terem seu retorno financeiro comprometido pelo arrendamento, são tensionados a produzir intensivamente em diminutas parcelas e encontram maior dificuldade para incorporar práticas agroecológicas, tendo em vista a necessidade de implantar culturas que rendem maiores retornos financeiros, muitas vezes com repetições subsequentes.

Ao mesmo tempo, os pequenos córregos que atravessam os vales são compartilhados por inúmeros agricultores, sendo fundamentais para irrigação, tanto para aqueles que têm acesso direto a essas fontes, quanto para aqueles produtores que se utilizam dessa água, em função de acordos estabelecidos com seus vizinhos. Ao passar por diversas propriedades com produção em sistema convencional, a possibilidade de contaminação desses corpos d’água por agrotóxicos e fertilizantes industrializados não pode ser desconsiderada, ainda mais se levarmos em conta a escassez de barreiras naturais entre as plantações e estes córregos.

A proximidade existente entre áreas produtivas, o compartilhamento de recursos hídricos para irrigação e a inexistência de fontes que possam ser totalmente livres de risco de contaminação por agrotóxicos tornam-se importantes limitadores para que agricultores inseridos nestas comunidades rurais possam se engajar em processos de transição para uma agricultura de base ecológica, particularmente no caso da agricultura orgânica, considerando as normas que regulamentam esse tipo de agricultura.

3 Fortalecendo processos de transição agroecológica territorialmente situados: uma ecologia de projetos

Nesta seção analisaremos as estruturas organizacionais construídas em torno das experiências socioprodutivas que buscaram, a partir de referenciais inspirados na chamada agricultura alternativa (natural, biológica, ecológica) e, nas últimas décadas, na agricultura orgânica10, incorporar preocupações ambientais ao manejo dos sistemas de produção agrícola na Região Serrana Fluminense. Partimos da ideia de que estas organizações podem ser apreendidas enquanto projetos coletivos, a partir dos quais os atores envolvidos em processos de transição agroecológica buscaram desencadear e articular ações multilocalizadas, perpassando diferentes dimensões e escalas do sistema agri-alimentar.

No contexto analisado, observamos que desde o surgimento das experiências pioneiras, ainda no início da década de 1980, foram sendo estruturadas organizações com diferentes formatos. A análise da trajetória destas organizações parece apontar um caminho instigante para aprofundar a discussão acerca das distintas formas através das quais esses atores buscaram fortalecer suas iniciativas, explicitando a heterogeneidade de caminhos trilhados pelos processos de transição agroecológica nesta porção do território fluminense.

Procuramos observar de que forma os diferentes atores vinculados a essas organizações articularam ações no âmbito da produção, distribuição e consumo, abarcando, também, outras dimensões do sistema agri-alimentar. Visamos pôr à prova a hipótese de que esses processos de transição vão se desdobrando a partir de uma ecologia de projetos, envolvendo uma significativa diversidade de atores e perspectivas de futuro, que ao longo do tempo podem vir a estabelecer, em maior ou menor medida, sinergias e mecanismos de coordenação, vivenciando, eventualmente, antagonismos.

Coonatura: cooperativismo entre consumidores e produtores de alimentos naturais

Uma das primeiras iniciativas que contribuiu para impulsionar experiências em agricultura de base ecológica na Região Serrana Fluminense teve origem na ação de consumidores da cidade do Rio de Janeiro que, em 1979, fundaram a Cooperativa Mista de Produtores e Consumidores de Ideias, Produtos e Soluções Naturais (Coonatura). No mesmo ano, um dos fundadores da cooperativa, Paulo Aguinaga, também originário da cidade do Rio de Janeiro, havia alugado um sítio na comunidade rural do Brejal, em Petrópolis. Quando a Coonatura estruturou seu primeiro entreposto de comercialização, já em 1980, sua experiência contava com “uma produção pequena, mas que já justificava descer para o Rio”.

Ao longo da década de 1980, esse canal de comercialização passou a interessar um grupo de agricultoras que moravam em sítios vizinhos. Em suas hortas, voltadas para a alimentação familiar e instaladas em locais relativamente afastados das áreas de produção manejadas com práticas convencionais, não eram utilizados fertilizantes químico-sintéticos ou agrotóxicos. Já na primeira metade da década de 1980, estavam articuladas à Coonatura cerca de cinco agricultoras, além da experiência pioneira dinamizada por Paulo.

Em 1985 surgiu a oportunidade de ampliar a produção com o arrendamento da Fazenda Pedras Altas, também no Brejal. Constituiu-se, desta forma, o Núcleo Rural da Coonatura, com a cooperativa arcando com investimentos em infraestrutura e promovendo mutirões com a participação de sócios consumidores nas áreas produtivas.

Em fins da década de 1980, outros agricultores do Brejal, principalmente os maridos das agricultoras que haviam começado a produzir para a cooperativa no período anterior, passaram a se interessar pelo arranjo construído em torno da Coonatura. A renda monetária das mulheres que produziam em suas hortas e comercializavam sua produção através da cooperativa, passou, em muitos casos, a superar a renda auferida pelos maridos, o que contribuiu para que eles se interessassem em dar início à transição para uma agricultura de base ecológica.

Nesse período, a Coonatura também foi criando novos entrepostos de comercialização na cidade do Rio de Janeiro. Com esta expansão, a organização ampliou seu volume de compras de produtos ecológicos provenientes de outras regiões do país, disponibilizados para seus associados, fortalecendo sua estrutura de transporte e logística.

Em 1993, a entidade participou da estruturação, juntamente com a Associação de Agricultores Biológicos do Rio de Janeiro (ABIO), da Feira da Glória, no Rio de Janeiro. A ABIO passou a atuar como certificadora da produção dos agricultores, em um momento em que a legislação que hoje regulamenta a produção, o processamento e a comercialização de produtos orgânicos ainda não havia sido implantada.

Em fins da década de 1990, estavam articuladas à Coonatura quase 30 famílias de agricultores, localizados em diferentes vales da comunidade do Brejal, e cerca de 2.100 associados consumidores na cidade do Rio de Janeiro.

Ao longo deste processo, como destaca Paulo Aguinaga: “a gente sempre foi muito radical nos preceitos do cooperativismo (...) a gente via o crescimento, mas queria manter a dimensão humana”. Em relação aos agricultores: “a remuneração era significativa, porque a gente já estava aplicando aquele espírito cooperativista, autêntico, (...) não visava o lucro (...). O que recebia lá, pagava aqui”. Ao mesmo tempo, na relação com os sócios consumidores, mantinha-se uma postura bastante rígida: “a gente tinha várias críticas ao crescimento desordenado, várias pessoas se associavam só para comprar alimentos mais baratos, mas não tinham essa ideologia”. Para evitar este perfil entre novos sócios: “a pessoa tinha que passar por uma reunião, assistia uma palestra sobre a Coonatura, o que era o cooperativismo, quais os deveres, se ela queria mesmo. Isso tudo era um filtro para evitar associações que a gente não queria”.

Ao longo da década de 2000, no entanto, a Coonatura passou a enfrentar dificuldades para se manter. Um dos principais complicadores, ao que tudo indica, foi a expansão do mercado de produtos orgânicos na cidade do Rio de Janeiro, impulsionada pela crescente institucionalização desse setor a partir de fins da década de 1990. Ter se mantido, pelo menos nos primeiros tempos, como o principal canal de acesso a alimentos ecológicos para um número crescente de consumidores que demandavam esses produtos, especialmente entre a classe média da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, parece ter sido de grande importância para a expansão desta iniciativa. No entanto, a entrada de novos atores passou a dificultar o funcionamento desse circuito.

ABIO: produtores biológicos e a estratégia de “forçar uma transformação” com a construção de arranjos alternativos de comercialização

A ABIO foi fundada em 1985, por um conjunto de atores que haviam estruturado experiências de produção em agricultura alternativa em comunidades rurais de Nova Friburgo, Teresópolis e municípios vizinhos, com destaque para jovens de origem urbana. Um dos objetivos centrais da criação desta associação era construir arranjos de comercialização, considerados como uma estratégia fundamental para impulsionar essas iniciativas. Como aponta Cristina Ribeiro, uma das sócias fundadoras e diretora da ABIO ao longo desses anos: “nosso objetivo era forçar uma transformação”, em que a criação de canais de comercialização, que pudessem viabilizar economicamente os agricultores, era considerada prioridade.

Um primeiro passo nessa direção foi dado, ainda em 1985, com a criação da “Feirinha da Saúde”, realizada semanalmente no centro da cidade de Nova Friburgo, e que motivou a criação da própria ABIO. Além desta feira, nos primeiros anos, membros da associação também articularam, em diálogo com os diretores da unidade da Companhia Brasileira de Alimentos (COBAL) do bairro do Humaitá, na cidade do Rio de Janeiro, um box para a comercialização da produção de associados, que passou a funcionar a partir de 1988. Esse entreposto logo se tornou um importante espaço de comercialização.

No entanto, a logística necessária para viabilizar o escoamento da produção até a capital do estado apresentava inúmeras dificuldades, sendo motivo de diversas discussões. Assim, em fins de 1992, a ABIO resolveu desativar o entreposto na Cobal, passando-o para a Coonatura. Depois disso, a ABIO passou a ter uma ação mais voltada à certificação em agricultura orgânica da produção de seus associados, ficando um longo período sem se envolver diretamente com a comercialização da produção, só voltando a atuar nessa área a partir de 2010.

Associações, empresas e a estratégia de disseminar a agricultura orgânica a partir de novos arranjos de comercialização

O processo de institucionalização da agricultura orgânica no Brasil impulsionou significativas transformações nas experiências em agricultura alternativa desenvolvidas na Região Serrana Fluminense. Por um lado, a ABIO passou a se consolidar como organismo certificador, por outro, o surgimento de novos canais para a aquisição desses alimentos na cidade do Rio de Janeiro influenciou o encerramento das atividades da Coonatura. A entrada de novos atores no setor também abriu a possibilidade de acesso pelos agricultores a outros canais de comercialização, especialmente com redes de supermercado.

Em 1997, duas sócias da ABIO que possuíam propriedades rurais em Nova Friburgo, tentaram estruturar um canal de comercialização em parceria com uma das unidades da rede varejista Zona Sul, instalada na cidade do Rio de Janeiro. Essa experiência, no entanto, durou apenas alguns meses. Ainda no primeiro mês, uma das integrantes desistiu e a outra produtora acabou abdicando também, meses mais tarde, tendo em vista a demanda de tempo e trabalho que o transporte de produtos até a capital exigia.

Em 1999 também foi organizada a Associação Horta Orgânica, que passou a comercializar a produção de agricultores orgânicos de São José do Vale do Rio Preto11 e de Petrópolis, principalmente da comunidade do Brejal, com redes de supermercado da Região Metropolitana do estado. A Horta Orgânica recolhia a produção nas unidades produtivas, higienizava, embalava e rotulava esses produtos em sua sede, para depois escoá-los. Na primeira metade da década de 2000 estavam articuladas à associação 67 famílias de agricultores, 48 do município de São José e 19 de Petrópolis.

No final da década de 1990 também foi criada a empresa Agrinatura, que visava adquirir a produção de agricultores orgânicos de Teresópolis, Nova Friburgo e localidades vizinhas, e comercializá-la através de redes varejistas no Rio de Janeiro (capital).

A construção desses circuitos de comercialização com os supermercados passou a se constituir como estratégia para ampliar escala e disseminar experiências em agricultura de base ecológica na Região Serrana Fluminense. Estes novos canais eram ainda mais importantes devido à crise vivenciada pela Coonatura e ao encerramento das atividades de comercialização no âmbito da ABIO.

A partir de meados da década de 2000, no entanto, esses canais de comercialização passaram a apresentar sérios problemas. Empresas de São Paulo passaram a vender produtos orgânicos a preços bem menores que os praticados pelas iniciativas instaladas no Rio de Janeiro. Esses chegavam aos supermercados do Rio, por exemplo, pelo mesmo valor que a Horta Orgânica pagava aos agricultores associados, em sua unidade produtiva, sem incluir os custos da higienização, acondicionamento e logística. Dessa forma, em fins da década de 2000, essas iniciativas foram encerradas. Os atores envolvidos nessas experiências buscaram construir outros arranjos de comercialização, entendendo que a articulação com redes de supermercados era inviável. A construção de feiras de comercialização direta passou a se constituir, para esses agentes, como uma estratégia central a partir desse momento.

Outros produtores orgânicos da Região Serrana Fluminense, no entanto, ampliaram significativamente sua escala de produção a partir dessa inserção em circuitos de comercialização com redes de supermercados e lojas especializadas.

Uma das experiências que seguiu essa trajetória foi o Sítio Cultivar. Sua proprietária era uma das associadas da ABIO que havia participado da construção do canal de comercialização com a rede varejista Zona Sul em 1997. Ao repassar esse contato comercial para a experiência do Sítio do Moinho, instalado em Petrópolis, a produtora começou a comercializar sua produção com uma das redes de supermercados existente em Nova Friburgo. Ao longo da década de 2000, essa iniciativa foi sendo ampliada, passando a envolver outros supermercados do município, lojas especializadas em produtos naturais e restaurantes. Mais recentemente, o Sítio Cultivar investiu, também, na entrega de cestas domiciliares, participando, ainda, da feira organizada na cidade. Outros produtores orgânicos do município de Nova Friburgo foram integrados a estes circuitos de comercialização, vendendo produtos que passaram a ser comercializados através desse empreendimento.

Trajetórias semelhantes foram construídas em torno do Sítio do Moinho e da Fazenda Vale das Palmeiras, instalada em Teresópolis. Até meados dos anos 2000, essas duas iniciativas tiveram como principal canal de comercialização redes de supermercados instaladas na Região Metropolitana do Estado. Posteriormente, passaram a implantar lojas próprias na cidade do Rio de Janeiro, especializadas em produtos orgânicos. No período mais recente, estruturaram sistemas de entregas domiciliares para seus clientes.

Importante observar que o Sítio do Moinho, também foi se constituindo em importante circuito de comercialização para outros produtores orgânicos do município de Petrópolis, tornando-se um canal de escoamento relevante para agricultores da comunidade do Brejal, especialmente no período marcado pela crise da Coonatura e a criação do CCFO.

ABIO: certificação participativa e a criação do Circuito Carioca de Feiras Orgânicas

Do início da década de 1990 até os anos 2010, a ABIO viabilizou a certificação de seus sócios através de um formato de certificação por auditoria, com técnicos contratados realizando visitas de inspeção junto aos produtores. Ao longo desses anos, a associação foi ampliando seu espaço de atuação como organismo certificador. Em 1998 estavam articulados à associação 74 produtores, distribuídos em 12 municípios do Rio de Janeiro. Em 2010, já eram 137 produtores associados, com atuação em 28 municípios do estado.

A partir de 2002, parte dos associados da ABIO participou ativamente das discussões acerca dos formatos de certificação a serem reconhecidos pela legislação brasileira. Através da participação no Grupo de Agricultura Orgânica (GAO), esse grupo contribuiu para o reconhecimento do Sistema Participativo de Garantia (SPG) pela legislação brasileira, o que ocorreu em 2007. Assim, a entidade decidiu, por meio de assembleia, registar-se como Organismo Participativo de Avaliação da Conformidade (OPAC). Em 2010, conquistou seu credenciamento, passando a certificar a produção de seus associados a partir de grupos de SPG.

O sistema participativo de garantia, ao que tudo indica, também contribuiu para uma significativa expansão do número de associados da ABIO a partir de 2010 e para a incorporação de produtores de outros municípios do Rio de Janeiro ao seu quadro social. Em 2018, a ABIO já certificava 612 produtores associados, distribuídos em 64 municípios do estado (Cadastro Nacional de Produção Orgânica/CNPO, 2018).

A criação do Circuito Carioca de Feiras Orgânicas (CCFO), em 2010, também parece ter sido de fundamental importância para impulsionar uma expansão no número de produtores orgânicos na Região Serrana Fluminense. Em 2006, a ABIO promoveu um seminário visando discutir os entraves enfrentados pela agricultura orgânica no Rio de Janeiro. Nesse evento foram apresentados os resultados de uma pesquisa que entrevistou grande parte dos produtores associados, evidenciando que a comercialização se constituía na principal dificuldade para os produtores. Como estratégia, os participantes consideraram que seria fundamental a criação de novas feiras de comercialização direta, entendendo que esta havia sido a melhor estratégia experimentada até então.

A partir desse período, integrantes da direção da ABIO passaram a envidar esforços para viabilizar a criação de novas feiras orgânicas na cidade do Rio de Janeiro, onde identificavam a existência de um consistente mercado consumidor. A estruturação de feiras orgânicas na cidade do Rio de Janeiro era inviabilizada por uma normativa municipal, que impedia a criação de novas feiras no município. Assim, através da participação em espaços públicos de discussão relacionados à institucionalização dos marcos regulatórios relacionados à produção orgânica no estado do Rio de Janeiro, representantes da ABIO articularam com agentes do poder público municipal, especialmente da Secretaria Especial de Desenvolvimento e Economia Solidária (SEDES), a construção do CCFO.

Desde o início, a maior parte dos agricultores que comercializam nas feiras do CCFO é proveniente dos municípios da Região Serrana. Grande parte deles acessa o CCFO através de grupos de comercialização, que facilitam o escoamento da produção até a capital do estado. Essas estratégias coletivas parecem ser de crucial importância no sentido de viabilizar a participação de um número mais amplo de agricultores no arranjo de comercialização construído em torno do CCFO. A participação nas feiras realizadas na Região Metropolitana envolve custos financeiros, especialmente para viabilizar o transporte, e significativa dedicação de tempo, tendo em vista as distâncias existentes entre espaços de produção e locais de comercialização.

O crescimento no número de sócios da ABIO registrado nos últimos anos também parece ter motivado a emergência de algumas controvérsias no âmbito da associação, especialmente no tocante às transformações sociais e culturais que a organização pretende promover, em articulação com os processos de transição sociotécnica. Emblemáticas, nesse sentido, são as discussões sobre potenciais locais de implantação e preços praticados nas feiras do CCFO, relativamente mais altos, atendendo a um público de classe média alta da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, residente em bairros nobres da cidade. Nos últimos anos, associados têm expressado a opinião de que as feiras deveriam se restringir aos bairros em que já ocorrem, não se expandindo para outras áreas, enquanto outros entendem que as feiras deveriam buscar garantir acesso a alimentos orgânicos para pessoas de diferentes classes sociais.

Destarte estas controvérsias, ao longo dos anos as feiras do CCFO têm se expandido, ao menos em parte, para áreas mais periféricas. Atualmente, o CCFO é composto por 21 feiras distribuídas em diferentes bairros da cidade. Estão articulados às feiras do circuito mais de 200 produtores orgânicos vinculados à ABIO (sobretudo da Região Serrana e Baixada Fluminense), que atendem cerca de 5.000 famílias de consumidores. Além disso, a criação do circuito motivou um movimento que vem se estendendo para outras cidades da Região Metropolitana.

A dinâmica fomentada a partir da criação do CCFO e do SPG coordenado pela ABIO, foi de crucial importância para a expansão do número de agricultores orgânicos na Região Serrana Fluminense. Cerca de 92% dos produtores certificados como orgânicos pelo Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (MAPA) no município de Petrópolis, estão articulados a esses arranjos de certificação e comercialização. Esse percentual alcança 99% dos produtores orgânicos existentes no município de Teresópolis e 67% em Nova Friburgo (CNPO, 2018). Ao mesmo tempo, essa dinâmica impulsionada em torno da ABIO está vinculada a outras iniciativas que foram sendo construídas ao longo do tempo, a exemplo da Associação Agroecológica de Teresópolis (AAT).

AAT: agroecologia e economia solidária em um arranjo localizado de comercialização direta

Em 2005 teve início a Feira Agroecológica no município de Teresópolis, formada por um grupo de produtores orgânicos, essencialmente de origem urbana, associados e certificados pela ABIO. Em 2007 a iniciativa foi oficializada, dando origem à Associação Agroecológica de Teresópolis (AAT). Desde então, as feiras promovidas pela AAT passaram a ocorrer semanalmente.

A criação da AAT foi motivada, em grande medida, pelo objetivo de estruturar um arranjo de comercialização direta envolvendo consumidores e agricultores orgânicos no próprio município. Um dos fundadores da associação, Roberto Selig, relata que, a partir da estruturação do arranjo de comercialização construído pela ABIO no entreposto da Cobal, e do desgaste e problemas que ele envolveu, sentiu a necessidade de articular canais de comercialização no município em que residia e onde estava localizada sua unidade de produção: “eu vi que aquela coisa de descer pro Rio não dava certo. Tinha um custo financeiro e trabalho enormes”. Ao longo da década de 1990, este produtor participou de diferentes iniciativas de comercialização em Teresópolis, até que na primeira metade dos anos 2000 foi se constituindo um grupo de pessoas interessadas na implantação da AAT.

Ao longo dos anos, as feiras da associação foram se consolidando, por diferentes fatores, na mais consistente iniciativa de comercialização direta entre produtores orgânicos e consumidores nos municípios da região analisada. Atualmente estão articulados à AAT mais de 30 produtores orgânicos de Teresópolis, sendo esta iniciativa um dos principais canais de comercialização para estes agricultores. Importante notar, ainda, que as feiras da AAT contribuem, também, para a articulação com outros canais de comercialização, a exemplo do CCFO e da participação em chamadas do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

Em sintonia com os princípios de “incentivar e promover a agroecologia e a economia solidária” inscrito no Estatuto da AAT, além de um espaço de comercialização, a feira busca se constituir como um espaço diferenciado de interação social, articulando manifestações culturais, palestras, entre outras atividades envolvendo produtores e consumidores.

A partir de 2010, a AAT se constituiu como um dos grupos de SPG da ABIO, passando a fomentar uma instigante dinâmica de intercâmbio e geração de novos conhecimentos. Nas reuniões quinzenais realizadas após as feiras, os debates sobre questões técnico-produtivas acabam tendo um importante espaço. Nessas discussões, a proposta de articular o atendimento aos preceitos da legislação orgânica à “ideologia agroecológica” é frequentemente salientada, seja no sentido de problematizar a transição do conjunto das atividades desenvolvidas por cada produtor, seja no de valorizar conhecimentos tradicionais de atores com origem na agricultura familiar.

A expansão do número de associados ocorrida nos últimos anos, também tem motivado algumas preocupações entre associados da AAT. Especialmente entre os sócios fundadores, existe a inquietude de que a associação não passe a ser considerada apenas uma estratégia para viabilizar a certificação orgânica com menores custos ou simplesmente como um espaço de comercialização. Como apontam associados que atuam na direção da entidade, é preciso cultivar: “esta relação com a nossa causa, da agroecologia, da agricultura orgânica, da preocupação com as relações humanas”.

***

Ao longo desta seção, procuramos reconstituir o percurso através do qual, atores, práticas e materialidades foram sendo mobilizados, no esforço por articular ações, em diferentes níveis sistêmicos, buscando superar um conjunto diversificado de obstáculos que se apresentavam, nos diferentes momentos do tempo, como barreiras aos processos de transição agroecológica. Algumas dessas contenções iam sendo contornadas através de conexões estabelecidas no próprio território. Outras, no entanto, demandaram (e ainda demandam) articulações mais amplas, tanto no território, como para além dele, de forma a possibilitar mudanças estruturais mais profundas. O tecido social construído em articulação com esse conjunto heterogêneo de experiências produtivas, desempenhou um papel fundamental na mediação entre projetos individuais e projetos coletivos, no encadeamento das ações ao longo do tempo e na capacidade de coordenar práticas e atores articulando, em maior ou menor medida, as múltiplas dimensões do sistema agroalimentar.

4 Contenções territoriais e ecologia de projetos: alguns apontamentos

A configuração territorial da Região Serrana, em sua historicidade, influenciou de maneira significativa as trajetórias e desdobramentos das experiências de ecologização/ambientalização da agricultura que, ao longo dos anos, emergiram nessa porção do território fluminense, atuando tanto no sentido de dinamizá-las quanto de contê-las. Nas comunidades rurais em que agricultura especializada na produção de hortaliças em sistema convencional foi se adensando, um conjunto de contenções se interpôs a essas experiências, influenciando sua localização, às margens das áreas de produção agrícola intensamente manejadas com fertilizantes químicos e agrotóxicos.

Estas contenções parecem ter sido reforçadas, ainda, pela importância que a certificação em agricultura orgânica foi ganhando a partir de meados dos anos 1990. As normas e regras de certificação parecem ter colocado importantes barreiras para os processos de transição neste espaço. Para a grande maioria dos agricultores com unidades produtivas situadas em comunidades rurais em que predomina a produção de hortaliças em sistema convencional, a certificação em agricultura orgânica esbarra em limites de área para a construção de barreiras físicas que possam evitar a contaminação por agrotóxicos. Somam-se a estas dificuldades uma série de contenções simbólicas, em relação, por exemplo, à eficácia das práticas agroecológicas, sua rentabilidade econômica, e assim por diante.

Já o resgate histórico anteriormente apresentado parece confirmar, em grande medida, a hipótese construída a partir da abordagem dos sistemas agri-alimentares territoriais, de que os processos de transição podem ser fortalecidos a partir de ações desencadeadas e articuladas em diferentes níveis sistêmicos. Reforçamos, nesse sentido, a ideia de que uma análise da ecologia de projetos de transição agroecológica, territorialmente situados, que se constitui na Região Serrana nesse período, nos ajuda a compreender como estes processos foram se desdobrando ao longo do tempo. A medida em que se configuram como propostas de mudança que buscam romper com os modos de organização dominantes no sistema agri-alimentar, estes projetos, normalmente, acabam alcançando resultados fragmentados, sendo impulsionados por coletivos de atores que buscam transformar os contextos em que estão inseridos, trabalhando com os recursos que têm às mãos. A ideia de uma ecologia de projetos nos permitiu observar interações entre os diferentes grupos, identificando, também, elementos de continuidade entre projetos distintos, em meio a descontinuidades prementes.

Em Petrópolis, por exemplo, observamos que no processo desencadeado com a Coonatura, tendo como foco um arranjo de comercialização cooperativista, foram cruciais as interações estabelecidas, a partir da primeira metade dos anos 1990, com as ações desenvolvidas pela ABIO no campo da certificação. Ao mesmo tempo, em meio à crise que levou ao fechamento da Coonatura, foi fundamental para os agricultores orgânicos da comunidade do Brejal sua articulação com a Horta Orgânica, que lhes permitiu comercializar sua produção, naquele momento, via redes de supermercados. Em meados dos anos 2000, quando esta articulação com os supermercados, na capital do estado, começou a se fragilizar, os canais de comercialização estabelecidos com o Sítio do Moinho e a participação nas compras institucionais para alimentação escolar, também se constituíram como estratégias importantes. Esta trajetória possibilitou a ampliação no número de agricultores orgânicos no município, impulsionada pela criação tanto do CCFO, nos anos 2010, como do SPG coordenado pela ABIO, fazendo com que Petrópolis se constituísse como o município com maior número de produtores orgânicos do estado do Rio de Janeiro.

Em Teresópolis observamos que, ao longo dos anos 1980 e 1990, os atores foram viabilizando seus projetos familiares e individuais em interação com a ABIO. Na segunda metade dos anos 2000, esses projetos confluíram na criação da AAT e no fortalecimento da “feira agroecológica”. Mas a ABIO continua desempenhando um papel central nesse arranjo, ao viabilizar a certificação participativa dos produtores orgânicos.

Já em Nova Friburgo, destacam-se, desde o início da década de 2000, as interações construídas entre produtores orgânicos e o Sítio Cultivar, com as redes locais de supermercados e lojas especializadas.

Nos três municípios é possível observar sinergias entre projetos individuais ou familiares desenvolvidos, tanto por produtores orgânicos de origem urbana, como por agricultores familiares da região. A articulação entre esses dois segmentos foi fundamental na experimentação de práticas em agricultura alternativa, na estruturação de diferentes canais de comercialização (com destaque para o CCFO), na implantação do SPG e das iniciativas de comercialização com redes de supermercados.

Consideramos, assim, que a leitura longitudinal que nos permitiu observar essa ecologia de projetos e seus desdobramentos ao longo do tempo, oportuniza um certo deslocamento analítico em relação aos estudos centrados em experiências ou projetos específicos. Ao reconstruir a trajetória desses projetos em suas interações ao longo dos anos, tivemos a oportunidade de identificar conexões que poderiam passar desapercebidas no que diz respeito às complementariedades que vão sendo estabelecidas e acabam por fortalecer esses processos, identificando, também, determinadas tensões ou contradições, que podem contribuir para a ocorrência, em momentos de crise, de determinadas inflexões. Isso pode ser exemplificado através da comercialização estabelecida com as grandes redes de supermercado, que ao se tornar inviável para parte dos atores analisados, por diversos motivos, acabou motivando a construção de circuitos alternativos.

A partir desta análise longitudinal percebemos, ainda, que os projetos coletivos construídos a partir das experiências em agricultura de base ecológica foram assumindo funções diversas ao longo dos anos. Alguns desses projetos acabaram sendo mais multifuncionais, conseguindo desencadear e articular ações em diferentes dimensões sistêmicas, enquanto outros tiveram um papel mais específico, com ações voltadas a um campo mais circunscrito, como, por exemplo, a construção de um determinado canal de comercialização. De maneira geral, no entanto, parecem ter oportunizado a conformação de um tecido social que se manteve vivo ao longo do tempo, com a capacidade de alimentar processos de transição territorialmente situados.

A institucionalização dos marcos regulatórios relacionados à agricultura orgânica, implantados no final da década de 1990, acabou gerando uma profunda redefinição na conformação dos mercados. A partir deste período, é possível identificar, no contexto analisado, a predominância de duas perspectivas distintas. De um lado, o aprimoramento da qualidade orgânica e disponibilização desses produtos através das grandes redes varejistas e lojas especializadas; de outro, uma proposta com foco na certificação participativa e na construção de uma aliança entre produtores e consumidores através de circuitos de comercialização direta.

Os resultados gerados pela pesquisa reforçam a ideia de que os processos de transição agroecológica, não se desdobram de maneira unidirecional, mas sim através de inúmeras inflexões, alinhamentos e complementaridades.

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Notas

1 Existe uma extensa literatura associada a este debate, envolvendo tanto reflexões de cunho mais teórico, como trabalhos de pesquisa empírica desenvolvidos em diferentes países, inclusive no Brasil. Referenciamos, aqui, trabalhos recentes que se dedicaram a estabelecer algum tipo de revisão ou diálogo envolvendo essas abordagens. Ver, por exemplo: Hinrichs (2014); Ollivier et al (2018); Köhler et al (2019); Lamine (2020); Anderson et al (2021) – entre outros. O livro publicado por Niederle e Wesz Junior (2018), ainda que não tenha como foco principal a discussão sobre as transições, aporta elementos importantes a esse debate.
2 Um esforço de sistematização e resposta às críticas endereçadas à Perspectiva Multinível pode ser encontrado em Geels (2019). Para um diálogo entre a PMN e a geografia ver: Chandrashekeran (2016).
3 Ver, por exemplo: Wezel et al (2020); Anderson et al (2021).
4 Em consonância com a literatura aqui referenciada, utilizamos neste trabalho a expressão agri e não agro, deslocamento que, na formulação original em francês, indicaria um distanciamento em relação a uma visão convencional do agro, como um conjunto de relações estruturadas em torno das cadeias produtivas, enfatizando, sobretudo, as relações mercantis.
5 A tese intitulada Processos de transição agroecológica: ecologia de projetos - uma abordagem pragmática, sistêmica e territorial na Região Serrana Fluminense foi defendida pelo primeiro autor junto ao CPDA/UFRRJ. A segunda e terceira autoras deste artigo atuaram, respectivamente, como orientadora e coorientadora do trabalho. A pesquisa contou com o apoio de uma bolsa de estudos concedida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), além do financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), que viabilizou a realização de estágio de Doutorado-Sanduíche realizado na França.
6 Estamos nos referindo, aqui, a uma produção de hortaliças desenvolvida em escala comercial, caracterizada pelo uso intensivo de agrotóxicos, fertilizantes químicos, mecanização (muitas vezes com uso de implementos de pequeno porte) e altamente dependente de estruturas de irrigação.
7 Este mapa foi produzido a partir de observações a campo e identificação, em imagens aéreas, de áreas com significativa concentração da produção de olerícolas em sistema convencional (indicadas em marrom). Nesses espaços foram também implantadas as principais infraestruturas relacionadas à comercialização de produtos hortícolas. Aqueles locais onde os sistemas produtivos são mais rarefeitos, por razões de ordem técnica, não aparecem nesta visualização.
8 O município de Petrópolis aparece à esquerda, Teresópolis no meio e Nova Friburgo à direita.
9 Esta rede de lojas possui técnicos especializados na elaboração de projetos de infraestrutura e custeio do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), mantendo rotinas de trabalho relacionadas a estes projetos, contando com o apoio de unidades bancárias instaladas na região.
10 A principal referência, neste caso, é a definição de “sistema orgânico de produção agropecuária” incorporada à Lei 10.831/2003, nos termos em que vem sendo interpretada e traduzida, sobretudo no âmbito dos sistemas de certificação participativa implantados no Brasil.
11 Município vizinho à Petrópolis.
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